Gnarus Revista de História - Número 1

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Gnarus é uma revista de História. Uma revista para historiadores e professores de História, e para apaixonados por história em geral

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Sumário

Ao leitor ............................................................................................................................................................................ 3

Fernando Gralha4

O Paraíso Perdido: apontamentos sobre a Teoria da História e os Historiadores......................................................... 5

Marcus Cruz5

As ideias não correspondem aos fatos: Luzes sobre a Idade Média ............................................................................10

Bruno Gonçalves Álvaro e Rafael Costa Prata

Um convite à leitura de “Caminhos e fronteiras” .........................................................................................................16

Sergio Chahon

A(s) Reforma(s) Urbana(s) do Rio de Janeiro no início do século XX ...........................................................................23

Cristiane Jesus de Oliveira Pimentel

Conflito Ibérico-Holandês: Portugal em destaque ........................................................................................................27

Felipe Castanho

Entrevista:.......................................................................................................................................................................32

Carlo Ginzburg (Jessica Corais e Fernando Gralha)

História no tempo presente: Nazismo...........................................................................................................................35

Jessica Corais

Fotografia e História – Reflexões Introdutórias ............................................................................................................40

Ana Maria Mauad

A Memória e o Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel ...............................................................................45

Allan Pereira de Oliveira

Realengo: a construção de um bairro e as correntes que divergem sobre a origem de seu nome ............................48

Elizabeth Bertoldi e Nathália Guimarães

No escuro do cinema: Reflexões sobre as relações entre cinema e História ...............................................................50

Fernando Gralha

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AO LEITOR

memória tem dois lados, a lembrança e oesquecimento. Diz a mitologia grega, queao morrer todo ser humano, comum ou

ilustre, deveria ir para o Hades, mundo dos mortos,o acesso a tal mundo se dava por um rio, nele seencontrava o barqueiro Caronte, que mediante aopagamento de um óbulo (moeda grega antiga)carregava o morto à sua última morada. O rio sechamava Lethe (esquecimento, em grego), ointeressante da história é que este rio em umdeterminado ponto continha uma bifurcação,dividindo o mesmo em dois braços, um maiscaudaloso e tranquilo e outro mais estreito e denavegação difícil, o primeiro mantinha o nome,Lethe, o segundo chamava-se A-Letheia (o que nãoé esquecido). A decisão para onde levar o incautomorto, não cabia a Caronte, este consultava umatitânida que morava justamente na bifurcação dorio, Mnemósyne (deusa do que entendemos por“memória”), a deusa decidia para que ladoCaronte deveria levar seus passageiros, quem eradestinado ao braço do esquecimento, lugar escuro,silencioso, inundado, vagaria a esmo, sem sentido,sem lembranças, sem cores, sem alegria elentamente, mergulhado no esquecimento detudo, aos poucos perdia sua consciência e deixavade ser, já quem era selecionado para o braço A-Letheia, chegaria à ilha dos Bem-Aventurados,estes são os que seriam lembrados ao longo dostempos pelo mundo dos vivos, conservando sua

consciência, sua identidade, sua individualidade,uma forma de imortalidade.

Mas qual era o critério de Mnemósyne? Como eladecidia de forma justa quem merecia oesquecimento e quem era destinado àimortalidade? A titânida consultava as suas novefilhas, as Musas, fruto da união entre Mnemósyne(a Memória) e Zeus (a Luz da Razão).

A

As musas Clio, Euterpe e Talia, por Eustache Le Sueur

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Eram Calíope (a Poesia épica), Euterpe (a Músicade sopro), Clio (História), Melpomene (a Tragédia),Terpsicore (a Dança), Erato (a Música de cordas),Polimnia (o Canto), Urânia (Astronomia) e Tália(Comédia). Observando com cuidado, percebemosque as Musas são as personificações das formasdiscursivas do universo humano: as Artes, aHistória, a Ciência. Elas cantavam, representavamou narravam a vida do morto à sua mãe, a partir dedados que recolhiam sobre ele com outrasdivindades, como Diké (a Justiça) e Sophrosyne (a“justa medida”), dentre outras. A partir darepresentação discursiva que as Musas faziam,apresentando uma representação do morto,Mnemósyne decidia o seu destino.

Para a maioria das almas, as Musas nada tinhamque pudesse ser cantado, dançado ou narrado.Esses eram fadados ao esquecimento (Lethe), oterrível esquecimento de si, a perda da consciênciae da identidade pessoal, e o triste esquecimentopor aqueles que permaneceram no mundo dosseres vivos. Para poucos, as Musas tinham materialpara comporem os seus cantos, a suas danças ou assuas narrativas. Esses, que eram raros, eramdestinados ao “não-esquecimento”. Portanto parasobreviver na memória, alcançar a bemaventurança, era preciso fazer, lembrar e narrar.

Esta História me foi contada em uma aula dasprofessoras da Unirio Claudia Beltrão e PatríciaHorvart, historiadoras e filósofas de mão cheia, efoi esta história mitológica que nos inspirou abatizar nossa Revista: Gnarus.

Citando Ferreira 1 ...

“Narrar nos remete para narro (fazer, conhecer,contar), um verbo derivado de gnarus, quesignifica ‘que conhece’, ‘que sabe’.Fundamentalmente, narrar é levar aoconhecimento e também ‘contar’, ‘dizer’. Gnarustem a mesma raiz etimológica de nosco,‘conhecer’, ‘tomar conhecimento’, ‘começar aconhecer’, ‘aprender a conhecer’. Acrescentando oprefixo cum a nosco, temos o verbo cognoscere,que significa “conhecer”. Narrar é essencialmente

1 FERREIRA, C. Bereshit: O início da narratividade hebraicabíblica. Phoînix, Rio de Janeiro: n. 13, p. 67-83, 2007.

“levar o conhecimento”. O conhecimento é umnascer, um surgir algo que não havia, o conhecer éum gerador de nascimentos”

É esta nossa ambição nesta empreitada, narrar aHistória, fazer conhecer, dar voz a professores ealunos, divulgar a produção acadêmicahistoriográfica e estimular a produção do fazerconhecer, da construção da memória, que nos livredo esquecimento, do não ser.

Esperamos que nos acompanhem nesta viagempelo rio da A-Letheia.

Fernando Gralha

Caronte ilustrado por Gustave Doré, para a DivinaComédia.

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Teoria da História

O PARAÍSO PERDIDO: APONTAMENTOS SOBRE A TEORIA DA

HISTÓRIA E OS HISTORIADORES

Por Marcus Cruz

grande historiador inglês da Guerra FriaEdward Hallet Carr em seu singelo e densolivro “Que é a história?”, que reúne seisconferências proferidas em 1961 na

Universidade de Cambridge em homenagem aohistoriador Georges Macaulay Trevelyan, utiliza umaimagem para demonstrar o total e amplo desinteressedos historiadores, no caso do século XIX, pela discussãodos aspectos teóricos da história:

“Esta era uma idade da inocência e os historiadorescaminhavam no Jardim do Paraíso, sem um fragmentode filosofia para cobri-los, nus e sem vergonha diantedo deus da história. Desde então conhecemos o Pecadoe experimentamos a Expulsão do Paraíso; oshistoriadores que hoje fingem prescindir da filosofia dahistória estão meramente tentando, inútil e autoconscientemente, como membros de uma colônia denudista recriar o Jardim do Paraíso em seu subúrbioajardinado”2

2 CARR, Edward Hallet. Que é historia? Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1982. p.21

Seguindo ainda a imagem de Carr o número dehistoriadores que desejam, procuram e tentam sernudistas é espantosamente grande. Julio Aróstegui,Professor Titular de História Contemporânea daUniversidade Complutense de Madrid lamenta em obrarecentemente lançada no Brasil que “Essas questões[metodologia, filosofia ou teoria da história], comosabemos, não tem na universidade espanhola – ecuriosamente, muito menos nas faculdades de História– um estatuto próprio definido”3

Neste pequeno artigo gostaria enquanto docente queministra disciplinas da área de Teoria e Metodologia daHistória voltar minhas reflexões para examinar o lugardas questões de ordem teórica e conceitual, para aimportância dos problemas inerentes aosprocedimentos metodológicos do conhecimentohistórico na formação do jovem historiador seja dobacharel, seja do licenciado. A conclusão que se impõeapós este íntimo e pessoal certame é de que por umlado as discussões dos aspectos teóricos emetodológicos da História são essenciais não apenaspara os neófitos, mas para todos os integrantes docampo historiográfico. No entanto, por outro lado, éincontestável a pequena frequência e baixa densidadedo debate conceitual e epistemológico entre oshistoriadores.

Em um texto no final do século XX, que serve deintrodução à coletânea Passados Recompostos. Campose Canteiros da História, Jean Boutier e Dominique Juliaafirmam: “Em que pensam os historiadores? A questãoparecerá a muitos uma piada pois, ao contrário do queocorre com os filósofos, não se espera dos historiadoresque sejam virtuoses do conceito, nem que elaboremcomplexas arquiteturas teóricas”4. A visão dos autores

3 ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica. Teoria e método.Bauru, SP: EDUSC, 2006. p.12.4 BOUTIER, Jean; JULIA, Dominique. Em que Pensam osHistoriadores? In BOUTIER, Jean; JULIA, Dominique (org).

O

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corrobora nossa perspectiva de que o debate teórico,conceitual e metodológico no campo historiográficotem sido sistematicamente relegado a um segundoplano pelos historiadores ou até mesmo, o que é pior,sequer tem sido enfrentado pelos artesãos da oficina daHistória.

Esta não é uma postura é nova e, portanto, não podeser atribuída apenas aos historiadores contemporâneos,como podemos notar pelas palavras de Henri Berr nolivro La Synthèse en Histoire. Essai critique etthéorique, publicado em 1911: “A crise da História... oestado inorgânico dos estudos históricos...provém dofato de que um número excessivo de historiadoresjamais refletiu sobre a natureza de sua ciência” 5. Aanálise do fundador da Revue de Synthèse Historique,apesar de centenária, infelizmente, continua atual eválida.

Tal situação vivenciada e característica do campohistoriográfico data dos primórdios do estabelecimentodeste, nas primeiras décadas dos oitocentos quando ohistoricismo, no bojo da tradição histórica alemã, nabusca de fundar uma ciência histórica rejeitafirmemente a filosofia da História, especialmenteaquela formulada por Georg Wilhelm Friedrich Hegel.A opção hegemônica na historiografia do século XIX foiafirmar que o historiador não é um teórico, que suaocupação não é filosofar, mas sim, uma vez retiradosdos documentos, narrar os acontecimentos comorealmente aconteceram (wie es eigentlich gewesen) nacélebre e sempre citada fórmula de Leopold von Ranke.

Apesar da postura extremamente crítica em relação àprodução histórica realizada pelos historiadoreshistoricistas e metódicos as correntes historiográficasdo século XX mantiveram uma resistência quaseinstintiva às questões teóricas e conceituais inerentesao conhecimento histórico, podemos citar comoexemplo deste posicionamento o grupo dos Annales.Em todas as “gerações” desta escola encontramosposturas de rejeição ao debate teórico. Comecemospor um dos fundadores dos Annales d’histoireéconomique e sociale:

“A sua filosofia? Feita de qualquer maneira, comfórmulas tiradas do Auguste Comte, do Taine, doClaude Bernard que se ensinavam nos liceus, se

Passados Recompostos. Campos e Canteiros da História. Riode Janeiro: Editora UFRJ: Editora FVG, 1998. p.21.5 BERR, Henri. La Synthèse en histoire. Essai critique etthéorique. Paris, Félix Alcan, 1911. p.15.

mostrava buracos e roturas, lá estava, na altura própria,a ampla e macia almofada do evolucionismo para osdissimular. A História sentia-se à vontade na correntedestes pensamentos fáceis; aliás, muitas vezes o dissecomigo, os historiadores não tem necessidadesfilosóficas muito grandes.”6

Representante da segunda “geração” dos Annales,Braudel assumi postura muito próxima de seuorientador de tese na aula inaugural do College deFrance de 1950 afirma sobre a filosofia da história:“Certamente, não nessa falência da filosofia da história,preparada muito tempo antes e em cujas ambições econclusões precoces ninguém mais aceitava, mesmoantes do início deste século”7. A preocupação centraldos historiadores ligados ao programa annalista secentravam em questões de ordem metodológica, ouseja, estabelecer procedimentos para o ofício dohistoriador como podemos perceber nesta outrapassagem retirada da mesma aula inaugural citada apouco:

“Uma história nova só é possível pelo enormelevantamento de uma documentação que responde aessas novas questões. Duvido mesmo que o habitualtrabalho artesanal do historiador esteja na medida denossas atuais ambições. Com o perigo que isso poderepresentar e as dificuldades que a solução implica, nãohá salvação fora dos métodos do trabalho em equipes”8

As declarações outro ilustre representante dosAnnales, Georges Duby, são ainda mais reveladorasacerca do lugar secundário, ou mesmo do não lugar dareflexão teórica nesta perspectiva historiográfica. Ementrevista a Guy Lardreau, o medievalista Francesmarca bem claramente sua posição: “Tentemos vercomo é que se trabalha. Você é filósofo, eu souhistoriador; não tenho muito gosto pelas teorias; o meuofício, faço-o, e não reflito por aí além sobre ele. Pensoque temos que partir do concreto, da maneira de fazer,de trabalhar – na oficina”9.

Essa atitude, porém, não se limita aos Annales ela seencontra disseminada mesmo entre autores que sedebruçam sobre a história da escrita da história. Na

6 FEBVRE, Lucien. Combates pela história. Lisboa: Presença,1984. p.16.7 BRAUDEL, Fernand. Posições da história em 1950. InBRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a Historia. São Paulo:Editora Perspectiva, 1978. p. 21.8 Idem. p.26.9 DUBY, Georges; LARDREAU, Guy. Diálogos sobre a NovaHistória. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1989. p. 36.

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introdução de sua obra, bastante conhecida, sobre ahistoriografia Charles Olivier Carbonell afirma:

“O objetivo desta curta síntese é expor de um ponto devista histórico – isto é situando-a constantemente noseu contexto – a diversidade dos modos derepresentação do passado no espaço e no tempo.Assim, falar-se-á mais de Heródoto do que de Platão,de Suetónio do que de Cícero, de Mabillon do que deRousseau, de Mommsen do que de Dilthey, de LucienFebvre do que de Raymond Aron...”10.

Em suma, entendemos ser uma marca distintiva datanto na constituição, quanto na consolidação docampo historiográfico, a marginalização do debateepistemológico. No entanto, a crise paradigmática queatingiu o pensamento histórico no último quartel doséculo XX pode se apresentar como uma oportunidadepara o adensamento das discussões teóricas entre oshistoriadores. Diante da demolidora e desconstrutoracrítica que atingiu e abalou o paradigma historiográficoiluminista, na denominação utilizada por CiroFlamarion Cardoso, é mais do que necessário, é urgenteque a comunidade acadêmica histórica proponha erealize um intenso e franco debate se não paraestabelecer um novo paradigmática historiográficopelo menos para refletir acerca do ofício doshistoriadores no que parece ser um novo regime dehistoricidade.

A questão que podemos nos colocar é, apósaceitarmos a necessidade da realização deste debate,qual o escopo destas discussões? Entendemos que areflexão historiográfica deve privilegiar a construçãode um aparato conceitual, ou seja, a elaboração de umconjunto de instrumentos analíticos que possibilitemaos historiadores se dedicarem ao objetivo primordial,qual seja a explicação dos processos históricos detransformação social.

Marc Bloch na sua derradeira obra Apologia daHistória ou o ofício de historiador já clamava pelanecessidade do pensamento histórico estabelecer oque ele denomina de nomenclatura:

“Pois toda análise requer primeiro, como instrumento,uma linguagem apropriada capaz de desenhar comprecisão os contornos dos fatos, embora conservando aflexibilidade necessária para se adaptar

10 CARBONELL, Charles Olivier. Historiografia. Lisboa:Teorema, 1987. p.6.

progressivamente às descobertas, uma linguagemsobretudo sem flutuações nem equívocos”11

A preocupação central de Bloch é com a mobilidadeda significação dos vocábulos ao longo do tempo e asdificuldades que isto traz para o trabalhohistoriográfico. No entanto, podemos observar tambéma percepção do autor de que além das questões dosentido das palavras, estas remetem para algo maisprofundo, para uma problemática que o historiador nãopode ser furtar de enfrentar:

“Estimar que a nomenclatura dos documentos possabastar completamente para fixar a nossa seria omesmo, em suma, que admitir que nos fornecem aanálise toda pronta. A história, nesse caso, não teriamuito a fazer. Felizmente, para nossa satisfação, não énada disso, eis por que somos obrigados a procurar emoutro lugar nossas grandes estruturas de classificação.Para fornecê-las, todo um léxico já nos é oferecido,cuja generalidade se pretende superior às ressonânciasde qualquer época particular. Elaborado, sem seuobjetivo preestabelecido, pelos retoques de váriasgerações de historiadores ele reúne elementos de datae de proveniência muito diversos.” [grifo nosso]12

Bloch, portanto, afirma a necessidade doshistoriadores buscarem nossas grandes estruturas declassificação. Mas o que seriam essas grandes estruturasde classificação? Em nossa interpretação entendemosque o autor salienta a necessidade da pesquisa históricaconstruir um instrumental analítico, em outras palavrasum conjunto de conceitos que permitam a explicaçãodos processos históricos.

A constituição de um campo de conhecimento ocorre,na maioria das vezes, concomitantemente com aconstrução dos conceitos que irão não somenteestabelecer os parâmetros analíticos da disciplina, emalgumas situações a partir de complexos sistemasformais, mas também individualizar a área de saber emrelação as demais. Como afirma Julio Aróstegui:

“Dessa forma, sempre que um certo tipo de estudo darealidade define com a devida clareza seu campo, seuâmbito, seu objeto, quer dizer, o tipo de fenômenos aque se dedica, e se vai desenhando a forma de nelespenetrar, ou seja, seu método, surge a necessidade deestabelecer uma distinção, pelo menos relativa, entreesse campo que se pretende conhecer – a sociedade, a

11 BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício deHistoriador. Rio de Janeiro : Jorge zahar, 2001. p.135.12 Idem, p. 143.

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composição da matéria, ávida, os números, a mentehumana, etc. – e o conjunto acumulado deconhecimento e de doutrinas sobre tal campo. Acriação de um vocabulário específico para umadeterminada área de conhecimento começa aí: naforma de diferenciar na linguagem um certo objeto deconhecimento e a disciplina cognoscitiva científica quedele se ocupa”13

Paradoxalmente no momento em que a História seestabelecia enquanto um campo de conhecimento, istoé ao longo do século XIX, a rejeição radical da filosofiada história limitou ou mesmo afastou as discussõesteóricas e epistemológicas do processo de constituiçãoárea do saber, fazendo que os historiadores dosoitocentos se voltassem fundamentalmente para acriação de procedimentos metodológicos quegarantiriam a cientificidade e a legitimidade daHistória.

É candente, portanto, a necessidade dos historiadoresse lançarem destemidamente ao debate teórico e aorefinamento conceitual de seus instrumentos deanálise. No entanto, essas discussões precisam superarcerta atitude bastante comum na historiografia doséculo XX que, muitas vezes, sob o manto legitimadorda interdisciplinaridade, a rigor, o que fez foi saquear,importar, sem uma reflexão crítica mais aprofundada,conceitos de outras ciências sociais. Foi o queaconteceu, por exemplo, com o conceito de conjunturaoriundo da economia, ou o de estrutura, tomado doestruturalismo levistraussiano, ou mais recentementecom a noção de cultura da antropologia simbólica,especialmente aquela proposta por Clifford Geertz.

