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Histria (So Paulo)
Histria (So Paulo) v.32, n.1, p. 251-280, jan/jun 2013 ISSN 1980-4369251
Gloria de Deus, ao servio do Rei e ao bem desta Republica: freiras de Santa Mnica de
Goa e a cristandade no oriente pela escrita do agostinho frei Diogo de Santa Anna na dcada
de 1630
Glory of God, in the service of the King and the good of the Republic: the nunsmonastery
of Saint Monica in Goa and the Oriental christianity in the augustinian writting of fr. Diogo
de Santa Anna in the 1630s.
________________________________________________________________
Margareth de Almeida GONALVES*
Resumo: Este artigo analisa as convenes simblicas que, na extremidade leste do reino dePortugal dos espaos asiticos, deram forma s prticas de escrita no mbito de uma monarquia de
perfil confessional. Explora-se uma reflexo acerca da construo de categorias identitrias atravsde tpicas de nobreza/fidalguia e de limpeza de sangue.
Palavras-chave:Mosteiro de Santa Mnica de Goa; escrita eclesistica; limpeza de sangue.
Abstract: This paper analyzes the symbolic conventions that, at the Asian spaces of Portugalkingdom, shaped organizing representations of religious writing practices under a monarchy ofconfessional traits. To this purpose, it explores a discussion on the construction of identitycategories through the topics of nobility and blood purity.Keywords:Saint Monica Monastery in Goa; ecclesiastical writing; blood purity.
Frei Diogo de Santa Anna (1571-1644), religioso que pertenceu Congregao da ndia
Oriental da ordem dos eremitas de Santo Agostinho da ramificao provincial de Portugal, foi o
piv, na dcada de 1630, de um conflito deflagrado pelo Senado da Cmara de Goa contra o
Mosteiro de Santa Mnica, a primeira casa conventual de freiras no ndico, em que respondia pelas
funes de administrador e confessor. A queixa dos vereadores do poder municipal gos,
formalizada em petio enviada ao vice-rei da ndia, D. Miguel de Noronha (1585-1647), conde de
*Professora Doutora - Departamento de Histria e do Programa de Ps-graduao - Universidade Federal Rural do Riode Janeiro - BR 465 - Km7, ICHS/DHIST, CEP 23890-000 Seropdica/RJ.
Este artigo foi escrito a partir do trabalho de pesquisa que realizei no ICS-Universidade de Lisboa (10/2011 a 03/2012),com o apoio da CAPES. Sou extremamente agradecida ngela Barreto Xavier pela superviso do estgio ps-doutorale pela valiosa contribuio no decorrer da investigao.
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Linhares, denunciava o agostinho e o mosteiro de freiras de isolar e concentrar as mulheres ricas do
Estado da ndia, em poca de carestia, agravada pelas contnuas perdas nas guerras que assolavam a
parte oriental do imprio portugus.
O perfil da controvrsia bastante conhecido (BETHENCOURT, 1995,1998, p. 248-349;TELES E CUNHA, 2011). O conflito entre o poder camarrio e os agostinhos circulou e chegou at
ns a partir de um conjunto de textos manuscritos, cuja escrita atribuda a frei Diogo de Santa
Anna. Apologia...1 um discurso contundente na defesa do Mosteiro de Santa Mnica da cidade
de Goa, primeira casa conventual de freiras no Estado da ndia, nos primrdios do sculo XVII, que
integrou o complexo institucional dos agostinhos portugueses no Monte Santo da cidade de Goa.
Um cenrio de sacralidade acrescido dos edifcios agostinhos do convento de Nossa Senhora da
Graa e o colgio de Nossa Senhora do Ppulo que era, ainda, animado pelo estabelecimento
jesutico de letras, colgio de So Paulo, a parquia de Goa de Nossa Senhora do Rozario e a
ermida de Santo Antonio.
Desde sua fundao, em 1606, o mosteiro esteve subordinado, no plano temporal,
autoridade apostlica e, na instncia espiritual, aos religiosos agostinhos. J no ano de 1609, frei
Diogo de Santa Anna respondia por sua administrao, como tambm era confessor das monjas,
posies que ocupou at a morte, em 1644. Acabara de chegar de Ispahan - a nova capital do reino
da Prsia, eleita por X Abbas (1587-1629) -, onde fora prior do convento de Nossa Senhora da
Graa e acumulara notoriedade na poltica religiosa de romanizao das antigas populaes
cismticas, conduzida pelo egrgio agostinho, arcebispo de Goa e primaz do Oriente, D. Frei Aleixo
de Meneses.2 Na regio da Prsia promovera a reduo do Patriarca e dos bispos da Igreja da
Armnia em obedincia ao papado em Roma. No retorno a Goa dirigiu mais um dos projetos do
notvel metropolita, uma obra de afirmao do nome dos agostinhos, na cabea do Estado da ndia.
No novo templo de virgens crists, uma menina de quatro anos, recm-chegada do Reino da Prsia -
provavelmente a armnia citada por Santa Anna em um dos seus ltimos escritos de 1637 - servia
de elo entre os dois espaos de misso agostinha no Oriente. Segundo a narrativa de Santa Anna, a
pequena crist recebera a gua do batismo de D. Frei Aleixo de Meneses e, ao vestir o hbito,
adotara por nome Monica de Santo Agostinho, referncia emblemtica ordem. (SANTA ANNA,
ANTT, MSLIV, 674, fl. 85v.) Veio a tomar a profisso religiosa em 1 de novembro de 1616. Uma
rpida meno ao nome cristo da religiosa de origem do Reino da Persia, ao final de Apologia...,
sobressai na relao das monjas agostinhas de vu preto do mosteiro. (SANTA ANNA, ANTT/
MSLIV87, fl. 218)
A Goa da dcada de 1630, palco da redao de Apologia...,era cidade-corte, metrpole doEstado da ndia e irradiava nesse momento o desalento frente aos sucessivos embates da dcada
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anterior. O trmino da Trgua dos Doze Anos entre Espanha e Holanda (1609-1621) e a perda da
fortaleza Ormuz, em 1622, na ao anglo-persa combinada de X Abbas e a East India Company,
traziam maus pressgios aos interesses portugueses na sia.
Os novos atores, holandeses e ingleses, inimigos hereges europeus, na expresso coeva,invadiram os mares asiticos e expuseram um quadro de rivalidades que afloram na escrita de Santa
Anna como sinais perturbadores respublica christiana. Por sua vez, Goa integrava espaos
mltiplos de jurisdies secular e religiosa, atravessados pela circulao de grupos sociais variados,
desde as populaes nativas a religiosos, portugueses residentes, casados, oficiais rgios,
comerciantes, configurando-se uma extensa zona de fronteiras de trocas, disputas e embates
culturais que combinaram mecanismos de negociao pela palavra, mas tambm do recurso de uso
da fora. O governo do conde de Linhares (1628 a 1636) demarcou um perodo de acirramento das
tenses locais, tanto pelas diversas tentativas de prover a governao de instrumentos de maior
racionalidade, contornando o perfil prebendrio, quanto pelo recrudescimento das investidas
holandesas em bases portuguesas no oriente. A chegada do novo vice-rei ao oriente coincidiu com a
importante vitria sobre as foras do Achm, conduzida pela armada de Nuno lvares Botelho, com
o apoio do sulto de Johor, preservando Malaca e a rota de comrcio com o Coromandel
(SUBRAHMAMYAM, 1995, p. 233). Anthony Disney assinala que D. Miguel de Noronha assumiu
o vice-reinado do Estado da ndia com a incumbncia recebida do centro em Madri de realizar um
programa de reforma fiscal no sentido de aumentar o oramento para fins militares. Os intentos de
reforma encontraram um cenrio hostil, assinalando-se uma paralisia com relao a mudanas na
poltica fiscal para o aumento das finanas da Coroa.3 Note-se que o quadro de conflitos fora
agravado pela poltica religiosa de interveno sobre os bens da Igreja e de ordens religiosas,
conduzida no reinado de D. Filipe IV por seu valido, o conde-duque de Olivares.4 Lembre-se,
ademais, que o estabelecimento de novos tributos esteve condicionado aprovao local dos povos
por meio do poder camarrio.
No mosteiro de monjas agostinhas, o ano de 1632 assinalara o annus horribillis de uma
dcada desastrosa, na expresso de Sanjay Subramamyam, atravessada pela presso de
holandeses da VOC (Vereenigde Oost-Indische Compagnie) e por sucessivas perdas nas conquistas
portuguesas na sia e na Amrica.
