GÊNERO, RACISMO E VIOLENCIA CONTRA A MULHER · GÊNERO, RACISMO E VIOLENCIA CONTRA A MULHER: notas...
Transcript of GÊNERO, RACISMO E VIOLENCIA CONTRA A MULHER · GÊNERO, RACISMO E VIOLENCIA CONTRA A MULHER: notas...
GÊNERO, RACISMO E VIOLENCIA CONTRA A MULHER: notas sobre dimensões
possíveis ao enfrentamento.
Erica Vanessa Ramos Costa1
Marta Costa Sena2
Thainá Bastos Soares3
Resumo
Este trabalho traz considerações sobre as possibilidades de enfrentamento à violência contra a mulher, levando em consideração o recorte étnico que possui fundamentos na formação da sociedade brasileira. A pesquisa objetivou entender as especificidades desse sistema de relações reprodutor de violência contra a mulher negra e consequentemente buscar alternativas ao fortalecimento do enfrentamento à questão. A educação popular mostrou-se como uma possibilidade profícua a partir do que é concebido sobre a autonomia e pensamento crítico. Essas concepções se trabalhadas no bojo da execução de políticas públicas tornam-se ferramentas potencializadoras do enfrentamento a violência contra a mulher negra. Palavras-chaves: Gênero. Racismo. Políticas públicas. Educação Popular. ABSTRACT
This paper presents considerations about the possibilities of facing violence against women, taking into account the ethnic clipping that has foundations in the formation of Brazilian society. The aim of the research was to understand the specificities of this system of reproductive relations of violence against black women and, consequently, to seek alternatives to strengthening the confrontation with the issue. Popular education has proved to be a profitable possibility from what is conceived about autonomy and critical thinking. These conceptions, if worked out in the context of the execution of public policies, become potential tools for coping with violence against black women. Keywords: Gender. Racism. Public policy. Popular education.
1 INTRODUÇÃO
A história da humanidade é perpassada por confrontos entre classes, sexos e raças,
compreender essas contradições é essencial para entender a profundidade da violência
1 Assistente Social, mestre em Políticas Públicas – PPGPP/UFMA. Doutoranda em Ciências Sociais- PPGCSoc/UFMA. Professora e Coordenadora do curso de Serviço Social Universidade CEUMA. E-mail: [email protected] 2 Graduanda em Serviço Social Universidade CEUMA. E-mail: [email protected] 3 Graduanda em Serviço Social Universidade CEUMA. E-mail: [email protected]
contra a mulher através da perspectiva étnico racial. A pesquisa realizada teve como
objetivo compreender as particularidades do sistema de proteção, através da análise da
rede de enfrentamento à violência contra a mulher que surgiu através da pressão do
movimento feminista que ampliou a discussão relacionada à violência doméstica que
acometia as mulheres principalmente no âmbito privado. Logo a rede configura-se através
da articulação de vários órgãos governamentais e não governamentais que buscam traçar
estratégias articuladas para promover o rompimento do ciclo de violência e estabelecer uma
sociedade mais igualitária para todas as mulheres.
No entanto, o fenômeno da violência contra a mulher manifestou uma particularidade
relacionado aos elevados índices de morte de mulheres negras na pesquisa realizada
recentemente pelo Atlas da Violência (2018), exigindo dessa forma análise crítica sobre a
permanência dessa violação e o aumento das estatísticas quando é relacionada a esse
público feminino, mesmo em meio a vigência da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) e o
estruturado sistema de proteção, sendo estas umas das motivações que despertou certa
inquietação e justificou o interesse pela pesquisa. Uma vez que tais discussões permeiam o
cotidiano profissional das assistentes sociais que atuam diretamente no enfrentamento a
violência doméstica dentro dessas instituições, apresentando grande relevância para a
categoria profissional uma vez que o assistente social trabalha diretamente com as
multifacetadas expressões da questão social, entrando nesse grupo a violência contra a
mulher. Objetiva-se construir uma relação entre o enfrentamento a violência contra a mulher
negra e as prerrogativas da educação popular freireana.
