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G LOBALIZAÇÃO E MORALIDADE DA PESQUISA COM SERES HUMANOS Globalization and human research morality Fermin Roland Schramm 1 RESUMO A relação entre globalização e pesquisa com seres humanos, analisada pela bioética, é uma relação em que, por um lado, a globalização insta a bioética a ter em conta os aspectos pragmáticos e contingenciais da pesquisa e a bioética obriga a globalização a justificar moralmente seus efeitos considerados negativos do ponto de vista moral. Este é o caso do polêmico duplo standard na pesquisa com seres humanos, quando esta é realizada em países em desenvolvimento, onde existe uma proteção insuficiente dos sujeitos da pesquisa. Tal situação pode ser indicada pela imagem mitológica do Jano de duas faces, que indica, por um lado, o que deveria ser feito para garantir uma forma razoável de bem-estar, e, por outro, o que, ao contrário, deveria ser evitado. Sabendo, no entanto, que a globalização é um fenômeno complexo e provavelmente irreversível que afeta a todos e que une enquanto divide; diferencia enquanto integra, inclui alguns enquanto exclui outros. Isso se aplica, em particular, à pesquisa com seres humanos, onde a dinâmica da globalização pode implicar a vulneração dos sujeitos utilizados. PALAVRAS-CHAVE Pesquisa com seres humanos, globalização, moralidade, bioética, biopolítica ABSTRACT The relation between globalization and research with human beings, analyzed from a bioethical point of view, is a relation in which the globalization enforces bioethics to regard contingencies and the pragmatic aspects of research with human subjects, and, on the other hand, bioethics compels globalization to morally justify its effects considered negative from a moral point of view. This is the case of the controversial double standard in researches with human beings, in which research is carried out in developing countries, where the protection of the research subjects is insufficient. Such situation can be indicated by the mythological image of the two-faces Janus, that indicates, on one hand, what should be done to guarantee reasonable well-being, and, on the other hand, what should be avoided. Knowing, however, that globalization is a complex and probably irreversible phenomenon that affects all and that it unites while it divides; differentiates while it integrates; includes some while it excludes others. This can be applied, especially, to the research with human beings, where the dynamics of the globalization can imply an increase in the vulnerability of the subjects used in the research. KEY WORDS Research with human beings, globalization, morality, bioethics, biopolitics. 1 Pós-doutor em Bioética. Pesquisador Titular em Ética Aplicada e Bioética da Escola Nacional se Saúde Pública da Fun- dação Oswaldo Cruz. End: Rua Leopoldo Bulhões, 1480, sala 914, Manguinhos - Rio de Janeiro. CEP: 21041-210 Email: roland@ensp.fiocruz.br C AD . S AÚDE C OLET ., R I O D E J ANEIRO , 17 (3): 531 - 545, 2009 – 531

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gloBalização e moRalidade da peSquiSa Com SeReS humanoS

Globalization and human research morality

Fermin Roland Schramm1

rESUmo

A relação entre globalização e pesquisa com seres humanos, analisada pela bioética, é uma relação em que, por um lado, a globalização insta a bioética a ter em conta os aspectos pragmáticos e contingenciais da pesquisa e a bioética obriga a globalização a justificar moralmente seus efeitos considerados negativos do ponto de vista moral. Este é o caso do polêmico duplo standard na pesquisa com seres humanos, quando esta é realizada em países em desenvolvimento, onde existe uma proteção insuficiente dos sujeitos da pesquisa. Tal situação pode ser indicada pela imagem mitológica do Jano de duas faces, que indica, por um lado, o que deveria ser feito para garantir uma forma razoável de bem-estar, e, por outro, o que, ao contrário, deveria ser evitado. Sabendo, no entanto, que a globalização é um fenômeno complexo e provavelmente irreversível que afeta a todos e que une enquanto divide; diferencia enquanto integra, inclui alguns enquanto exclui outros. Isso se aplica, em particular, à pesquisa com seres humanos, onde a dinâmica da globalização pode implicar a vulneração dos sujeitos utilizados.

palavraS-ChavE

Pesquisa com seres humanos, globalização, moralidade, bioética, biopolítica

abStraCt

The relation between globalization and research with human beings, analyzed from a bioethical point of view, is a relation in which the globalization enforces bioethics to regard contingencies and the pragmatic aspects of research with human subjects, and, on the other hand, bioethics compels globalization to morally justify its effects considered negative from a moral point of view. This is the case of the controversial double standard in researches with human beings, in which research is carried out in developing countries, where the protection of the research subjects is insufficient. Such situation can be indicated by the mythological image of the two-faces Janus, that indicates, on one hand, what should be done to guarantee reasonable well-being, and, on the other hand, what should be avoided. Knowing, however, that globalization is a complex and probably irreversible phenomenon that affects all and that it unites while it divides; differentiates while it integrates; includes some while it excludes others. This can be applied, especially, to the research with human beings, where the dynamics of the globalization can imply an increase in the vulnerability of the subjects used in the research.