A extensa narrativa de Apologia... expe a defesa agostinha do templo sagrado de
mulheres pela reiterao de tpicas j antigas de crise e decadncia do Estado da ndia, correntes na
produo textual coeva. Este artigo busca colocar em relevo as convenes simblicas que, na
extremidade leste do reino de Portugal dos espaos asiticos, deram forma a prticas de escrita nombito de uma monarquia de perfil confessional, atenta a valores e crenas do amor a Deus, em que
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um quadro de acusaes, em que o elogio e o vituprio se sucedem, na conformao de um discurso
de persuaso. O gnero, na tradio crist, fixou um corpusretrico de afirmao da f frente ao
gentio. Foi essa a motivao de Apologeticus, referncia seminal ao cristianismo do texto de
Tertuliano (c.a 160-220 d.C.), de 197 a.C., na defesa dos cristos frente aos gentios.9
A tradioapologtica constitui-se ao longo dos sculos por libelo de denncia contra infiis, com organizao
de um procedimento classificatrio a partir de noes de bem e mal, puro e impuro que delimitou
fronteiras entre cristo/civilizado e gentio/brbaro.
J na poca moderna, o discurso apologtico foi um recurso frequente, no quadro de
competio entre os poderes da cristandade nos espaos ibricos, na disputa por uma posio de
legitimidade. Cabe mencionar a querela, no formato de apologia, publicada pelo dominicano
Domingo Bez, um dos mestres de Santa Anna na Universidade de Salamanca, na condenao das
concepes do livre arbtrio do jesuta Lus de Molina, com edio de 1595 - sedimentou uma
resposta publicao da obra molinista Concordia liberi arbitrii cum gratiae donis, divina
praescientia, providentia, praedestinatione et reprobatione. O texto acusatrio de Baez ao
Tribunal do Santo Ofcio reatualizara a polmica entre luteranos e catlicos no Quinhentos, na
defesa da f catlica e de denncia dos erros de f (BEZ, 2002). A malha denunciatria incluiu
ainda o agostinho espanhol frei Lus de Lon, afeito s ideias molinistas de liberdade humana. Cabe
atentar para a ramificao do debate para alm dos doutos telogos na sustentao da aplicao
prtica das noes agostinianas da irredutibilidade do desgnio divino na conformao da cidade
dos homens, como pode demonstrar o caso das Mnicas, conduzido por frei Diogo de Santa Anna.
A narrativa apologtica foi ainda de uso corrente no ambiente de rivalidades missionrias
entre franciscanos e jesutas no Japo, como indicam o texto do jesuta Alessandro Valignano,
escrito em 1597-1598, e o do tambm jesuta Valentim de Carvalho, editado em 1618. $%Porm, os
contornos do discurso de Santa Anna em Apologia... aproxima-se de uma tratadstica no Estado
da ndia, j comentada por ngela Barreto Xavier, caracterizada pelo que designa como combate
pela memria, que expe o quadro de conflitos endmicos entre indivduos e grupos sociais por
poder e disputa pela incluso na monarquia luso-crist. Assim, no exemplo da historiadora, as
apologias da verdadeira nobreza de filhos da ndia configuram estratgias narrativas de grupos
de colonos locais de origem portuguesa na disputa pelo reconhecimento de lugar e distino na
ordem social, como no caso do franciscano nascido na ndia, Miguel da Purificao, em Relao
defensiva dos filhos da ndia Oriental e da provncia do apstolo S. Thome dos frades menores da
regular observncia da mesma ndia(XAVIER, 2007, 2008).Por sua vez, com inflexo diversa, na
outra ponta do espectro social Apologia..., de frei Diogo de Santa Anna, assinala o fosso entre osconstrutores de uma identidade de dirigentes coloniais e os sditos nascidos na ndia, em mais uma
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das demonstraes da complexidade e do componente de contingncia nos arranjos classificatrios
das posies destatussocial nos mundos portugueses.
O argumento de defesa da verdade um elemento que subjaz a escolha de Santa Anna pelo
emprego do gnero da apologia na tradio do cristianismo. A indicao dos grandes da patrsticaconfigura a opo de Santa Anna - cita o retrico da Capadcia, So Gregrio de Nazianzo, e seu
discpulo, o glorioso So Jernimo:
Fizeram apologias, para defender a verdade, muitos santos, Padres antigos e emespecial o glorioso padre So Gregrio de Nazianzo (330-379), e o glorioso padreSo Jeronimo seu discpulo e grande doutor da igreja e mais So Toms e SoBoaventura, nossos mestres e exemplares, para defenderem cada um sua sagradareligio e eu o dito pecador, indigno fao esta apologia, ou esta informao, paradefender a verdade (SANTA ANNA, ANTT/ MSLIV, 87, fl. 7r).
Por sua vez, na parte dedicada ao leitoro orador de Apologia... adverte que procura tanto a
glorificao de Deus como a defesa da cristandade no zelo de proteo ao mosteiro de monjas
agostinhas.$$Prope responder s acusaes da vereao da cidade de Goa ao mosteiro, incriminado
por deter e concentrar mulheres herdeiras de grandes riquezas, intensificando-se a misria da
repblica.Nesse escopo, Apologia... desliza pelo sentido da traduo do latim de 'apologia', que
encontramos no Dictionarium latino-lusitanorum et vice-versa, de Jernimo Monteiro, por meio
dos termos resposta, satisfao e defesa (CARDOSO, 1613, p. 16). Santa Anna dispe umasatisfao de forma que d testemunho e desperte a verdade. tambm uma exposio de resguardo
da honra e da fama do administrador do mosteiro, dos agostinhos e das monjas: fao esta apologia,
ou esta informao como cura do mesmo mosteiro para defender a verdade do que passa na
fundao delle, e na causa de nosso Ds Senhor, e salvador Jesus Cristo... (SANTA ANNA, ANTT/
MSLIV87, fl. 7).
De forma resumida, no intento deste artigo registre-se, por intermdio do discurso
apologtico, a apropriao da erudio da retrica grega e romana pela patrstica, tal como presentena pregao de So Paulo, conhecido por apstolo dos gentios. Esse legado, no sculo XVI, foi
reapropriado conjuntamente com os mecanismos de assimilao da retrica dos antigos pela
oratria religiosa. Aprendia-se retrica a partir dos tratados de Ccero,De Oratore, de Quintiliano,
Institutio Oratoria, e a Rhetorica ad Herennium, acrescidos das colees de loci communes, que
circulavam nas verses impressa e manuscrita por meio de transcries nas brochuras dos
estudantes. A formao do letrado inclua um vasto currculo, sedimentado pelas partes da retrica
que, em geral, integrou um complexo quadro que articulava a tradio do trivium medieval
(gramtica, dialtica e retrica). Compuseram segmentaes de um campo epistmico fundado na
linguagem, na consecuo de uma aritmtica da palavra. Ademais, o corpusintegrou um conjunto
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de mtodos que organizavam a distribuio dos argumentos e dos locina estrutura de narrao e no
uso mais eficaz das palavras, para a persuaso ou deleite do auditrio.
Registre-se o fortalecimento da retrica eclesistica ao longo do sculo XVI e sua difuso
nos espaos ibricos. A verso no civil da retrica combinara teoria e prtica, o estudo e oexerccio, a tratadista e a eloquncia. Saliente-se a proeminncia atribuda actio pela retrica
crist, intensificando-se uma dimenso prtica de performance, na compulso dos corpos na
interao social (GOFFMAN, 1975).12A auctoritasque serviu de bssula foi o dominicano Luis de
Granada. Uma parte relevante da tratadista de Granada atribuda ao, ou seja, pronncia
correta, ao domnio do gesto e da postura pelo pregador. Ecclesiasticae rhetoricae libri sex
Rhetorica Eccleisastica,obra editada em 1576, conformou um manual pedaggico para a formao
de pregadores. Voltava-se ao ensinamento da parentica, evidenciando-se o peso do estudo e do
treinamento na formao do rector. Em uma passagem, Granada repara que, enquanto o poeta
nasce, o orador se faz poetam nasci, oratorem fieri(GRANADA, 1999, p. 167).
Frei Diogo de Santa Anna realizou os estudos no ambiente letrado das ltimas dcadas do
Quinhentos, distante do fervilhamento espiritual e mental do primeiro humanismo. Frequentou o
Colgio da Companhia de Jesus de Bragana, fundado em 1561, na esteira do ordenamento da
malha pedaggica jesutica. Aos nove anos aprendeu latim, segundo consta nas diversas
informaes biogrficas que escreveu por volta de uma idade de 66 anos. E, do ponto de vista de
um homem de seu tempo, comenta que o latim o preparou para o estudo de cnones na
Universidade de Salamanca (SANTA ANNA, BNL/ PBA64, fl. 20f). A referncia ao incio do
aprendizado de latim no era fortuita, inscrevia-se no conjunto de transformaes que simulavam o
ritual de passagem ao universo dosstudia humanitas.