O debate teórico que se impõe não pode serrealizado sem o estabelecimento de diretrizes capazesde não somente nortear as discussões, mas também decriar as condições para um certame frutífero eprodutivo. Um caminho que nos pareceparticularmente fecundo visando atingir o objetivo deadensar o debate teórico do campo histórico é oproposto por Arno Wheling, ou seja a história da escritada história se constituir como um “laboratório” de umaepistemologia histórica. Nas palavras do próprio autor:

“Laboratório, sem nenhum travo fisicalista, porque setrata da possibilidade de aplicação das categorias e dosprocedimentos epistemológicos a determinados tiposde fontes - as obras historiográficas – com caráter de

13 AROSTEGUI. Op. cit. 27.

exercício intelectual, que contribua para o refinamentoteórico do campo”14

Esta proposta apresenta-se como de grande interessepelo própria tipologia do conhecimento histórico quepossui um caráter auto reflexivo que o diferencia noconjunto da Ciências Sociais, ou seja o trabalho dohistoriador exige um continuo e constante exercício dememória, de retomada da produção do conhecimentojá produzido acerca da temática da pesquisa. Aocontrário de um físico que lê o Philosophiae naturalisprincipia mathematica de Newton, publicado em 1687,nos dias de hoje apenas por curiosidade, um historiadorcontemporâneo lê, por exemplo, History of the Declineand Fall of the Roman Empire de Edward Gibbonpublicado entre 1776 e1788 com interessehistoriográfico. Isto significa dizer que em decorrênciada característica auto reflexiva de conhecimentohistórico, os historiadores dialogam com as obrashistóricas do passado, os historiadores que nosantecederam ainda são nossos interlocutores, o quetorna pertinente e fecunda a perspectiva deinvestigação da história da escrita da História comocampo de debate da teoria da História.

14 WHELING, Arno. Historiografia e epistemologia históricaIN MALERBA, Jurandir (org). A História Escrita. Teoria ehistória da historiografia. São Paulo Contexto, 2006. p. 175.

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Desta forma a história da escrita da História passariaser integrada à história da ciência, assumindo acondição de lócus por excelência de formulação deuma epistemologia histórica. Pois como afirmaWheling:

“O ‘território do historiador’, assim como o dosdemais campos científicos é composto por uma redeem que interagem questões epistemológicas,metodológicas e empíricas, só seccionáveis e distintaspor artifício lógico; mas é inegável que as questões denatureza epistemológica, nos diferentes camposcientíficos, por sua vez articulam-se, comoepistemologias ‘setoriais’ que são, à epistemologiageral e dão o tom da abordagem científica docampo.”15

A construção de uma teoria da história, de umaepistemologia histórica configura-se, pelo menos assimnos parece, como uma tarefa premente e da qual oshistoriadores não podem se furtarem sob a pena dereduzirem a História a um mero jogo de linguagem ouum amontoado de descrições densas.

Não pretendemos oferecer uma resposta definitivapara a questão proposta, mas levantar possibilidades dereflexão, que nos parecem especialmente pertinentesem um momento em que na história os problemasrelativos a construção de uma teoria da histórianecessitam assumir uma relevância central para ocampo historiográfico.

Gostaria de finalizar voltando à imagem inicialtomada de Edward Hallet Carr acerca da perda dainocência dos historiadores quanto às questões teóricasconcernente à História. Como no celebre poema deJohn Milton, Paraíso Perdido, os historiadores foramexpulsos do Jardim do Éden e teremos que refletirteoricamente com o suor de nossos rostos e com doresde parto elaborar nossos conceitos, mas a redenção nosaguarda.

Marcus Cruz: Doutor em História Social pela UniversidadeFederal do Rio de Janeiro e Professor Adjunto na área deTeoria da História do Departamento de História e doPrograma de Pós-Graduação em História da UniversidadeFederal de Mato Grosso. Membro fundador do VIVARIUM –Laboratório de Estudos da Antiguidade e Medievo.

15 Idem, ibidem.

Edward Hallett Carr (1892–1982)

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Ensaio

AS IDEIAS NÃO CORRESPONDEM AOS FATOS: LUZES SOBRE

A IDADE MÉDIA

Por Bruno Gonçalves Álvaro e Rafael Costa Prata

“A rica escola medieval francesa, apesar de seussucessos científicos, parece não ter mudado nada nosmeios de comunicação e nas ideias transmitidas. Àsvezes me sinto desencorajado ao reencontrar intactosos dois clichês vindos dos séculos XVIII e XIX: de umlado a Idade Média obscurantista e, como contraste, aIdade Média “dos trovadores”, suave. Jacques Le Goff,2003 [2005].

ão é novidade que a Idade Média, período

comumente conhecido como o intermédio

entre a Antiguidade e a Modernidade, é uma

parte da história da humanidade que desperta repulsa

ou admiração. Curiosidade ou desprezo.

Seja a utilização negativa de termos e expressões

como “isso é muito medieval...”, “essa política feudal

em que nos encontramos...” no linguajar corriqueiro, ou

a construção heroica e romântica dos cavaleiros em

reluzentes armaduras figurando nas telas de cinema,

fica evidente que este período histórico está

continuamente em pauta.

A dualidade que se coloca, acreditamos, jamais se

encerrará: A Idade Média sombria construída pelo

chamado Renascimento e perpetuada pelo Iluminismo

é tão prejudicial quanto àquele Medievo fantasioso do

Romantismo do século XIX.

A epígrafe que inicia este breve ensaio foi retirada

do livro Em busca da Idade Média,16 fruto de uma série

de conversas entre Jacques Le Goff e Jean-Maurice de

Montremy, o mesmo foi lançado originalmente na

16 LE GOFF, Jacques. Em busca da Idade Média. Rio deJaneiro: Civilização Brasileira, 2005.

França no ano de 2003 e traduzido para nossa língua

em 2005, ainda hoje, apesar de quase 10 anos, o que foi

vaticinado pelo reconhecido medievalista continua

sendo uma imagem recorrente, inclusive, na imprensa

do nosso país.

Frente a isso, inspirados a partir de uma crônica do

jornalista e cineasta brasileiro Arnaldo Jabor, publicada

em julho de 2012, decidimos expor como, ainda hoje,

mesmo, em tese, as mais bem informadas

N

Capa do livro de Justo L.Gonzalez

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personalidades do Brasil juntamente com aqueles que

produzem informação e formações de opiniões nos

veículos midiáticos continuam a reproduzir ideias que

já há muito tempo não correspondem aos fatos.

Antes de qualquer coisa, cabe ressaltar que não se

trata de uma crítica aos autores que porventura aqui

citaremos, tampouco, uma busca por um academicismo

utópico que ignora as reais lacunas entre o que é

produzido em termos de pesquisa nas Humanidades e o

que efetivamente chega à população. Até porque é

evidente que o tema reside em questões mais

profundas e delicadas como, por exemplo, nos

perguntarmos onde reside o problema ao fato de que,

apesar de quase um século de Estudos Medievais

desprendidos das duas faces que colocamos

inicialmente – a obscura e a dourada – ainda hoje, nos

parece, que, ao menos, por nossa experiência docente,

o trabalho de desconstruir a famosa Idade das Trevas é

tão constante quanto desmitificar o Medievo

fantasioso. Porém, neste texto, em especial, focaremos

apenas na representação equivocada de Idade Média

como momento de regresso da humanidade e o moto-

contínuo que é a sua utilização para exemplificar as

mazelas gerais pelas quais passa a contemporaneidade.

Sempre o mais do mesmo: A Idade Média ontem e

hoje

O tema em questão não é novidade para

pesquisadores de História Medieval nem para

estudantes de graduação em História nos seus

primeiros passos do curso. É comum o docente,

principalmente se especialista na área, iniciar seus

encontros discutindo a trajetória historiográfica da

pesquisa acadêmica sobre o período medieval. É

fundamental lançar bases aos futuros professores para,

deste modo, iniciar as reflexões temáticas mais gerais,

como Império Carolíngio, Papado Medieval, Cruzadas,

etc.

Atualmente, não faltam manuais de qualidade,

traduzidos ou mesmo redigidos em português, no

auxílio de mestres e estudantes – sejam aqueles

interessados por enveredar na especialidade ou mesmo

conhecer um pouco mais o tema.17

Diante do volume editorial dedicado ao período,18

não seria considerável questionar por que ainda nos

deparamos muito mais no nosso dia a dia com as duas

faces estereotipadas da Idade Média do que com os

esforços por sua desconstrução?

Vejamos dois exemplos significativos, colhidos na

Internet, do uso do período medieval como metáfora

para uma crítica a que se tem chamado de regresso da

sociedade contemporânea: O primeiro deles, escrito

pelo já citado jornalista Arnaldo Jabor e, por fim, o

recente “Manifesto em Defesa da Civilização”,19 um

abaixo-assinado reproduzido pela publicação

eletrônica multimídia Carta Maior e alojado no site

Petição Pública.20

“O tempo atual é Renascença ou Idade Média?”.

Com esta indagação Arnaldo Jabor iniciou seu texto

17 Podemos citar, entre outros: BASCHET, Jérôme. ACivilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. SãoPaulo: Globo, 2006; LE GOFF, Jacques. A Civilização doOcidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2005; _____;SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do OcidenteMedieval. Bauru, SP; São Paulo, SP: EDUSC; Imprensa Oficialdo Estado, 2002. 2v.; FRANCO JR., Hilário. A Idade Média:Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006, entreoutros, inclusive, abordando, também, a Idade MédiaOriental.18 Não estamos levando em consideração aqui a qualidadedos trabalhos. Mas, não podemos ignorar que, atualmente,em qualquer prateleira de lojas e livrarias há, no mínimo, umlivro, acadêmico ou não, que verse sobre o tema IdadeMédia. Sem contar, as inúmeras produções cinematográficasque não de hoje lotam as salas de cinema. Atualmente, épossível verificar, inclusive, um novo nicho mercadológico: asséries de TV.19 Abaixo-assinado MANIFESTO EM DEFESA DACIVILIZAÇÃO. Disponível em:<http://www.peticaopublica.com.br/?pi=P2012N30206>.Acesso em: 19 de out. 2012, 22:45.20 <http://www.peticaopublica.com.br>. Acesso em: 19 deout. 2012, 22:45.

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publicado em sua coluna no Site do Estadão, no dia 17

de Julho de 2012.21

Em sua reflexão, intitulada As ideias não

correspondem mais aos fatos, ele procurou apontar

quais seriam as características principais do atual

cenário político brasileiro e, de maneira geral, também

o sul-americano. O conhecido colunista sacramentou

que no atual quadro é tão difícil visualizar algo positivo,

a paisagem é tão assoladora que ela imediatamente

nos coloca diante de um suposto dilema: Estamos

diante de uma “Renascença ou Idade Média, progresso

ou regresso?”.22

Segundo ele sua “angústia filosófica” se

manifestava daquela maneira porque, em sua

percepção, cada vez se torna evidente que dentro do

cenário político “a barbárie das coisas invadiu o mundo

dos homens”.23

Fica claro que o recurso utilizado por Jabor para

caracterizar, ou melhor, para descaracterizar o

conturbado cenário político atual, foi o de recorrer a já

costumeira metáfora incidente sobre a Idade Média,

talvez, por entender que, com essa atitude

comparativa, se tornaria mais fácil para o público leitor,

compreender com perfeição a “profundidade” de sua

crítica.

Como ressaltamos no início, não é nenhuma

novidade associar a Idade Média a ideia de um período

marcado por um notável regresso intelectual. Em

contrapartida, o período posterior, a Renascença, ficou

caracterizado como o momento de advento das luzes,

do progresso e do resgate do ideal da Antiguidade

Clássica. Entretanto, esta dualidade, por nós já frisada,

21 JABOR, Arnaldo. As ideias não correspondem mais aosfatos. ESTADÃO.COM.BR, São Paulo, 17 de jul. 2012.Disponível em:<http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,as-ideias-nao-correspondem-mais-aos-fatos-,901284,0.htm>. Acessoem: 19 de out. 2012, 22:51.22 Idem.23 Idem.

não é algo de ordem tão recente, de modo que não

deve ser creditado com exclusividade a colunistas que,

como Arnaldo Jabor, se utilizam dessa recorrente

“analogia” principalmente quando procuram denegrir

alguma estrutura contemporânea, seja ela referente ao

quadro político, econômico, social, e em outros casos

até religioso.24

Mais recentemente, o site Carta Maior, reproduziu

na íntegra o texto de uma petição pública, intitulada

Manifesto em Defesa da Civilização, e que, segundo,

informação da publicação multimídia, foi elaborado

“por um grupo de economistas formados pela

Unicamp”.25

No texto da petição, elaborado, segundo nos

parece, como uma crítica a atual situação da economia

global, os autores relatam a situação caótica na qual

está envolta, praticamente, toda a Europa e, ainda, os

EUA. Parte do texto sacramenta a dura realidade

econômica atual:

Em toda zona do euro cresce a prática medieval de

anonimamente abandonar bebês dentro de caixas nas

portas de hospitais e igrejas. A Inglaterra do Lord

Beveridge, um dos inspiradores do Welfare State, vem

cortando recorrentemente alguns serviços

especializados para idosos e doentes terminais. Cortes

substantivos no valor das aposentadorias e pensões

constituem uma realidade cada vez mais presente para

muitos integrantes da chamada comunidade europeia.

Por toda a Europa, museus, teatros, bibliotecas e

universidades públicas sofrem cortes sistemáticos em

seus orçamentos. Em muitas empresas e órgãos

públicos é cada vez mais comum a prática de trabalhar

sem receber. Ainda oficialmente empregado é possível,

24 Sobre isso ver, entre outros, GUERREAU, Alain. El futuro deun pasado: La Edad Media en el siglo XXI. Barcelona: Crítica,2002.25 DA REDAÇÃO. Economistas da Unicamp lançam Manifestoem Defesa da Civilização, Carta Maior, São Paulo, 19 de out.2012. Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21110&fb_source=message>. Acesso em: 19 de out. 2012, 23:19.

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P á g i n a | 13

ao menos, manter a esperança de um dia ter seus

vencimentos efetivamente pagos. Em pior situação está

o desempregado. Grande parte deles são jovens

altamente qualificados.26

É curioso observarmos que diante da atual

conjuntura, principalmente, da Europa, renasce

constantemente a célebre máxima de comparar o atual

contexto com os tempos “medievais”, principalmente, a

partir dos escritos deixados pelos “heroicos

combatentes” revolucionários que no famoso decreto

de 11 de Agosto de 1789, afirmou “A Assembleia

Nacional destruiu completamente o regime feudal”.27

Em contrapartida, ressurge, também, nos países

europeus ou mesmo a léguas de distância, como nos

EUA, discursos que exaltam, por exemplo, uma

unificação Europeia aos moldes do que foi a

Cristandade nos tempos medievais para a defesa de um

inimigo externo28 ou, como pudemos testemunhar na

“Cruzada” convocada por George W. Bush logo após os

ataques de 11 de setembro de 2001.

Ainda em referência ao texto, sem dúvidas

pertinente, reproduzido pela Carta Maior, é possível ler

já no seu parágrafo final: “A civilização precisa ser

defendida! As promessas da modernidade ainda não

foram entregues”.29 É interessante a proximidade, ao

menos nesse ponto, entre a tal “angústia” de Arnaldo

Jabor e a convocatória de luta pela tomada das

promessas da modernidade que ainda não estão em

nossas mãos.

26 Idem. Ressaltamos que o texto do abaixo-assinado tambémpode ser lido em: <http://www.peticaopublica.com.br/?pi=P2012N30206>, conforme nota 6, deste artigo.27 BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Lisboa: Edições 70,1982. p. 12.28 Como não relembrar do anúncio de TV produzido pelaUnião Europeia no qual uma mulher branca, vestida com umuniforme composto pelas cores da EU (azul e amarelo) écercada e ameaçada por lutadores de artes marciais típicasde países componentes do chamado BRICs (no qual se incluio Brasil)?29 DA REDAÇÃO, op. cit.

Parece-nos que mesmo após todo o século XX, tanto

para Jabor como para estes que redigiram tal

manifesto, a despeito aqui dos seus objetivos finais e

dos temas especificamente abordados, suas percepções

certamente se aproximam ideologicamente, no que

tange ao objetivo pragmático de sua utilização, aos

criadores do “rotulo” do Medievo como um espaço

cronológico onde reinou a anarquia social, cultural,

política e econômica. No entanto, como sabemos, suas

origens devem, ser procuradas em um passado

longínquo: primeiramente nas penas dos humanistas do

século XIV e XV e, a partir deste passo inicial, atingir

posteriormente, com mais intensidade e reflexo, os

escritos dos iluministas no século XVIII.30

Não foram poucos os que se empenharam a esse

favor. Um exemplo paradigmático, de tantos que

poderiam ser citados, é o caso do filósofo iluminista

Voltaire (1694-1778), que enxergava o Medievo como

30 Ver: RIU, Manuel. ¿Qué es la Edad Media?. In: _____. La AltaEdad Media (Del siglo V al siglo XII). Barcelona: Montesinos,1989. p. 9-25.

Capa do livro de Régine Pernoud

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P á g i n a | 14

um período marcado predominantemente pelo

domínio implacável da Igreja sobre os homens,

impedindo-os de seguirem sua marcha natural

evolutiva, de forma que aquele período deveria ser

esquecido e, principalmente, superado em todas as

suas estruturas.

Hoje, entretanto, admite-se, que esta construção

sobre a Idade Média é resultado imediato de um

interesse ideológico, uma realidade superada que não

pode ser de forma alguma tomada como um referencial

para compreender a complexa realidade histórica do

momento em questão, de modo que, em virtude destas

problemáticas, já tem sido feito há um longo tempo um

trabalho de desconstrução empreendido por

especialistas no assunto, a fim de conferir novas luzes

ao Medievo, possibilitando ao período um quadro mais

coerente, equilibrado e diferente do que as luzes do

século XVIII refletiram nele.31

Contudo, em nossa opinião, não é apenas a Idade

Média que carece da boa vontade da imprensa ou

mesmo dos muitos formadores de opiniões, que têm

surgido na busca por conhecer aquilo que tem sido

produzido sobre o assunto, amparados pelo advento da

Internet e de suas redes sociais. O próprio Iluminismo

sofre com generalizações que acabam por

descaracterizá-lo. Sobre isso ressalta Tzvetan Todorov:

Não é fácil dizer em que consiste exatamente o

projeto das Luzes e isso por duas razões. Primeiro, as

Luzes são uma época de conclusão, de recapitulação,

de síntese – e não de inovação radical. As grandes

ideias das Luzes não tem origem no século XVIII;

quando elas não vêm da Antiguidade, trazem os traços

da Idade Média, do Renascimento e da época Clássica.

As Luzes absorvem e articulam opiniões que, no

passado, estavam em conflito. É por isso que os

31 Ver sobre isso: AMALVI, Christian. Idade Média. In: LEGOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temáticodo Ocidente Medieval. Bauru, SP; São Paulo, SP: EDUSC;Imprensa Oficial do Estado, 2002. 2v. V. 1. p. 537-551.

historiadores quase sempre observaram que é preciso

dissipar algumas imagens convencionais.32

A essa altura fica claro que, seja Arnaldo Jabor ou os

economistas preocupados com a crise econômica e

seus impactos no mundo, o que subjaz é um

desconhecimento – intencional ou não – dos recentes

(velhos) avanços que a historiografia dedicada a Idade

Média tem alcançado e aqui nos resta o incômodo

questionamento que pode vir à tona ao mais atento

leitor: Mas, de quem é a culpa?

Conclusões

Ora, não se trata de culpar os renascentistas, os

iluministas, tampouco, os românticos do século XIX,

como Walter Scott ou Victor Hugo. Não deve pesar

sobre estes ou aqueles o egocentrismo dos

historiadores cerrados em suas salas de aulas e

escritórios e que se esquecem do principal: o diálogo.

Ao contrário, essas duas principais faces da Idade

Média devem ser constantemente motivo de interesse

dos especialistas e objeto diário no esforço de diminuir

a lacuna entre os resultados das nossas pesquisas e o

cotidiano que nos cerca. E isso é trabalho do historiador

atuante e consciente de que o estudo da Idade Média

(ou de todo e qualquer período do passado) não trará

soluções para o tempo presente, mas, certamente,

contribuirá um pouco mais para sua compreensão.33

Trata-se na verdade de observar o período medieval

sob um prisma mais objetivo em suas especificidades,

que visa não compactuar seja com um olhar

demasiadamente negativo, ou de outro modo lúdico,

32 TODOROV, Tzvetan. O Espírito das Luzes. São Paulo:Barcarolla, 2008. p. 13.33 Conforme afirma Jacques Le Goff: “A Idade Médiacertamente não me trouxe soluções para o tempo presente.Em compensação, ela trabalhou em mim tanto quanto eutrabalhei nela – e trabalhou em mim como homem militantetanto no século XX como agora no XXI. Para adaptar umafórmula de Stanislas Fumet, há uma história da Idade Médiaem minha vida, nas “dádivas” que a história faz aohistoriador. A história me empurrou para a ação.” LE GOFF,op. cit., p. 19.

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P á g i n a | 15

renunciando, em todo caso, a proselitismos de qualquer

ordem.