Tal trabalho ainda possui uma significância considerável à medida que trouxe
visibilidade ao debate sobre a efetividade da rede de proteção no que tange a mulher negra
que encontra-se em volta de uma dupla desigualdade: de gênero e de raça; em vista da
história desse segmento referente a formação social do Brasil. Assim trazer o foco essa
discussão possibilitou a emersão de várias problemáticas que precisam ser mais
aprofundadas e discutidas em todos os âmbitos da sociedade, principalmente no meio
acadêmico que se configura um espaço de pesquisa, debate e fomento de questionamento
que influencia de maneira considerável na desconstrução de estruturas discriminatórias e
conservadoras no meio da sociedade.
A pesquisa que originou este artigo é de natureza pura, abordagem qualitativa,
com objetivos exploratórios. Quanto ao delineamento, a pesquisa é bibliográfica e assume o
método dialético como direcionamento do exercício de pesquisar.
2 A DESIGUALDADE DE GÊNERO: REFLEXÕES A PARTIR DAS PARTICULARIDADES
DA MULHER NEGRA
O processo de formação da sociedade brasileira foi marcado pelo sentido
econômico, por meio da vinda dos portugueses e o estabelecimento de capitanias
hereditárias, que possibilitaram a extração e exploração das matérias-primas com o objetivo
de produzir riquezas para a Coroa, logo isso expressa, como aponta Silva (2014, p. 44) “os
indícios de uma relação de acumulação, em moldes capitalistas, baseada na profunda
exploração do trabalho escravo, própria da fase mercantil do capitalismo”. Desta forma a
dinâmica da acumulação primitiva do capital no período colonial brasileiro tinha seu foco no
acúmulo de riquezas derivadas da exploração da força de trabalho dos nativos e depois dos
negros trazidos da África.
Trata-se, portanto, de uma sociedade colonizada nos marcos do capitalismo
mercantil europeu e estruturada na grande propriedade rural, em que o
setor predominante foi a lavoura, inicialmente de açúcar e depois de café,
justificando-se a exploração do trabalho escravo pelo baixo custo de sua
mão de obra e, também, porque o colono não veio para trabalhar, mas
somente conduzir. (SILVA, 2014, p. 44).
Pinsky (2010, p. 23) aponta que “o negro foi portanto trazido para exercer o papel de
força de trabalho compulsória numa estrutura que estava se organizando em função da
grande lavoura”, assim a força de trabalho que sustentou toda a economia colonial era
apenas vista como “coisa”, ou seja, uma valorização do escravo enquanto mercadoria,
utilizadas para o usufruto dos senhores coloniais.
A escravidão no seu pior caráter, o homem reduzido a mais simples
expressão, pouco senão nada mais que o irracional ‘instrumento vivo de
trabalho’, o chamará Perdigão Malheiro. Nada mais se queira dele, e nada
mais se pediu e obteve que a sua força bruta e material. Esforço muscular
primário sob direção e açoite do feitor. PRADO JUNIOR (2011, p. 289)
Essa situação acentua-se mais ainda em relação à condição feminina, pois
historicamente as mulheres são relegadas a posição de submissão e subalternidade, estado
intensificado pela condição de servidão que as mulheres negras eram submetidas, pois
partindo do pressuposto de que a escravidão se caracteriza pela sujeição de um indivíduo
sobre o outro, a escrava torna-se propriedade do seu dono e seu trabalho pode ser obtido
até por meios forçados, Pinsky (2010). Desta forma além de exercerem o trabalho braçal,
ainda eram submetidas a serem utilizadas como meros instrumentos de satisfação das
necessidades do colonizador, por meio do abuso e exploração sexual.
A lógica da sociedade patriarcal e escravista parece delinear seus
contornos mais brutais no caso da mulher escrava. A apropriação do
conjunto das potencialidades dos escravos pelos senhores compreende, no
caso da escrava, a exploração sexual do seu corpo, que não lhe pertence
pela própria lógica da escravidão. (GIACOMINI, 1988, p. 164, apud
PACHECO, 2013, p. 57).
A autora contesta a tese de Gilberto Freyre referente à relação existente nas
relações entre os senhores e os escravos, visto que a relação de exploração são marcas
acentuadas da lógica patriarcal-escravista, pois a utilização das mulheres negras ia além do
fator econômico, pois o sistema escravista se apropria não só do trabalho da escrava como
ama de leite, cozinheira, arrumadeira, mucama dos filhos da família branca, mas se
apropriou do seu corpo como mercadoria/objeto, mas “investidas sexuais dos senhores”.
