Gênero na Cozinha Profissional - · PDF fileterceira parte aborda aspectos da cozinha...

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    Gnero na Cozinha Profissional

    Autoria: Mariana Ribeiro de Castro, Lyovan Neves Maffia

    RESUMO

    Este artigo tem como objetivo analisar as possveis prticas discriminatrias relacionadas a gnero existentes nas cozinhas profissionais, identificando e compreendendo aspectos relacionados diviso sexual do trabalho. Foram utilizadas entrevistas semiestruturadas, analisadas atravs da anlise de contedo. Observou-se a existncia de prticas discriminatrias em relao mulher na cozinha profissional no recrutamento e seleo, na ascenso na carreira e no prprio ambiente de trabalho, seja como um preconceito velado por parte dos colegas ou superiores, seja na forma da diferenciao das atividades destinadas a homens e mulheres na cozinha. Se alguns avanos j foram alcanados, outros ainda se fazem necessrios.

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    Introduo

    O presente artigo explora a questo do gnero, tema que tem sido alvo de uma srie de discusses e amplamente estudado por pesquisadores como Cals e Smircich (2006), Costa e Bruschini (1992), Bruschini e Lombardi (2007), Louro (1999), Scott (1990), dentre tantos outros. Scott (1990) argumenta que no se pode tratar o termo de forma simplista, como um sinnimo de sexo, de diferenas exclusivamente biolgicas. Louro (1999) salienta que se deve enfatizar a construo social e histrica produzida sobre as caractersticas biolgicas. Cals e Smircich (2006) corroboram com essa ideia, afirmando que o gnero deve ser tratado como um termo socialmente construdo e que reflete uma variedade de teorizaes femininas. O espao da cozinha profissional ser a arena onde alguns aspectos relativos ao trabalho sero analisados a partir da perspectiva de gnero.

    Este artigo tem como objetivo analisar as possveis prticas discriminatrias relacionadas a gnero existentes nas cozinhas profissionais da cidade de Belo Horizonte/MG, identificando e compreendendo aspectos relacionados ao recrutamento e seleo, remunerao, ascenso, ao contedo e ambiente de trabalho. Este estudo tem um enfoque qualitativo, tendo em vista que se procurou entender situaes ou fatos descritos pelos entrevistados atravs da anlise do contedo (BARDIN, 1979). Foram entrevistados 10 trabalhadores que atuam na cozinha profissional, sendo destes 5 homens e 5 mulheres. As entrevistas foram semiestruturadas, conduzidas de forma individual, gravadas e transcritas para posterior anlise luz da literatura pertinente.

    O artigo foi dividido em quatro partes, alm desta introduo e da concluso. As trs primeiras so baseadas na literatura e a quarta no estudo de campo. Primeiramente ser apresentada uma conceituao sobre gnero e sobre a diviso sexual do trabalho. Posteriormente, abordar-se- as relaes de gnero no contexto de trabalho brasileiro. A terceira parte aborda aspectos da cozinha profissional brasileira, tendo por ltimo uma anlise de contedo das entrevistas realizadas.

    Gnero e diviso sexual do trabalho

    Em diversos momentos da Histria, podemos observar aes, isoladas ou coletivas, contra a opresso das mulheres. Podemos considerar que foi no sculo XIX que surgiu no Ocidente um movimento social organizado visando combater a discriminao feminina, denominado feminismo. Esse movimento ganhou maior visibilidade e expressividade no final do sculo XIX, ao lutar pelo sufrgio universal, garantindo o direito de voto s mulheres. Esse foi um perodo de grande efervescncia social e poltica, onde o movimento feminista foi para as ruas fazendo marchas e protestos pblicos e tambm ganhando visibilidade em livros, jornais e revistas. At a academia foi influenciada por tal movimento, dando origem aos estudos da mulher. No decorrer das construes propriamente tericas e suas crticas e crticos, surge a problematizao do conceito de gnero (LOURO, 1995).

    De acordo com Cals e Smircich (2006, p. 276),

    as primeiras teorias do feminismo liberal preocupavam-se com as desigualdades entre os sexos, isto , entre duas categorias de pessoas (masculino e feminino) identificadas por suas caractersticas biolgicas. Mais tarde, a teorizao distinguiu entre sexo biologicamente definido e gnero sociologicamente construdo, um produto da socializao e da vivncia.

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    Dessa forma, j se pode perceber que de uma origem marcada pela diferena sexual, evolui-se para uma abordagem relacionada construo social. Sorj (1992, p. 15), assim define tal diferenciao entre sexo e gnero:

    o equipamento biolgico sexual inato no d conta da explicao do comportamento diferenciado masculino e feminino observado na sociedade. Diferentemente do sexo, o gnero um produto social, aprendido, representado, institucionalizado e transmitido ao longo das geraes.