Como afirma a medievalista brasileira Néri de

Barros Almeida:

A Europa econômica se tornou realidade no início

do século XXI e tende a se impor como modelo de

relações políticas, culturais e sociais. Os fundamentos

desta Europa unificada economicamente, no entanto,

são buscados com grande insistência nos domínios da

política e da cultura. Há os que protestam uma Europa

ancestral nascida da Antiguidade ou na Idade Média,

outros, afirmam que cabe à Europa atual debelar os

males do nacionalismo que por duas vezes ameaçaram

boa parte dos países da região. Neste panorama a

Idade Média se torna muitas vezes terreno de

argumentação e debate. Afinal, a assim chamada Idade

das Trevas, se tornou, pelo “obscurecimento” que a

fama lhe legou, capaz de mimetizar paisagens

contemporâneas. Dessa forma pode ser tomada como o

terreno de nascimento dessa Europa cultural, ou das

especificidades “étnicas” que engendram as realidades

nacionais e seus conflitos sangrentos. Problemas estes,

latentes na historiografia dos séculos XIX e XX. Essas

apropriações e interpretações da Idade Média, grassam

como verdadeiras, naturalizadas no senso comum

formado pelo ensino tradicional.34

Como salientamos e como demonstrado por

Almeida, a Idade Média está efetivamente em pauta,

cabe, desta forma, aos historiadores se debruçarem não

somente nos temas que a envolve, mas, também, no seu

passado e presente historiográficos. Isso é fundamental

para o ofício do historiador.

De maneira conclusiva, como afirmou Arnaldo

Jabor, “a rapidez do mundo atual, para o bem ou para o

mal, nos deixa para trás. Vivemos uma modernidade

34 ALMEIDA, Néri de Barros. Apresentação. In: _____. (Org.). AIdade Média entre os séculos XIX e XX: Estudos deHistoriografia. Campinas, SP: Unicamp, Instituto de Filosofiae Ciências Humanas, 2008. p. 7-9. p. 7.

veloz e falamos discursos antigos. As ideias não

correspondem mais aos fatos (...)” e isso se aplica, sem

dúvidas, àqueles que ainda vislumbram a Idade Média

como um período tenebroso ou de sóis

resplandecentes em armaduras cavalheirescas, quando,

no fim, o que nos resta é, finalmente, aceitar que os

homens e mulheres que viveram no Medievo foram,

simplesmente, humanos, demasiado humanos e uma

das muitas similitudes que poderíamos encontrar entre

eles e nós é a de depositar em um passado longínquo, e

que sempre nos escapa, a metáfora do desespero.

Porém, hoje nós sabemos que isso é atribuir à História

um tribunal que não lhe pertence e isso nós não

devemos deixar escapar, pois, como um dia afirmou um

dos mais importantes medievalistas do século passado:

“A história continua”.35

Bruno Gonçalves Álvaro: Professor Assistente II de História

Antiga e Medieval do Departamento de História da

Universidade Federal de Sergipe. Graduado em História

pelas Faculdades Integradas Simonsen. Mestre e doutorando

em História pelo Programa de Pós-Graduação em História

Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Pesquisador do Vivarium – Laboratório de Estudos da

Antiguidade e do Medievo (Núcleo Nordeste).

Rafael Costa Prata: Graduando em História pela

Universidade Federal de Sergipe. Monitor da disciplina

História Medieval I e integrante do Vivarium – Laboratório

de Estudos da Antiguidade e do Medievo (Núcleo Nordeste).

35 DUBY, Georges. A História Continua. Rio de Janeiro: JorgeZahar/ Editora UFRJ, 1993. p. 158.

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Resenha

UM CONVITE À LEITURA DE “CAMINHOS E FRONTEIRAS”Por Sergio Chahon

aminhos e fronteiras, obra de autoria de

Sérgio Buarque de Holanda publicada pela

primeira vez em 1957, é mais do que um

estudo sobre a história de São Paulo ao tempo dos

bandeirantes. É, também, uma das obras mais ricas e

complexas de nossa historiografia, tanto do ponto de

vista dos temas nela explorados quanto dos métodos

utilizados por seu autor. Em Caminhos, S. B. de Holanda

persegue o objetivo de apresentar a história dos

antigos habitantes de Piratininga

como a da formação de uma

civilização, um conjunto cultural

original, resultante da interação

entre duas culturas: a adventícia,

identificada aos europeus e seus

descendentes, e a nativa, associada

aos diferentes povos indígenas com

os quais os primeiros vão entrando

em contato. Nas considerações

oferecidas por Holanda, combinam-

se a atenção aos detalhes da vida

material e cotidiana e o

desvelamento de traços de

mentalidade e valores capazes de

lançar luz sobre grandes totalidades

culturais.

A 1ª edição de Caminhos e fronteiras remonta ao

ano de 1957. Nessa obra, Sérgio Buarque de Holanda

dá prosseguimento a seus estudos sobre a sociedade

que, ao tempo do Brasil-Colônia, floresceu no planalto

de Piratininga, na antiga capitania de São Vicente –

focalizando, em particular, o fenômeno da expansão

dos bandeirantes paulistas pelos caminhos do sertão.

Antes de 1957, já publicara, por exemplo, Monções

(1945) e Índios e mamelucos na expansão paulista

(1949), texto que serviu de embrião para o livro em

pauta. A leitura de Caminhos e fronteiras, no entanto,

não se limita a lançar luz sobre a história da sociedade

paulista ao tempo dos bandeirantes; coloca-nos ainda

em contato com uma das obras mais ricas e complexas

da historiografia brasileira, tanto no que se refere às

questões e possibilidades temáticas por ela ensejadas

quanto no tocante aos métodos e perspectivas de

análise escolhidos por seu autor.

Em artigo recente, no qual se

propõe a traçar um panorama da

produção historiográfica referente

à cultura no Brasil colonial, a

historiadora Laura de Mello e

Souza reserva a Caminhos e

fronteiras um lugar especial. Vindo

depois de obras pioneiras, como

Capítulos de história colonial

(1907) de Capistrano de Abreu e

Vida e morte do bandeirante

(1929) de José de Alcântara

Machado de Oliveira, o livro de S.

B. de Holanda assinala, segundo

Mello e Souza, a consolidação

definitiva desse último como

historiador da cultura, voltado para o “estudo

minucioso das técnicas e práticas inscritas na vida

cotidiana” (Souza in Freitas, 2001, p.24). Ao lado de

outros trabalhos fundamentais do mesmo autor, como

Raízes do Brasil (1936), Visão do paraíso (1959) e

Formação da literatura brasileira (1959), Caminhos e

fronteiras representaria ao mesmo tempo o próprio

nascimento, em sua forma mais plena e amadurecida,

C

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P á g i n a | 17

de uma história da cultura no Brasil. Sua publicação,

além de lançar luz sobre a história dos antigos paulistas,

contribuiria decisivamente, portanto, para o advento

de uma reflexão sobre o papel da cultura na formação

social brasileira enfim desvinculada tanto do “brilhante

tom ensaístico” até então dominante quanto de certa

superposição entre a disciplina histórica e a

antropologia – da qual ainda se ressentiria, por sinal, a

obra fundadora de Gilberto Freyre (Idem, p.29 e 37).

Em Caminhos e fronteiras, de forma, talvez, mais

acabada do que em escritos anteriores, S. B. de

Holanda persegue o objetivo de apresentar a história

dos antigos habitantes da capitania de Martim Afonso

como a da formação de uma civilização, um conjunto

cultural original, resultante da interação complexa

entre duas culturas: a adventícia, identificada aos

europeus, sobretudo portugueses, e seus descendentes,

e a nativa, associada aos diferentes povos indígenas

com os quais os primeiros vão entrando em contato. É

interessante observar como, no prefácio de Caminhos,

nosso autor confere à ideia de “fronteira” uma

abrangência que transcende o significado mais usual do

termo, relacionado a considerações de ordem

eminentemente geográfica. Contraposto, enquanto

signo da fixação das populações no espaço, à noção de

“caminho”, ligada por sua vez ao incessante mover-se

dos paulistas pelos rios e veredas do sertão, o termo em

questão alude também a toda a sorte de adaptações e

arranjos culturais resultantes do convívio entre

adventícios e povos nativos. Eis a ideia de “fronteira”

que serve de orientação ao livro de Sérgio Buarque:

“Fronteira (...) entre paisagens, populações, hábitos,

instituições, técnicas, até idiomas heterogêneos que

aqui se defrontavam, ora a esbater-se para deixar lugar

à formação de produtos mistos ou simbióticos, ora a

afirmar-se, ao menos enquanto não a superasse a

vitória final dos elementos que se tivessem revelado

mais ativos, mais robustos ou melhor equipados”

(Holanda, 1994, p.12-3).

Ainda no prefácio de Caminhos e fronteiras, Sérgio

Buarque de Holanda julga necessário definir os traços

gerais dessa civilização mameluca, isto é, mestiça,

valendo-se, para tanto, de palavras já gravadas nas

primeiras páginas de Monções:

(...) a lentidão com que no planalto paulista se vão

impor costumes, técnicas ou tradições vindos da

metrópole (...) terá profundas consequências.

Desenvolvendo-se com mais liberdade e abandono do

que em outras capitanias, a ação colonizadora realiza-

se, aqui, por uma contínua adaptação a condições

específicas do meio americano. Por isso mesmo não se

enrija logo em formas inflexíveis. Retrocede, ao

contrário, a padrões primitivos e rudes: espécie de

tributo pago para um melhor conhecimento e para a

posse final da terra. Só aos poucos, embora com

extraordinária consistência, consegue o europeu

implantar num país estranho algumas formas de vida

que trazia do Velho Mundo. Com a consistência do

couro, não a do ferro ou do bronze, dobrando-se,

ajustando-se, amoldando-se a todas as asperezas do

meio (Idem, p.10).

Neste pequeno trecho, verdadeiramente lapidar,

encontram-se resumidas algumas das principais

premissas analíticas que se fazem presentes ao longo

de toda a obra em estudo. Em primeiro lugar, a situação

histórica e geográfica peculiar da sociedade que se ia

formando no planalto, periférica em relação ao sistema

colonial – cujo centro, até o séc. XVIII, eram as terras da

“marinha” – e ligada por vínculos muito frouxos à

metrópole portuguesa. Uma situação que imprime à

ação colonizadora nessas paragens uma peculiar

“liberdade” e “abandono”, abrindo larga margem a

improvisos e adaptações. Em segundo lugar, a estreita

ligação entre a forma assumida pela sociedade paulista

e as pressões e desafios originados do “meio

americano”, isto é, a natureza circundante, com

destaque para os naturais da terra. Pobre em

comparação com as regiões de agricultura do litoral, a

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capitania de São Vicente condena seus habitantes a

uma existência de privações e escassez crônicas; é este

fato, mais do que uma suposta bravura inata ou espírito

aventuroso, que explicaria a vocação dos paulistas

antigos para o caminho, para o espaço aberto que

“convida ao movimento”, e não para a fixação nas

grandes propriedades, simbolizada pela solidez das

casas-grandes da zona açucareira. Em terceiro lugar,

como resultado da combinação entre as duas premissas

anteriores, a maior abertura das gentes de São Vicente

à adoção de “padrões primitivos e rudes” ou seja,

utensílios, técnicas, costumes e atitudes derivados, em

grande parte, da tradição cultural dos povos indígenas.

Relacionada à última premissa, uma percepção

notável de S. B. de Holanda sobre o caráter particular

da síntese cultural operada no planalto vicentino:

acossado por uma natureza, a princípio, francamente

hostil, o colono paulista aceita, sim, o rebaixamento de

seus padrões de civilidade, o esquecimento de “formas

de vida” importadas da Europa; mas o faz de maneira

seletiva, procurando resguardar ao máximo os ideais e

valores relacionados à sua versão própria da sociedade

e da família. Aqui se encontra o significado último da

ênfase concedida aos aspectos da chamada “cultura

material”, tão marcante em Caminhos e fronteiras: tal

ênfase não se deveria a quaisquer preferências

particulares de seu autor pelos mesmos aspectos, mas à

sua convicção de que no plano das atitudes,

ferramentas e técnicas aplicadas no dia a dia os colonos

e seus primeiros descendentes ter-se-iam mostrado

“muito mais acessíveis a manifestações divergentes da

tradição europeia” (Idem, p.12). Assim, se o planalto

paulista, mais do que as ricas terras do litoral, revela-se

nas páginas de Caminhos como o espaço privilegiado

das trocas, adaptações e soluções culturais, o mesmo

ocorre com os domínios da vida material e cotidiana,

em contraste com o mundo das ideias e da cultura

letrada.

Por outro lado, se a cultura material e o cotidiano

servem ao mesmo tempo como cenário e matéria-

prima para a produção de uma nova civilização em

terras paulistas, é a virtual onipresença do elemento

indígena no contexto estudado por nosso autor que

fornece o combustível necessário à mesma produção.

Ilana Blaj, em artigo sobre S. B. de Holanda enquanto

historiador da cultura material, exprime bem essa ideia

ao situar lado a lado a interação constante entre meio-

sociedade-cultura e aquela outra entre índio-

português-mameluco, apontando ambas como fatores

geradores de uma síntese histórica genuinamente nova:

a “cultura paulista em suas inúmeras sedimentações

provisórias” (Blaj in Candido, 1998, p.36).

Tema sempre recorrente em Caminhos e fronteiras

é, não por acaso, o das relações entre portugueses e

seus descendentes e as diversas nações indígenas

estabelecidas na região de Piratininga e espalhadas

pelo sertão (caiapós, guaicurus, carijós, etc.). Relações

íntimas, cotidianas e muitas vezes tensas, nas quais os

homens e mulheres nativos assumem diferentes papéis:

escravos a serviço dos senhores brancos, na qualidade

de “negros da terra”, continuamente apresados pelas

expedições bandeirantes; agentes da resistência nas

lutas contra o próprio extermínio, ameaça permanente

aos paulistas enfurnados nas veredas e rios do interior;

guardiões e mestres dos segredos da natureza,

portadores de uma astúcia e sensibilidade

indispensáveis à sobrevivência no sertão hostil. Este

último papel reservado ao elemento indígena é o que

ganha maior destaque nas páginas de Caminhos. Nelas,

o colonizador e seus descendentes são reduzidos com

frequência à condição de aprendizes e de dependentes

do gentio da terra – sem deixar de acrescentar, por

outro lado, aspectos de suas próprias tradições e

mentalidades ao aprendizado das práticas e

habilidades ameríndias.

Mais do que nas duas partes posteriores de que se

compõe o livro, é em “Índios e mamelucos na expansão

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P á g i n a | 19

paulista” que o papel-chave dos naturais da terra na

criação de novas sínteses culturais por parte das

populações adventícias transparece de forma mais

nítida e sugestiva. Já em “Veredas de pé posto”, o

primeiro dos nove artigos de que se compõe este

núcleo, S. B. de Holanda sublinha de forma

emblemática a importância da influência indígena

sobre os primeiros colonizadores do planalto. No caso

desses últimos, diz-nos o autor, a marca do “chamado

selvagem” não representa “uma herança desprezível e

que deva ser dissipada ou oculta, não é um traço

negativo e que cumpre superar; constitui, ao contrário,

elemento fecundo e positivo, capaz de estabelecer

poderosos vínculos entre o invasor e a nova terra”

(Holanda, 1994, p.21). Como a ilustrar essas palavras,

recheiam este artigo descrições e análises que

celebram o papel do índio enquanto “mestre e

colaborador inigualável nas entradas”. A esse mestre

nativo deveriam os brancos e mamelucos não apenas o

conhecimento das longas trilhas que cortam o sertão,

mas até mesmo lições sobre o jeito mais apropriado de

percorrê-las, caminhando em fila simples “com os pés

para a frente” a fim de distribuir melhor, a cada passo, o

peso do corpo sobre a planta e os dedos dos pés (Idem,

p.34).

No tocante à descoberta de fontes de água durante

as andanças pelo mato, tema contemplado em

“Samaritanas do sertão”, os índios e, por decorrência,

os sertanistas que deles descendem, aparecem em

Caminhos e fronteiras como dotados de uma

“extraordinária capacidade de observação da

natureza”. Concebendo os sentidos mobilizados nessa

observação em sua dimensão histórica e cultural, S. B.

de Holanda eleva esses desbravadores do sertão à

categoria de “rudes topógrafos” que, “por algum sinal

só perceptível a olhos experimentados, sabem dizer

com certeza a senda que há de levar a alguma remota

aguada” (Idem, p.36-7).

Em “Iguarias de bugre”, S. B. de Holanda retrata a

ampla adoção pelos colonos brancos e mestiços dos

métodos indígenas de aproveitamento do mundo

animal e vegetal para a obtenção dos meios de

subsistência. Nesse artigo, nosso autor destaca a

considerável influência dos primeiros habitantes do

país sobre os hábitos alimentares dos paulistas, em

particular durante as entradas, ocasiões em que a fome

era companheira inseparável da aventura:

Os índios tinham tido tempo e oportunidade para

arrancar à natureza o máximo de recursos que, com sua

existência andeja, lhes era lícito esperar dela. Onde não

fossem grandes as possibilidades de escolha, cumpria

admitir o que era proporcionado sem maior trabalho

(...) Quando sujeito a condições semelhantes, o próprio

europeu, para sobreviver, devia acolher esses recursos e

aceitar, em muitos casos, as mesmas técnicas e ardis

inventados pelo gentio. Não só de cobras e outros

bichos que rastejam, mas ainda de sapos, ratos, raízes

de guaribá ou guareá, grelos de samambaia,

sustentava-se o viandante perdido em sertões de

escasso mantimento, os ‘sertões famintos’, de que falam

alguns roteiros (Idem, p.56).

No artigo intitulado “Caça e pesca”, deparamo-nos

com certa passagem que permite ressaltar como, em

Caminhos e fronteiras, a marca do gentio da terra sobre

a nova civilização que se ia formando no planalto não

se limitou à incorporação de táticas e recursos naturais,

impregnando, inclusive, a própria subjetividade do

homem do sertão. Nessa passagem, S. B. de Holanda

exalta a “vivacidade dos sentidos que caracteriza as

populações rústicas nas brenhas incultas”, fruto de uma

“comunhão assídua com a vida íntima da natureza”.

Assim se explicaria a “inventiva fértil e pronta”, a

“imaginação sempre alerta” e a “atenção quase

divinatória” das quais eram portadores os paulistas

daqueles tempos, e que tanto assombram os ditos

“civilizados” de hoje em dia (Idem, p.67-8).

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A tal ponto chega, nas considerações oferecidas em

Caminhos, a mescla entre as contribuições culturais

indígenas e europeias, que se torna praticamente

impossível delimitar com precisão a fronteira entre

umas e outras. Tal impossibilidade, a testemunhar a

acuidade e a complexidade da análise de S. B. de

Holanda, fica especialmente patente em um trecho do

artigo “Botica da natureza”, no qual o mesmo autor

procura investigar a formação histórica do que chama

de “medicina sertaneja”:

Não faltam, finalmente, aspectos de nossa

medicina rústica e caseira que dificilmente se

poderiam filiar, seja a tradições europeias, seja a

hábitos indígenas. Aspectos surgidos mais

provavelmente das próprias circunstâncias que

presidiram ao amálgama desses hábitos e tradições. A

soma de elementos tão díspares gerou muitas vezes

produtos imprevistos e que em vão procuraríamos na

cultura dos invasores ou na dos vários grupos

indígenas. Tão extensa e complexa foi a reunião desses

elementos, que a rigor não se poderá dizer de nenhum

dos aspectos da arte de curar, tal como a praticam

ainda hoje os sertanejos, que é puramente indígena

(...) ou puramente europeu (Idem, pp.78-9).

Sobre Caminhos e fronteiras, nunca é demais

destacar como, valendo-se de um largo uso de fontes

primárias, S. B. de Holanda se mostra sempre atento

aos aspectos mais rotineiros da realidade histórica, em

especial àquelas práticas e costumes cotidianos que

mais facilmente poderiam passar despercebidos a um

olhar mais distraído. Mas essa preocupação com o

pormenor, com o aparentemente insignificante, não faz

de Caminhos uma obra meramente descritiva. Pois em

suas páginas a descrição é sempre o primeiro passo

para o estabelecimento de relações lógicas que,

partindo do particular em direção ao geral, permitem

desvelar grandes totalidades culturais.