Entre os jesutas de Bragana, foi provavelmente iniciado no latim pelo Institutione
Grammatica, de Manuel lvares, livro impresso em Lisboa no ano de 1572, como talvez tenha
estudado retrica pelo livro do jesuta Cipriano Soares, De Arte Rhetorica libri, publicado em
primeira edio em 1562.$& Complementou, possivelmente mais tarde, a formao de oratria
sagrada pelo citado Ecclesiasticae rhetoricae... de frei Lus de Granada. As trs obras tiveram
inmeras edies e formaram geraes entre as ltimas dcadas do sculo XVI e o Setecentos.
Tanto Cipriano Soares como Luis de Granada consolidaram os cnones da retrica sagrada
portuguesa que foram disseminados aps o Conclio de Trento (1545-1563). Ambos fabricaram a
cristianizao do cicerionismo humanista, em sua adequao retrica eclesistica, no triunfo da
eloquncia no plpito e da conquista de ovelhas para o rebanho divino.$'
J na segunda dcada de 1580, a Universidade de Salamanca que Santa Anna conheceu noirradiava a atmosfera da poca dos dominicanos Francisco Vitria (1483-1546) e Domingo de Soto
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gentios do Oriente. Papis conformam o jogo de disputas pela memria e controle da histria. Deste
modo, ganha curso a perspectiva de que papis sedimentam memria e histria na
preservao da verdade. Conforme assinalado acima, concebe-se uma noo de verdade que
opera por verossimilhana, na dimenso atribuda por Aristteles retrica, do que mais adequado persuaso. Portanto, Apologia... projeta o significado da verdade pela f no seguimento da
doutrina crist, na capacidade de realizar a argumentao que melhor combine elementos de
autoridade. A tessitura da escrita d-se num campo de foras que exibe a maestria do orador, num
formato de pea de dilogo tenaz com a audincia alvo. Na sedimentao do intento de
consertando tudo como digno de eterna memria, a escrita inscreve a temporalidade goesa no
tempo providencialista da republica christiana.
Santa Anna coloca em movimento as preceptivas da retrica que constavam dos manuais
que circulavam pelos circuitos catlicos letrados e que continham uma organizao do discurso, em
geral do epidctico, que, dos trs grandes gneros, era o que melhor atenderia oratria sacra. Esse
pressupe uma organizao orientada por valores do bem e do mal que pode revestir o elogio ou a
danao, a virtude ou o vcio. O plano de redao obedece diviso do discurso retrico pelas
partes do exrdio, narrao, confirmao, refutao e perorao. A escrita apologtica integra
elementos do gnero epdctico, que combinam o louvor e o vituprio s funes de juzo e
julgamento, compondo a narrativa no tempo do presente.
Com o objetivo de seguir o padro da escrita de apologias, na defesa do mosteiro a petio
da queixa da vereao recortada em perodos, por meio dos quais so fornecidas as satisfaes e
respostas.$+Aqui o domnio das qualidades do orador exercido no controle da argumentao por
meio de provas, de argumentos retricos por exemplos ou entimemas. A fragmentao da petio da
Cmara em frases e pargrafos tem por funo desmontar o feixe de argumentos de acusao.
As ideias, os princpios e as teorias so fornidos por exemplos da Sagrada Escritura ou
ensinamentos dos Pais da Igreja, em que a memria, uma das cinco partes da arte oratria, prov os
lugares, matria da inveno no desenvolvimento da argumentao, no recurso ao exerccio de
intertextualidade. A propsito, lembre-se a advertncia de Arnaldo Momigliano ao salientar o peso
dos precedentes e da origem para a histria da Igreja. Se por um lado essa orientao facilita a
vida do historiador da Igreja, acrescenta Momigliano, por outro, obriga a conectar os
acontecimentos das igrejas locais ao corpus mysticum da Ecclesia universalis (MOMIGLIANO,
2004, p. 192-193). Trata-se ento de inserir o mosteiro de monjas e Goa, metrpole do Estado da
ndia, na linha do tempo cristo. A dimenso da cronologia sobrepe-se acepo de histria,
seguindo a abordagem secular da historiografia crist, em que a origem e a percepo escatolgicaconvergem ao criador divino. Por desdobramento dessa concepo, o ordenamento cronolgico
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forja uma filosofia da histria, articulada em termos de uma histria crist universal. Santa Anna
seguiu esse modelo quando pressionado a escrever a resposta, satisfao e boa informao
queixa ou inventiva da vereao e do povo de Goa. Na afirmao da posio do testemunho
ocular afirma seguir a defesa do mosteiro com toda a realidade da verdade. A esse propsito, otratamento do conflito no tempo histrico do cristianismo se constri na sequncia de inmeras
citaes de episdios do Antigo Testamento, como a transliterao do livro de Isaas, na bela
composio por pares antitticos: bom/mau, luz/trevas, doce/amargo.
E aconteceo nesta ocasio a esta republica, o que antigamente na hebreia quando oprofeta Isaias no captulo quinto de sua profecia, vendo as troas que seusmagnates faziam da verdade, com a falcidade se doe deles dizendo. Vae qui dicitismalum bonum, e bonum malum, ponentes tenebras lucem e lucem tenebras
ponentes amarum dulce, et dulce in amarum Vae qui sapientis, estis in oculisvestris, et coram vobis me tipsis prudentes. Aonde paree que estava o santoprofeta vendo o caso desta iunta e senado, e lhe ouvia dizer que o mal leva ao bem,e o bem leva o mal, e lhe via por as trevas no lugar da luz e a luz no lugar dastrevas [...] (SANTA ANNA, ANTT/ MSLIV87, fl. 21).
Em chave semelhante, repetida em inmeras passagens ao longo de Apologia..., Santa
Anna lembra, ainda nos primeiros flios, So Paulo na Carta aos Glatos. O apstolo dos gentios
uma fonte seminal na tradio da escrita apologtica crist, presente no estilo das epstolas. Em
termos gerais, na carta aos glatos So Paulo adverte contra os "falsos irmos" que instalam oconflito entre o judasmo e o cristianismo. Da mesma maneira que So Paulo, Diogo de Santa Anna
adverte os cristos do Oriente acerca dos riscos de seguirem os falsrios que transformam a verdade
em mentira. Portanto, insere o conflito entre Cmara e Mosteiro na longa tradio crist de defesa
da doutrina. Inicialmente, opta pela posio de condescendncia, atribuindo a ao dos vereadores
ignorncia. Usa do artifcio de uma composio branda com relao Cmara para, em seguida,
crescer na insero de uma referncia dura por meio, mais uma vez, de So Paulo na defesa do
apostolado.
E primeiro e antes que venha ao mais reconheo, que o senado de nossa yunta, eclaustro pleno, foi de catholicos e fiis cristos, e de cidade mui catlica e pia, eque o erro, que se acha em nosso acordo e queixa foi cometido quase porignorancia; e inconsiderao, e precipitao dos mais, que a ser tendo bemadvertido e afundado na deliberao do que se propos e concluiu, em detrimento denossa sagrada Religio christam, fora ao menos mpia temeridade contra a Doutrina[...]E o segundo seria-me lcito lanar aqui mo daquelas resplandescentes palavras doglorioso Apstolo So Paulo que disse aos galatas, e fieis de Galaia, em outra
ocasio de outro maior desacordo com que se simboliza o presente e escreve-lhe oSanto Apstolo uma carta mui larga e de adminvel luz da sagrada doutrina e nocaptulo terceiro della os repreende desta maneira, insensati galathe quis nosfascinavit non obedire viritati. (SANTA ANNA, ANTT/ MSLIV87, fl. 18v)
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Arremata com uma referncia ao anglico doutor Santo Toms e uma sucesso de
interrogaes ao estilo paulino, dando ao discurso maior pulso persuasiva: quem fez a verdade
nos parea mentira? e a iluso e o engano, e a falsidade nos parea a verdade? Os pares antitticosdo ritmo composio, o que resulta num efeito de ampliao com o objetivo de gerar pathosna
audincia. Santa Anna se utiliza do argumento que, no aumento da Santa Igreja, Deus conduziu as
naus portuguesas na direo do alargamento da cristandade, na luta contra gentios e hereges.
