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GÊNERO, RACISMO E VIOLENCIA CONTRA A MULHER: notas sobre dimensões possíveis ao enfrentamento. Erica Vanessa Ramos Costa 1 Marta Costa Sena 2 Thainá Bastos Soares 3 Resumo Este trabalho traz considerações sobre as possibilidades de enfrentamento à violência contra a mulher, levando em consideração o recorte étnico que possui fundamentos na formação da sociedade brasileira. A pesquisa objetivou entender as especificidades desse sistema de relações reprodutor de violência contra a mulher negra e consequentemente buscar alternativas ao fortalecimento do enfrentamento à questão. A educação popular mostrou-se como uma possibilidade profícua a partir do que é concebido sobre a autonomia e pensamento crítico. Essas concepções se trabalhadas no bojo da execução de políticas públicas tornam- se ferramentas potencializadoras do enfrentamento a violência contra a mulher negra. Palavras-chaves: Gênero. Racismo. Políticas públicas. Educação Popular. ABSTRACT This paper presents considerations about the possibilities of facing violence against women, taking into account the ethnic clipping that has foundations in the formation of Brazilian society. The aim of the research was to understand the specificities of this system of reproductive relations of violence against black women and, consequently, to seek alternatives to strengthening the confrontation with the issue. Popular education has proved to be a profitable possibility from what is conceived about autonomy and critical thinking. These conceptions, if worked out in the context of the execution of public policies, become potential tools for coping with violence against black women. Keywords: Gender. Racism. Public policy. Popular education. 1 INTRODUÇÃO A história da humanidade é perpassada por confrontos entre classes, sexos e raças, compreender essas contradições é essencial para entender a profundidade da violência 1 Assistente Social, mestre em Políticas Públicas – PPGPP/UFMA. Doutoranda em Ciências Sociais- PPGCSoc/UFMA. Professora e Coordenadora do curso de Serviço Social Universidade CEUMA. E-mail: [email protected] 2 Graduanda em Serviço Social Universidade CEUMA. E-mail: [email protected] 3 Graduanda em Serviço Social Universidade CEUMA. E-mail: [email protected]

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GÊNERO, RACISMO E VIOLENCIA CONTRA A MULHER: notas sobre dimensões

possíveis ao enfrentamento.

Erica Vanessa Ramos Costa1

Marta Costa Sena2

Thainá Bastos Soares3

Resumo

Este trabalho traz considerações sobre as possibilidades de enfrentamento à violência contra a mulher, levando em consideração o recorte étnico que possui fundamentos na formação da sociedade brasileira. A pesquisa objetivou entender as especificidades desse sistema de relações reprodutor de violência contra a mulher negra e consequentemente buscar alternativas ao fortalecimento do enfrentamento à questão. A educação popular mostrou-se como uma possibilidade profícua a partir do que é concebido sobre a autonomia e pensamento crítico. Essas concepções se trabalhadas no bojo da execução de políticas públicas tornam-se ferramentas potencializadoras do enfrentamento a violência contra a mulher negra. Palavras-chaves: Gênero. Racismo. Políticas públicas. Educação Popular. ABSTRACT

This paper presents considerations about the possibilities of facing violence against women, taking into account the ethnic clipping that has foundations in the formation of Brazilian society. The aim of the research was to understand the specificities of this system of reproductive relations of violence against black women and, consequently, to seek alternatives to strengthening the confrontation with the issue. Popular education has proved to be a profitable possibility from what is conceived about autonomy and critical thinking. These conceptions, if worked out in the context of the execution of public policies, become potential tools for coping with violence against black women. Keywords: Gender. Racism. Public policy. Popular education.

1 INTRODUÇÃO

A história da humanidade é perpassada por confrontos entre classes, sexos e raças,

compreender essas contradições é essencial para entender a profundidade da violência

1 Assistente Social, mestre em Políticas Públicas – PPGPP/UFMA. Doutoranda em Ciências Sociais- PPGCSoc/UFMA. Professora e Coordenadora do curso de Serviço Social Universidade CEUMA. E-mail: [email protected] 2 Graduanda em Serviço Social Universidade CEUMA. E-mail: [email protected] 3 Graduanda em Serviço Social Universidade CEUMA. E-mail: [email protected]

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contra a mulher através da perspectiva étnico racial. A pesquisa realizada teve como

objetivo compreender as particularidades do sistema de proteção, através da análise da

rede de enfrentamento à violência contra a mulher que surgiu através da pressão do

movimento feminista que ampliou a discussão relacionada à violência doméstica que

acometia as mulheres principalmente no âmbito privado. Logo a rede configura-se através

da articulação de vários órgãos governamentais e não governamentais que buscam traçar

estratégias articuladas para promover o rompimento do ciclo de violência e estabelecer uma

sociedade mais igualitária para todas as mulheres.