    Numa conceituao que visa conciliar aspectos sociais e biolgicos, Heilborn (1992, p. 98) acredita que o gnero pode ser entendido como a distino entre atributos culturais alocados a cada um dos sexos e a dimenso biolgica dos seres humanos. Assim tambm, Louro (1999) define que o gnero decorrente de aspectos biolgicos e se constitui com ou sobre corpos sexuados, mas deve-se enfatizar a construo social e histrica produzida sobre as caractersticas biolgicas. O debate deve ser levado para o campo do social, pois a que se constroem e se reproduzem as relaes de similaridades ou diferenas entre os sujeitos.

    Louro (1999) acredita que as justificativas para tais diferenciaes sociais precisariam ser buscadas no nas diferenas biolgicas, mas sim nos arranjos sociais, na histria, nas condies de acesso aos recursos da sociedade, nas formas de representao(p. 22). Tendo uma viso complementar, Saffioti (1992, p. 211) acredita que a construo do gnero pode, pois, ser compreendida, como um processo infinito de modelagem-conquista dos seres humanos, que tem lugar na trama de relaes sociais entre mulheres, entre homens e entre mulheres e homens.

    Bruschini (1992) traz uma definio de gnero que muito pode contribuir com este trabalho. A autora considera o gnero como categoria analtica e assim define:

    um modo de se referir organizao social das relaes entre os sexos. Numa rejeio total ao determinismo biolgico, que busca as explicaes para a sujeio da mulher em sua capacidade procriativa ou na fora fsica masculina, o gnero enfatiza as qualidades fundamentalmente sociais das distines baseadas no sexo. uma categoria relacional, que define homens e mulheres uns em relao aos outros. (p. 290)

    O conceito de gnero, portanto, tem caractersticas fundamentalmente sociais e relacionais, no devendo levar a pens-lo como se referindo construo de papis masculinos e femininos. Papis so determinaes sociais que regulam os modos e costumes dos seus membros. Essa concepo pode se mostrar redutora ou simplista, ainda que utilizada por muitos autores. Discutir a aprendizagem de papis masculinos e femininos parece remeter a anlise para os indivduos e para as relaes interpessoais. O foco deslocado do social para o individual. O que se deve buscar o entendimento do gnero como constituinte da identidade dos sujeitos. Ao afirmar que o gnero, assim como a nacionalidade, a classe social e outros fatores instituem a identidade do indivduo, pretende-se referir, portanto, a algo que transcende o mero desempenho de papis, a ideia perceber o gnero fazendo parte do sujeito, constituindo-o (LOURO, 1999).

    As concepes de gnero, segundo Louro (1999), diferem no apenas entre as sociedades ou os momentos histricos, mas dentro de uma dada sociedade, ao se considerar os diversos grupos que a constituem, possvel encontramos diferenas. Isso pode ser facilmente percebido nas definies dos autores relatadas acima. Assim, gnero , de acordo com Scott (1990), um termo em construo, sendo reflexo de uma variedade de teorizaes feministas, mas com bases relacionais, sociais e identitrias.

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    Em torno do conceito de gnero foi construdo um campo de pesquisa relacionado diviso sexual do trabalho. De acordo Strober (1984); Reskin e Roos (1990) apud Cals e Smircich (2006), os padres baseados no sexo, desiguais e persistentes, observveis em diversas situaes de trabalho, so encontrados na literatura como diviso sexual do trabalho, estruturao organizacional sexuada e segregao sexual ocupacional. Para Neves (2000, p. 174) a diviso sexuada do trabalho incorporou a articulao entre trabalho domstico e trabalho assalariado, espao privado e espao pblico, produo e reproduo.

    J para Bourdieu (2003) a diviso das atividades atribudas a cada um dos dois sexos est alicerada na ordem social vigente. Aos homens so destinados os espaos pblicos e s mulheres so reservados os espaos privados. Para um melhor entendimento dessa diviso de espaos, Bourdieu (2003, p. 41) assim relata:

    Cabe aos homens, situados do lado do exterior, do oficial, do pblico, do direito, do seco, do alto, do descontnuo, realizar todos os atos ao mesmo tempo breves, perigosos e espetaculares, como matar o boi, a lavoura ou a colheita, sem falar do homicdio e da guerra, que marcam rupturas no curso ordinrio da vida. As mulheres, pelo contrrio, estando situadas do lado do mido, do baixo, do curvo e do contnuo, vem ser-lhes atribudos todos os trabalhos domsticos, ou seja, privados e escondidos, ou at mesmo invisveis e vergonhosos, como o cuidado das crianas e dos animais, bom como todos os trabalhos exteriores que lhe so destinados pela razo mtica, isto , os que levam a lidar com a gua, a erva, o verde (como arrancar as ervas daninhas ou fazer jardinagem), com o leite, com a madeira e, sobretudo, os mais sujos, os mais montonos e mais humildes.

    A diviso sexual do trabalho de produo e reproduo biolgica e social, que garante ao homem a melhor parte, afirmada na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas funcionam, segundo Bourdieu (2003), como matrizes das percepes, dos pensamentos e das aes dos membros da sociedade, acabam se impondo a cada indivduo com transcendentes, sendo universalmente partilhados.