Escrita e a fabricao de grelhas sociais
Em trechos variados de Apologia... pervaga a acusao ao vereador do meio, Luis da
Fonseca de Sampaio, de irromper o conflito entre a Cmara e o mosteiro no ano de 1632. Frei
Diogo de Santa Anna recorre ao jogo proverbial - to comum em mundos em que a oralidade
municia a memria de artifcios sintticos - e sentencia o alcance em ricochete do conflito
camarrio. Por meio do adgio do alastramento do fogo metamorfoseia a extenso da crise: uma
fasca levanta um grande incndio na paixo de um vereador. Com o recurso ao ditado, indaga
sobre como uma fagulha projetara tamanha labareda que invadira e ocupara as diversas instncias
dos poderes da monarquia e da Igreja: vice-rei, conselhos de Espanha, a presena do emperador
da Espanhas, Roma, as congregaes da Divina Fee e das sagradas ordens e regulares e o papa
Urbano VIII (SANTA ANNA, ANTT/ MSLIV87, fl. 230r). E denuncia que uma sanha pessoal
motivara a perseguio. Santa Ana relata que, na poca em que fora provincial da Congregao da
ndia Oriental, entre os anos de 1620 e 1623, dispensara um filho de Luis da Fonseca Sampaio de
vestir o hbito e professar na ordem, j que fora acusado por testemunhas de no deter as
habilitaes exigidas. Em trechos diversos das trs edies de Apologia... percorrem acusaes
dispersas quanto aos traos de origem e nascimento do vereador do meio. Ele d relevo ao episdio
da recusa do hbito agostinho ao filho de Sampaio por impedimento justificado pelo defeito de
gerao e nascimento (SANTA ANNA, ANTT/ MSLIV87, fl. 203v.).Uma acusao portadorade autorictas, uma vez que frei Diogo ocupou posies nos aparatos institucionais de controle
social em Goa: deputado Tribunal do Santo Ofcio e da mesa de segunda instncia das ordens
militares. Portanto, Santa Anna reala as qualidades de ofcio que transmitam segurana e fora ao
carter do orador. Assim, na escala das hierarquias sociais, a narrativa opera a desqualificao do
vereador do meio de estigmas que articulam ausncia de honra, fidalguia e nobreza. ainda a partirdesse quadro de suspeitas que acresce novo comentrio acerca do vereador do meio. Relata que
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Se manteve uma dissimulada discrio nos atributos de sua prpria origem familiar, como
exige o padro de humildade do orador, por fim, na perorao, rene os elos dispersos de
informao e recorre fortemente ao componente da sua qualificao biogrfica, em que d realce s
qualidades de uma linhagem de nobreza crist, da formao na alta cultura e da ocupao de lugaressuperiores da hierarquia eclesistica no Estado da ndia:
E o papel desta Apologia destas demonstraes, ainda que tambm seja feito porhomem sujeito s mesmas misrias e pecados, a que os maiores pecadores seamesaram, e podem a ramesar, e possa cair nas mesmas mentiras, e piores, comtudo a misericordiosa mo de Deus Altissimo, de pura graa, e sem merecimento
prprio o fez homem, que nasceu de Pais catlicos e nobres, e tementes a Deus, eat o presente o tem de sua mo para que se no aia aremessado, a tal publicidadeto irreligiosas proposies e mentiras, e procura falar verdade, [...]. E foi mestre
dos novios tres vezes, e dai subiu aos oficios de mais dignidade, e foi reitor docolegio de letras de Goa duas vezes, e foi Prior do convento desta metropole deGoa uma vez, e foi Provincial uma vez, e refuzou se-lo outra, e ainda sobre issorefutou outra dignidade acima desta, e h 12 anos que neste estado da ndiaoriental, e deputado da mesa da segunda instncia das ordens militares, e deputado do Santo Officioh quinze, e muitos, que o mais antigo deputado emtodos estes tribunais (SANTA ANNA, ANTT/MSLIV, 816,fl. 203v-204). [grifosmeus]
O leitmotivdo conflito, origem da Apologia...,envolveu riquezas e fidalguias. A petio
inicial da Cmara, de 10 fevereiro de 1632, denuncia a retirada com fora e violncia da mulher
de D. Pedro Mascarenhas, no prprio dia de sua morte, a 8 de fevereiro, um escndalo que
despertou a este povo. Todavia, duas irms da viva, D. Catarina, j integravam a comunidade de
mulheres do mosteiro. Soror Gracia da Trindade fez profisso a 6 de fevereiro de 1613, e oito anos
mais tarde foi a vez de Joanna fazer os votos sob a designao religiosa Joanna da Columna, que
chegou at mesmo posio de prioresa do mosteiro. Segundo a indicao em Apologia..., eram
filhas de Maria Vieira e Antonio Rodriguez, procedentes de Cochim, cidade com forte presena de
comerciantes portugueses. Catarina, a mais velha das irms, provavelmente foi a nica filha a
receber dote e a realizar um casamento percebido como prspero na demarcao de posio de
elevado status social. Aps um ano de noviciado, a viva de Pedro de Mascarenhas no pde
professar, por proibio do conde de Linhares. Posteriormente, tomou os votos de vu preto e
acatou por novo nome, Catharina de Monte do Carmo -uma provvel homenagem aos carmelitas,
religiosos tambm prximos ao marido.19
A concentrao de mulheres de uma mesma famlia foi um trao recorrente no perfil do
mosteiro, um aspecto que demonstra o papel da casa conventual na reproduo de um padro de
comportamento feminino que refletia, no ultramar, a replicao de estratgias de controle da riquezae da reproduo familiar por meio do confinamento de mulheres dos segmentos superiores.
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D. Pedro de Mascarenhas foi capito de Diu -cobiado entreposto no golfo de Cambaia, no
Guzerate, regio central da malha comercial entre o ndico ocidental e o sudeste da sia - e
descrito no discurso de Santa Anna pelo atributo de fidalgo velho, com procedncia familiar de
bela estirpe, irmo de Jorge Mascarenhas, conde de Castelo Novo, ttulo concedido por Filipe IVao forte aliado. Ocupara as posies de presidente da Cmara de Lisboa, da Companhia das ndias e
da Junta da Fazenda e, aps os episdios do conflito gos, foi nomeado vice-rei do Brasil pelo
monarca Habsburgo, em 1640, pouco antes do golpe da Restaurao (SCHAUB, 2001, p. 46).
Todavia, o perspicaz orador no faz meno figura paterna, D. Francisco de Mascarenhas, que
fora capito de Ormuz, como ainda no confere um valor negativo mcula de bastardia, na
acepo corrente nas conscincias do imprio de que a ndole da nobreza de sangue elide o
nascimento ilegtimo.
Ora, cabe recorrermos a uma consulta do conselho de Portugal acerca de Pedro de
Mascarenhas, de trinta anos antes dos episdios que constam em Apologia....O documento de
agosto de 1601 efetuou-se a partir de uma carta do vice-rei acerca do pedido de merc da capitania
de Diu a Pedro Mascarenhas, que anda servindo na ndia(AGS, Sec. Provinciales, 1461, fl. 80).A
redao do texto recorre aos qualificadores de filho natural e mestio ao descrever o pretendente
merc. Por ser mestio e nascido na ndia, recebeu naquele momento, por merc, a capitania da
fortaleza de Baaim, de menor projeo do que a de Diu. Porm, um segundo despacho, de uma
nova consulta, do vice-rei Aires de Saldanha (1542-1605) ao conselho de Portugal, em 26 de
fevereiro do ano seguinte, menciona que D. Pedro Mascarenhas recebera por merc a capitania de
Diu, firmada por carta do soberano ao vice-rei, de 26 de dezembro de 1601 (AGS, Sec.
Provinciales, 1464, fls. 136f, 136v). O que aqui importa reter que embora mestio nascido na
ndia, a consulta finaliza por tratar D. Pedro Mascarenhas como fidalgo e sugere que o rei conceda
a merc em compensao aos servios prestados monarquia.20O que nos provoca a lembrar de
Diogo Couto (1542-1616), ao parecer confirmar o que chama de maldio portuguesa na
valorizao dos atributos de sangue e nobreza em que homem que no fidalgo no chamado
para nada (COUTO, 1980, p. 90).