KEy wordS

Research with human beings, globalization, morality, bioethics, biopolitics.

1 Pós-doutor em Bioética. Pesquisador Titular em Ética Aplicada e Bioética da Escola Nacional se Saúde Pública da Fun­dação Oswaldo Cruz. End: Rua Leopoldo Bulhões, 1480, sala 914, Manguinhos - Rio de Janeiro. CEP: 21041-210 Email: [email protected]

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1. introdUção

O objeto de nosso estudo é o contexto da pesquisa com seres humanos, feita tanto por profissionais das tecnociências biomédicas como por profissionais das ciências humanas e sociais, conhecido como “globalização”. Entretanto, a rela­ção entre pesquisa e globalização pode ser entendida de duas maneiras distintas, embora não separadas.

Num primeiro sentido, pode ser entendida com o significado de a globalização do mundo colocar desafios pragmáticos à bioética em pesquisa, sendo que tais desafios São aqUElES qUE dECorrEm dE CaraCtEríStiCaS ESpECífiCaS da globalização, que devem ser descritas mostrando quais são, como se manifestam e por que são relevantes do ponto de vista bioético quando este for aplicado às pesquisas com seres humanos, entendidas como as que se referem às práticas de pesquisa tanto nas ciências da vida quanto nas ciências humanas e sociais. Neste caso, o desafio da globalização à ética em pesquisa pode implicar abandonar antigos paradigmas normativos, como seria o caso do paradigma hipocrático, para adotar um novo paradigma, supostamente mais adaptado às novas contingências da globaliza­ção, fazendo com que determinados padrões éticos devam ser contextualizados e adaptados às contingências locais da pesquisa, mesmo que isso implique uma relativa falta de proteção dos sujeitos, objetos de pesquisa, como é o caso do controvertido duplo standard, criticável porque não garante a todos os sujeitos da pesquisa “um adequado nível de ‘qualidade de vida’, isto é, de bem-estar e autorealização” (Mori, 2008, p. 102).

Num segundo sentido, menos evidente, a relação entre pesquisa e globali­zação pode significar que a bioética aplicada à pesquisa insta a globalização a justificar moralmente as implicações de suas práticas, consideradas moralmente questionáveis. Este é também o caso do duplo standard, que parece indicar o que pode estar “atrás do espelho” da globalização, como a paradoxal exclusão de boa parte da humanidade de um processo que por definição deveria ser inclusivo, pelo menos se consideramos que globalização indica uma série de características estruturais das sociedades contemporâneas: a interconexão planetária dos meios de comunicação e do mercado econômico-financeiro, a proliferação de organis­mos supranacionais e internacionais, e a difusão de modelos e estilos de vida e de consumo padronizados (Lunghi, 2006). Neste sentido, pode-se, por exemplo, destacar o fato de a pesquisa com seres humanos ter como um dos atores – além dos pesquisadores e os sujeitos de pesquisa a indústria farmacêutica, que, cada vez mais, parece ditar as regras pragmáticas – ou supostamente tais – de como a pesquisa deve ser feita, seus limites e liberdades, enquadrada naquele dispositivo conhecido como Big Pharma, uma estrutura industrial mundial que é, de fato,

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uma corporação multinacional que movimenta centenas de bilhões de dólares, com os quais arca, por exemplo, boa parte dos custos da pesquisa e desenvolvimento (P&D) de fármacos, o marketing, o “assédio moral” das entidades profissionais dispensadoras oficiais de seus produtos e os riscos da concorrência dos genéricos (que não têm os custos de P&D). Mas que, por outro lado, pode representar uma ameaça para os sujeitos, objetos da pesquisa, quando o standard de sua proteção não é aquele considerado mais seguro e garante dos seus direitos, podendo até ser suspeita – por isso de constituir um cartel que visa controlar o mercado das drogas: “em definitivo, Big Pharma é nada mais que um cartel de venda de drogas que tem os mesmos objetivos que qualquer traficante de drogas: convencer os consumidores que precisam daquela droga (...) e eliminar a concorrência [dos traficantes]” (Adams, 2007).