Um bom exemplo do método de análise adotado

por Holanda, que parte dos detalhes da vida material

para compreender traços de mentalidade, valores,

chegando ao vislumbre de toda uma civilização, pode

ser encontrado nas considerações com que se abre o

artigo “Frotas de comércio”, no qual são retomados

temas e preocupações tratados anteriormente na obra

Monções. Eis como, nesse artigo, nosso autor apresenta

o chamado “monçoneiro”, comerciante que percorria

os rios transportando mercadorias até as áreas de

mineração, e cujo advento viria a assinalar o declínio do

bandeirismo em sua forma mais tradicional:

É inevitável pensar que as longas jornadas fluviais

tiveram uma ação disciplinadora e de algum modo

amortecedora sobre o ânimo tradicionalmente

aventuroso daqueles homens. A própria exiguidade das

canoas das monções já era um modo de se organizar o

tumulto, de se estimular a boa harmonia ou, ao menos,

a momentânea conformidade das aspirações em

choque. A ausência dos espaços ilimitados, que

convidam ao movimento, o espetáculo incessante das

florestas ciliares, que interceptam à vista o horizonte, a

abdicação necessária das vontades particulares onde a

vida de todos está nas mãos de poucos ou de um só,

tudo isso terá de influir poderosamente sobre os

aventureiros que demandam o sertão longínquo. Se o

quadro daquela gente aglomerada à popa de um barco

tem em sua aparência qualquer coisa de desordenado,

não é a desordem de paixões em alvoroço, mas a de

ambições metódicas e submissas (Idem, p.136).

De maneira semelhante, o cultivo do milho e seu

amplo consumo em toda a capitania dão forma, na

interpretação de Sérgio Buarque, a toda uma

“civilização do milho”, refletida na presença de

“monjolos” usados para pilar seus grãos em todas as

áreas alcançadas pelos paulistas em sua expansão

(Idem, p.181-203). Também as redes em que

costumeiramente se deitavam os homens do planalto

não são apenas redes, mas símbolos da existência

Page 21: Gnarus Revista de História - Número 1

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andeja desses homens, já que, enquanto mistos de

móveis caseiros e veículos de transporte, as mesmas

adequam-se tanto ao “recesso do lar” quanto ao

“tumulto da praça pública”, tanto à “morada da vila”

quanto ao “sertão remoto e rude”. São, nesse sentido,

contrastadas “com a cama e mesmo com o simples

catre de madeira, trastes ‘sedentários’ por natureza, e

que simbolizam o repouso e a reclusão doméstica”

(Idem, p.247).

Por sua capacidade de articular o particular ao

geral, o material ao “espiritual” (mentalidades, valores,

etc.), S. B. de Holanda, em Caminhos e fronteiras,

ocupa lugar original em meio à produção

historiográfica dos anos 50 – e isso tanto no Brasil

quanto fora dele. Assim é que Laura de Mello e Souza,

no artigo citado, reconhece a essa obra o mérito de

manter-se “numa espécie de meio-caminho

extremamente sugestivo”, evitando as tentações

decorrentes de duas tendências comuns à época: de um

lado, a defesa da determinação, ou “sobre

determinação”, do econômico sobre a sociedade e a

cultura; de outro, a ideia, oriunda da historiografia

francesa, de uma instância mental autônoma e

grandemente descolada das práticas e costumes

cotidianos (Souza in Freitas, 2001, p.26).

Dessa forma, é possível observar, nas páginas de

Caminhos, os traços de mentalidade herdados pelos

adventícios de seus ancestrais portugueses

concorrendo para orientar a seleção das técnicas

adotadas e para conferir um significado próprio aos

arranjos culturais que se iam realizando no planalto.

Exemplos desse fenômeno podem ser colhidos na

análise de Holanda sobre a “farmacopeia rústica” do

sertão, cujo acervo teria sido formado em parte graças

à adoção pelos paulistas de um critério “a que se pode

chamar analógico, derivado da tendência para procurar

entre os produtos da terra elementos já conhecidos no

Velho Mundo” (Holanda, 1994, p.79). Semelhante

critério, como ressalta o autor, fez-se presente tanto na

escolha de drogas extraídas da fauna e da flora nativas

quanto de amuletos e ainda dos medicamentos

chamados “bezoartico”, frutos da crença, tradicional

na Europa, no poder curativo de certas pedras

existentes nas entranhas de animais selvagens. Por

outro lado, nas mesmas páginas citadas nos deparamos

com situações nas quais o impacto da experiência

diária, da incorporação de novas atitudes e hábitos pela

gente sertaneja acaba por influir poderosamente sobre

concepções e valores de matriz europeia. No artigo

intitulado “frechas, feras, febres” pode-se ler, por

exemplo, que

a contínua prática da selva não estimula somente essa

espécie de adaptação quase fisiológica às situações

mais perigosas (...) Representa, em primeiro plano,

uma verdadeira educação moral, cujas consequências

não podem ser apreciadas de modo abstrato, e

independentemente das condições particulares que a

suscitaram. Dessa forma se explicará melhor o que

acima ficou dito sobre a atitude quase benévola com

que, em muitos meios sertanejos, ainda é costume

encarar alguns crimes violentos, particularmente os de

morte. Atitude tanto mais estranhável, quanto é,

precisamente em tais meios, que a noção de uma lei

moral inflexível e absoluta consegue impor-se com

maior facilidade, e onde há delitos considerados

aviltantes e desprezíveis, como o furto (Idem, p.120-1).

De acordo com Laura de Mello e Souza, a influência de

S. B. de Holanda no âmbito dos estudos culturais

“talvez não se tenha feito notar de imediato”. A razão

deste fato, segundo a autora, residiria na preferência

da historiografia de fins dos anos 50 por trabalhos mais

econômicos, tributários dos modelos de análise

instaurados por Caio Prado Jr. e Celso Furtado (Souza

in Freitas, 2001, p.28). Seria preciso esperar até o final

da década de 70, época em que as correntes da

história das mentalidades e da cultura começam a

ganhar força em nosso país, para que Caminhos e

fronteiras e outros escritos de Sérgio Buarque viessem

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a ocupar merecidamente o seu lugar enquanto

referências indispensáveis a todos os interessados no

conhecimento da história da cultura no Brasil. Destacar

a plena atualidade de tais escritos e aproximá-los das

novas gerações de estudantes de História e das demais

ciências sociais é tarefa que se impõe aos professores e

pesquisadores do presente. Quase 50 anos passados

desde a sua 1ª edição, é tempo ainda de ler Caminhos

e fronteiras.

Referências bibliográficas:

BLAJ, Ilana. “Sérgio Buarque de Holanda: historiador da

cultura material”. In: Antonio Candido (org.). Sérgio

Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Ed. Fundação

Perseu Abramos, 1998. pp. 29-48.

DIAS, Maria Odila Leite da Silva (org.). História/Sérgio

Buarque de Holanda. São Paulo: Ática, 1985.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. 3ª ed.

São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

____________________ . Monções. 3ª ed. ampliada. São Paulo:

Brasiliense,1990.

SOUZA, Laura de Mello e. “Aspectos da historiografia da

cultura sobre o Brasil colonial”. In: Marcos Cezar de

Freitas (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. 4ª

ed. São Paulo: Contexto, 2001. pp.17-38.

Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra. São Paulo:

Secretaria de Estado da Cultura: Universidade de São

Paulo, 1988.

Sergio Chahon: Doutor em História pela UFF, Professordas Faculdades Integradas Simonsen, Professor daUniversidade Gama Filho e autor do livro "OsConvidados para a Ceia do Senhor: as Missas e aVivência Leiga do Catolicismo na Cidade do Rio deJaneiro e Arredores (1750-1820)."

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Artigo

A(S) REFORMA(S) URBANA(S) DO RIO DE JANEIRO NO

INÍCIO DO SÉCULO XX

Por Cristiane de Jesus Oliveira Pimentel

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Rio de Janeiro foi a primeira cidade brasileira apassar por uma ampla reforma urbana na suaárea central, ainda no início do século XX.Durante muito tempo essa Reforma foi vista

de maneira simplista, ou seja, por muitos anos ahistoriografia tradicional36 nos fez pensar que esta foifruto de uma simples associação entre o GovernoFederal e a municipalidade, na qual o Presidente daRepública, recém-eleito, Rodrigues Alves, seria oidealizador do projeto, enquanto o Prefeito PereiraPassos, escolhido por ele, seria o executor. Esta visãocoloca as obras de melhoramento do porto e as obrasde saneamento e embelezamento do centro da cidadee de alguns bairros da zona sul como sendo integrantesde um mesmo projeto.

Atentemos, então, para alguns esclarecimentos com afinalidade de distinguirmos dentro da Grande Reforma,dois projetos completamente antagônicos, a saber, oda Reforma Federal, que seria pensado sob uma visãomecanicista, enquanto o da Reforma Municipal teriauma visão organicista37, com ideais completamentediferentes.

36 Entendemos como historiografia tradicional sobre aReforma urbana da cidade do Rio a corrente, que retrata demaneira condenatória a imagem do prefeito Pereira Passos,ou seja, basicamente a produzida na década de 80, ondepodemos citar os seguintes trabalhos: BRENNA, GiovannaRosso Del. O Rio de Janeiro de Pereira Passos. Uma Cidadeem Questão II. Rio de Janeiro: Index, 1985; ABREU, Mauríciode. Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:IPLAN-Rio/ Zahar, 1988; BENCHIMOL, Jaime Larry. PereiraPassos: Um Hausmann Tropical. A Renovação Urbana naCidade do Rio de Janeiro no Início do Século XX. Rio deJaneiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes,1992; CARVALHO, Lia de Aquino. Habitações Populares. Riode Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995; ROCHA,Osvaldo Porto. A Era das Demolições. Rio de Janeiro:Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Secretaria Municipalde Cultura. Departamento Geral de Documentação eInformação cultural. Divisão de Editoração, 1995; entreoutros.37Com relação a esta visão mecanicista, André Azevedo quenos esclarece que (...) “A organização viária da urbe devedar-se em uma relação de parte com parte, por uma razãofuncionalista. Nesta perspectiva, a ordenação viária opera-se de maneira causal, isolando a solução de uma demandaurbana da cidade enquanto um todo. Assim, de acordo comesta visão, a parte pode ganhar uma relevância maior que otodo integrado da urbe, alcançando ela mesma importânciasuperior ao conjunto urbano, uma vez que ocuparia umafunção primordial na cidade, como foi o caso da obra doporto no contexto da reforma urbana federal”. Já a visãoorganicista “idealiza a cidade como um corpus continentede diversos órgãos vitais, no qual é fundamental a ligaçãodestes mesmos órgãos para o funcionamento harmônico docorpo urbano. Nesta perspectiva, a ideia de integraçãourbana rege o processo de urbanização, pois a cidade passaa ser vista com suas funções interligadas, uma vez que é

De maneiras distintas, mas não contraditórias, umconjunto de obras teve como responsável o GovernoFederal enquanto o outro ficou a cargo do GovernoMunicipal.

As condições de salubridade da capital além deurgentes melhoramentos materiaes reclamados,dependem de um bom serviço de abastecimento deáguas, de um systema regular de esgotos, de drenagemdo solo, da limpeza pública e do asseio domiciliar.Parece-me, porém, que o serviço deve começar pelasobras de melhoramentos do porto, que tem deconstituir a base do systema e hão de concorrer não sópara aquelle fim utilíssimo, como evidentemente paramelhorar as condições do trabalho, as do comercio, e, oque não deve ser esquecido, as de arrecadação denossas rendas.38

percebida como uma totalidade, um verdadeiro organismoque justifica o sentido de existência dos diversos órgãosinterligados que o sustentam. Ou seja, em uma intervençãourbanística, o projeto de reordenamento não deve ter razãode existência se não concorrer para uma função integrativada cidade”. AZEVEDO, André Nunes de. Da Monarquia àRepública: um estudo dos conceitos de civilização eprogresso na cidade do Rio de Janeiro entre 1868 e 1906;orientador: Antonio Edmilson Martins Rodrigues. – Rio deJaneiro: Departamento de História, 2003. p. 267 - 268.38 Ver: “Mensagem”, Correio da Manhã, 04/05/1903.BRENNA, Giovanna Rosso Del. O Rio de Janeiro de PereiraPassos. Uma Cidade em Questão II. Rio de Janeiro: Index,1985. p. 51

O

Pereira Passo na inspeção das obras noFlamengo (1906). Foto de Augusto Malta

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A Reforma Federal teria, então, como princípiobásico a expectativa em torno da obtenção de “umcenário decente e atraente aos fluxos do capitalismointernacional, tão refreados pelas precárias condiçõesda capital, quanto ambicionado pelas elites atreladasaos grandes interesses exportadores instalados nogoverno da união”39.

Para o Presidente Rodrigues Alves, a Reforma seria oprojeto primordial da sua administração, não apenaspela questão da salubridade que a muito era debatidapor médicos e sanitaristas40, mas também para atenderao desenvolvimento econômico do país. Para além daquestão da salubridade, a Reforma era também umaforma de legitimação do regime republicano que seencontrava extremamente desgastado diante dagrande maioria da população brasileira. Soma-se aisso, a necessidade de ampliar o comércio externo,tanto pela pressão da elite cafeeira, que necessitava degrandes empréstimos para o desenvolvimento dos seusnegócios, quanto para um maior equilíbrio das finançaspor parte do Governo Federal. André Azevedo citaainda, um quarto fator, a saber, “a tentativa deresponder à crise da capitalidade41 do Rio de Janeiro,

39 MARINS, Paulo César Garcez. “Habitação e vizinhança:limites da privacidade no surgimento das metrópolesbrasileiras”. IN: SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vidaprivada no Brasil. República: da Belle Époque à Era do Rádio.São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 143.40 Segundo Benchimol, foram justamente os higienistas, osprimeiros a formular um discurso articulado sobre ascondições de vida na cidade, propondo intervenções mais oumenos drásticas para restaurar o equilíbrio daquele“organismo” urbano que consideravam doente.BENCHIMOL, Jayme Larry. O Haussmanismo na Cidade doRio de Janeiro. In: AZEVEDO, André Nunes de (org.).Rio deJaneiro: Capital e Capitalidade. Rio de Janeiro:Departamento Cultural/ Sr-3 UERJ, 2002. p. 129).41 Segundo este autor, a “Capitalidade é um fenômenotipicamente urbano que se caracteriza pela constituição deuma certa esfera simbólica originada de uma maior aberturaàs novas ideias por parte de uma determinada cidade, o queconfere à esta um maior cosmopolitismo relativo às suascongêneres e uma maior capacidade de operar sínteses apartir das diversas ideias que recepciona. Este conjuntosimbólico que se desenvolve nas vicissitudes das experiênciashistóricas vividas por esta urbe, identifica a cidade comoespaço de consagração dos acontecimentos políticos eculturais de uma região ou país, tornando-a uma referênciapara as demais cidades e regiões que recebem a suainfluência. Esta esfera simbólica evolui, sendoredimensionada ao sorver novas experiências, constituídas econstituidoras da tradição da urbe”. AZEVEDO, André Nunesde. A Capitalidade do Rio de Janeiro. Um exercício dereflexão histórica. In: AZEVEDO, André Nunes de. Anais doSeminário Rio de Janeiro: Capital e Capitalidade. Rio deJaneiro: Departamento Cultural/NAPE/DEPEXT/SR-3/UERJ,2002. p. 45.

revigorando esta propriedade da cidade naperspectiva de fazer da Capital Federal a metonímia deum país que caminharia rumo ao progresso42."

Essa reforma era há muito tempo esperada porgrande parte da população do Rio de Janeiro e aexaltação ao governo, que tinha por finalidadeprincipal capitaneá-la, é percebida logo quando se dãoos primeiros anúncios referentes à obra. Em um artigodo jornal O Commentário, de 1903 nota-se a exaltaçãoao empreendedor de tão grande obra.

Está, enfim, resolvida a importante obra do Porto doRio de Janeiro. Era uma vergonha continuar odesembarque de mercadorias pelos processosrudimentares que o aumento da importação cada vezmais tornava ridículo. (...)

Há cincoenta anos que se projeta a reforma d’esseserviço; mas como tal reforma dependia de grandesobras, foi sendo adiada até que se tornou inadiável. Omomento chegou em que o melhoramento se impôs aum governo resoluto para executa-lo.43

Para Rodrigues Alves, a reforma do porto do Rio deJaneiro seria a obra de maior relevância e todas asoutras empreendidas pelo Governo Federal seriampensadas em função desta.

Articuladas então ao conjunto de obras executadaspelo Governo Federal, estava o plano de ReformaUrbana Municipal44. Esta consistiu fundamentalmenteno alargamento de algumas ruas da cidade com vistasa melhorar a circulação urbana e facilitar a ligaçãoentre os diferentes bairros da cidade. As avenidasconstituíam o instrumento principal do plano deremodelação e saneamento municipal, destinado a

42 AZEVEDO, André Nunes de. Da Monarquia à República:um estudo dos conceitos de civilização e progresso nacidade do Rio de Janeiro entre 1868 e 1906; orientador:Antonio Edmilson Martins Rodrigues. – Rio de Janeiro:Departamento de História, 2003. p.241).43 Ver: “O porto do Rio de Janeiro”, O Commentário, junhode 1903. BRENNA, Giovanna Rosso Del. O Rio de Janeiro dePereira Passos. Uma Cidade em Questão II. Rio de Janeiro:Index, 1985. p. 7244 De acordo com Maurício Abreu , por Reforma PereiraPassos entende-se um grande número de obras públicas queredefiniram de modo radical a estrutura urbana da cidade doRio de Janeiro durante o governo do prefeito Pereira Passos.Houve uma verdadeira reconstrução do centro da cidade,rompendo com as características de cidade colonial efazendo emergir novos traçados mais compatíveis com o usode trens e bondes, em vez de animais e carruagens. ABREU,Maurício. A Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio deJaneiro: IPLANRIO/Zahar, 1987.

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transformar a Capital da República numa cidademoderna e higiênica.

Para tal empreitada o Presidente nomeou a Comissãoda Carta Cadastral sob a chefia do engenheiro AlfredoAmérico de Souza Rangel que seria escolhido paraordenar o plano de remodelação urbana sob aorientação do prefeito Pereira Passos. “A ReformaUrbana Municipal orientou-se por uma ideia deprogresso nos campos da cultura, da ética urbana e daestética, ou seja, por uma ideia de progresso enquantodesenvolvimento de uma civilização”45.

No plano de Melhoramentos da Cidade Projetadospelo Prefeito do Distrito Federal Dr. Francisco PereiraPassos observamos claramente os propósitos daReforma Municipal:

Apresentando-vos os planos e orçamentos daabertura de algumas avenidas, alargamento eprolongamento de differentes ruas actuaes ecanalização de rios, organizados nessa comissão46

Observa-se então, que o objetivo primordial daReforma Municipal seria a abertura de vias, ao passoque ao se acompanhar o desenvolvimento do projeto,vê-se que esse objetivo, para além da ideia de ligaçãodas várias regiões da cidade, privilegiava a ideia dehigieniza-la. Este ideal de salubridade e higienizaçãodo centro comercial e populoso do Rio de Janeiro écara aos engenheiros públicos desde os temposimperiais.

O problema do saneamento do Rio de Janeiro foisempre considerado, por todas as auctoridades quedele se têm occupado, como dependendo em grandeparte da remodelação architetonica da sua edificaçãoe consequentemente da abertura de vias decommunicação amplas e arejadas em substituição dasactuaes ruas estreitas, sobrecarregada de um tráfegointenso, sem ventilação bastante, sem arvorespurificadoras e ladeadas de prédios anti-hygienicos.47

45 AZEVEDO, André Nunes de. Da Monarquia à República:um estudo dos conceitos de civilização e progresso nacidade do Rio de Janeiro entre 1868 e 1906; orientador:Antonio Edmilson Martins Rodrigues. – Rio de Janeiro:Departamento de História, 2003. p. 264.46 Prefeitura do Distrito Federal. Melhoramentos da CidadeProjetados pelo Prefeito do Distrito Federal, Dr. FranciscoPereira Passos. Rio de Janeiro: Typographia da Gazeta deNotícias, 1903. p. 03.47 Prefeitura do Distrito Federal. Melhoramentos da CidadeProjetados pelo Prefeito do Distrito Federal, Dr. Francisco

Ainda segundo o relatório, as consequências girariamem torno da “maior facilidade de comunicação entreos bairros”, do “estabelecimento de um traçadovantajoso para as grandes linhas de canalização”,“impedimento na valorização de prédios antiquadossituados em ruas estreitas”, “facilitação do enxugo dosubsolo pela arborização” e, por fim, “despertar ogosto arquitetônico”.