Os exemplos das duas figuras fulcrais da escrita de Apologia... (Luis da Fonseca Sampaio
e D. Pedro Mascarenhas) indicam que as questes de origem, nascimento e procedncia familiar
compem um jogo complexo de manipulao de cdigos de pertencimento social nos mundos
portugueses. E apontam ainda para a maleabilidade das grades classificatrias e o componente
contingencial dos arranjos sociais - Pedro Mascarenhas, nos ofcios administrativos do centro,
bastardo, na cabea do Estado da ndia, fidalgo velho. No entanto, as grelhas classificatriasfixam e consolidam hierarquias no distante Estado da ndia. No acompanhamento da leitura da
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escrita de Santa Anna emerge um mundo portugus de fidalgos e nobres que desaparece no quadro
de guerras intestinas em que se transformara a praa do oriente. Capites de celebrada glria
reduzidos a sal e gua, ou fumo, no tropo reiterado pelo escrito da Apologia.... Embates em
Malaca e no Ceilo abreviavam o destino de uma fidalguia toda morta e desaparecida na defesa dosmundos de Portugal:
e todos tem acabado e pouco que estes fidalgos se lograro neste estado, frescoestapois os mais destes capites, no chegaro a viver sequer dois anos, edeixamos, os que so de tempos mais atrs, ainda que podiam entrar no nmero dosda calamidade particular de que tratamos, [...], por que assas com estas pessoasnomeadas fazemos demonstrao de como em um Estado de to pouca gente
portuguesa esto dependentes de to valiosos capites (SANTA ANNA, ANTT/MSLIV,87, fl. 26r).
Os padres de estratificao social no mundo portugus dos espaos asiticos acentuavam as
hierarquias, assim como reforavam os mecanismos de translatio entre os diversos agentes do
processo colonial. O orbe lusitano que emerge das pginas de Apologia... captado por uma letra
cujo traado reala o embate e as tintas dos conflitos locais, constri o outro portugushabitante da
periferia. Da leitura de Apologia... delineia-se, no jogo dos planos diversos da ao social no
Estado da ndia, a complexa cadeia de diferenas e distines entre os que abraavam formas de
pertencimento ao Reino de Portugal. Santa Anna fala, por meio da persona do orador, como homem
da metrpole no estratagema de diferenciao dos portugueses residentes, representados no Senado
da Cmara de Goa. Os anos de vida que dedicou nas fini terra do imprio projetam-se na escrita
apologtica por uma concepo evangelizadora de rigor doutrinrio que refora concepes de
mundo em continuidade com a identidade do reino e a defesa daMonarchia Christiana(XAVIER,
2011; FIGUERA-REGO, 2011).
Tal constatao remete a uma reflexo acerca das concepes e prticas de cristianizao. A
petio da Cmara contra o mosteiro de Santa Mnica acusa os agostinhos de se apoderaram das
mulheres ricas do Estado da ndia e descreve o caso da viva de D. Pedro Mascarenhas, retirada a
fora de sua casa. Por um lado, um subtexto que corre a narrativa desvela a posio poluidora da
mulher no inserida numa rede de proteo, seja a famlia, o marido ou o mosteiro, tambm adverte
para uma prtica da atuao dos agostinhos com figuras liminares que, momentaneamente, so
desprovidas das redes de proteo. Alguns relatos sobre os agostinhos da Congregao da ndia
oriental indicam a adoo de estratgias de ao missionria, que de algum modo associada a
mecanismos de coao, como em casos relatados nas crnicas mogis acerca da ocupao de
Ugulim, na regio de Bengala, em 1632, pelo governador mogol Qasim Khan. Entre as reas de
ao dos eremitas de Santo Agostinho de Portugal, inclua-se a de Bengala, onde obravam na
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converso das almas.21 Nos exemplos da crnica mogol, denuncia-se uma forma de predicao
agostinha marcada pela fora e o costume de se apoderarem de crianas na morte de seus pais para
torn-las crists e escravas.22 Porm, essa prtica no era exclusiva dos eremitas de Santo
Agostinho, o uso da coero e do medo, como instrumentos de converso ao cristianismo, presenteno sequestro de rfos hindus, configurou prticas renitentes de agentes religiosos, presos a
convices do xito dos mecanismos de cristianizao na idade pueril #BOXER, 1981, p. 91-92).
Perseguia-se um ideal da defesa da lei divina, que justificava a prtica da violncia orientada pela
caridade de Deus.
O mosteiro de Santa Mnica e a glria a Deus
No exrdio de Apologia..., Santa Anna anuncia a filiao tradio escolstica de So
Boaventura e So Toms de Aquino. Ambos compuseram uma referncia de auctoritasda segunda
escolstica da Companhia de Jesus no pensamento ibrico do sculo XVI e XVII. Segundo o legado
da Escola de Salamanca de Francisco Vitoria, o poder reside na comunidade que, atravs do pacto
de sujeio o delega ao rei como cabea do corpo mstico da republica christiana. Em um dos
ltimos escritos, j no ano de 1637, frei Diogo de Santa Anna fez meno poca de estudante em
que se dedicara ao estudo e leitura da obra do jesuta Francisco Suarez (1548-1617) e do
dominicano Domingo Bez (1528-1604), mestre da ctedra de Prima de Teologia, classe que
frequentara na faculdade de Cnones em Salamanca. Por conseguinte, demonstrou controle de
autores da segunda escolstica. Nesse mesmo escrito, comenta que os livros formam os nicos bens
materiais que acumulara e vangloria-se da livraria que formou e entregou ao colgio de Santo
Agostinho, a milhor particular de todas as ordens deste estado da India (SANTA ANNA, ANTT/
MSLIV 674, fl. 89v).
Santa Anna, na demarcao das estacas de autoridade, firma o compromisso de defender a
verdade. O cura das Mnicas anuncia a finalidade do manuscrito de apresentar uma defesa do
convento de monjas agostinhas e inscreve a narrativa nos exemplos de virtuosidade, no sentido do
habituscristo, da vida compreendida pela devoo trindade e glria de Deus. A acepo de
glria resvala por efeito polissmico atravs dos vocbulos de honra e louvor na perspectiva de uma
ideia de virtude na dimenso crist e do bem comum, na reiterao da ordem do status quoda
republica christiana.
No curso da escrita, so as categorias e os princpios agostinianos do governo dos homens
que conduzem a construo de uma narrativa histrica do lugar da cidade de Goa na monarquia dasEspanhas. Discorre sobre a percepo do governo da Republicasubordinado ordem divina, que
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projeta Deus na posio de arquiteto da cidade dos homens. As acepes agostinianas adensam-se
com a ideia de que todo governo uma imposio divina a uma natureza humana decada e
pecadora. esta apreenso que norteia a descrio do quadro de declnio das cidades lusitanas na
ndia oriental no confronto com os infiis -inimigos e hereges holandeses e aos mais europeus quenos infestam (SANTA ANNA, ANTT/ MSLIV,87, fl. 5r). Ou seja, so os modos de ver o mundo,
informados por princpios teolgicos providencialistas, que pervagam as partes do todo social. Os
diversos corpos msticos do rei se articulavam pelo dossel comum da religio em uma monarquia
catlica.
Assim, no deve surpreender encontrar um encadeamento argumentativo e o vocabulrio
prximos ao de Santa Anna em ofcios da rotina administrativa do imprio. Uma consulta do
Conselho de Estado, no extraordinrio de 10 de maro de 1632, trata dos pecados de ruim calidade
em que se acharo na ndia e adverte sobre a preocupao de encontrar os caminhos para evitar
peccados. A perseguio aos pecadores reduz a ira divina para que com isso sessem os castigos
do ceo que pella omisso se podem temer (BA, 51-X-2, n o7, fl. 59). A ordem divina subordina o
governo dos homens ao desgnio de Deus. Uma antropologia agostinha condiciona a felicitas
poltica felicidade eterna (RODRGUEZ, 1998, p. 23-24). Portanto, no cotidiano a poltica
local distancia-se dos cnones celebrados pela herana de Salamanca.
Alm disso, a tpica da guerra reiterativa da conquista e da expanso do oriente portugus,
um signo tambm forte no qual inscrito um desgnio de Deus, que inscreve Goa na dimenso de
um tempo providencialista. Por sua vez, o efeito polissmico da tpica tambm ampliado pelo
emprego recorrente do vocbulo calamidade, o que confere uma dimenso moral ao discurso, de
mobilizao dopathospelo movimento crescente das frases por interjeies, que dota os termos de
destruio e de violncia de atributos positivos.