No entanto, o fenômeno da violência contra a mulher manifestou uma particularidade

relacionado aos elevados índices de morte de mulheres negras na pesquisa realizada

recentemente pelo Atlas da Violência (2018), exigindo dessa forma análise crítica sobre a

permanência dessa violação e o aumento das estatísticas quando é relacionada a esse

público feminino, mesmo em meio a vigência da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) e o

estruturado sistema de proteção, sendo estas umas das motivações que despertou certa

inquietação e justificou o interesse pela pesquisa. Uma vez que tais discussões permeiam o

cotidiano profissional das assistentes sociais que atuam diretamente no enfrentamento a

violência doméstica dentro dessas instituições, apresentando grande relevância para a

categoria profissional uma vez que o assistente social trabalha diretamente com as

multifacetadas expressões da questão social, entrando nesse grupo a violência contra a

mulher. Objetiva-se construir uma relação entre o enfrentamento a violência contra a mulher

negra e as prerrogativas da educação popular freireana.

Tal trabalho ainda possui uma significância considerável à medida que trouxe

visibilidade ao debate sobre a efetividade da rede de proteção no que tange a mulher negra

que encontra-se em volta de uma dupla desigualdade: de gênero e de raça; em vista da

história desse segmento referente a formação social do Brasil. Assim trazer o foco essa

discussão possibilitou a emersão de várias problemáticas que precisam ser mais

aprofundadas e discutidas em todos os âmbitos da sociedade, principalmente no meio

acadêmico que se configura um espaço de pesquisa, debate e fomento de questionamento

que influencia de maneira considerável na desconstrução de estruturas discriminatórias e

conservadoras no meio da sociedade.

A pesquisa que originou este artigo é de natureza pura, abordagem qualitativa,

com objetivos exploratórios. Quanto ao delineamento, a pesquisa é bibliográfica e assume o

método dialético como direcionamento do exercício de pesquisar.

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2 A DESIGUALDADE DE GÊNERO: REFLEXÕES A PARTIR DAS PARTICULARIDADES

DA MULHER NEGRA

O processo de formação da sociedade brasileira foi marcado pelo sentido

econômico, por meio da vinda dos portugueses e o estabelecimento de capitanias

hereditárias, que possibilitaram a extração e exploração das matérias-primas com o objetivo

de produzir riquezas para a Coroa, logo isso expressa, como aponta Silva (2014, p. 44) “os

indícios de uma relação de acumulação, em moldes capitalistas, baseada na profunda

exploração do trabalho escravo, própria da fase mercantil do capitalismo”. Desta forma a

dinâmica da acumulação primitiva do capital no período colonial brasileiro tinha seu foco no

acúmulo de riquezas derivadas da exploração da força de trabalho dos nativos e depois dos

negros trazidos da África.

Trata-se, portanto, de uma sociedade colonizada nos marcos do capitalismo

mercantil europeu e estruturada na grande propriedade rural, em que o

setor predominante foi a lavoura, inicialmente de açúcar e depois de café,

justificando-se a exploração do trabalho escravo pelo baixo custo de sua

mão de obra e, também, porque o colono não veio para trabalhar, mas

somente conduzir. (SILVA, 2014, p. 44).

Pinsky (2010, p. 23) aponta que “o negro foi portanto trazido para exercer o papel de

força de trabalho compulsória numa estrutura que estava se organizando em função da

grande lavoura”, assim a força de trabalho que sustentou toda a economia colonial era

apenas vista como “coisa”, ou seja, uma valorização do escravo enquanto mercadoria,

utilizadas para o usufruto dos senhores coloniais.