Percebemos então que não obstante a GrandeReforma ser, na realidade, fruto de iniciativas Federal eMunicipal, ou seja, aconteceram simultaneamente duasreformas urbanas, e que mesmo tendo sido pensadas demaneiras diferentes, as duas tiveram entre si uma açãointegradora constituindo-se em fatorescomplementares para resolução dos problemas demaior importância da Capital Federal naquelemomento, ou seja a salubridade e a criação de umaparato moderno para a atração de investimentosexternos.

Cristiane de Jesus Oliveira Pimentel: Especialista emHistória do Brasil pela Universidade FederalFluminense, Mestre em História pela UniversidadeFederal de Juiz de Fora, Professora tutora no curso dePedagogia à distância da UFJF, Assistente deorientação no Programa de Pós-graduação Profissionalem Gestão e Avaliação da Educação Pública da UFJF.

.

Pereira Passos. Rio de Janeiro: Typographia da Gazeta deNotícias, 1903. p. 03.

O caminho aberto para que um cano de pedra levasse para omar as águas estagnadas da Lagoa de Santo Antônio, deu

origem à "Rua do Cano“. A "Rua do Cano" assim foi chamadaaté 1856, quando foi batizada como 7 de Setembro. Em 6 de

setembro de 1906 o Prefeito Pereira Passos lá esteve,inaugurando o trecho que ia da Rua 1º de Março até a Av.

Central.

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“Herdei-o, comprei-o,conquistei-o”

Artigo

CONFLITO IBÉRICO-HOLANDÊS: PORTUGAL EM DESTAQUE

Por Felipe Castanho

om base na historiografia corrente este artigotem como objetivo principal apresentar umpanorama conciso do conflito entre asRepublicas das Sete Províncias Unidas dos

Países Baixos48 e Portugal, ocorrido entre os séculos XVIe XVII. Entretanto não iremos abordar este processo deuma perspectiva exclusiva da América portuguesa,tendo em vista que tal conflito normalmente nosremonta as invasões holandesas no período colonial,pretendemos, portanto realizar um caminho inverso,procurando demonstrar desta maneira à amplitude edimensão deste conflito que vão além das questõesrelacionadas à possessão portuguesa na América.

O início: Guerra dos Oitenta Anos

O conflito ibérico-holandês 1568-1669 éconsiderado para o brasilianista Boxer, como o primeiroconflito de escala mundial e que este teria se tratado naverdade da “primeira guerra mundial”, pois as batalhastravadas durante o conflito ocorreram em quatrocontinentes, o que de fato ultrapassa a questãogeográfica da Grande Guerra. Assim a guerra não teriasido travada só nos campos de Flandres e no mar doNorte, como também em regiões tão remotas como oestuário do Amazonas, o interior de Angola, a ilha deTimor e a costa do Chile”49. Muitos contestam esta visãodizendo que o número de vítimas da Grande Guerra foiabsurdamente superior, mas em contrapartida secompararmos a população neste período com certezaencontraremos um número incomparavelmente inferior.Mas o que verdadeiramente importa é que foi umconflito de grandes proporções e que teria sido travadoem todo o império colonial dos Habsburgos eposteriormente nas “conquistas portuguesas”.

O início se dá para a Espanha, em 1568 quandoGuilherme I de Orange decide afastar o impopularDuque de Alba de Bruxelas, esta atitude não terá muito

48 Atualmente conhecemos tal país como Holanda, que naverdade é a província mais destacada das sete que são Frísia,Groningen, Güeldres, Overijssel, Utrecht e Zelândia.49 BOXER, C. R.; O império marítimo português 1415-1825; 3ºreimpressão; companhia das letras 2008; página 120.

apoio e Guilherme I se vê forçado a fugir. Em 1579 aEspanha cria a União de Arras e reforça o catolicismonos territórios que englobam esta união, lembrando quesão territórios onde o protestantismo se afirmava cadavez mais. Em contrapartida Guilherme I une os estadosprotestantes na União de Utrecht (1581) igualmentedenominada República das Sete Províncias Unidas dosPaíses Baixos, Estados Gerais e ou República Holandesa.A guerra para a Espanha termina com o tratado deMünster (1648) que reconhecia a Independência dasProvíncias Unidas.

Entretanto o caminho se torna meandroso em 1580quando ocorre a célebre União Ibérica que resultaria naentrada de Portugal no conflito. Todavia o confronto deverdade chega para Portugal somente por volta de1598-9 com o ataques das Províncias Unidas as ilhas deSão Tomé e Príncipe. A guerra seria mais longa para osportugueses terminando somente em 1668-9 mesmocom movimento de Restauração, que elevaria uma novadinastia em Portugal, notadamente a dos Braganças(1640-1) – e que consequentemente separarianovamente as Coroas Ibéricas - e com o tratado de pazde Haia sendo assinado em 1661.

Como Portugal será o nosso principal objeto deestudo neste artigo, apesar da Espanha ser o pivô destahistória - afinal a Holanda havia se revoltado contra estanação e não contra aquela – iremos nos ater somente aparte lusa da história, e para compreendermos melhorsua participação neste conflito, se faz necessário lançarluzes sobre a União Ibérica.

Dois países um só Império , onde o sol nunca se põe

União Ibérica, assim ficou conhecido o período deunião das Coroas espanholas e portuguesa em uma só,ela durou de 1580 até 1640 quando ocorre o período daRestauração. A união e ocasionada quando d. Sebastião– soberano de Portugal – morre em 04 de agosto de

C

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1578 na batalha de Alcácer Quibir no Marrocos, eledeixa como herdeiro da Coroa o cardeal d. Henrique,porém, já idoso, vem a falecer em janeiro de 1580. Apósa morte de d. Henrique abre-se uma crise sucessória, jáque o cardeal, mesmo recebendo conselhos nestesentido, não especificou quem deveria sucedê-lo notrono. Filipe II de Espanha reivindicaria a Coroaportuguesa para si, partindo do princípio que sua mãeera portuguesa e seu avô foi d. Manoel o Venturoso.Filipe obtém ainda nos mesmo ano a Coroa portuguesa,e se vangloriava de seu novo Império, onde o sol nuncase punha, “Herdei-o, comprei-o, conquistei-o” (“Yo loheredé, yo lo compré, yo lo conquisté”).

Filipe II não encontrou resistência muito grandeentre os portugueses, boa parte da nobreza e do altoclero lhe eram favoráveis, somente encontrandoobstáculos em d. Antônio, o Prior do Crato, que chegoua resistir na ilha Terceira situada nos Açores, porém, issonão foi suficiente para impedir a ascensão de Filipe II aotrono português. Com isso d. Antônio acabaria serefugiando na Inglaterra da rainha Isabel. Desde o iníciose tratava de uma resistência simbólica já que d. Antônioera filho bastardo do infante d. Luis com ViolanteGomes, está por sua vez era filha de mercadorescristãos-novos, tal conjuntura fez com que boa parte danobreza não o apoiasse, ou então hesitasse na suaascensão como rei, basicamente o clamor por d. Antôniovinha mais de uma origem popular que, diga-se depassagem, não era bem vista pela nobreza.

Cabe-nos ainda ressaltar que para além de Filipe II eo Prior de Crato d. Antônio, havia membros ligados àfamília real que poderiam assumir, como os duques deParma e de Sabóia e até “Catarina de Medici,advogando os interesses franceses dos Valois, lembravaque a dinastia lusa era capetíngia, pois o primeiro rei dePortugal descendia de linhagem borgonhesa” 50 .Contudo já sabemos o final desta história e Filipe IIconsegue o sancionamento das Cortes portuguesas em1581, com o acordo que ficou conhecido como Tratadode Tomar.

O tratado acordado instituía que apesar de unidas àsCoroas tanto a administração de Portugal quanto a daEspanha deveriam permanecer separadas. Uma sábiadecisão, já que dava garantias ao “povo” português dassuas liberdades e manutenção dos seus domínios. Alémdesta decisão “O rei Filipe II de Espanha e Filipe I dePortugal jurou preservar as leis e a língua portuguesa; a

50 MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O Rei no Espelho: a monarquiaportuguesa e a colonização da América (1640-1720). SãoPaulo: Hucitec/Fapesp/Instituto Camões, 2002, p. 74.

consultar conselheiros portugueses em todos osassuntos concernentes a Portugal e suas possessõesultramarinas, e a nomear apenas funcionáriosportugueses para elas. Os espanhóis estavamexpressamente proibidos de comerciar ou de se fixar noimpério português, e os portugueses, no espanhol”51.

A União Ibérica perduraria até primeiro de dezembrode 1640 quando Portugal se rebela contra o governodos espanhóis de Filipe IV. O que não ocorreu por acaso,o movimento separatista ganha força neste período pelofato de a Espanha iniciar um processo de centralização,o que englobaria Portugal obviamente. Tal processo naEspanha possuiu a influência de d. Gaspar de Guzmán, oconde-duque de Olivares, pregador de um governoativo e interveniente, dinâmica parecida ocorreria como governo de d. José em Portugal (1750-1777) que erainfluenciado por Sebastião José de Carvalho e Melomais conhecido como marquês de Pombal. Assimquando a centralização se inicia e os impostos começama recair sobre Portugal, este se “rebela” findando opredomínio da Coroa espanhola sobre a portuguesa,com a ascensão de d. João IV, é dado o início a uma novadinastia a dos Braganças.

51 BOXER, op. cit. página 122. Devemos lembrar aqui queapesar de Boxer utilizar a titulação de Filipe II de Espanha e Ide Portugal, nunca houve este segundo título e inclusive omonarca somente assinava na primeira forma.

Filipe III de Portugal (IV de Espanha)

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Portugal em guerra

A partir do momento que a união entre as Coroas éconcretizada, Portugal também se vê em conflito contraos holandeses. A princípio os portugueses reclamambastante porque acreditam que se teve alguém que saiuprejudicado da União Ibérica foram eles, isto porque“haviam ganhado de dote uma guerra”.

Boxer acredita que estas reclamações não eramjustas, pois segundo o autor, mais cedo ou mais tarde oconflito iria ocorrer, já que havia contestações ao fatode Portugal ambicionar ser a única nação soberana aleste do cabo da Boa Esperança, o que a Inglaterra,inclusive, já havia feito no que tange ao monopóliocomercial português da Guiné.

Todavia é Portugal que mais sofre com a guerra, seuimpério colonial se localizava majoritariamente emregiões costeiras o que o tornava alvo favorito e maisvulnerável para seu inimigo, desde o momento queMéxico e Peru, vice-reinos espanhóis, se encontravammais para o interior de seus territórios, e não é a toa queo Brasil reforçará seus portos militarmente, sobre umapossível intervenção da política de Madrid que utilizavaa América portuguesa como escudo para as conquistasespanholas na América.

Os Estados Gerais possuíam um grande interessecomercial no império colonial português e não obstanteatacaram justamente pontos chaves do comércioultramarino português. Visavam a África ocidental,principalmente a Guiné, região que fornecia além dosescravos sudaneses de “qualidade superior” e que erammais valorizados que os bantos, dispunha igualmente deouro. Na Ásia seus focos eram as especiarias comdestaque para o “cravo da índia e a noz-moscada dasMolucas, a canela do Ceilão (atual Sri-Lanka) e apimenta da Costa Malabar”. Os holandeses ainda sevoltariam para a América portuguesa que contava com oentão valorizado açúcar, chegando a ocuparPernambuco de 1630 à 1654.

Os primeiros ataques da República Holandesa, comoanteriormente mencionado, na guerra colonial contraPortugal, ocorrem nas ilhas de São Tomé e Príncipe1598-9, e progressivamente a guerra vai atingindoproporções maiores e não demora o conflito já estáocorrendo em possessões portuguesas da Ásia, África eAmérica. Aos poucos os holandeses vão conquistandoimportantes vitórias nas conquistas portuguesas.

Como característica de todo conflito - que envolvenações até certo ponto em equilíbrio, que perdura por

muito tempo, a guerra luso-neerlandesa é rica denuances e vicissitudes que ora deixam uma nação numaposição mais confortável, ora outra assume este papel, otempo todo teremos avanços de territórios por partedos holandeses e recuos em um segundo momento, ouvice-versa.

Durante o conflito foi possível identificardesvantagens que se sobressaem no que se referem ànação lusitana, estas se identificam através de algunsfatores principais. Em primeiro lugar recursosfinanceiros maiores por parte dos holandeses, não nósesqueçamos de que eles eram subsidiados pelas então“poderosas” Companhia Holandesa das Índias Orientaise posteriormente pela Companhia Holandesa das ÍndiasOcidentais, enquanto Portugal se encontrava debilitadoneste aspecto, esta afirmação vem do Próprio Boxer queescreve que as “Províncias Unidas da Holanda Livreeram uma metrópole mais rica do que o empobrecidoreino de Portugal”52, além disso desde o século XVI aparte Oriental do império luso já aparentava não ser tãolucrativa. Em segundo lugar a Holanda contava com umnúmero superior de homens, mesmo que ambas asnações possuíssem um número estimado de populaçãosemelhante, entre 1,25 e 1,5 milhões de habitantes. Estefator decorre de que Portugal tinha que disponibilizarhomens para a Espanha, enquanto a RepúblicaHolandesa podia contar ainda com soldados alemães eescandinavos. Estes ainda usufruíam de um efetivonaval superior, o ilustre padre jesuíta Antonio Vieiradizia em 1649, mesmo que de forma exagerada, que “osholandeses dispunham de 250 mil marinheiros paratripular os navios, enquanto Portugal não conseguiareunir quatro mil”. Entre várias explicações para o baixoefetivo naval português podemos citar as adversidadesque os marinheiros enfrentavam como doenças,advindas da insalubridade dos navios, a questão dosoldo que também pesava bastante, pois a princípio aCoroa pagava este antes do embarque e posteriormenteesta prática se modifica passando a Coroa pagar após oembarque e não obstante os atrasos desses pagamentoseram constantes. Os marinheiros ainda enfrentavam opreconceito da sociedade portuguesa contra eles, estanão via com bons olhos o ofício de marinheiro quesegundos eles eram ignorantes e desprezíveis, a junçãodesses fatores fazia com que muitos tergiversassemdessa profissão.

Os neerlandeses em geral contavam ainda comcomandantes de qualidade superior, já que eles

52 BOXER, op. cit. página 127.

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escolhiam seus líderes pelas habilidades demonstradas ecompetência profissional ao contrário de Portugal queelegia seus chefes navais e militares por status egenealogia de nobreza. Obviamente Portugal contou aolongo da idade moderna com excelentes líderesmilitares e navais, para isto basta citarmos “O GrandeCésar do Oriente” Afonso de Albuquerque (1453-1515),porém estes casos mais se configuravam como exceçãodo que regra. Destarte como resultado desta práticaPortugal iria sofrer deploráveis derrotas principalmentecom os “despreparados” vice-reis de Goa.

Insistindo na qualidade dos homens que lutavampelos dois lados devemos ainda lembrar que boa partedo contingente de soldados rasos contratados pelasCompanhias Holandesa das Índias Ocidental e Orientaleram mercenários de origens nórdicas, famosos pela suarobustez e disciplina, um oficial português de serviço naBahia relatava em 1625 que “Eram todos jovens, homensescolhidos que brilhariam em qualquer infantaria domundo”53. Em contrapartida os soldados portugueseseram na sua maioria homens advindos de prisões econdenados, recrutados a força, tinham comocaracterística a indisciplina e o despreparo para asbatalhas, o número de deserção era grande. Paraagravar ainda mais esta situação muitos passavam fome,pois a Coroa, como já observado, se encontravaempobrecida.

Batalha no campo teológico

Tanto portugueses como holandeses travaramembates memoráveis no campo religioso, além do clarointeresse comercial não podemos nos esquecer de queambas as sociedades confessavam religiões diferentes,católica e protestante respectivamente, e seconsideravam os responsáveis pela propagação eafirmação destas. O século XVI havia sido marcado pelasreformas protestantes e pelo advento do concílio deTrento, estes acontecimentos iriam ter seus reflexos nosséculos seguintes, inclusive no século XVII quandoocorre à maior parte do conflito luso-holandês, eacabariam por aumentar as tensões geradas no conflito.Tensões facilmente detectadas por relatos da épocafabricados por ambas as nações, enquanto no Sínodo deDort, em 1618-9 era definido que “a igreja de Roma era“a grande prostituta da Babilônia”, e o papa overdadeiro anticristo." 54 , em Portugal um cronistaescrevia em 1624 “Os holandeses são apenas bons

53 BOXER, op. cit. página 130.54 BOXER, op. cit. página 121.

artilheiros e, além disso, servem somente para seremqueimados como hereges desesperados”55.

Portanto nesta batalha podemos afirmar que osdiscípulos de Lutero não conseguiram atingir o nível deseus rivais, principalmente quando se tratava do corpojesuítico português, e inúmero são os relatos quecomprovam a flagrante derrota holandesa no campoteológico, o calvinista escocês Alexander Hamiltonqueixava-se de que os bantos da região de Zambeze edo litoral moçambicano só comercializavam com osportugueses, pois esses quando acompanhados de“padres” ocasionavam medo nos nativos.

De fato a batalha teológica terminou com vitória dosportugueses, seu êxito foi tão grande no que condiz aoproselitismo que em algumas regiões aonde osportugueses haviam se estabelecido durante seuimpério colonial existem até hoje, por mais que nãofiquem tão claras devido ao sincretismo religioso,tradições católicas.

Vencedores?

Os portugueses possuíam esperança que com adivisão das Coroas, espanhola e portuguesa, em 1641 osholandeses parassem de atacar, esperança que sedemonstraria infundada. O primeiro esboço de tréguadefinitiva viria com o tratado de paz realizado em Haia1661, contudo os holandeses não o respeitaram evoltaram a atacar possessões no além-mar de Portugal.

Não obstante D. João IV procura realizar umaaliança que fortalecesse a Coroa portuguesa e dequebra ajudasse na resolução do conflito contra osholandeses. O rei Bragantino atinge seu objetivo em1661 quando casa sua filha Catarina de Bragança comCarlos II de Inglaterra, esta aliança é efetuada, mas nãosem sacrifícios por parte de Portugal, já que como dotecede Bombaim na Índia e Tânger na África para osingleses, dote concedido, porém debaixo de protestosda sociedade portuguesa, afinal de contas à aliançaocorria com os hereges ingleses, não é a toa queulteriormente a este casamento o brio da sociedadeportuguesa é abalado. Contando com o apoio dosingleses, Portugal obtém a paz definitiva em 1669.

É importante ressaltarmos que simpatizamos comBoxer quando ele afirma que quando o conflitofinalmente se encerra não há vitoriosos perante oquadro geral da guerra, no entanto podemos observarda seguinte forma; vitória holandesa na Ásia, nesta boa

55 Ibidem, p. 121.

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parte das “conquistas” foi perdida como a costa deMalabar, empate na África, aqui a Holanda consegueuma importante vitória na Guiné em contrapartidaPortugal retoma em definitivo a Angola com a liderançade Salvador Correia de Sá, e põe fim ao que ficouconhecido como Brasil Holandês com a expulsão dosholandeses de Pernambuco em 1654.

Apesar da superação de Portugal neste episódio oque de fato fica marcado é que após este conflito, eoutros, o Estado da Índia vai aos poucos perdendo sua

relevância no contexto colonial de Portugal, vindo a sertotalmente substituído no século XVIII pelo Brasil tantono prestígio quanto comercialmente, pois teria início o“ciclo do ouro” das Minas. A Ásia portuguesa iriadeclinar vertiginosamente e depois da guerra luso-holandesa tanto o império marítimo português quanto à“Goa Dourada” nunca mais seriam os mesmos, por este epor outros motivos, havendo alterações de vitalimportância política e comercial no cenário do impériomarítimo português.

. Felipe Castanho: Licenciado pelas Faculdades IntegradasSimonsen e pós-graduando na Universidade Gama Filho

Fontes Bibliográficas:

BOXER, Charles Ralph. A Idade de Ouro do Brasil – Dores de Crescimento de uma Sociedade Colonial. São Paulo. Nova Fronteira, 2000._____________ A Igreja Militante e a Expansão Ibérica 1440-1770. São Paulo. Companhia das Letras, 2007.____________ O império marítimo português 1415-1825. São Paulo. Companhia das Letras, 2008.

DAROZ, Carlos; Guerra dos oitenta anos – Independência da Holanda (1568-1648). Disponível em:<http://darozhistoriamilitar.blogspot.com/2009/03/guerra-dos-oitenta-anos-independencia.html> acesso em 03/11/2010.

MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O Rei no Espelho: a monarquia portuguesa e a colonização da América (1640-1720). São Paulo:Hucitec/Fapesp/Instituto Camões, 2002. v. 1.

Brasão União Ibérica

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ENTREVISTA:

CARLO

GINZBURG

historiador italiano Carlo Ginzburg indubitavelmente está deixando sua marca na história

da História, obras como “Os Andarilhos do bem”, “História Noturna: decifrando o sabá”,

“Mitos, emblemas e sinais”, o emblemático “O Queijo e os Vermes” entre outros fazem

deste professor um dos intelectuais mais notáveis da Itália e do Mundo. Suas obras já foram traduzidas em

quinze línguas diferentes. Seus estudos pioneiros sobre a redução da escala e a consequente relevância de

pequenos contextos dentro de outros grandes revolucionaram a forma da análise documental. Ginzburg é

leitura obrigatória para todos aqueles que pretendem entender os processos da produção historiográfica.

Ao conceder a Gnarus sua primeira entrevista a um referencial da produção historiográfica

internacional, faz com que nós passemos a considera-lo uma espécie de padrinho da revista.

Esperamos que aproveitem tanto quanto nós.

O

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1 - O que o levou a se interessar pela História?

Esta pergunta foi feita a mim muitas vezes: eu não estoucerto se respondi da mesma forma. Hoje minhaescolha, eu acho, que é influenciada por uma misturade elementos muito diferentes: ambiental (relacionadoà família, social, etc.) e condicionada (casualidade).Mas isso acontece com todos, sempre, para qualquerescolha.

Quando menino, eu lia romances, então comecei a ficarinteressado pela pintura. Por algum tempo, pensava emser pintor e romancista (minha mãe era uma escritora),logo percebi que me tornaria um pintor medíocre ouum romancista medíocre, então eu desisti. Quandocomecei a faculdade, em Pisa, gostaria de me tornarum historiador de arte, mas eu conheci um professorque mesmo sem querer me fez mudar de ideia. Setivesse estudado em uma faculdade há cemquilômetros de distância, em Florença, teria insistidonaquele projeto e minha vida seria diferente (ai está acasualidade, ou talvez não). Poucos meses depois eleveio a Pisa, para um seminário de um professor dehistória na Universidade de Florença - um grandeestudioso, Delio Cantimori. Com ele, passei umasemana inteira lendo e comentando uma página de umhistoriador, Jakob Burckhardt. Que a leitura lenta eununca esqueci. Logo, li “Les Rois Thaumaturges” doMarc Bloch que me fez perceber que havia livros dehistória muito diferentes do que imaginava. Assimnasceu a minha escolha. Mas, retrospectivamente, eupercebi que ser historiador me permitiu me ocupar demuitas coisas, incluindo pinturas, romances, escreversobre a relação entre História e ficção escrita - ostemas que tinham me atraído quando era jovem. Eu meconsidero muito sortudo.

2 - O seu livro ""Il Formaggio and I Vermi" (O Queijo eos Vermes) se tornou um enorme sucesso. Vocêesperava tamanha repercussão? Como foi escrever estelivro?

Absolutamente não, mas devo dizer que, quando euescrevo um livro nunca penso que será um sucesso ouum fracasso. O que tem contribuído para o sucesso de"O queijo e os vermes"? Em primeiro lugar, eu acho quefoi o seu protagonista, o moleiro Menocchio: umafigura verdadeiramente extraordinária. Depois, há asquestões que estão no centro do livro: o desafio àautoridade, a relação entre cultura oral e escrita.Questões que afetam a todos, em qualquer sociedade,ou quase.

3 - No Brasil a História “está na moda”, um grandeaumento do número de publicações deste gênero sãodestinadas ao público em geral. Como o senhor vê estapopularização da História?

Acho que um país como o Brasil, que entrou em umperíodo de mudanças muito profundas e rápidas, isto é,entrou em contato com sua história para entender nãoapenas como a transformação é possível, mas tambémcompreender como na transformação se perde, demaneira irreversível. Eu não acredito que aquelanostalgia está necessariamente associada com oconhecimento histórico, mas ao sentido de alteração e,portanto, a perda, assim como a conquista do novo.

4 - Hoje, qual o lugar da História na sociedade?

É difícil generalizar. Existem alguns fenômenos novos,comuns no Brasil, que usam a História para alcançarreivindicações morais ou materiais, em nome dainjustiça no passado por determinados grupos(descendentes de escravos ou ex-escravos, porexemplo). Poderíamos falar no geral da historiografia

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identitária. Mesmo quando se trata de reivindicaçõesque eu acredito serem politicamente legítimos,ocorrem dois riscos: o primeiro está relacionado com anoção de identidade, e o segundo aos métodosutilizados na tentativa de se afirmar retroativamente.

Quanto ao primeiro ponto: quando falamos de"identidade", em referência a um grupo, um povo, umanação, um continente, nós construímos uma entidadefictícia, que projeta nos presentes ou passados certostraços culturais ou de outros gêneros. Aqueles quefalam de uma "identidade" italiana ou francesa,europeia, brasileira, etc., fazem para excluir este ouaquele grupo, geralmente minorias, usando deargumentos falso-históricos. E aqui chegamos aosegundo ponto: o uso muitas vezes arbitrário daHistória pelo o que eu chamei de "História deidentidade". Como sempre, o discurso sobre o método(os métodos de história, por exemplo) também é maisou menos diretamente um discurso político.

5 - O que o senhor entende por saber acadêmico?

A pesquisa vem das universidades, mas nem sempre édestinada para um público universitário. Ela seespalhou entre um público mais amplo, os resultadosde pesquisas realizadas por especialistas (no âmbito dauniversidade, mas não necessariamente) são legítimose, se bem conduzidos, muito úteis. Mas é possívelpropor uma finalidade diferente, entre um contatosimultâneo entre uma plateia de especialistas e umpúblico amplo. Isso é o que eu tentei fazer desde o meuprimeiro livro (I Benandanti). Não digo que sempre tiveêxito nisso. Trata-se de envolver o leitor, nãonecessariamente o leitor especialista, no processo deinvestigação. “O Queijo e os Vermes” pode ser vistocomo uma experiência neste sentido.

6 - É possível ser um historiador e trabalhar um temasem estar preocupado com a reflexão teórica?

Super possível, e na minha opinião, totalmentelegítimo. A maioria dos historiadores não fazemperguntas de caráter teórico. Por outro lado, a grandemaioria dos que escrevem sobre a teoria da Histórianunca esteve envolvido na pesquisa histórica empírica.Esta divergência é comum, mas há exceções. Cito omais brilhante: Marc Bloch, o grande historiador doséculo XX. Aqueles que leram “La Société féodale eApologie pour l’histoire” ou “Métier d’historien” (suasreflexões metodológicas postumamente) iráimediatamente entender o que eu quero dizer.

7 - O senhor considera que a metodologia da Micro-história revolucionou a pesquisa historiográfica?

"Revolução" é uma palavra muito enfática. Eu diria quea Micro-história fez perguntas, apresentou asdificuldades, abriu uma frente (em pesquisa e naHistória) a qual nenhum historiador de hoje podeescapar.

8 - Qual conselho o senhor daria para um estudanteiniciante no curso de História?

Muitos anos atrás, um amigo me fez esta pergunta, eudisse impulsivamente "Leia muitos romances". Hoje, nafrente da moda (em baixa, eu penso: Não é mesmo?)que afirma a impossibilidade de distinguir estritamenteentre narrativas históricas e histórias de ficção, eu nãoresponderia da mesma forma, por medo de ser malinterpretado. Eu diria: "leia muitos romances e algunslivros de História" e eu acrescentaria: "a realidade, nopresente e no passado, nunca é transparente, é opaca.Precisamos aprender a decifrá-la. Algumas romances ealguns livros de História nos ajudam a fazer isso".

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“Ele foi julgado pormilhares de anos e está no

lugar que merece: noinferno”

Pesquisa

HISTÓRIA NO TEMPO PRESENTE: NAZISMO

Por Jessica Corais

jeito de ver e escrever História vem mudandoao longo dos anos. Entender que todos nóssomos agentes da história é cada vez maisaproximado para um contexto

historiográfico, e o historiador passa então a não serapenas aquele que dialoga com livros, ele passa adialogar com gente e com fatos.

Esta coluna “História no tempo presente” tem comoobjetivo apresentar os fatos através da ótica daquelesque, de alguma forma, estão envolvidos com diversosacontecimentos da história mundial. É passado e futurose misturando entre si e trazendo a tona o presente...

No dia 30 de abril de 1945 morria em Berlim um dosmaiores ditadores de todos os tempos, Adolf Hitler. Oque seria da Alemanha, dos países envolvidos com onazismo e das gerações futuras pouco se sabia.

Hoje, 67 anos depois, a Gnarus - Revista de História,faz uma viagem até alguns países que participaramdiretamente do nazismo e apresenta relatos de algunsdaqueles que de alguma forma ainda o vivem.

O Sobrevivente

Como seria para um menino de 13 anos se verarrancado de sua casa pelo exército nazista e ir paraMuhldorf, um dos mais temidos campos deconcentração, junto com 20 membros de sua família?Stephen Nasser viveu exatamente esta experiência.

Nascido em Budapeste, Hungria, Nasser hoje residenos Estados Unidos e é o autor do famoso livro "Mybrother's voice". Quem o vê comemorando no dia 8 deagosto em Las Vegas o "Stephen Nasser Day", umahomenagem da prefeitura da cidade a ele por terpartilhado sua história de vida para o mundo, se lembrade alguns momentos de sua dolorosa infância. Viu seuprimo Peter, ainda bebê, e sua mãe Bozsi morrerem,além de seu irmão, Andris, acabar dando os últimossuspiros em seus braços, em Mühldorf.

"É difícil imaginar (como era um campo deconcentração), mesmo em seu pior pesadelo. Cada dia

era um desafio para sobreviver. Sobrevivi pela força doamor entre mim e meu irmão e da minha determinaçãopara continuar promessa que dei para o meu irmão. Osnazistas me controlavam fisicamente, masmentalmente, não podiam me tocar. Apesar dosespancamentos ou fome. Em um ponto Deus se tornoumeu melhor amigo. Eu mudei a minha atitude. Todamanhã eu acordava num pesadelo, onde não podiacontrolar. Mas à noite todos os meus pensamentosestavam nas memórias da minha família e na vida boa.Eu continuei a acreditar quando acordei. Foi apenas umpesadelo. Quando eu caía no sono, era para mim, arealidade. E era um prisioneiro em tempo parcial",

declara.

Nasser também contou como era sua vida antes donazismo: "Nós éramos uma família muito unida. Meusavós, e depois seguido por meus pais, tinham uma lojade jóias desde 1875, eles trabalharam duro para isso. Senenhum antissemita quisesse apontar o dedo, estavatudo ok".

Quando questionado quem é Adolf Hitler, Nasserresponde: "Hitler usou o seu poder para a destruição detodos os judeus e adversários políticos, igualmente.Para resolver o desastre econômico da Alemanha, elepegou um bode expiatório: os judeus. Ele foi julgadopor milhares de anos e está no lugar que merece: noinferno".

Encerrando seus e-mails sempre com a frase "Tenhauma grande vida", Nasser concluiu dizendo como seria

O

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sua história caso o nazismo não tivesse ocorrido: "Hojeteria uma grande família. Andris, meu irmão, poderiater sido um médico e eu um arquiteto..."

Hitler na Áustria

A pátria e o sentimento de nacionalismo são traçosmarcantes na cultura de qualquer país. Num mundoonde se exaltam os heróis nacionais, a Áustria carregaconsigo o rótulo de local de nascimento de Hitler.

Para apresentar a maneira como é para um cidadãoaustríaco esta situação, o doutor Reinhold Wagnleitner,da Universidade de Salzburgo, revelou: "Oficialmentenão há nenhum grupo nazista, mas isso não significaque não existam elementos marginais que aparecemocasionalmente. Estamos conscientes de que Hitler eraum austríaco e que temos de estar conscientes de suaspolíticas criminosas sempre".

Sobre como o nazismo se encontra hoje inseridodentro das escolas do país, Wagnleitner revela: "Onacional-socialismo é um grande problema históricoenfrentado na Áustria e tem uma cobertura nas escolase nos meios de comunicação do país de maneiraampla".

Psicologia Social

Estar sem perspectiva de vida, carregando o fardo daculpa por uma guerra e vendo o seu país enriquecendoapenas para poucos - os judeus. Foi este cenário queHitler encontrou para propagar toda sua ideologia.

Um dos mais renomados professores de psicologiadas massas, Stephen Reicher é autor de diversos livros,entre eles "A Nova Psicologia da Liderança".Lecionando na Universidade de St Andrews (ReinoUnido) de neurociência e psicologia, ele nos traça aquestão do poder de liderança que tinha o líder dosnazistas: "Sobre Hitler, a questão é como ele veio a servisto para o povo alemão. O que é fascinante é a formacomo ele, sua biografia e até mesmo a suapersonalidade foram todos construídos de forma queele apareceu como a encarnação viva do "Alemão-ness". Isso foi em parte o seu próprio trabalho e em

parte a de Goebbels, que descreveu "O mito Hitler"como sua maior conquista. Uma vez que Hitler tornou-se 'Alemanha', então as pessoas poderiam transferir suapaixão para o grupo e também para o próprio Hitler.Quando ele falou para o grupo nos termos com os quaisse definira, ele pode experimentar como falar com elespessoalmente. Naturalmente, a maneira de fazer-se umsímbolo do grupo depende da história, cultura eideologia específicas desse grupo".

Campos de concentração

Muitos não gostam de falar do nazismo e falar sobreos temidos campos de concentração é algo ainda maisdifícil. Comentar sobre o tema vem logo à cabeça asmaneiras como milhares de pessoas foram mortas,sejam em câmaras de gás, campos de fuzilamento, etc.

Já outros, têm a missão de encarar diariamente estefato. São aqueles que trabalham nos campos deconcentração, agora, transformados em museus eCentros de Memória.

Este é o caso de Kathrin Helldorfer, que trabalhaatualmente no memorial do antigo campo deconcentração de Flossenbürg (no mínimo 100 milprisioneiros e 30 mil mortos)56 como relações públicasdo local. Ela conta não apenas alguns de seussentimentos como também a sensação dos visitantes:"Cada visitante é diferente e, portanto, reage diferente.Isso acontece muito (sobre pessoas que foramprisioneiros neste campo de concentração visitarem olocal). Ainda assim, temos muitos membros de famíliaque estão procurando informações sobre seusfamiliares. Eu acho que os incidentes nos antigoscampos de concentração são chocantes o suficiente.Nós tentamos não ser uma câmara de horror, mas simtrazer de volta as histórias individuais de pessoas quetiveram um sofrimento tão terrível aqui. "

Dimitri Roden, historiador do atual memorial docampo de concentração Auffanglager Breendonk daBélgica, fala não apenas qual é a situação no local ondetrabalha, mas também o sentimento do nazismo nopaís: "Nazismo é rejeitado pela população belga, comoé o caso da maioria dos países europeus. Todos osnossos visitantes ficam impressionados com a atmosferae a história do acampamento. Apenas metade dosprisioneiros sobreviveu à guerra (1700 de 3500). Amaioria morreu nos campos de concentração no Reich

56 Holocaust,http://holocaust.cz/en/history/camps/flossenbuerg.Acessado em: 5 de outubro de 2012. Às 13h05

“A II Guerra Mundial, para Polônia, nãohá absolutamente nenhuma

consequência positiva, já negativas sãomuitas a mencionar”

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alemão, na prisão de Breendonk Auffanglager".Questionado qual o objetivo de transformar um campode concentração em museu, Roden declara: "Mostrar osexcessos de um regime totalitário".

O polonês Dukasz Myszala que trabalha no museu doantigo campo de concentração Majdanek, local deextermínio que matou por volta de 78 mil pessoas eonde o sobrevivente Stephen Nasser, entrevistadoacima, foi preso, diz que o nazismo no país é rejeitadode uma maneira geral: "O nazismo como uma atividadepolítica é proibida por lei, e está sendo fiscalizado pelapolícia. A sociedade polonesa no total é contra onazismo. Não há nazismo na Polônia de hoje. A IIGuerra Mundial, para Polônia, não há absolutamentenenhuma consequência positiva, já negativas sãomuitas a mencionar".

Dirk Riedel, que trabalha no atual memorial docampo de concentração de Dachau, onde no mínimo41,500 mil pessoas foram mortas e 200 mil presas, dizque o local é muito visitado por estudantes: "Aconcentração é dedicada à memória das vítimas. Étambém um local de trabalho acadêmico eeducacional. A história do campo de concentração é oponto focal. A compreensão desta história étransmitida, principalmente, através da perspectiva dospresos, sem, contudo, ignorar o contexto histórico, asestruturas e processos do terror nazista, bem como ahistória dos culpados. O objetivo é conseguir uma'história integrada' que leve as perspectivas das vítimase seu testemunho para ser inseparável da históriaglobal."

Como dado adicional, nenhum dos entrevistadosacima respondeu sobre o que representa o nazismo eHitler para eles. Além disso, não há nenhumdescendente de nazistas ou judeus neste momentotrabalhando em um desses campos de concentração.

O alemão

Quais são as consequências que o nazismo traz hojepara um alemão? Como é ver o nazismo 67 anosdepois? Para tratar desses assuntos, falamos comStephan Marks. PHD em História e diretor do projetode pesquisa História e Memória, presidente daMemória e Aprendizagem e também presidente doInstituto de Freiburg de Educação em DireitosHumanos, além de autor e editor de 11 livros, dentreeles o livro Warum folgten sie de Hitler? DiePsychologie des Nationalsozialismus (Por que elesseguiram Hitler? A Psicologia do nazismo).

Marks faz um paralelo entre passado e presente deum povo marcado pelo nazismo.

"A grande maioria das pessoas têm atitudes críticasnegativas na Alemanha para com o nazismo e estãoconscientes sobre as atrocidades cometidas. Noentanto, há um pequeno grupo de pessoas que negamos crimes e que tentam propagar nazismo. Além disso,há ainda um certo grau de antissemitismo sutil entre osalemães (talvez 10 ou 20 por cento). As consequênciasdo nazismo são do povo alemão, é e sempre seráidentificado como o pior crime da história dahumanidade. Alguns alemães consideram esta negativa(como um muito pesado "fardo" em ser alemão) - naminha opinião, esta é também uma responsabilidade,uma "chamada", eu poderia dizer, que nos desafia(alemães) a serem mais conscientes e respeitar adignidade humana. Na minha opinião, muitos alemãesnão aceitam muito esta herança, ainda não".

Um dos fatores que chama a atenção entre aquelesque são descendentes de nazistas é o fato de algumdeles optarem por não terem mais filhos, ou seja,fazerem a esterilização. Como é o caso de BettinaGoering e seu irmão, sobrinha-neta de HermannGoering 57 , o segundo homem mais poderoso donazismo depois de Hitler.

A explicação daqueles que fizeram tal procedimentofoi para que não houvesse mais descendentes na família

Questionamos Marks sobre este fato de esterilizaçãoe o mesmo, que se diz surpreso com a pergunta,declara: "Esta questão é uma surpresa para mim. Elemostra que já alcançou uma compreensão muito boado meu país. Minha opinião? Muitos membros da

57 Correio do Brasil, http://correiodobrasil.com.br/nazismo-filhos-e-netos-relatam-trauma-de-lidar-com-passado-sombrio-na-familia/. Acessado em: 5 de outubro de 2012. Às14h15.

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minha "geração" (ou seja, alemães nascido na décadaou mais após o fim da 2ª Guerra Mundial) fizeram essavasectomia (inclusive eu). É difícil ter uma 'opinião'sobre isso, porque isso 'aconteceu'. Para muitos deminha geração isto parece ser bastante plausível.Sendo um alemão (em 1960 e 1970) é terrível, mesentia muito mal, então como eu posso fazer isso a umrecém-nascido? No entanto (eu tenho 61 anos agora)me sinto diferente e muitos outros alemães também(portanto, os alemães não entrarão em extinção)".

Judeu residente na Alemanha

Viver num país onde muitos foram mortos eperseguidos pode não ser uma das tarefas mais fáceispara uma pessoa. Dos 500 à 550 mil judeus queexistiam antes do nazismo58, números do ano 2002apontam hoje que sejam 100 mil59 e outros falam de200 mil.