De fato, os dois sentidos distintos da relação entre ética em pesquisa e globa­lização podem ser vistos também como vinculados, pois, de fato, a globalização desafia a bioética e a bioética questiona a globalização no duplo sentido de: a globalização desafia a bioética a ter em devida conta seus aspectos concretos (ou pragmáticos) e a bioética obriga a globalização a justificar moralmente os efeitos que são, ou podem ser, negativos do ponto de vista da qualidade de vida dos que não se beneficiam da globalização. Por isso, a globalização pode ser imaginada como um Jano de duas faces: (a) como um fenômeno objetivo a ser descrito em suas características pertinentes pelas ciências da vida e as ciências humanas e sociais, descrição que deve ser fidedigna a fim de poder servir para uma avaliação ética e bioética, e (b) como uma realidade questionável devido a seus efeitos considerados daninhos por alguns, que acompanham os eventuais efeitos considerados positivos por outros, e que acompanham as percepções sobre tais efeitos, os quais podem ter implicações bioéticas e biopolíticas significativas. Ou – dito de outra maneira – globalização é, para alguns, “o que devemos fazer se quisermos ser felizes” e, para outros, “a causa da nossa infelicidade”, sendo, entretanto, para todos, “o destino irremediável do mundo, um processo irreversível [que] nos afeta a todos na mesma medida e da mesma maneira” (Bauman, 1999, p. 7). Em suma, a globalização “divide enquanto une – e as causas da divisão são idênticas às que promovem a uniformidade do globo”, pois ela vem acompanhada de um “processo ‘localizador’”, sendo que, “conjuntamente, os dois processos intimamente relacionados diferenciam nitidamente as condi­ções existenciais de populações inteiras e de vários segmentos de cada população”, o que faz com que “o que para alguns parece globalização, para outros significa localização; o que para alguns é sinalização de liberdade, para muitos é um destino indesejável e cruel”, pois “ser local num mundo globalizado é sinal de privação e degradação social” e a globalização é também “progressiva segregação espacial (...) separação e exclusão” (Bauman, 1997, p. 8-9).

2. a globalização: o fEnômEno E SUaS pErCEpçõES

A globalização pode ser vista como um fenômeno, isto é, como algo que é e

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que se manifesta a um observador competente para observá-lo, de acordo com suas estruturas perceptivas e cognitivas. Enquanto tal, o fenômeno deve ser descrito da maneira mais fidedigna possível, o que é, em primeiro lugar, um problema epistemológico e, em segundo lugar, um problema da ética aplicada, a qual, por ser aplicada, deve satisfazer a condição necessária de referir-se a descrições fidedignas de conflitos morais, para __ a partir disso __ poder aplicar suas ferramentas normativas especificas que visam dirimir tais conflitos. Por isso, o fenômeno globalização pode ser percebido como uma avaliação das transfor­mações (consideradas positivas ou negativas) nos âmbitos do “fazer” (poíesis) e do “agir” (práxis) no contexto do “mundo vital” (Lebenswelt). Por fim, o universo do discurso da globalização coincide com o mundo vital, formado por seres huma­nos, animais e ambientes naturais, tendo em conta que sua dimensão conhecida como “mundo natural” se encontra cada vez mais entrelaçada com a dimensão sociocultural, razão pela qual se pode afirmar que o mundo natural está cada vez mais transformado pelo saber-fazer tecnocientífico e biotecnocientífico em um mundo que, a rigor, não é mais natural e, sim, transformado pela práxis poiética humana e, em particular, “virtualizado” pelas tecnologias da informação. Em suma, a globalização é um fenômeno real complexo e híbrido, ao mesmo tempo “natural” e “sociocultural” que precisa ser encarado como fato e como problema, pois diz respeito tanto à qualidade de vida presente e futura como às próprias condições de possibilidade da vida enquanto tal, como parecem mostrar fenômenos visíveis (como a poluição) e fenômenos menos visíveis, como o aquecimento do ambiente natural e a redução da camada de ozônio.

3. o fEnômEno da globalização Como intErConECtividadE E intErConExão

ComplExaS

As condições de possibilidade do fenômeno chamado “globalização” podem ser sintetizadas pela expressão “interconectividade complexa” (complex interconnectivity), a qual se refere (de acordo com a distinção aristotélica entre potência e ato) a uma potencialidade, que pode tornar-se, ou não, uma “interconexão” (interconnectedness) (Tomlison, 1999, p. 32) que, de fato, se refere a uma condição empírica e não perceptiva. Este duplo aspecto, real e sociocultural/virtual, da globalização das sociedades do mundo contemporâneo é devido a uma série de fatores e forças, tais como: a difusão dos meios de comunicação e dos transportes que configuram “redes” de vários tipos; a incorporação, na vida social e dos indivíduos, de ciências e tecnologias que transformam a assim chamada “primeira natureza” dos seres e entes vivos (a zoé dos gregos ou “vida biológica”) graças aos procedimentos de “segunda natureza” constituídos pela cultura, a biotecnociência e a socialização (algo próximo ao bíos dos gregos ou “vida biográfica”); a vigência do mercado e

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do management considerados como parâmetros básicos de qualquer dimensão da vida organizada em uma espécie de naturalização de um fenômeno historica­mente determinado; a proliferação de organismos supranacionais, internacionais e corporativos, que reconfiguram o campo da política nacional e local; a difusão de modelos culturais, estilos de vida e de consumo ocidentais, que se tornam (ou pretendem tornar-se) o paradigma da existência de todos e em todos os lugares.