(PACHECO, 2013, p. 58).
É preciso compreender que não existe uma homogeneidade no ser mulher, pois a
situação da mulher não é singular, e tem manifestações diversas, dependendo do contexto
cultural específico e da posição social a qual ocupa na sociedade. Convém ressaltar que em
nenhum momento no decorrer da pesquisa, objetivou-se relativizar a violência contra a
mulher negra em detrimento da mulher branca, pois compreende-se que ambas sofrem sob
a opressão do patriarcado; porém o que pretende-se salientar é a necessidade do recorte de
gênero e raça, para demonstrar através de referenciais teóricos e dados estatísticos, o
elevando índice de situações relacionadas à violência doméstica contra as mulheres negras.
É dessa forma que pode se compreender por que as mulheres de origem
europeia eram obrigadas ao confinamento no espaço doméstico e a
submissão à rígida moral sexual católica, enquanto as indígenas e africanas
eram submetidas à violência sexual e à desumanização, vitimizadas pelo
chamado estupro colonial, cometido pelos homens brancos, portugueses e
espanhóis, contra as mulheres negras e indígenas da América latina.
(ARTICULAÇÃO DAS MULHERES BRASILEIRAS, 2011, p. 14).
Assim deve-se compreender a particularidade de cada segmento feminino
analisado que o processo de subalternidade da mulher negra foi intensificado pela sua
condição de escrava e privada a liberdade de usufruir anteriormente, gerando atualmente as
desigualdades que perduram e gerando certas exclusões que são fatores derivados da
persistência do machismo e racismo, Ribeiro (2008).
3 OS FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE DE GÊNERO E DA VIOLÊNCIA CONTRA A
MULHER
Quando se fala em desigualdade, pontua-se que há uma distinção entre certas
relações, precisamente a desigualdade assinalada é relacionada às questões de gênero,
aqui trabalhadas como relações sociais de sexo. As transformações pelas quais a sociedade
passa, alteram de maneira considerável as relações sociais entre os indivíduos e como elas
irão se estabelecer, pois as desigualdades que derivam da distinção entre homens e
mulheres têm relação direta com as bases materiais a qual nossa sociedade está envolta,
difundida através da cultura dominante que dita valores, costumes, comportamentos, modos
de pensar e de se expressar (CISNE, 2014).
Delphy 2009 apud CISNE, 2014, p. 93 pontua desigualdade de gênero como
“construção social dos valores, o masculino e o feminino são a criações culturais de uma
sociedade fundada, entre outras hierarquias, sobre uma hierarquia de gênero”. Assim a
sociabilidade capitalista vai criando estratégias ideológicas que tendem os interesses da
classe dominante que demarcam ainda mais essas desigualdades através da alienação, que
introduz na consciência dos indivíduos a naturalização dessas relações de exploração e
dominação.
Desta forma, a sujeição das mulheres a dominação masculina se inscreve na
normalidade dentro da sociedade, assim os papeis sociais são vistos como identitários, já
que a sociedade envolta na alienação espera ver cumpridas essas atribuições pelas
diferentes categorias de sexo, sendo delimitado à mulher a socialização dos filhos e o
cuidado do espaço doméstico (SAFFIOTI, 1987).
Essa desigualdade é pontuada por Engels (1984), nos seus estudos da teoria de
Morgan, como derivada da relação familiar criada pela própria sociabilidade burguesa,
provenientes das transformações geradas pela evolução dos meios de produção que
ocasionou uma modificação nas relações entre homens e mulheres, criando-se assim uma
subordinação e dominação feminina. O autor fundamenta tal teoria através dos estudos das
antigas sociedades primitivas, em que não havia distinção nem conflitos entre os sexos, em
vista que as mulheres tinham uma função central devido a sua importância relacionada à
reprodução dos herdeiros4.
No entanto, ao longo dos anos surgiram teses criticando essa linha de
pensamento, ao pontuarem que a opressão da mulher não se reduz apenas ao fator
econômico e as questões relacionadas à classe social e exploração. Conforme ressalta
4 Tal teoria aponta sobre a existência de sociedades matriarcais, onde as mulheres tinham um
domínio maior do que os homens devido a sua condição de reprodutoras. Tal teoria foi estudada
pelos antropólogos J.J. Bachofen (1861) e Lewis Morgan (1877) e reafirmada por Friedrich Engels
(1884) ao apontar que essa forma de organização social findou com o surgimento da propriedade
privada e a evolução das forças produtivas, emergindo o patriarcado e consequentemente a opressão
feminina.