Para contar como é ser judeu e viver na Alemanha,entrevistamos Max Privorozki, presidente da associaçãojudaica de Halle, cidade do país: "Há alguns problemasentre judeus e alemães, mas acho que orelacionamento é ok. Não devemos esquecer que cercade ¾ hoje da comunidade judaica na Alemanha sãoantigos judeus soviéticos, como eu. A maioria dosproblemas não é entre judeus e alemães, mas simjudeus russos e alemães. Os alemães modernos não sãoresponsáveis por nazistas 1933-1945. Eles sãoresponsáveis pela não repetição desses eventos. E elesfazem (quase) o seu melhor. Há alguns grupos em todasas sociedades que apoiam o nazismo. Eu não gostodeles. É importante que as pessoas e o governo lutemcontra esses grupos. E os alemães fazem isso".

Educação na Alemanha

Seria impossível falar deste tema sem mencionar aquestão da educação. Transmitir informações sobre onazismo nas escolas alemãs poderia ser um grandedesafio principalmente para os professores de História

58 AFP Google,http://afp.google.com/article/ALeqM5g228pNlf6Gu8P3ZfR3QhuPuZdfpg.59 BBC Brasil,http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2002/021216_crescentilmp.shtml.

Sobre a questão dentro da sala de aula, UlrichBongertmann, presidente da Associação de Professoresde História da Alemanha, comenta como vem sendotrabalhado o tema nas escolas e as maiores dificuldadesencontradas: "Estudantes judeus são um desafiopequeno, mas os estudantes palestinos e árabesrejeitam o tema do Holocausto, pois não é um temaque acham importante para si. No geral, está tudo bem.A comunidade judaica tem apenas 200 mil membros e aAlemanha tem 82 milhões de pessoas no total".

Bongertmann também nos deu acesso a umdocumento enviado para todos os professores deHistória da Alemanha, que são recomendações para oensino de História Geral. Podemos citar algumas dassugestões: Falar sobre a biografia de Hitler, odarwinismo social, a ideologia nacionalista-racista, oantissemitismo, a ideologia do habitat, a propagandanazista, o poder sedutor da ditadura, o culto apersonalidade, os campos de extermínio, a eutanásia,experimentos humanos no campo de concentração demedicina, o trabalho forçado, os obstáculos para a vidajudaica, etc. Além disso, recomenda-se o uso tambémda História oral e da internet para engrandecimentoainda mais do conhecimento sobre o assunto.

Conclusão

Para esta pesquisa, foram enviados 198 e-mails tendobuscado entrevistar por volta de 180 pessoas. Destes,14 pessoas aceitaram falar sobre este assunto. Muitos,alegando problemas particulares e outras dificuldades,declararam não ser possível a entrevista.

Com base em tudo que foi descrito acima, podemosconcluir que o nazismo, apesar de ter ocorrido há 67anos ainda é um fator de discussão atual. Explicar osentimento em países que viveram tão fortemente e oque isto trouxe para estes povos na atualidade é de fatoum grande desafio.

O que pensa e sente cada entrevistado pode nãorevelar o sentimento entre todos alemães, judeus,

“A maioria dos problemas nãoé entre judeus e alemães, massim judeus russos e alemães”

“Alguns alemãesconsideram esta negativacomo um muito pesado"fardo" em ser alemão”

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austríacos, búlgaros, poloneses e outros povos, mas,sem a menor dúvida, seus pensamentos sãocompartilhados com pelo menos outros membros decada sociedade. Apesar do nazismo não existir comoforma de governo, existe em forma de pensamento.Sendo ele o repúdio, a vergonha, o temor, a negação ea fuga.

Jessica Corais: Graduanda em História pelas FaculdadesIntegradas Simonsen, repórter e membro fundadora daGnarus Revista de História.

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“A fotografia é uma fontehistórica que demanda por

parte do historiador um novotipo de crítica”

Coluna:

FOTOGRAFIA E HISTÓRIA – REFLEXÕES INTRODUTÓRIAS

Por Ana Maria Mauad

esde as últimas décadas do século XIX apercepção visual do mundo foi marcadapela utilização de dispositivos técnicospara a produção das imagens. A demanda

social de imagens foi se ampliando ao longo do séculoXX, a ponto de podermos contar a sua história atravésdas imagens técnicas, notadamente, a fotografia.Sendo assim, as imagens técnicas na sua dimensão dedocumentos e monumentos da história contemporâneadevem ser trabalhadas a partir da ampliação da noçãode testemunho, a maneira de Bloch.

Tal procedimento engendra alguns desdobramentosteórico-metodológicos, dentre os quais destacamos, osprocessos de produção de sentido na sociedadecontemporânea, com destaque para, os seguintes

aspectos: o papel desempenhado pela tecnologia; adefinição do circuito social da produção de imagenstécnicas, enfatizando historicidade dos regimes visuais;o papel dos sujeitos sociais como mediadores daprodução cultural, compreendendo que a relação entreprodutores e receptores de imagens se traduz numanegociação de sentidos e significados; e por fim, acapacidade narrativa das imagens técnicas, discutindo-se aí a dimensão temporal das imagens, os elementosdefinidores de uma linguagem eminentemente visual epor fim o diálogo estabelecido entre imagens técnicase outros textos, tanto de caráter verbal, como nãoverbal, a partir do princípio de intertextualidade.

Deste conjunto de desdobramentos podemossintetizar os três principais aspectos ao considerarmosas imagens visuais:

1. A questão da produção – o dispositivo quemedia a relação entre o sujeito que olha e a imagemque elabora. Através dessa atividade de olhar se dá amanipulação de um dispositivo de caráter tecnológico,este possui determinadas regras definidashistoricamente.

D

Fotografias daHistória

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2. A questão da recepção – associada ao valoratribuído à imagem pela sociedade que a produz, mastambém recebe. Em que medida, este valor está maisou menos balizado pelos efeitos de realismo daimagem, vai apontar para a conformação histórica deum certo regime de visualidade. Portanto, se a questãoda relação da imagem com o seu referente e o grau deiconicidade dessa imagem é uma questão estética, seujulgamento ( ou apropriação) tem a ver com ascondições de recepção e como, através dessarecepção, se atribui valor a imagem: informativo,artístico, intimo, etc.

3. A questão do produto – entende-se aí, aimagem consubstanciada em matéria, ainda acapacidade da imagem potencializar a matéria em simesma, como objetivação de trabalho humano, comoresultado do processo de produção de sentido social,como relação social. Compreendida como resultantede uma relação entre sujeitos, a imagem visualengendra uma capacidade narrativa que se processanuma dada temporalidade. Estabelece, assim, umdiálogo de sentidos com outras referencias culturais decaráter verbal e não verbal. As imagens nos contamhistórias, atualizam memórias, inventam vivências,imaginando a história.

O circuito social da fotografia nos séculos XIX e XXfoi caracterizado pelo advento daquilo que denominode fotografia pública. A noção de fotografia públicaassocia-se tanto configuração de ação do poderpúblico, por meio da produção de registros desituações, processos e sujeitos que se associam a açãodo Estado e criam a memória visual da ação do poderpúblico. Ao mesmo tempo, busca ampliar a noção dedocumento visual, por entender que qualquerfotografia, ao mesmo tempo em apresenta e representao mundo visível, por meio de uma linguagem é tambémo resultado de uma prática social e de uma experiênciahistórica. Utiliza-se o termo fotografia pública paraincluir dentro da análise de fotografias as dimensõesde seu circuito social, quer seja definindo a dimensãodo espaço público visual, quer seja pela configuraçãode um publico que visualiza essas imagens. Portanto,conjugamos dentro desta rubrica um conjunto deimagens publicadas em jornais e revistas, mas também,veiculadas em catálogos de exposições e coletâneas defotógrafos resultantes da sua prática fotográfica:documental e artística. Assim a noção de fotografiapública vem complementar àquela relativa ao espaçodoméstico e da intimidade, reservada a esfera privadadas relações sociais.

O fundamental é perceber, os aspectos destacomunidade de imagens que estruturam umalinguagem visual comum, migrando de campos deprodução visual para outros, a partir de um processo deapropriação e rearticulação dos elementossignificantes.

Fotografia como fonte histórica: leitura einterpretação

O testemunho é válido, não importando se oregistro fotográfico foi feito para documentar um fatoou representar um estilo de vida. No entanto,parafraseando Jacques Le Goff, há que se considerar afotografia, simultaneamente comoimagem/documento e como imagem/monumento. Noprimeiro caso, considera-se a fotografia como índice,como marca de uma materialidade passada, na qualobjetos, pessoas, lugares nos informam sobredeterminados aspectos desse passado - condições devida, moda, infraestrutura urbana ou rural, condiçõesde trabalho etc. No segundo caso, a fotografia é umsímbolo, aquilo que, no passado, a sociedadeestabeleceu como a única imagem a ser perenizadapara o futuro. Sem esquecer jamais que todo

Foto de Erno Schneider - 1962

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documento é monumento, se a fotografia informa, elatambém conforma uma determinada visão de mundo.

Tal perspectiva remete ao circuito social dafotografia nos diferentes períodos de sua história,incluindo-se, nesta categoria, todo o processo deprodução, circulação e consumo das imagensfotográficas. Só assim será possível restabelecer ascondições de emissão e recepção da mensagemfotográfica, bem como as tensões sociais queenvolveram a sua elaboração. Desta maneira, texto econtexto estarão contemplados.

Os textos visuais, inclusive a fotografia, sãoresultado de um jogo de expressão e conteúdo queenvolvem, necessariamente, três componentes: oautor, o texto propriamente dito e um leitor. Cada umdestes três elementos integra o resultado final, àmedida que todo o produto cultural envolve um locusde produção e um produtor, que manipula técnicas edetém saberes específicos à sua atividade, um leitor oudestinatário, concebido como um sujeitotransindividual cujas respostas estão diretamenteligadas às programações sociais de comportamento do

contexto histórico no qual se insere, e por fim umsignificado aceito socialmente como válido, resultantedo trabalho de investimento de sentido.

No caso da fotografia, é evidente o papel de autorimputado ao fotógrafo. Porém, há que se concebê-locomo uma categoria social, quer seja profissionalautônomo, fotógrafo de imprensa, fotógrafo oficial ouum mero amador “batedor de chapas”. O grau decontrole da técnica e das estéticas fotográficas variarána mesma proporção dos objetivos estabelecidos para aimagem final. Ainda assim, o controle de uma câmarafotográfica impõe uma competência mínima, por partedo autor, ligada fundamentalmente à manipulação decódigos convencionalizados social e historicamentepara a produção de uma imagem possível de sercompreendida. No século XIX, este controle ficavarestrito a um grupo seleto de fotógrafos profissionaisque manipulava aparelhos pesados e tinha de produziro seu próprio material de trabalho, inclusive asensibilização de chapas de vidro. Com odesenvolvimento de indústria ótica e química, ainda nofinal dos Oitocentos, ocorreu uma estandardização dosprodutos fotográficos e uma compactação das câmaras,

Espaço de trabalho no início do séc. XX. Foto de Augusto Malta – Rio de Janeiro.

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possibilitando uma ampliação do número deprofissionais e usuários da fotografia. No início doséculo XX, já era possível contar com as indústriasKodak e a máxima da fotografia amadora: “You pressthe botton, we do the rest”.

Paralelamente ao processo de desenvolvimentotecnológico, o campo fotográfico foi sendo constituídoa partir do estabelecimento de uma estética que incluíadesde profissionais do retrato em busca da feição maisharmoniosa para seu cliente e o paisagista que buscavaa nitidez da imagem e a amplitude de planos, até ofotógrafo amador-artista, geralmente ligado àsassociações fotoclubísticas, que defendia a fotografiacomo expressão artística, baseada nos mesmos cânonesque a pintura (por isso, não poupava a imagemfotográfica de uma intervenção direta, tanto através douso de filtros, quanto do retoque, entre outrastécnicas). Técnica e estética eram competência doautor.

À competência do autor corresponde a do leitor,cuja exigência mínima é saber que uma fotografia éuma fotografia, ou seja, o suporte material de umaimagem. Na verdade é a competência de quem olhaque fornece significados à imagem. Essa compreensãose dá a partir de regras culturais, que fornecem agarantia de que a leitura da imagem não se limite a umsujeito individual, mas que acima de tudo seja coletiva.A ideia de competência do leitor pressupõe que estemesmo leitor, na qualidade de destinatário damensagem fotográfica, detenha uma série de saberesque envolvem outros textos sociais.

É importante destacar que a compreensão de textosvisuais é tanto um ato conceitual, quanto um atofundado numa pragmática, que pressupõe a aplicaçãoregras culturalmente aceitas como válidas econvencionalizadas na dinâmica social. Percepção einterpretação são faces de um mesmo processo: o daeducação do olhar. Existem regras de leitura dos textosvisuais que são compartilhadas pela comunidade deleitores. Tais regras não são geradas espontaneamente;na verdade, resultam de uma disputa pelo significadoadequado as representações culturais. Sendo assim, suaaplicação por parte dos leitores/destinatários envolve,também, a situação de recepção dos textos visuais. Talsituação varia historicamente, desde o veículo quesuporta a imagem até a sua circulação e consumo,passando pelo controle dos meios técnicos deprodução cultural, exercido por diferentes grupos quese enfrentam na dinâmica social. Portanto, se a cultura

comunica, a ideologia estrutura a comunicação e ahegemonia social faz com que a imagem da classedominante predomine, erigindo-se como modelo paraas demais.

No caso da fotografia, os veículos incluem desde ostradicionais álbuns de retrato até os bytes de umaimagem digitalizada, podendo a circulação limitar-seao ambiente familiar ou ampliar seus caminhosnavegando pela Internet. Já a situação de consumo édirecionada para um destinatário, seja ele umapaixonado que guarda o retrato de sua amada comouma relíquia, seja um banco de memória quearmazenará a imagem fotográfica, até que alguémacesse a informação e assuma o papel deleitor/destinatário.

Na qualidade de texto, que pressupõecompetências para sua produção e leitura, a fotografiauma linguagem que se organiza com base em duasdimensões: expressão e conteúdo. O primeiro envolveescolhas técnicas e estéticas, tais comoenquadramento, iluminação, definição da imagem,contraste, cor etc. Já o segundo é determinado peloconjunto de pessoas, objetos, lugares e vivências quecompõem a fotografia. Ambas as dimensões secorrespondem no processo contínuo de produção desentido na fotografia, sendo possível separá-los parafins de análise, mas compreendê-los somente como umtodo integrado.

Historicamente, a fotografia compõe, juntamentecom outros tipos de texto de caráter verbal e não-verbal, a textualidade de uma determinada época. Talideia implica a noção de intertextualidade para acompreensão ampla das maneiras de ser e agir de umdeterminado contexto histórico: à medida que ostextos históricos não são autônomos, necessitam deoutros para sua interpretação. Da mesma forma, afotografia - para ser utilizada como fonte histórica,ultrapassando seu mero aspecto ilustrativo - devecompor uma série extensa e homogênea no sentido dedar conta das semelhanças e diferenças próprias aoconjunto de imagens que se escolheu analisar. Nessesentido o corpus fotográfico pode ser organizado emfunção de um tema, tais como a morte, a criança, ocasamento etc., ou em função das diferentes agênciasde produção da imagem que competem nos processosde produção de sentido social, entre as quais a família,o Estado, a imprensa e a publicidade. Em ambos oscasos, a análise histórica da mensagem fotográfica temna noção de espaço a sua chave de leitura, posto que a

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própria fotografia é um recorte espacial que contémoutros espaços que a determinam e estruturam, como,por exemplo, o espaço geográfico, o espaço dosobjetos (interiores, exteriores e pessoais), o espaço dafiguração e o espaço das vivências, comportamentos erepresentações sociais.

Do ponto de vista temporal, a imagem fotográficapermite a presentificação do passado, como umamensagem que se processa através do tempo,colocando, por conseguinte, um novo problema aohistoriador que, além de lidar com as competênciasacima referidas, deve lidar com a sua própriacompetência, na situação de um leitor de imagens dopassado. Retomamos, neste ponto, a pergunta anterior:como olhar através das imagens? Por tudo que já foidito, considerando-se a fotografia como uma fontehistórica que demanda um novo tipo de crítica, umanova postura teórica de caráter transdisciplinar,algumas pistas para responder tal questão já foramdadas. Resta, no entanto, indicar, nesta cadeia detemporalidades, qual o locus interpretativo dohistoriador.

Já foi dito que as imagens são históricas, quedependem das variáveis técnicas e estéticas docontexto histórico que as produziram e das diferentesvisões de mundo que concorrem no jogo das relaçõessociais. Nesse sentido, as fotografias guardam, na suasuperfície sensível, a marca indefectível do passado queas produziu e consumiu. Um dia já foram memóriapresente, próxima àqueles que as possuíam, asguardavam e colecionavam como relíquias, lembrançasou testemunhos. No processo de constante vir a serrecuperam o seu caráter de presença, num novo lugar,num outro contexto e com uma função diferente. Damesma forma que seus antigos donos, o historiadorentra em contato com este presente/passado e oinveste de sentido, um sentido diverso daquele dadopelos contemporâneos da imagem, mas próprio àproblemática ser estudada. Aí reside a competênciadaquele que analisa imagens do passado: no problemaproposto e na construção do objeto de estudo. Aimagem não fala por si só; é necessário que asperguntas sejam feitas.

Ana Maria Mauad: Doutora em História Social pelaUniversidade Federal Fluminense (UFF). ProfessoradoDepartamento de História da UFF. Pesquisadora doCNPq. Autora, entre outros livros, de Poses e flagrantes:ensaios sobre história e fotografias. Niterói: Editora daUFF, 2008.

Gostou? Então para saber mais não deixe de ler:

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Coluna:

A MEMÓRIA E O CENTRO DE MEMÓRIA DE REALENGO E

PADRE MIGUEL

Por Allan Pereira de Oliveira

Centro de Memória de Realengo e PadreMiguel inaugurado oficialmente em 2001,foi criado em prol da preservação damemória local através do resguardo de

fotografias, periódicos, pinturas e registros diversos.Nossa missão consiste em organizá-las proporcionandoa disponibilização, utilização e visualização parapesquisadores e membros da comunidade de formademocrática. Porém, para cumprir nosso objetivo énecessário estabelecer alguns pontos de apoio teóricoatravés de questionamentos inerentes ao tema como: oque a memória representa no campo individual e social?Qual a necessidade e a importância de um centro dememória para a comunidade? Que critérioscaracterizam esses documentos como “fontesmnemônicas”? Como podemos interpretar e manusearo material disponível? A partir destas perguntas sedesenha o nosso projeto de pesquisa.

A memória é, segundo Le Goff , o conjunto defunções psíquicas que possuem a propriedade deconservar informações para o homem utilizá-las naatualização de impressões que representam seupassado, mostra-se como objeto em permanente

evolução e possui um elo com o tempo presente. Umade suas características principais, e que a difere daHistória, é sua continuidade que busca sempre emforma de narrativa ligar os fatos, esta peculiaridadedeve ser entendida não só como fenômeno individualque busca alinhar os acontecimentos do passado, mastambém como coletivo porque este alinhamentoprocura sempre ajustar-se ao meio social do indivíduo,ou seja, a construção da memória pode projetar, deforma artificial e inconsciente, acontecimentos,personagens e lugares, que o memorizador não viveupessoalmente, com o intuito de proporcionar a ele umacoerência de sua continuidade com seu nicho social, oque a configura como um processo social.

O século XX trouxe, com as inovações tecnológicas,uma aceleração na transmissão e armazenamento dasinformações, as buscamos sempre de modo imediato edispomos de aparelhos e tecnologia para guardá-las edisseminá-las. Vivemos um momento em que astécnicas de memorização são consideradas reacionáriase o novo sempre sobrepuja o velho. Nossa sociedadevaloriza mais o moderno que o antigo, mais o presenteque o passado. Nesse contexto é que nascem os lugares

O

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de memória, como santuários, cemitérios, monumentos,museus e os centros de memória, que se constituem de“retalhos” da colcha que é a sociedade. Mas sãoexatamente estes fragmentos que fomentam aprodução historiográfica, que promovem a identidadede um grupo, que legitimam a cultura popular. O quejustifica a criação do Centro de Memória de Realengo ePadre Miguel - CMRP é a ameaça iminente doesquecimento, porque sem estes lugares nósfatalmente perderíamos o referencial identitário destascomunidades.