Muito mal pois, cuida o Vereador do meio, se cuida, e pretendeu persuadir no
senado, que nossa contnua guerra a que nos atenua, quase como que se nsfossemos, os que tivssemos ordinrio poder para neste estado oriental,conquistarmos terras, e sustentarmos e defendermo-nos nelas, das poderosssimasnaes de brbaros e infiis que nos rodeiam, e a que ofendemos, e das quais nosdefendemos sendo tudo o que nisto tem passado, e vai passando um contnuomilagre sobre o qual nossas consideraes no afundam e falamos em guerra, e emnossa contnua guerra, como se fossemos poderosos para ela ao modo comum dasmais naes, sendo s uma ostentao, e um testemunho de como Deus Altssimo,salva, tanto com poucos, como com muitos, e estabelece e arruna, como mais servido ou ser pouco, ou seja muita a potencia dos que favorece ou desfavorece,ser pois esta calamidade da contnuaguerrarealmente calamidade,como , porem com tal declarao, que se no aia que a nossa guerra nos defende, e nos
resguarda, e nos conserva, ou aumenta, ao modo ordinario dos Reinos poderosos,porque no assim, no assim, mas Deus o que guerrea por nos desde que andia Oriental se descobriu, at a hora presente, e nos somente, somos os
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instrumentos, com que em nossas gloriosas vitrias mesmo Deus se glorifica, comono seu antigo povo. [grifos nossos] (SANTA ANNA, ANTT/ MSLIV, 87, fl. 27v)
Na letra de Apologia..., a eleio por Deus singulariza Portugal das demais naes e o
projeta condio nica de instrumento de glorificao divina. E Santa Ana acentua o efeitoemocional da tpica da guerra por meio do componente de vigor produzido pela intertextualidade
bblica, na comparao com o povo escolhido do Antigo Testamento.
[...] Deus o que guerrea por ns desde que a ndia Oriental se descobriu, at ahora presente, e ns somente, somos os instrumentos, com que em nossas gloriosasvitrias mesmo Deus se glorifica, como no seu antigo povo o fazia, para suaostentao diante dos infiis, e para os fazer conhecer como sua Magestade Divinaera e o verdadeiro Deus omni potente, que devia e deve ser adorado, e glorificado
de todas as suas criaturas em tanto se tem Deus declarado por Princpe de nossamilcias [...] pois o contrrio seria tentar ao mesmo senhor, mas quero que sejanotrio, o que ele tanto como o Sol, e que a India oriental foi descoberta econquistada (no em que o est) e sustentada no em que se sustenta pelo
perseverante brao, e especial auxlio de Deus e insania e delirio entender estaconsistncia doutra maneira... (SANTA ANNA, ANTT/ MSLIV, 87, fl. 28r)
Ora, a narrativa modela a escrita sobre o convento de religiosas de Santa Mnica por meio
da descrio de um ambiente de virtuosidade do ascetismo monstico, que alia religiosidade e
espiritualidade feminina. Tenses e conflitos ordenam a escrita na fabricao de uma memria
sobre a fundao do mosteiro das Mnicas: disputas entre franciscanos que, por sua vez,
reivindicavam um mosteiro de clarissas, e os agostinianos, confronto da Cmara de Goa e o
mosteiro. Esses episdios prescrevem um destino particular ao convento de mulheres que
legitimava seu reconhecimento enquanto territrio sagrado. As qualidades excepcionais das
mulheres de f alargavam a cristandade no oriente pela gloria de Deos e ao servio do Rey e ao
bem desta Republica (SANTA ANNA, ANTT/MSLIV, 2236, fl. 165v). Deste modo, o convento
possui uma dimenso institucional da continuidade da tradio crist, dos virtuosos que habitam
mosteiros, e uma segunda, antiestrutural, sugerida no elemento poluidor do feminino, que novamente enquadrado pelo recurso dinmico do carisma religioso.
A teia de tenses que atravessa a escrita de Santa Anna ilustra a competio entre os
diversos agentes de poderes nos espaos locais. No apenas aciona o movimento pelas presses da
cadeia polissinodal do imprio, como assinala o papel ativo das instituies religiosas no jogo
competitivo por conquistas polticas e materiais.
A tpica da decadncia, que organiza parte da argumentao de defesa do mosteiro de
mulheres, foi tambm recorrente em um conjunto variado de textos entre o final do Quinhentos e asprimeiras dcadas do sculo XVII, como so exemplos os textos de arbtrios e advertncias
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(CURTO, 2006, p. 46-47). A oratria sacra tambm prdiga em exemplos variados acerca da
temtica da decadncia do imprio (MARQUES, 1989). Assim como as sucessivas perdas no
ndico, tambm o eixo do Atlntico com a ocupao da Baa, e em seguida de Pernambuco, pelos
holandeses, forneceu elementos concretos que municiaram a narrativa da decadncia e as sucessivasassociaes entre a crise do imprio e a ira divina provocada pelo pecado como causa dos
infortnios. Trata-se de um conjunto de escritos que preanunciava a lenda negra que forjou a
metanarrativa da decadncia de Portugal, renovada nos sculos XIX e XX, com o corolrio de uma
renitncia ibrica modernidade capitalista (CURTO, 2006, p. 48-49).
Em mais uma reiterao de tpica corrente da literatura de arbtrios, o declnio do comrcio
explicava a decadncia do Estado da ndia. Parte da escriturao de arbtrios e advertncias do
Seiscentos, de que foram exemplos A arte militar (1612) de Lus Mendes de Vasconcelos, e os dois
textos do cristo-novo e comerciante de grosso-trato Duarte Gomes Solis, Discursos sobre los
comrcios de las dos ndias (1622) e A legacion en favor de la Compaia de la India Oriental
(1628) destacam a importncia do controle martimo em detrimento da terra(CURTO, 2006, p. 52).
Por sua vez, Diogo de Santa Anna desenvolve argumento contrrio, em que tece uma crtica ao
predomnio do mar no padro de dominao portuguesa. Um modelo, que, segundo o agostinho,
manteve o controle de faixas estreitas de terra sem a oportunidade de desenvolver atividades
agrcolas. Na conduo da escrita, desperta a agonia de um reino que se sustentou na mercancia,
com a formao de uma malha comercial que encontrou forte posio de disputa com a chegada dos
inimigos europeus. O Seiscentos introduzira um algoz que integrava a vizinhava do espao
europeu: inimigo, protestante e herege. O arrasamento das conexes comerciais portuguesas
agudiza a crtica de Apologia... ao modelo talossocrtico em detrimento da ocupao do territrio:
umas puras fraldas do mar, poucos campos em que estreitissimamente nos estendemos, [...] que
mais nos servem de recreao, que de sustentao (SANTA ANNA, ANTT/ MSLIV,87, fl. 32v-33).
Esse mesmo esprito crtico encontra-se na Histria do Brasil, do franciscano nascido no
Brasil, contemporneo de Santa Anna, frei Vicente do Salvador, na conhecida narrativa acerca do
padro da colonizao portuguesa: "sendo grandes conquistadores de terras, no se aproveitam
delas, mas contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos". As caravelas
e a nobreza portuguesa submergiam em gua e sal, diluam-se em fumo, metforas que alimentam
um dos movimentos de respirao na escrita de Santa Anna.
Consideraes finais
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O requerimento da Cmara de Goa foi enviado ao conde de Linhares vice-rei defensor da
ptria, em 10 de fevereiro de 1632. O perodo do vice-reinado de Miguel de Noronha forjara por
anunciar um quadro de irreversibilidade da crise. A perda de Ugulim para os mogis do governador
de Bengala, Qasim Khanm, ao final de 1632, afetou o comrcio principalmente de txteis da regiocom as cidades de Goa e Cochim. A dcada encerrou com a perda de Ceilo para os holandeses da
VOC, o fechamento derradeiro das relaes com o Japo e, em 1641, a perda de Malaca, um quadro
geral que demonstrava aos contemporneos a progressiva constrio das rotas comerciais dos
portugueses pelo ndico (SUBRAHMAMYAM, 1995, p. 232-245). Apesar do tratado de paz
assinado com os Estados gerais holandeses em novembro de 1641, nas dcadas seguintes, os
holandeses mantiveram intensa presena nos mares asiticos.