DURMAGEAT (2012, p. 12) “em todos os estágios do desenvolvimento econômico e social e
mesmo nas sociedades mais igualitárias são encontrados exemplos reconhecidos de
dominação masculina”, e para desmistificar tais ideias foram estudados povos de sociedade
primitiva. Assim a autora acima referenciada traz elementos que demonstram como a
dominação masculina é compatível com uma estrutura social desprovida de classes, onde a
dominação masculina era expressa através de mutilações, castigos e agressões físicas das
mulheres devido a não cumprimento de seus papéis sexuais e sociais.
Essa desigualdade é reafirmada pelos teóricos clássicos, que em seus escritos
inferiorizam a figura feminina, assim Aristóteles afirma que:
A fêmea é fêmea em virtude de certa falta de qualidades. A mulher é mais vulnerável
a piedade. Ela chora com maior facilidade, é mais chegada à inveja, à luxúria e à
injúria; facilmente se deixa abater pelo desespero. É menos sanguínea do que o
homem. Tem menos pudor e menos ambição. É menos digna de confiança, mais
encabulada. Decide-se com mais dificuldade a ação. Tem menos necessidade de
alimentos. (ARISTÓTELES apud ALAMBERT, 1986, p. 2).
Vale mencionar os estudos de Rousseau (1995), ao fundamentar sua teoria das
desigualdades sociais de gênero considerando-as como provenientes da natureza e da
razão, assim por ocuparem o âmbito privado (doméstico) do cuidada da casa e dos filhos, as
mulheres não seriam aptas a ocupar o espaço público, tal pensamento fica bem claro
quando o filósofo aponta que:
Quando a mulher se queixa da injusta desigualdade que o homem impõe, não tem
razão; essa desigualdade não é uma instituição humana ou, pelo menos, obra do
preconceito, e sim da razão: cabe a quem a natureza encarregou do cuidado dos
filhos a responsabilidade disso perante o outro. (ROUSSEAU, 1995, p. 428).
Esse mesmo autor naturaliza as relações entre homens e mulheres ao apontar
“que a dominação das mulheres não foi porque os homens o quisessem, mas porque assim
o quer a natureza” (ROUSSEAU, 1995, p. 427), assim é perceptível que o mesmo atribui a
dominação masculina a causas naturais, desconsiderando a teia das relações sociais e
ideológicas que influenciam diretamente na formação dessa dominação, estando inscrita no
interior da sociedade a milênios e reproduzidas dentro da lógica da alienação desde a
infância, por meio dos valores passados ao crianças sobre o papel de cada sexo.
Essa subordinação é derivada as relações sociais inscritas às mulheres desde seu
nascimento, sendo perceptível no modo como a educação é diferenciada entre as meninas e
meninos, e como o entendimento é negligenciado as mulheres desde muito jovens, sendo
relegadas a elas apenas o conhecimento que as prepararam para o seu “destino” no âmbito
doméstico, assim eram-lhes passadas instruções de como ser uma agradável esposa,
expressando apenas sentimentos de abnegação, modéstia e temperança, o que resultava
na privação do conhecimento somente daquelas normas imposta pela sociedade.
(WOLLSTONECRAFT, 2015).
Esse sistema educacional apontado pela autora acima referenciada, instrui as
mulheres em seus papeis sociais que devem cumprir, construindo identidades que são
socialmente consolidadas e aceitas. Assim como podendo ser superada através de uma
educação transformadora, que não veja a mulher apenas com um ser relegado à esfera
privada, mas que possui a capacidade intelectual de assumir posições no interior do espaço
público e tornam-se agentes de transformação. Esses estereótipos criados em torno da
figura feminina, constroem no meio da sociedade arquétipos de homens e mulheres,
apontada por Saffioti (1987) como as características marcantes que toda mulher deve
expressar, como: emoção, delicadeza, e gentil e passiva; enquanto a dos homens devem
ser o comportamento agressivo, competitivo, forte, superior.