A memória é intrinsecamente narrativa e a partirdesta premissa entende-se que os materiais ligados aela, sejam congruentes com esta característica. Logo,estes objetos, músicas, relatórios, poesias, cartas, fotos,etc, necessitam obrigatoriamente dialogar com anarrativa coletiva, social e da memória de formadesacelerada. Estes artefatos, que também seenquadram no ideal de patrimônio material, sãovalorados somente, e unicamente, quando esteslegitimam ou remetem à “memória nacional”, oumemória do grupo, ou seja, as memórias individuaisque não reverberam a massa dominante ou o modo devida idealizado por elas são descartadas. O que se devesalientar é que estas sacralizações não propõem umdiscurso crítico e, também por isso divergem da

História, estas fontes mnemônicas, que possuempropriedades diferentes do conceito de fonte histórica,são forjadas às luzes de um compêndio ideológico.Então, os critérios que designam a capacidadereminiscente de um documento são sua relação com anarrativa, sua capacidade ideológica e seu diálogosomente com a lembrança e o esquecimento.

O manuseio da memória só é possível a partir deuma busca de suas “raízes”, os relatos, as entrevistas ebiografias tornam-se imprescindíveis nesta etapa dotrabalho para o enquadramento da memória. O quedistingue a fonte mnemônica de qualquer outra folhade papel, por exemplo, é o discurso narrativo, afetivo,atual e absoluto que ele carrega. Portanto, para umacorreta manipulação e interpretação dessa memória opesquisador deve cogitar uma análise psicológica domemorizador em relação a ela. É necessário ressaltarsua conexão com a psiquê, porque sua humanização é oveículo que a torna volátil e susceptível à revisões.

O estudo desenvolvido para abraçar nossa missãopara com o CMRP proporciona enriquecimentocientífico do objeto de estudo e sua estreita relaçãocom a História. O objetivo de nossa empreitada não églorificar as lembranças, mas disponibilizá-las, de modointeligível e acessível, para que sejam fomentadoras denovas pesquisas sobre a região. Para este propósito é

Banda Santa Cecília (21-11-48) - Foto doada ao CMRP pela Senhora Cleuma Goulard deOliveira em 19-02-2004 Moradora de Realengo.

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que se faz imperioso esmiuçar suas propriedades, poisseu manuseio depende de uma compreensãoabrangente de seus aspectos específicos. Tencionandoimpreterivelmente subjugar a memória, como artériaque alimenta os vasos da produção historiográfica, aorigor metodológico e ao mar de questionamentos queserão propostos pelos historiadores.

Allan Pereira de Oliveira: Graduando em História pelasFaculdades Integradas Simonsen. Pesquisador doCentro de Memória de Realengo e Padre Miguel eBolsista do Programa de Iniciação Científica dasFaculdades Integradas Simonsen.

Referencia bibliográfica:FRÓES, José N. S. Terras Realengas. Rio de Janeiro: CIEZO, 2004.LE GOFF, Jaques. Memória. In: História e memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003.NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares, In: Projeto História. São Paulo: PUC, n. 10, pp. 07-28, dezembro de 1993POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.___________. Memória e identidade Social. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, p.200-212, 1992.SANT’ANNA, Marcia. A face imaterial do patrimônio cultural: os novos instrumentos de reconhecimento e valorização. In: Memória e Patrimônio:ensaios contemporâneos. Ed.2. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009.WENCESLAU, Carlos A. C. Realengo, meu bem querer. Rio de Janeiro: CIEZO, 2004.

E.M. Cel Corsino do Amarante em desfile cívico na Avenida Santa Cruz em Realengo - (1976)Foto componente do acervo do CMRP.

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REALENGO: A CONSTRUÇÃO DE UM BAIRRO E AS

CORRENTES QUE DIVERGEM SOBRE A ORIGEM DE SEU NOME

Por Elizabeth Bertoldi e Nathália Guimarães

Professora Martha de Almeida Nogueira daSilva, em seu Trabalho de Conclusão do Cursode Licenciatura Plena em História, concluídoem 2008, na Instituição de Ensino Faculdades

Integradas Simonsen, sob o título “A Reconstrução daHistória de um Bairro: uma análise sobre diferentescorrentes existentes sobre a origem do nome do bairroRealengo e a influência das mesmas na identidadecultural e local de sua população”, apresenta oresultado de suas pesquisas, nas quais como um dosprincipais objetivos está explanar o significado e aorigem do nome Realengo, atribuído a um bairro quefoi palco de importantes fatos históricos.

Seu trabalho, feito a partir de fontesbibliográficas e narrativas reminiscentes de antigosmoradores, é composto de seis capítulos nos quais elaconceitua a palavra bairro; situa geográfica eadministrativamente a região; apresenta a origemhistórica do bairro; relata o resultado de sua pesquisareferente ao significado da palavra Realengo, seuprincipal foco; e traça o perfil atual do bairro.

Segundo a Professora Martha, as correntesque explicam o significado e a origem do nomeRealengo são: “Aquilo que está abandonado”; “terrasreais ou tudo aquilo que for realeza, ou provenientedela”; “junção da palavra real com a abreviação dapalavra engenho” – Real Engº – a mais utilizada pelosmoradores do bairro; e “palavra de origem germânicacujo significado é terras distantes do poder real”.

Houve por parte da professora Martha apreocupação em examinar isoladamente cada umadessas correntes. Os resultados de suas pesquisas serãoutilizados aqui para elucidar os leitores.

Antes, vamos ilustrar brevemente a origemhistórica das denominadas Terras Realengas.

A partir de 27 de junho de 1814 pela cartaRégia, D. João concedeu em sesmaria, ao Senado daCâmara do Rio de Janeiro, os terrenos situados emCampo Grande, chamados realengos por pertenceremao Rei de Portugal, a partir daí as terras passam a serpúblicas, onde sua venda e alienação seriam proibidas.Contudo, em 1815, foram constatadas instalações dealgumas casas no local através de vendas de lotes, naiminência de abusos foram estabelecidas dimensões

A

Brasão de Realengo: criado em conjunto com o ProfessorCarlos Wenceslau, Almira Damasceno e Marinês Seabra

(desenhista).

Descrição das cores: Azul - Lealdade (Manto de NossaSenhora); Branco – Paz; Cinza – autoridade do PríncipeD. João; Elementos –Cabeça de Boi – Pastagem (vindos

do Arquipélago dos Açores); Cana de Açúcar e Laranja –Principais produções do povoamento na época do Brasil

Colônia, na Zona Oeste.

Fonte: http://historia-de-realengo.blogspot.com.br

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para estes usos e exigência de posse de títulos parapermanência nas terras. Sua ocupação se deu atravésde diversas formas, iniciando-se pelo estabelecimentode uma Zona Militar, cujo ápice foi a fundação daEscola Preparatória e Tática e do 1º Batalhão deEngenheiros em 1897, porém seus primeirospovoadores foram escravos e imigrantes portuguesesque se dedicavam à agricultura e pastagem devido aosgrandes espaços vazios existentes no local.

Voltando às correntes interpretativas daorigem do topônimo Realengo e, com base nosresultados das pesquisas da Professora Martha,concluímos que em tempos remotos, antes mesmo dosurgimento da região, o termo já era usado paradesignar tudo aquilo que se originasse da realeza oupertencente à mesma. Constatado através dedocumentos de fontes primárias, inclusive dedicionários dos séculos XVIII e XIX.

Somente a partir do século XX é que algunsdicionários adicionaram ao termo o significado de“terras abandonadas”, o que também foi assimiladopela população local.

Com relação à junção da palavra real com aabreviação da palavra engenho, a pesquisadora colocaque as consultas em diversos livros apontaram, comcerteza, a existência de engenho na região, sendo omesmo de propriedade da família Fernandes Barata enão dos reis, como conta a população ao longo dosséculos, fazendo a relação por uma dedução lógica:“ora, se existia engenho e o mesmo estava em terrasreais, ele só poderia ser real”. Outra constatação foi aexistência da Fazenda Piraquara, mais conhecida pelapopulação como Fazenda dos Barata.

A corrente Real Engº é atribuída à tradiçãopopular. Conforme o depoimento do Sr. Aloysio Fialho,nascido e criado no bairro, oitenta e três anos (quandoa pesquisa foi elaborada – 2008), jornalista e dono dojornal “A Voz de Realengo”, que circulou por mais decinquenta anos:

“Acredito nesta versão porque aqui em Realengohavia muitas fazendas e mesmo aquelas que não tinhama moenda (...) era composta por plantações de cana,polo pomar, pela lavoura de subsistência, pela casagrande onde morava o proprietário e sua família, acapela, a senzala e até mesmo a floresta (...). Sei que asfazendas ou engenhos não pertenciam aos reis, masnesta época as terras ainda eram realengas”.

Segundo a Professora Martha, a versão deque a palavra Realengo vinha abreviada nos bondes –uma tradição oral – não pode ser comprovada

historicamente por não haver fotos, documentos e pelofato de que os trens vieram antes dos bondes. Nãohavia linha de bondes em Realengo.

Ela conclui também que mesmo as terrasrealengas tendo sido doadas por D. João, a partir doséculo XIX, a população não incutiu em sua identidadelocal e nem cultural esta nova situação, considerandoaté hoje como terras pertencentes aos reis, como umaforma de manter viva a história de sua origem.

Sua pesquisa finaliza destacando queRealengo é uma palavra de origem neolatina utilizadano vocabulário português para adjetivar lugares,animais, objetos, etc., como reais, sendo dado, pelapopulação, um novo significado a ela que foi passadaatravés da tradição oral, no intuito de preservação damemória que no bairro é muito valorizada.

Sugerimos aos leitores interessados em obtermais informações sobre o bairro Realengo queacessem, no Facebook, a página do CMRP – Centro deMemória de Realengo e Padre Miguel. A fundação doCMRP partiu da iniciativa da Professora MarthaNogueira, moradora e apaixonada pela região. Ointuito é resgatar, preservar e divulgar a memória, ahistória de Realengo, de Padre Miguel, dos moradorese de sua ligação com a História do Rio de Janeiro. OCMRP funciona como uma artéria que alimenta aprodução da História. Cada vez que as lembranças sãoreveladas elas fortalecem nossa identidade.

Elizabeth Bertoldi e Nathália Guimarães: São

Graduandas em História pelas Faculdades Integradas

Simonsen e Pesquisadoras do Centro de Memória de

Realengo e Padre Miguel.

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Coluna:

NO ESCURO DO CINEMA: REFLEXÕES SOBRE AS RELAÇÕES

ENTRE CINEMA E HISTÓRIA

Por: Fernando Gralha

“Um filme diz tanto quanto for questionado”, comesta frase o historiador francês Marc Ferro em seuemblemático artigo “O Filme: Uma contra-análise dasociedade” inaugurou a relação entre historiadores e atela grande, na qual dentro do processo de renovaçãohistoriográfica da Nova História, o filme surge em suadimensão de documento/monumento. Ferroestabelece que qualquer reflexão sobre a relaçãocinema-história toma como verdadeira a premissa deque todo filme é um documento, desde quecorresponda a um vestígio de um acontecimento queteve existência no passado, seja ele imediato ouremoto. O historiador inova ao contrapor-se à análiseanterior feita por Samaran em 1961, na qual o filmeteria um caráter de “veracidade do real”, para Ferro, aanálise fílmica se dá através do que chama de uma“contra-análise da sociedade”, nela o filme transcendeao seu papel de mero recurso imagético revestido deuma realidade e vai além, mostra não só o queevidencia, mas também o involuntário, o imaginário, osvalores, os silêncios, alcançando desta forma umarealidade além da representada, chega às “zonasideológicas não-visíveis”, lugar onde o cinema seapresenta como agente da História, portador de umapeculiar potência social e política.

Assim, o cinema entrava no jogo iniciado peloshistoriadores dos Annales Jacques Le Goff e PierreNora, que ao organizarem sua famosa trilogia alargamos horizontes da pesquisa historiográfica com aelevação de toda a produção humana ao status defonte histórica, do mesmo modo que a festa, a cozinha,o clima, o inconsciente, o corpo, entre outros temas, ofilme representado na obra pelo texto inovador deMarc Ferro é alçado ao status de fonte histórica.

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Nada mais justo que a História se utilize docinema, pois desde muito tempo, a História vemservindo de fonte de inspiração para muitas formas derepresentação, sejam elas lendárias, teatrais, literárias,plásticas e várias outras. Com o surgimento do cinema esua rápida popularização, essa característica teve umgrande aumento de suas possibilidades, podemosobservar isto ao percebermos o elevado número defilmes com referencial histórico na produção mundial. Eé aí que entra a necessidade do historiador em buscarno filme respostas para algumas de suas questões, aprodução cinematográfica, seja ela a dos pequenosestúdios, seja do grandiloquente universohollywoodiano, se constitui em um dos discursos etestemunhos do mundo dos homens, espaço einstrumento de reflexão epistemológica não só daHistória, mas também, para nós historiadores, dasciências auxiliares como a antropologia, a filosofia e asociologia e a psicologia, para ficarmos apenas nashumanas.

Sim o filme é documento/monumento, porém ovalor documental de cada película está intimamenteligado com a competência do olhar e a perspectivaadotados pelo “analista”. Para Alfredo Bosi , dentro deuma perspectiva sobre uma fenomenologia do olhar,olhar, ver e pensar são ações inseparáveis. Perceber arelação entre signo e as imagens em movimento docinema, decompor as características e aspectos que aimagem fílmica constrói, nos faz chegar àquilo que nãofoi mostrado de imediato pelo cineasta. Posicionar odiretor, o produtor e todo o staff da obracinematográfica em seus campos culturais também éde fundamental importância, ou seja, compreender ofilme como opção resultante de uma definida visão demundo, profusa de elementos ideológicos e mentais -dos quais, muitas vezes, nem mesmo aqueles queproduziram essas películas têm consciência -harmonizados pela forma de ler, visualizar e exibir omundo no momento em que o cineasta com seuequipamento e equipe montam com imagens e sons oseu discurso.

Destarte, as possibilidades de leitura de cada filmesão múltiplas. Algumas obras, por exemplo, podem serde grande utilidade na reconstrução do gestual, dovestuário, do vocabulário, da arquitetura e doscostumes do período retratado. Mas, para além darepresentação desses elementos audiovisuais, elas“refletem” a mentalidade da sociedade, incluindo aíseus valores, através da presença de elementos dos

quais, muitas vezes, nem mesmo aqueles queproduziram essas películas têm consciência. Portanto, ofilme é inevitavelmente fruto e imagem da sociedadeque o produziu, constituindo-se desta forma fonteprimária de alta qualidade e potencialidades, desdeque bem perscrutadas por um historiador com plenodomínio de seu ofício.

Ampliando a questão, Marc Ferro, ao elaborar suateoria definiu dois dos métodos de leitura do filmeacessíveis ao historiador: a leitura histórica do filme, jáexplicitada aqui, e a leitura cinematográfica daHistória. A primeira, como já dissemos, corresponde àleitura do filme à luz do período em que foi produzido,fonte primária, ou seja, o filme lido através da História,e a segunda, à leitura do filme enquanto discurso sobreo passado, fonte secundária, isto é, a História lidaatravés do cinema e, em particular, dos “filmeshistóricos”. Seguindo por este viés, o “filme histórico”,como detentor de um discurso sobre o passado, afina-se com a História no que se refere à sua condiçãodiscursiva. Portanto, não seria um exagero considerarque o autor cinematográfico, quando produz um ‘filmehistórico’, ganha contornos de historiador, mesmo nãocarregando consigo o rigor metodológico do trabalhohistoriográfico.

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O trabalho do historiador, nesse caso, está entreoutras obrigações, perceber que enquanto algunscineastas têm, por exemplo, uma preocupaçãoexacerbada com a fidelidade dos cenários – caso deJean Jacques Annaud em “O nome da rosa” (1986), quecontou com a ajuda de ninguém menos que Jacques LeGoff para orientar desde a construção do mobiliáriomedieval até a iluminação dos mosteiros – outrospreferem dar vazão a uma licença poética – caso deMel Gibson, que em seu filme “Coração Valente”(1995), inventou armas para as cenas de batalhas,misturando-as com armas verdadeiras da época. Namaioria das vezes trata-se de representaçõesideológicas da História. Como outro exemplo,podemos citar filmes que têm uma função objetiva(mas muitas vezes subjetiva) patriótica, de fazer comque a plateia ame sua pátria, ou de legitimarem asinstituições governistas – “Independência ou morte!”(1972), “A batalha de Guararapes” (1978), “Osinconfidentes” (1972), “Fomos heróis” (2003), “Opatriota” (2000), “O resgate do soldado Ryan” (1998).Já algumas obras possuem esse conteúdo ideológicovoltado para questões de crítica ou conflitos internos eexternos, de maneira menos óbvia que a média dasproduções – “As bruxas de Salem” (1996), “El Cid”

(1956), “Erik, o Viking” (1989), entre outros. Mesmofilmes pueris como os musicais norte-americanos dadécada de 1950 (enaltecendo a sociedade dos EUA nomundo pós-guerra como próspera, feliz e perfeita)possuem conteúdo ideológico latente: o desenlace daobra tenta conduzir a uma situação que cria umreferencial de comportamento ou de pensamentoentre o público em geral: A de que viver e morar nosEstados Unidos é a melhor opção que existe.

Outra forma de análise é comparar os conteúdosdo filme com o conhecimento histórico e sociológicoda sociedade em que a película foi produzida com otema histórico que ela retrata e com outras produçõesque retratam a mesma temática – um filme sobre aRevolução Russa produzido na U.R.S.S. de 1927 como“Outubro” de Serguei Eisenstein, não tem a mesmaabordagem e visão sobre a revolução como um filmeEstadunidense de 1965 como “Doutor Jivago” de DavidLean. Todo filme histórico é uma representação dopassado e, portanto, um discurso sobre o mesmo e,como tal, está imbuído de sua historicidade.

Os estudos e pesquisas sobre as relações entrecinema e História apresentam as possibilidades de

Poster de “O Encouraçado de Potemkin

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leituras teóricas de conteúdos que, aparentemente,apenas centrados no passado, revelam muitas conexõescom o momento em que o filme foi realizado, emboraseu discurso esteja, visualmente, exclusivamentecentrado no passado. Mesmo assim, eles desempenhamum papel significativo na divulgação e na polemizaçãodo conhecimento histórico.

Gostaríamos de chamar a atenção a uma “licençapoética” em especial, talvez a mais comum em todaprodução cinematográfica: os diálogos. Quase todas asproduções são realizadas em uma linguagemcontemporânea à realização do filme. O que é umanacronismo plenamente justificável, já que para ogrande público seria extremamente difícil assistir a umapelícula passada em épocas antigas ou medievais.Portanto, a linguagem é o quesito mais difícil deadaptar ao passado. Apesar de existirem experiênciasinteressantes em que o texto é fiel ao períodorepresentado. O cineasta Irlandês Kenneth Branagh,por exemplo, já lançou vários filmes com estacaracterística, todos com textos originais das obras deShakespeare como “Henrique V” (1989), “MuitoBarulho Por Nada” (1993) e “Hamlet” (1996). No Brasiltivemos uma experiência com “Desmundo” (2003) deAlain Fresnot, que trata de algumas órfãs, enviadas pelarainha de Portugal ao Brasil por volta de 1570, com oobjetivo de desposarem os primeiros colonizadores. Ofilme é todo falado em português arcaico, da época emque os acontecimentos mostrados ocorrem, e por contadisto o filme possui legendas em português atual.

Fazendo uma analogia numa perspectiva decomparação histórica, podemos dizer que o cinemaestá para o mundo contemporâneo como a religiãoestá para o mundo medieval, conquistando corações ementes. Trabalhar com o objeto fílmico e,principalmente aproveitar as suas possibilidades nafunção de estudioso e pesquisador, são encargos dohistoriador atual; não só como um simples instrumento,mas também no intuito de transcendê-lo para umfundamento do processo epistemológico. Refletir afunção do historiador e pensar a relação cinema-história são passos indispensáveis de um trabalho aindapioneiro, mas que vem se expandindo, pois um filme,seja ele qual for, sempre vai além do seu conteúdo,escapando mesmo a quem faz a filmagem. A relaçãoentre História e arte é singularmente indissolúvel.

Fernando Gralha é Mestre em História pelaUniversidade Federal de Juiz de Fora e Professor dasFaculdades Integradas Simonsen, Prof. TutorUAB/UNIRIO. Editor fundador da Gnarus Revista deHistória. Coordenador de pesquisa do Centro deMemória de Realengo e Padre Miguel.

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