Tal interconectividade/interconexão pode ser vista (a) como uma continuidade entre fenômenos e processos passados e presentes, (b) como uma ruptura entre passado e presente e (c) como uma hibridização.

a) A tese da globalização entendida como continuidade é defendida, por exemplo, pelos sociólogos Ulrich Beck e Anthony Giddens - Beck a considera como uma passagem irreversível do mundo moderno, não para uma melancóli­ca pós-modernidade, mas para a radicalização de algumas das características já existentes, fenômeno que o autor indica pelos termos “segunda modernidade” e “globalismo” (Globalismus) (Beck, 1997). Em outros termos, ao referir-se aos âmbitos civil, econômico, tecnocientífico, informático-comunicativo e ecológico, a globalização pode ser considerada como o ponto de chegada de uma subterrânea continuidade entre colonialismo, pós-colonialismo e “a modernidade em escala global” (Zolo, 2004, p. 5).

Neste mesmo sentido, Giddens considera a globalização como o fenômeno de intensificação e estreitamento das relações sociais em escala mundial, uma transformação das representações sociais acerca de “distância”, “espaço territorial” e “Estado nacional”, integrando as características modernas de “economia capitalis­ta”, “divisão do trabalho” e “militarismo”, e constituindo, portanto, uma expansão da modernidade ocidental ao mundo inteiro: a modernidade em escala global. Para esse autor, a “interconexão” (interconnectedness) que é a condição em que os fenômenos e os processos se globalizam pressupõe a revolução tecnológica e informática, envolve a economia, a política internacional e as estratégias militares (Giddens, 1990).

Na ponderação de Ian Clark, a globalização constituiria um processo que “designa mudanças relativas à intensidade e à dimensão espacial das relações internacionais [incluindo] integração, interdependência, multilateralismo, abertura e interpenetração funcional (...) e compressão espacial, universalização e homogeneidade” (Clark, 1997, p. 10).

b)A tese contrária __ a globalização como descontinuidade __ é defendida por quem destaca a prioridade assumida pela dimensão econômica sobre as outras dimensões da vida social e pessoal, razão pela qual o aspecto talvez mais impor­tante da globalização seja esta sua redução do todo à dimensão “oikonômica”, entendida como extensão das regras do management à complexidade social, isto é, “ao poder [entendido] como governo e gestão eficaz” (Agamben, 2007, p. 10). Isso implica a liberalização dos mercados financeiros sem formas de controle social e

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político adequadas; a desregulamentação do mercado de trabalho, erodindo os direitos trabalhistas locais; a redução das intervenções do Estado nos campos da saúde, da previdência e da educação, em suma; o desmonte do Estado de Bem-Estar, processo iniciado pelas assim chamadas políticas neoliberais.

Em particular, na interpretação radical de Pierre Bourdieu, “a globalização é a forma mais completa do imperialismo, [consistente na] tentativa de uma determina­da sociedade de universalizar sua particularidade instituindo-a tacitamente como modelo universal.” (Bourdieu, 2001, p. 95). Para o autor, “globalização” seria de fato um pseudoconceito, por ser ao mesmo tempo descritivo e performativo; ou seja, por referir-se ao fenômeno da globalização econômica, por um lado, e designando um dispositivo que visa à globalização por meio de dispositivos jurídicos e políticos, por outro.

Na interpretação de Danilo Zolo, a utilização ao mesmo tempo des­critiva e performativa de globalização teria uma “função ‘naturalizadora’ [que] pretende fazer crer que a globalização seja um efeito necessário das leis da técnica ou da economia e não o êxito das escolhas políticas das grandes potências industriais, (...) um dispositivo retórico que pretende legitimar o projeto neoliberal global, [tendo] como um de seus principais objetivos a demolição do modelo social democrata europeu” (Zolo, 2004, p. 9).

Mas isso implicaria, de acordo com Zigmunt Bauman, considerar a glo­balização como um processo que “tanto divide como une; divide enquanto une [e] conjuntamente, os dois processos intimamente relacionados [de globalização e de localiza­ção] diferenciam nitidamente as condições existenciais de populações inteiras e de vários segmentos de cada população. O que para alguns parece globalização, para outros significa localização; o que para alguns é sinalização de liberdade, para muitos outros é um destino indesejado e cruel” (Bauman, 1999, p. 8).

C) A tese da “hibridação”, entendida como processo sociocultural em que estruturas ou práticas “que existiam em formas separadas se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (García Canclini, 2005, p. 14), parte do pressuposto de que a globalização implica uma tensão constante entre inte­gração e fragmentação, pois, paralelamente à difusão planetária da economia e das finanças, do comércio e da informação, existiriam fenômenos locais como a defesa dos particularismos e as lutas étnicas, a distância crescente entre Norte e Sul, sendo que a coexistência entre os dois tipos de forças poderia ser descrita pelo termo “glocalização” (glocalization) (Robertson, 1995).