Goa, a cidade crist dos templos brancos, exibia na dcada de 1630 uma intensa circulao
de religiosos. Hoje, os registros de monumentos arquitetnicos que recuperam a presena
portuguesa em Goa so predominantemente vestgios de edificaes religiosas, um cenrio que
destaca o peso das instituies religiosas. Em 1635, a partir das informaes de Antnio Bocarro e
Pedro Barreto em O livro do Estado da ndia, possvel indicar em termos gerais que 1/3 da
populao era formada por eclesisticos de ordens religiosas, com um predomnio de jesutas,
seguidos por franciscanos, agostinhos e dominicanos (SUBRAHMAMYAM, 1995, p. 232-245;
XAVIER, 2008, p. 166). As ordens religiosas em Goa formaram ainda um forte ponto de atrao
para os soldados que, em nmero no insignificante, desertavam. O conde de Linhares projetava
que metade dos soldados dirigidos ao Estado da ndia acabava por abraar carreiras eclesisticas
(DISNEY, 1981, p. 35). A singularidade dos direitos de padroado por parte de Portugal tornava os
encargos eclesisticos onerosos. So conhecidos os conflitos com jesutas e agostinhos que
marcaram o vice-reinado do conde de Linhares, em que se alude de modo exagerado s tentativas
do clero de usurpar a autoridade real (DISNEY, 2010, p. 33). A resistncia dos agentes eclesisticos
s aes de reordenamento da estrutura administrativa e de saneamento fiscal no perodo de
Linhares, na primeira metade da dcada de 1630, confirma a trama de disputas que urdia na
metrpole do Estado da ndia. O conflito com o mosteiro de monjas agostinhas e seu cura mais
um dos episdios que indicam a fragilidade de governao no Estado da ndia. No fundo, as
questes fiscais do vice-reinado de D. Miguel de Noronha constituem um desdobramento do amplo
programa de reforma fiscal do conde-duque de Olivares, que j encontrara forte resistncia no
Reino. Logo, as reaes de religiosos, como o exemplo demonstrado por Apologia..., mais um
dos pontos de reverberao local da crise mais ampla do reino no mbito da monarquia de Filipe IV
e de seu valido.23
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A verso de Apologia... de 1636, que foi finalizada aps a partida de D. Miguel de
Noronha, em dezembro de 1635, explicita os entraves de afirmao do poder vice-reinal frente s
ordens religiosas, como no caso da interdio de possurem bens de raiz, da fixao do teto dos
rendimentos das propriedades das freiras do mosteiro, como ainda no exceder o nmero de 100freiras de vu preto e da ordem de reduo do contingente de escravas e criadas do mosteiro. Santa
Anna no somente reagira como advertira para o risco de fechamento do recolhimento, pois
mulheres em clausura no mendigam, nem podem valer-se de benesses, nem de outros
emolumentos, justificando a recusa de seguir a determinao real de reduo do patrimnio da
casa conventual de mulheres. Ademais, o ltimo ano de d. Miguel de Noronha no Estado da ndia
intensificou a presso sobre o agostinho das Mnicas, constrangido em ir mandado para o reino
como principal cabea e factor dos desvios, medida que se justificava pela preservao do bem
comum e a quietao do povo do Estado da ndia.24Porm, Santa Anna no obedeceu e se negou
a embarcar.
A escrita da verso de Apologia... de 1636 atravessada pela contundncia do embate
entre o poder dos homens e de Deus, a disputa entre os dois gldios, regnumesacerdotium, em que
o lxico agostiniano do poder divino serve de bssola ao princpio teolgico moral que subjaz o
ataque ao poder vice-reinal. Porm, as categorias de um vocabulrio teolgico-poltico acionadas
pelo discurso de Apologia... constituem loci communesque auxiliam no encadeamento retrico
da argumentao. Assim, as noes de razo de estadoe prudncia -no a dimenso da moral
crist da virtude que referimos acima, mas na acepo vulgarizada pela circulao das noes
maquiavelianas -adquirem na construo discursiva uma acepo negativa da tradio ibrica das
matrizes teolgicas e jurdicas de pensar a autoridade. Santa Ana preserva a figura do rei por cabea
do corpo mstico da monarquia crist e deliberadamente critica o comportamento autnomo e
independente do vice-rei no exerccio do poder:
[...] que de tal maneira os Vizo Reis delle (e sejame licito dizello, por servio deDeus, e de El Rey) se foro entronizando em governarem absoluta voluntaria, eindependentemente, o mesmo estado, que para tudo o que quiserem obrar, nogoverno delle, foro avendo, e alcanando Provizois Reais, as quais podessemrecorrer [...].E o que de todo conssume a este mesmo estado, e o poem fora de remedio nestes
particulares, vem a ser, que os aduladores se multiplicam e refinam, e oseclesiasticos emudeam, e as sagradas ordens, fazem razo de estado, e prudncia,o averem seus Prelados de carlarsse, e os pregadores averem de abstersse dereprehender, o que toca aos grandes, e assi no vem a estas via, por onde os malessa atalhem (SANTA ANNA, ANTT/ MSLIV, 816, fl. 107v-108).
O novo captulo que Santa Anna acrescentou, agora na verso de 1636, ltima parte de seu
discurso de defesa do mosteiro discorre sobre as perdas do Estado da ndia no perodo do vice-
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Histria (So Paulo) v.32, n.1, p. 251-280, jan/jun 2013 ISSN 1980-4369 274
SANTA ANNA, Frei Diogo de. Apologia do insigne mosteiro de Santa Monica de Goa, eresposta, e satisfao, e verdadeira informao, sobre o acordo, e queixa (ou para milhor sedeclarar, sobre a invectiva) que a vereao da mesma cidade de Goa metrpole do estado daindia oriental, em dez de fevereiro de mil e seiscentos e trinta e dous, fulminou, contra o ditoReligiosissimo mosteiro, que He de freiras da sagrada ordem dos eremitas do glorioso
Patriarcha sancto Augustinho exmio Doutor da santa igreja. MSLIV, nmero 2236, 1635.
SANTA ANNA, Frei Diogo de.Resposta por parte do insigne Mosteiro das freiras de SanctaMonica de Goa. E satisfao ao acordo, e queixa, e requerimento, que a vareao da mesmaCidade de Goa, metrpole dos estados da India Oriental, em dez de fevereiro do anno de mil eseiscentos, e trinta e dous fez, contra o prprio Religiozisssimo Mosteiro, e por papel seuaprezentou a Dom Miguel denoronha Conde delinhares, e ao dito tempo actual vizoRey domesmo estado da India.1636. ANTT, MSLIV, nmero 816, 1636.
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SANTA ANNA, Frei Diogo de. Instruco Da orao Religioza e exeriios spirituais, com quenella se poder cooperar com a diuina graa, conforme mais sam, e cmua doctrina dossagrados doutores da Sancta Igreia. He em geral pra os fieis de todos os estados, e emparticular pra as Religiozas professas de S.to Aug. do Religioziss. e observantiss. mosteirode S.ta Monica de Goa, e o primeiro de Clauzura no Oriente. Foi feita por hum Religiozo da
mesma ordem, e confessor do mesmo mosteiro ao tempo da fundao delle
.. s/d.Reservados, Cd. 5094.
SANTA ANNA, Frei Diogo de. Memorial fidelissimo da Nobelissima ascendencia e antigajenealogia de Bento de moraes pimentel, cofre do antiquissimo e nobelissimo Apelido dosmoraes pimenteis, cuio solar he o Castello de Bragana, nos reinos de Portugal e Provincia deTralosmontes.1638. Coleo Pombalina (PBA), 64.