No contexto tupiniquim, a especificidades da desigualdade de gênero apresenta uma
clivagem marcada pela questão étnico racial. Logo através desse panorama é possível
observar como o cotidiano de sujeição e exploração que os povos africanos eram
submetidos no interior da sociedade brasileira colonial, reflete de maneira nítida o objetivo
da nossa colonização, e como através da exploração a séculos sofrido ainda reverbera na
sociedade atual através dos ranços preconceitos, discriminatórios e de marginalidade que
insiste em perdurar, independente da abolição formal da escravatura.
Essa situação acentua-se mais ainda em relação à condição feminina, pois
historicamente as mulheres são relegadas a posição de submissão e subalternidade, estado
intensificado pela condição de servidão que as mulheres negras eram submetidas, pois
partindo do pressuposto de que a escravidão se caracteriza pela sujeição de um indivíduo
sobre o outro, a escrava torna-se propriedade do seu dono e seu trabalho pode ser obtido
até por meios forçados, Pinsky (2010). Desta forma, além de exercerem o trabalho braçal,
ainda eram utilizadas como meros instrumentos de satisfação das necessidades do
colonizador, por meio do abuso e exploração sexual.
A lógica da sociedade patriarcal e escravista parece delinear seus contornos mais
brutais no caso da mulher escrava. A apropriação do conjunto das potencialidades
dos escravos pelos senhores compreende, no caso da escrava, a exploração sexual
do seu corpo, que não lhe pertence pela própria lógica da escravidão. (GIACOMINI,
1988, p. 164, apud PACHECO, 2013, p. 57).
A autora contesta a tese de Gilberto Freyre referente à relação existente nas relação
entre os senhores e os escravos, visto que a relação de exploração são marcas acentuadas
da lógica patriarcal-escravista, pois a utilização das mulheres negras ia além do fator
econômico, pois o sistema escravista se apropria não só do trabalho da escrava como ama
de leite, cozinheira, arrumadeira, mucama dos filhos da família branca, mas se apropriou do
seu corpo como mercadoria/objeto mas “investidas sexuais dos senhores”. (PACHECO,
2013, p. 58).
Enquanto na senzala as mulheres eram submetidas a diversos tipos de violências e
resistiam a eles; as mulheres da casa grande deveriam se dedicar integralmente a sua
família, sendo modelo de dedicação, obediência e subserviência em relação ao seu marido
e filhos, como ressalta D’Incao (2013, p. 229): “cada vez mais é reforçado a ideia de que ser
mulher é ser quase integralmente mãe dedicada e atenciosa, um ideal que só pode ser
plenamente atingido dentro da esfera familiar”. Assim viviam elas, sob o jugo do casamento
e a obediência devota ao marido, criando os herdeiros e cuidando da manutenção do lar. No
contexto da colônia o significado é reforçado um racismo patriarcal, que subalternizar tanto
as mulheres pela sua condição feminina, como também as mulheres negras pela sua
condição racial, como aponta Priore (2013, p. 30):
A soma dessa tradição portuguesa com a colonização agrária e escravista resultou
no chamado patriarcalismo brasileiro. Era ele que garantia a união entre parentes, a
obediência dos escravos e a influência política de um grupo familiar sobre os
demais. Tratava-se de uma grande família reunida em torno de um chefe, pai e
senhor forte e temido, que impunha sua lei e ordem nos domínios que lhe
pertenciam. Sob essa lei, a mulher tinha que se curvar.
Desta maneira é preciso compreender que não existe uma homogeneidade no
ser mulher, pois a situação da mulher não é singular, e tem manifestações diversas,
dependendo do contexto cultural específico e da posição social a qual ocupa na sociedade.
Convém ressaltar que em nenhum momento no decorrer da pesquisa, objetivou-se
relativizar a violência contra a mulher negra em detrimento da mulher branca, pois
compreende-se que ambas sofrem sob a opressão do patriarcado; porém o que pretende-se
salientar é a necessidade do recorte de gênero e raça, para demonstrar através de
referenciais teóricos e dados estatísticos, o elevando índice de situações relacionadas à
violência doméstica contra as mulheres negras.
4 AUTONOMIA E EDUCAÇÃO: FERRAMENTAS PARA A EFETIVIDADE DA REDE DE
ENFRENTAMENTO A VIOLENCIA DE GENERO CONTRA A MULHER NEGRA.