4. a pErCEpção moral E polítiCa da globalização

A globalização pode ser um fenômeno como uma percepção deste fenôme­no, visto como uma homogeneização das experiências culturais, que Ge­

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orge Ritzer sintetizou pela metáfora da “macdonaldização da sociedade” (Ritzer, 1993); mas pode ser vista, ao contrário, como uma apropriação a partir dos contextos e das culturas locais, isto é, como uma “hibridização”.

A percepção da globalização se refere, em particular, aos efeitos morais e políticos da vigência do fenômeno globalização, que podem ser deno­minados “biopolíticos” e de “biopoder” devido aos seus efeitos, reais ou potenciais, sobre os vários âmbitos da vida enquanto tal (zoé) ou sobre a vida humana enquanto vida prática, que inclui a dimensão social, moral e política (bíos).

Tal percepção se inscreve em uma linha de pensamento que começa com Michel Foucault (que cunhou o termo biopolítica) e continua com a reinter­pretação da biopolítica feita por Giorgio Agamben.

Para Foucault, a política se torna biopolítica devido à crescente incorpo­ração da vida biológica do homem nos dispositivos de poder, ou de governo dos homens chamado biopoder, e que afetam os processos de subjetivação dos indivíduos, instados a objetivar-se e submeter-se ao controle do biopo­der e à injunção de subjetivar-se de acordo com determinados padrões ou criando novos padrões (Foucault, 1976; 1982; 2004). No que tange ao nosso problema da globalização, existiria, de acordo com as indicações de Fou­cault, uma descontinuidade entre os modos em que se apresentam e realizam historicamente os dispositivos de saber/poder e de subjetivação.

Já para Agamben, a biopolítica não deveria ser vista como uma rup­tura, mas como o resultado de uma subterrânea continuidade metafísica entre a concepção aristotélica do ser vivo, inscrito no lógos (ou “ser de linguagem”) e no nómos (ou “ser político”), e a atual tendência a subsumir o todo do ser vivo ao domínio total dos dispositivos de biopolítica/biopoder; em particular, ao dispositivo da oikonomia. Isso faria com que a vida prática (bíos) se reduza à vida animal ou zoé, que Agamben designa pelo termo “vida nua” e que adquiriria um caráter “eminentemente político”, ou biopolítico, com consequências totalitárias, pois “[s] omente porque em nosso tempo a política se tornou integralmente biopolítica, ela pôde constituir-se em uma proporção antes desconhecida como política totalitária” (Agamben, 2002, p. 126).

5. a globalização Como ContExto da pESqUiSa CiEntífiCa

A pesquisa científica visa produzir conhecimentos e aprimorar técnicas para a pro­dução e a utilização do conhecimento, o que pode ser visto como um dispositivo que intervém em várias dimensões da vida humana, razão pela qual se costuma falar em saber-fazer, tecnociência e biotecnociência; ou seja, respectivamente, uma forma de saber aplicado na prática dos cientistas, que incorpora a dimensão técnica e que se aplica aos seres vivos.

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O saber-fazer tecnocientífico, por sua vez, pode (ou talvez deva) ser visto como um bem público, pois, de acordo com o jurista argentino Carlos Correa, possui duas características “básicas e fundamentais que diferenciam os bens públicos dos bens privados: a não rivalidade (non-rivalry) e a não exclusividade (non-excludability) [visto que] pode ser desfrutado por muitos ao mesmo tempo sem custos adicionais [além daqueles necessários à sua produção] e porque seu desfrute por parte de uma pessoa não exclui que outras pessoas o desfrutem também” (Correa, 2006, p. 2).

Mas existe uma forma de pesquisa especial, que é aquela que produz co­nhecimento utilizando diretamente seres humanos, seus corpos e dados, e que nos documentos oficiais é designado por eufemismos como o verbo ao modo gerúndio “envolvendo” quando se deveria falar, mais claramente, e sem rodeios, em utilização. Com efeito, tal conhecimento, gerado a partir do “envolvimento” de seres humanos, pode eventualmente servir, em troca, para melhorar a qua­lidade de vida dos sujeitos humanos envolvidos/utilizados na pesquisa, ou não. Tal diferença é relevante do ponto de vista da ética, a qual se ocupa e preocupa com as consequências significativas que um agente moral pode ocasionar a um paciente moral (entendendo aqui “agente” e “paciente” tanto como entidades individuais como grupos e coletividades). É relevante porque, ao “utilizar” seres humanos na produção do conhecimento, estes podem se tornar meros meios, desconsiderando o fato de eles serem, também, fins em si mesmos (como já exi­gia Kant) de um procedimento que não garante sua qualidade de vida, seu bem­estar e sua autorrealização, ou seja, reduzindo suas biografias, que têm valor __

por ser o valor “próprio da vida biográfica” __, a suas biologias, que, ao contrário, “não têm nenhum valor intrínseco”, como mostra “a centralidade assumida pelo consentimento informado”, pois “para saber quando existe vida boa é preciso perguntá-lo ao interessado” (Mori, 2008, p. 107-108).