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Notas
1No Arquivo Nacional da Torre do Tombo localizam-se trs manuscritos da contenta entre o Cmara da cidade de Goae o mosteiro de Santa Mnica atribudos a SANTA ANNA, Frei Diogo de. Neste artigo, concentro maior ateno nocdice nmero 87 dos Manuscritos da Livraria (MSLIV), de 293 flios numerados.2A romanizao de antigas populaes crists na costa de Malabar, em que se destacam os conhecidos cristos srios deSo Tom, como tambm os cristos vinculados ao Patriarcado da Armnia, nas reas ocupadas pelos turcos e persas,formou umas das linhas de atuao de maior expresso da poltica agostinha durante o arcebispado de Dom Frei Aleixode Meneses (1595-1610). Duas obras de autoria do tambm agostinho Antonio de Gouvea (c.1575-1628) (GOUVEA,1606,1611) divulgaram no contexto catlico europeu essas duas frentes da ao do metropolita.3In the end the fiscal reform program petered out and there was little fundamental change in the ways in which thingswere done. The adverse conditions of times, and the forces of inertia that had such a hold over the Estado da ndia,simply proved too strong for even so determined a viceroy as the Count of Linhares. (DISNEY, 2002, p. 275)4Ao referir-me a Filipe II e Filipe III de Portugal utilizarei neste artigo a denominao espanhola do monarca, Filipe IIIe Filipe IV respectivamente.5Atenta-se dimenso moral da ao poltica catlica e as noes de bom governo atribudas ao monarca catlico:Figurada una Iglesia como Monarquia Eclesistica, y reconocida a la misma una potestad mixta, una capacidad deintervencinpolticapor motivo espiritual,el amor, como principio de ordenacin ahora universal, tambin implicaba
por tanto la insercin de una Monarchia en una Ecclesia, de un monarca en un cuadro jerrquico de autoridadescoronado por el pont pontfice. (RODRGUEZ, 1998, p. 22).6Frei Diogo de Santa Anna era originrio de fidalguia da regio de Bragana que, na escrita geneolgica, comentaremontar ao medievo e a uma procedncia comum, pelo apelido dos Moraes, grande illustrissima casa deBenavente, grandes de Castela, antigos senhores de Bragana cita por testemunho o tratado Nobiliariogenealogico de los Reyes e Titulos de Espaa, dirigido a la Magestad del Rey dom Felipe Quarto nuestro seor deAlonso Lopez de Haro (SANTA ANNA, 1638, fls 4, 16, 28). Acerca da projeo do gnero da escrita nobilirquica nosculo XVII consultem-se XAVIER, 2011, p. 89; FIGUEIRA-RGO, 2011, pp.538-543. Segundo Xavier, a partir dosestudos de Antonio Hespanha e, mais recentemente, de Jose Guilln Berrendero, a projeo das concepes aristotlicasda ordem social cimentam a ideia de uma nobreza natural: Essa fenomenologia expressava-se, em primeiro lugar,na gerao, na linhagem (havendo controvrsia, porm, sobre se a transmisso era patrilinear e/ou matrilinear),esperando-se dos filhos de nobres, depois, que expressassem na vida cvica as virtudes dos seus pais e antepassados.(XAVIER, 2011, p. 88)7A traduo para o castelhano atribuda a frei Fernando y Carvalho e veio estampa no mesmo ano, (MACHADO,1741, vol. I, p. 630)
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8Como assinalado na nota 3, o ANTT possui trs manuscritos. Os cdices de nmeros 87 e 2236 dedicam Apologia...ao imperador das Espanhas Filipe IV. O cdice 816, que se estende at 1636 e inclui o quadro milagroso dastransformaes do crucifixo da igreja do mosteiro transcorridas nesse ano, esclarece que no inclui dedicatria, uma vezque a verdade e a sinceridade servem de proteo, como tambm consideram todos os catlicos aos quais a leitura deApologia... chegar. Uma folha avulsa, no incio do manuscrito 2236, especifica que foi enviada ao Reino de Portugal
pelo frei Boaventura das Chagas, com orientao de ser entregue aos procuradores do mosteiro de santa Monica de Goaou ao provincial dos agostinianos eremitas. E acrescenta que outras cpias, em anos anteriores, foram enviadas aoReino.9Tertuliano, originrio de Cartago, advogado e professor de retrica, aps a converso ao cristianismo, escreveu umconjunto de obras em que abraa a causa crist. Segundo George A. Kennedy, foi o primeiro grande representante docombate ao paganismo, e deixou obras de contedo moral e doutrinrio (KENNEDY, 1980, p. 133-135).10Veja-se CARVALHO, 2007. Consulte-se tambmApologia de Valignano examinada no estudo de CORREIA, 2008.11Joo Francisco Lopes, no verbete apologtica, sublinha o teor de enfrentamento na defesa da cristandade presente nognero: O confronto, atravs dos sculos, com a idolatria, heresia, agnosticismo, atesmo, cultos, seitas e religiesacatlicas, na dialctica da afirmao/negao, gira dentro de um esgrimir polmico, susceptvel de virulncia eagressividade (LOPES, 2000, p. 86-87).12Nos limites do artigo no procede avanar essa questo. Atente-se ao componente pragmtico da retrica eclesisticaem que a palavra, a imagem e o gesto impregnam as estratgias de persuaso na ampliao das partes do discursotocando a emoo do leitor e do pblico (LPEZ-MUOZ, 2004). 147-167. A oratria eclesistica conduziu a umexerccio de acomodao da retrica clssica no sentido de prover os atores de scripts de interaes sociais para os
palcos amplos da evangelizao. Acerca da categoria de performance, remeto a GOFFMAN, 1975.13 O ttulo integral da obra de Cipriano Soares De Arte Rhetorica libri trs ex Aristotele, Cicerone et Quintiliano
praecipue deprompti ab eodem Auctore recogniti, et multis in locis locupletati.Segundo Anbal Pinto de Castro, formouum manual adotado pelas escolas da Companhia de Jesus tanto no Reino como em todo o imprio. Ademais, ocompndio facultou um deslocamento de uma concepo centrada no humanismo cristo para a formao do homemcristo (CASTRO,1973, p. 36, 38).14Marc Fumaroli comenta que ao final do sculo XVI, os jesutas incorporam o Ccero dos modelos pagos, adaptando-o aos princpios do Conclio de Trento, que legitimou a oratria crist como modo privilegiado de expresso etransmisso da verdade da f (FUMAROLI, 2009, p 140).15Angel Marcos de Dios faz meno ao processo de decadncia de Salamanca nas duas ltimas dcadas do sculo XVI,que, entretanto, correspondeu ao perodo de maior afluxo de estudantes de Portugal (DIOS,1975, p. 32).16Com algumas mudanas de composio, a mesma justificativa da escrita de Apologia... encontra-se na verso de1635 (SANTA ANNA, 1635, fl. 13v).17Na verso do cdice 2236, a cada perodo numerado do documento da Cmara sucede o termo satisfao por parteda defesa do mosteiro. Na edio de Apologia..., cdice 816, por sua vez, so as expresses pela vereao e pelomosteiro que esto adicionadas.18Para a construo de uma concepo antropolgica catlica e o desenvolvimento terico da razo de estado catlicaconsulte-se Jos Maria Iurritegui Rodrguez. (RODRGUEZ, 1998)19 A igreja dos carmelitas, contnua ao convento da ordem, no outeiro de Nossa Senhora do Monte em Goa, foiconstruda com a dotao de 20 mil xerafins, recebida de Dom Pedro Mascarenhas. Por retribuio, os carmelitasobrigaram-se a realizar o seu enterro com armas e "sumptuoso sepulchro" (SALDANHA, 1925, p. 106).20 No cabe no intento do artigo estender a questo acerca do processo implicado no recebimento da capitania dafortaleza de Diu por D. Pedro Mascarenhas, a documentao aqui utilizada tem por objetivo dar forma complexidadedos procedimentos classificatrios na configurao das hierarquias nos mundos portugueses. O nome de D. PedroMascarenhas est registrado na posio de capito de Diu na inscrio de uma ponte em Diu com data de 1630.(TELLES, 1935, p. 13) Tambm a lpide de sua sepultura, na igreja do convento do Carmo em Goa, menciona que foicapito de Moambique e de Diu. (NAZARETH, 1904, p. 637)21 Por volta de 1600, os agostinhos erigiram um convento em Ugulim, cidade que na Crnica da Felix de Jesus indicada pelo topnimo de Ogoli. (JESUS, 1967, p. 72)22Khafi Khan, oficial e diplomata mogol, na crnica Muntakhab al-Lubb, comenta sobre os portugueses de Bengalamem Ugulim : [...] but if one of these inhabitants died, leaving children of tender age, they took both the children and
property under their charge, and whether these young children weresaiyidsor whether they were brahmans, they madethem Christian and slaves (mamlk). (Apud SUBRAHMAMYAM, 2004, p. 41)23 Para uma anlise sobre as mudanas do sistema fiscal no perodo de D. Filipe IV vejam-se OLIVEIRA, 1991;SCHAUB, 1999.24As ordens reais determinavam, alm disso, que a renda anual do mosteiro no excedesse oito mil cruzados em bens
de raiz, desde que no fossem foreiros da fazenda real, como tambm o valor do dote individual das freiras em milxerafins. Cf. Copia da certido do secretaro. do estado da Proposta da idade, e do recado ao Bispo gouernador, e Suareposta. (LINHARES, 1937, p. 311-319). A narrao desses fatos e a reproduo de documentos foram tambmdivulgados pelo livro do agostinho descalo Agostinho de Santa Maria (1642-1728), em edio do final do sculo XVII
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Gloria de Deus, ao servio do Rei e ao bem desta Republica: freiras de Santa Mnica de Goa e acristandade no oriente pela escrita do agostinho frei Diogo de Santa Anna na dcada de 1630
(SANTA MARIA, 1699, p. 251).25As narrativas de acontecimentos milagrosos associados cruz forjam uma metanarrativa de uma ndia virtualmentecrist. Os episdios associados ao milagre da cruz repetem-se em momentos variados da presena portuguesa no ndico.Lembremos da passagem de Joo de Barros, na segunda dcada, que narra a descoberta de uma cruz de ferro em Goa:E segundo alguns sinais que se acharam nela depois que a ganhamos, parece que em algum tempo foi povoada decristos: um dos quais foi achar-se um crucifixo de metal andando um homem desfazendo os alicerces de umas casas,que Afonso de Albuquerque dali mandou levar com solenidade de prociso Igreja, e depois o enviou a el rei domManuel como sinal que j em algum tempo aquela imagem recebeu ali adorao. Da segunda dcada. Livro quinto(BARROS, 1988, p. 188).
Recebido em fevereiro/2013.Aprovado em abril/2013.