A rede de enfrentamento a violência contra a mulher é composta por um
arcabouço de políticas públicas forjadas no bojo da emergência do fenômeno que
extrapolou a ambiência doméstica/privada e ganhou visibilidade ao ser exposta na arena
pública e política. Todavia, uma rede de enfrentamento não é formada apenas com políticas
de “punição” de agressores “proteção” emergencial à vítima. A dimensão pedagógica se faz
necessária, inclusive para que se rompa com os processos de reprodução da violência
contra a mulher, principalmente contra a mulher negra.
Esta dimensão pedagógica pode ser suprida com as metodologias que bebem
na fonte da educação popular freireana. A educação popular surge na América Latina,
atrelada às organizações e lutas populares na década de 1960. Essa forma de educação
apresenta-se como prática política de transformação da realidade, por meio do saber crítico.
Diante das mudanças estruturais da sociedade na atualidade, faz-se necessário resgatar os
princípios e valores que norteiam essa forma de saber. De acordo com Batista (2012), são
elementos da educação popular: práxis, a conscientização, o diálogo, o conhecimento
popular, a hegemonia. A práxis como atividade cotidiana se entrelaça com a participação
política em sociedade, que, por conseguinte, tem ligação intrínseca com os processos de
conscientização individual e coletiva, partindo do diálogo e da troca de conhecimentos.
A educação popular tem Paulo Freire como um dos principais representantes, as
formulações do autor são de uma educação libertadora dos oprimidos e de transformação
social da realidade, por meio de um saber crítico ligado aos saberes populares. Essa
metodologia de ensino leva em consideração o respeito, a dignidade e autonomia do
educando, reconhece o homem como ser histórico. Nesse sentido, falar em educação
popular é falar em possibilidades de resistência e transformação social, em mobilizar as
massas na luta contra as desigualdades da condição humana, contra a forma de opressão
da sociedade capitalista.
Pereira (2007) aponta que existem essencialmente duas necessidades básicas
que devem ser concomitantemente satisfeitas para que todos os seres humanos possam
efetivamente realizar qualquer outro objetivo, são elas a saúde física e a autonomia. Com
essas necessidades satisfeitas de forma integral os seres humanos seriam capazes de lutar
por questões que extrapolam os limites dos mínimos sociais. “Saúde física, portanto, é a
necessidade básica, porque sem a provisão devida para satisfazê-la os homens estarão
impedidos inclusive de viver.” (PEREIRA, 2007, p. 69). A saúde física é alcançada por meio
de vários determinantes como alimentação, moradia, trabalho em condições favoráveis,
aspectos psicológicos, a ausência de doenças, etc. Já a autonomia configura-se como mais
complexa.
Por autonomia básica entendemos a capacidade do indivíduo de eleger objetivos e crenças, de valorá-los com discernimento e de pô-los em prática sem opressões. Isso se opõe a noção de autossuficiência do indivíduo perante as instituições coletivas, ou como querem os liberais, a mera ausência de constrangimentos sobre preferências individuais, incluindo no rol desses constrangimentos os direitos sociais que visam protegê-lo.
Falamos de uma autonomia que não descambe para o individualismo e o subjetivismo. (PEREIRA, 2007, p. 70).
A autonomia nessa perspectiva é a condição necessária para a construção da
emancipação humana, visto que essa categoria por si só tem uma ressalva de consciência
sobre seu lugar na sociedade, de forma a possibilitar uma ruptura com as condições que
oprimem e fazem das relações sociais um emaranhado de desigualdades, sociais, políticas
e econômicas.
A autonomia nessa perspectiva é a condição necessária para a construção da
emancipação humana, visto que essa categoria por si só tem uma ressalva de consciência
sobre seu lugar na sociedade, de forma a possibilitar uma ruptura com as condições que
oprimem e fazem das relações sociais um emaranhado de desigualdades, sociais, políticas
e econômicas. Por meio da análise de Antônio Gramsci e Potyara Pereira, que se constrói
uma reflexão sobre a educação como alcance da autonomia dos sujeitos, principalmente no
que se as massas.
Zatti (2007) explica que a concepção de autonomia em Freire tem um sentido
sócio-político-pedagógico, pois, à medida que o homem conquista a autonomia, este está se
libertando das situações de opressão. “A libertação a que não chegarão pelo acaso, mas
pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por
ela”. (FREIRE, 1983, apud ZATTI, 2007, p. 53). Essa prerrogativa deve ser levada em
consideração quando se trabalha enfrentamento a violência contra a mulher e contra a
mulher negra.