Outra característica relevante é o fato de a pesquisa científica envolvendo/ utilizando seres humanos dar-se no contexto da globalização, ou seja, no caso, por tratar-se de pesquisas “globalizadas” que podem afetar a própria pesquisa em seus métodos e conteúdos, as relações humanas entre participantes e a própria mo­ralidade da pesquisa.

E quais seriam tais características relevantes da globalização para a ética __

ou a bioética __ em pesquisa?2

2 Prefiro a expressão “bioética em pesquisa” à consagrada expressão “ética em pesquisa”, ou seja, utilizar a palavra que contém o prefixo “bio” para poder destacar o contexto biopolítico da pesquisa científica que utiliza seres humanos e, sobretudo, indicar que a moralidade da pesquisa em seres humanos é objeto da bioética. Com isso não entro no mérito da discussão sobre o conceito “vida” que nela se tematiza na linha de pensamento de Foucault e Agamben, ou seja, naquela tendência progressiva à “animalização” do humano através das técnicas mais sofisticadas e que chamamos de biotecnociência.

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Em primeiro lugar, há a extensão “global” das relações sociais, constituída pelo processo social, tecnológico e informático de uma rede mundial de cone­xões espaciais e de interdependências funcionais, que Giddens designou pelo termo “interconexão” (interconnectedness). Entretanto, a “interconexão” é somente uma face do processo, o qual inclui também a fragmentação e a exclusão, e isso pode ser constatado em vários âmbitos, tais como a economia, a trabalho, o acesso ao conhecimento e às tecnologias, inclusive no sistema de proteção vigen­te na pesquisa “envolvendo” seres humanos. Ou, então, esta interconexão pode ser vista em seus aspectos negativos, como mostra a crise financeira e econômica mundial dos últimos tempos, cujos efeitos em sinergia afetam praticamente todo o sistema de relações sociais e refutam, nas palavras de Amartya Sen, “a crença imaginária romântica na natureza autorreguladora do mercado econômico” (Sen, 2009).

Resumindo, pode-se dizer que o fundo sem fundo da globalização tem a ver, num primei­ro sentido, com a dupla paradigmática globalização/localização, e, em um segundo sentido, coma dupla paradigmática complexificação/simplificação, sendo que ambas remetem a uma terceira dupla paradigmática, moralmente pertinente, que é a inclusão/exclusão.

6. global/loCal E SUa rElação Com a inClUSão/ExClUSão

Doponto de vista global destacam-se os conflitosmorais implicados pelas transforma­ções ambientais, peloacessoaos recursosnaturais epela formadedesenvolvimentoadotada nos vários contextos. Com relação à forma de desenvolvimento adotada, destacam-se os conflitos inerentes às formas tanto de inclusão e de normalização como das exclusões flagrantes do mesmo. Isso faz com que o processo de globalização possa ser visto como paradoxal, por ser, ao mesmo tempo, “inclusivo” e “excludente” __ de acordo com a sugestão de Baumann (1999).

A face “inclusiva” da globalização incorpora certamente mercados, nações e popu­lações, mas pode ser vista também como um tipo particular de inclusão através de um Dispositivo Político Global, com o provável fim dos estados nacionais; a constituição de um Dispositivo da Sociedade Virtual, instaurado pelas tecnologias da informação e comunicação (Information & Communication Technologies) e um Dispositivo Biopolítico Total que se torna possível graças à disseminação da biotecnociência aplicada ao mundo vivido (Lebenswelt) e ao ambiente (Umwelt).

Do ponto de vista local aparece mais explícita a face “excludente”, que mostra a redução de inteiras populações e regiões do planeta a seu estágio de “vida nua”, quando não literalmente de vidas “sacrificadas” (Agamben, 2002). Isso implica uma piora cons­tante das condições de vida de uma grande massa de humanos frente a uma contínua melhora da qualidade de vida de um grupo reduzido de indivíduos e grupos que, por isso mesmo, podem ser classificados como “privilegiados”. Assim sendo, do ponto de vista local destacam-se os aspectos morais negativos relativos à vida individual, às

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relações interpessoais e comunitárias. Por isso pode-se falar em “global shift” (Dicken, 1992), entendido como

uma transformação radical da economia (que se torna justamente “global”); a interdependência dos fatores produtivos; a abertura dos mercados (com algumas formas remanescentes de protecionismo ou de intervenções estatais nos casos de crise como a atual), a intensificação da concorrência e da produtividade.