A partir do recorte étnico nossa análise histórica demonstra como a inserção do
provo negro na sociedade brasileira se deu de maneira a desconstruir as humanidades
tendo em vista o processo de escravidão. No caso da inserção da mulher negra a situação
se agrava pela presença do patriarcalismo nas entranhas da formação do povo brasileiro. A
escravidão foi, e é um processo de desumanização do sujeito, de descaracterização e
desconstrução cruel de identidades e, consequentemente um profundo processo de
alienação. Ao pensar o sistema de relações inerente à violência contra a mulher negra, não
podemos deixar de analisar tais fenômenos. Isso porque, para se tratar a dimensão
enfrentamento de uma forma eficaz, faz-se necessário a apreensão do que está na raiz da
questão.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A educação popular constitui-se medida profícua para a capacitação das classes
populares, pois suas metodologias guiam para um conhecimento crítico, permitindo a
construção de uma vontade coletiva por mudanças, indo de encontro à resistência. O
trabalho desvelou que os elementos da educação popular, assim como o projeto ético-
político do Serviço Social possuem compromisso com a transformação social. A valorização
do homem e dos saber popular são conceitos defendidos pela educação popular, e que
encaminham a uma necessária autonomia dos sujeitos.
O reconhecimento do racismo é importante na sociedade justamente para não nega-
lo nem ocultar o seu debate, e consequentemente a elaboração de estratégias relacionadas
ao enfrentamento de tal problemática - tanto no âmbito da rede de proteção como em
relação a educação - visto que a compreensão da diferença existente entre a violência
doméstica entre mulheres negras e não negras gera uma importante forma de pesquisa e
compreensão da realidade. A dimensão do enfrentamento a violência contra a mulher e ao
racismo apresenta várias frentes de embate, várias arenas que suscitam construções de
estratégias diversas e formas de mobilização de recursos.
REFERÊNCIAS
BAPTISTA, Myrian Veras. Desenvolvimento de Comunidades e estudos da integração:
do planejamento do desenvolvimento de Comunidade no planejamento do desenvolvimento global. São Paulo: Cortez e Moraes, 1976.
BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Brasília: Senado
Federal. 1988.
_________. Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher. Brasília: Presidência da República. 2007. Disponível em: <http://www.spm.gov.br>. Acesso em: 31 out 2018.
_________. Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, 1979. Disponível em: <http://plataformamulheres.org.pt/docs/PPDM-
CEDAW-pt.pdf>. Acesso em: 10 out 2018.
CISNE, Mirla. SANTOS, Silvana Matos Morais dos. Feminismo, Diversidade Sexual e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2018.
D’INCAO, Maria Angelo. Mulher e família burguesa. In: História das mulheres no Brasil,
Mary Del Priori (org). 10. Ed. 2ª reimpressão, São Paulo: Contexto, 2013.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada, e do Estado.
Civilização Brasileira: Rio de janeiro, 1984.
PACHECO. Ana Claudia Lemos. Mulher negra: afetividade e solidão. Coleção Temas Afro. Salvador: ÉDUFBA, 2013. 382 p. UFBA. Disponível em:
<http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/16794>. Acesso em: 19 out 2018.
PEREIRA, Potyara A. P. Necessidades Humanas: Subsídios à crítica dos mínimos sociais.
4. Ed. São Paulo: Cortez, 2007.
PINSKY, Jaime. A escravidão no Brasil. Editora Contexto; São Paulo, 2010.
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo:
companhia das letras, 2011.
SILVA JR, Hédio. Mulher e negra: necessidade de demandas judiciais específicas. In: As Mulheres e a legislação contra o racismo: Traduzindo a legislação com a perspectiva de gênero. Org. BARSTED, Leila Linhares. HERMANN, Jacqueline. MELLO, Maria Elvira
Vieira. Rio de Janeiro, Cepia, n.4, 2001.
ZATTI, Vicente. A educação e autonomia em Emanuel Kant e Paulo Freire. Porto
Alegre: EDPUCRS, 2007. PUCRS. Disponível em:
<http://www.pucrs.br/edipucrs/online/autonomiaeeducação.pdf>. Acesso em: 08 out 2018.