Com relação à percepção e à moralidade de tais fatos, existem duas posições distintas: (a) uma que destaca seus efeitos negativos de exclusão, de intervenção indevida tanto nos equilíbrios culturais e sociais de sociedades e comunidades como da intimidade e privacidade dos indivíduos, dentre outros; (b) outra que tenta justificar a intervenção destacando suas vantagens comparativas: a redução do desemprego; a riqueza global produzida; uma melhor divisão internacional do trabalho; a redução dos custos da produção; a redução da pobreza; melhores condições de trabalho e de condições de vida pessoais e sociais (Sen, 2000).

Os pontos de vista global e local são em princípio complementares, formando um todo complexo, mas podem também opor-se em muitos casos, e é por isso que se pode falar em “interconectividade complexa” (como sugere Beck). Por exemplo, ao privilegiar o interesse individual, familiar ou corporativo frente ao bem comum, sem regras claras para o funcionamento do mercado por parte do Estado, como é o caso atual da crise financeira global, em que “de um dia para outro, a economia de mercado, princípio do qual o Ocidente tem se tornado o missionário, (...) tornou-se ficção” e na qual “os banqueiros (tornados ‘banksters’ para a opinião pública) (...) exigem a nacionalização de suas perdas” (Beck, 2008). Ou privilegiando o curto e médio prazo dos interesses imediatos frente aos inte­resses em longo prazo e das gerações futuras de humanos, dos seres sencientes e da própria “casa comum” ou oikos. Mas, também, privilegiando, ao contrário, o global frente ao individual, o que é, quase sempre, o caso nas tentativas de instaurar dispositivos biopolíticos de controle e uma limitação das liberdades in­dividuais em nome da segurança contra determinadas ameaças, reais ou virtuais que sejam, como mostrou a administração do ex-presidente Bush, ao ocupar o Iraque, supostamente por este possuir armas de destruição em massa.

7. SimplES/ComplExo E o diSpoSitivo do biopodEr

A segunda dupla paradigmática refere-se a duas estratégias diferentes para dar conta da globalização: por um lado, a diferenciação funcional do todo “global” em âmbitos “locais” específicos e suscetíveis de um maior controle, o que pode implicar estratégias de simplificação dos conflitos morais; por outro, aquela de assumir, até onde for possível e razoável, a complexidade de uma situação concreta de conflito moral. As duas estratégias indicam duas atitudes diferentes frente à

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moralidade e aos fatos estudados pela bioética, pois a primeira é tendencialmente pragmática e, eventualmente, coercitiva e autoritária, ao passo que a segunda é em princípio pluralista, democrática e libertária, mas, muitas vezes, de difícil equacionamento na prática. Em outros termos, ambas apresentam vantagens e desvantagens.

A vantagem da simplificação consiste em um maior controle e uma melhor operacionalidade nas relações entre humanos nos casos de conflitos de interesses a serem resolvidos através dos dispositivos existentes e legítimos. Uma das estra­tégias mais comuns, neste sentido, consiste na aplicação de valores e princípios universais, válidos na medida em que se pressuponha uma unidade do gênero humano e que pode ser expressa por modelos normativos como é aquele dos direitos humanos fundamentais, destacando, portanto, a identidade que uniria todos os indivíduos e grupos humanos. Por sua vez, a vantagem da complexi­ficação consiste na competência em prestar a devida atenção às diferenças e às transformações em curso no imaginário social, preocupando-se mais com a interconectividade (interconnectivity) e a interconexão (interconnectedness) entre o maior número de pontos de vista diferentes e legítimos, em vez de excluir parte deles (sem justificativas cogentes).

Do lado das desvantagens comparativas de cada uma, a primeira, ao tentar simplificar ou “reduzir a complexidade”, pode implicar perdas substanciais de possibilidades ou “capacidades” humanas, necessárias para realizar o objetivo da “vida boa”, além do fato de que a redução de complexidade pode, paradoxalmente, introduzir fatores caóticos no sistema, aumentando, portanto, a própria complexi­dade (Neves & Neves et al., 2006); a segunda, por sua vez, pode esbarrar contra a impossibilidade de controlar o sistema e impedir uma convivência aceitável.

Entretanto, se quisermos superar a dicotomia entre políticas identitárias e políticas das diferenças, a fim de encontrar alguma convergência entre elas, as estratégias de simplificação e de complexificação podem ser situadas em um dis­positivo de ordem maior que as articula necessariamente: o dispositivo do biopoder. Com efeito, o biopoder é tanto diferenciador da complexidade social (em âmbitos funcionais para permitir a produção de subjetividade) quanto simplificador da mesma (reduzindo os âmbitos para poder controlar a produção de subjetividade). Ademais, os dois aspectos contraditórios do biopoder podem muito bem acom­panhar a instauração de um “estado de exceção” permanente, que é uma forma extrema de tentativa de controle e de exercício do biopoder que pode tornar-se atuação corriqueira da biopolítica. De acordo com Agamben (2003), o modelo paradigmático do “estado de exceção” seria o campo de concentração, no qual se manifestaria plenamente o nexo originário entre a soberania do poder político e a situação precária e vulnerada da vida na biopolítica. Já no liberalismo, o estado

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se apresenta como governo normalizador da sociedade, baseado em formas de saber econômico, social e biopolítico consideradas verdades epistêmicas “capazes de fornecer também um fundamento normativo novo [no qual] a exceção reapareceria no risco imanente de uma normalização do fato e uma recíproca facticidade da norma” (Foglio, 2006, p. 128).

Parece, portanto, razoável afirmar que a característica relevante do “estado de exceção” para a bioética seja a estratégia de simplificação, que pode ser utili­zada para atribuir um status de “necessidade” e de “verdade” a contingências e probabilidades, com a consequência inevitável de políticas públicas autoritárias, como pode ser o caso da “generalização dos riscos (variações climáticas, crise financeira, terrorismo) [que] instaura um estado de urgência ilimitado, que trans­cende a esfera nacional para tornar-se universal” (Beck, 2008); a destruição do que sobrou do Welfare State para os excluídos e vulnerados; a “punição” de quem não obedece aos cânones do consenso instaurado.

Isso vale também, mutatis mutandi, em campo sanitário e, em particular, na prática da pesquisa científica, pois nesta se explicitam também as contradições da globalização, como pode ser visto no caso do duplo standard.

8. ConSidEraçõES finaiS

As três duplas paradigmáticas, pelas quais delineamos o perfil da globaliza­ção, devem ser entendidas como complementares e antagônicas, a fim de poder dar conta da complexidade da problemática moral na pesquisa científica. Elas podem ter pontos de convergência que permitem o diálogo e a cooperação para a solução democrática dos conflitos. Mas podem ter pontos de divergência que impedem isso. Este é certamente um grande desafio a ser encarado pela bioética e, em particular, pela bioética em pesquisa. Em uma visão bastante desencan­tada se poderia dizer que a complexidade do imaginário social está cada vez mais sujeita aos imperativos de simplificação e diferenciação funcional exigidos, paradoxalmente, pela Globalização e seu controle sobre as sociedades e culturas pelas formas de biopoder exercidas pela biopolítica.

Uma das possíveis consequências negativas no campo da pesquisa científica é a vigência de uma forma de biopolítica simplificadora e redutora, consistente na instauração de dispositivos de biopoder autoritário (ou imperativos) em nome de uma suposta necessidade social de comportamentos individuais considerados conformes ao(s) paradigma(s) dominante(s) do momento. No campo da saúde e da pesquisa utilizando seres humanos, a principal implicação deste imperativo pode ser uma transição paradigmática da concepção de saúde como um direito do cidadão para aquela de saúde como uma obrigação ou como um dever do mesmo (Schramm, 2006).

Trata-se, evidentemente, de uma hipótese que deve ser aprofundada, mas que parece cogente para mostrar novas estratégias e novos caminhos da biopolítica

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e que a bioética deverá encarar se não quiser se tornar mero flatus voci. De qualquer maneira, a globalização apresenta estruturas e forças que podem

ser objeto de críticas pertinentes, como são as razões da economia política que se impõem aos povos do mundo como se fossem da ordem da necessidade e que exi­giriam, portanto, estratégias de intervenção sobre todo o corpo social, baseando-se em critérios de efetividade, de maximização econômica e financeira; em suma, de acordo com as “leis” do Mercado e a sua suposta “mão invisível” que reduz o homo sapiens a um homo oeconomicus e que, de fato, não passaria – como sustenta Amartya Sen de uma crença romântica e imaginária. É neste contexto da economia política que os corpos e os estilos de vida das pessoas deveriam necessariamente se adaptar, pena alguma sanção. Mas isso é questionável e matéria de conflitos.

Com efeito, qualquer política de saúde pode tornar-se engrenagem de um dispositivo de saberes e técnicas norteadoras das condutas individuais, o que a transformaria em “mercanismos” (sic) de biopolítica e de biopoder, sem que isso redundasse, necessariamente, em melhorias na qualidade de vida de indivíduos e populações humanas, ou seja, sem que a globalização implique uma “maximização” de suas potencialidades integradoras. Neste caso, sobram atitudes de resistência que não podem ser vistas, sem mais, como atitudes do atraso contra as assim chamadas vantagens comparativas da globalização. Mas a questão fica, por enquanto, em aberto.

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Recebido em: 01/11/2008 Aprovado em: 01/09/2009

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