A escravidão no seu pior caráter, o homem reduzido a mais simples

expressão, pouco senão nada mais que o irracional ‘instrumento vivo de

trabalho’, o chamará Perdigão Malheiro. Nada mais se queira dele, e nada

mais se pediu e obteve que a sua força bruta e material. Esforço muscular

primário sob direção e açoite do feitor. PRADO JUNIOR (2011, p. 289)

Essa situação acentua-se mais ainda em relação à condição feminina, pois

historicamente as mulheres são relegadas a posição de submissão e subalternidade, estado

intensificado pela condição de servidão que as mulheres negras eram submetidas, pois

partindo do pressuposto de que a escravidão se caracteriza pela sujeição de um indivíduo

sobre o outro, a escrava torna-se propriedade do seu dono e seu trabalho pode ser obtido

até por meios forçados, Pinsky (2010). Desta forma além de exercerem o trabalho braçal,

ainda eram submetidas a serem utilizadas como meros instrumentos de satisfação das

necessidades do colonizador, por meio do abuso e exploração sexual.

A lógica da sociedade patriarcal e escravista parece delinear seus

contornos mais brutais no caso da mulher escrava. A apropriação do

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conjunto das potencialidades dos escravos pelos senhores compreende, no

caso da escrava, a exploração sexual do seu corpo, que não lhe pertence

pela própria lógica da escravidão. (GIACOMINI, 1988, p. 164, apud

PACHECO, 2013, p. 57).

A autora contesta a tese de Gilberto Freyre referente à relação existente nas

relações entre os senhores e os escravos, visto que a relação de exploração são marcas

acentuadas da lógica patriarcal-escravista, pois a utilização das mulheres negras ia além do

fator econômico, pois o sistema escravista se apropria não só do trabalho da escrava como

ama de leite, cozinheira, arrumadeira, mucama dos filhos da família branca, mas se

apropriou do seu corpo como mercadoria/objeto, mas “investidas sexuais dos senhores”.

(PACHECO, 2013, p. 58).

É preciso compreender que não existe uma homogeneidade no ser mulher, pois a

situação da mulher não é singular, e tem manifestações diversas, dependendo do contexto

cultural específico e da posição social a qual ocupa na sociedade. Convém ressaltar que em

nenhum momento no decorrer da pesquisa, objetivou-se relativizar a violência contra a

mulher negra em detrimento da mulher branca, pois compreende-se que ambas sofrem sob

a opressão do patriarcado; porém o que pretende-se salientar é a necessidade do recorte de

gênero e raça, para demonstrar através de referenciais teóricos e dados estatísticos, o

elevando índice de situações relacionadas à violência doméstica contra as mulheres negras.

É dessa forma que pode se compreender por que as mulheres de origem

europeia eram obrigadas ao confinamento no espaço doméstico e a

submissão à rígida moral sexual católica, enquanto as indígenas e africanas

eram submetidas à violência sexual e à desumanização, vitimizadas pelo

chamado estupro colonial, cometido pelos homens brancos, portugueses e

espanhóis, contra as mulheres negras e indígenas da América latina.

(ARTICULAÇÃO DAS MULHERES BRASILEIRAS, 2011, p. 14).

Assim deve-se compreender a particularidade de cada segmento feminino

analisado que o processo de subalternidade da mulher negra foi intensificado pela sua

condição de escrava e privada a liberdade de usufruir anteriormente, gerando atualmente as

desigualdades que perduram e gerando certas exclusões que são fatores derivados da

persistência do machismo e racismo, Ribeiro (2008).

3 OS FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE DE GÊNERO E DA VIOLÊNCIA CONTRA A

MULHER

Quando se fala em desigualdade, pontua-se que há uma distinção entre certas

relações, precisamente a desigualdade assinalada é relacionada às questões de gênero,

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aqui trabalhadas como relações sociais de sexo. As transformações pelas quais a sociedade

passa, alteram de maneira considerável as relações sociais entre os indivíduos e como elas

irão se estabelecer, pois as desigualdades que derivam da distinção entre homens e

mulheres têm relação direta com as bases materiais a qual nossa sociedade está envolta,

difundida através da cultura dominante que dita valores, costumes, comportamentos, modos

de pensar e de se expressar (CISNE, 2014).

Delphy 2009 apud CISNE, 2014, p. 93 pontua desigualdade de gênero como

“construção social dos valores, o masculino e o feminino são a criações culturais de uma

sociedade fundada, entre outras hierarquias, sobre uma hierarquia de gênero”. Assim a

sociabilidade capitalista vai criando estratégias ideológicas que tendem os interesses da

classe dominante que demarcam ainda mais essas desigualdades através da alienação, que

introduz na consciência dos indivíduos a naturalização dessas relações de exploração e

dominação.

Desta forma, a sujeição das mulheres a dominação masculina se inscreve na

normalidade dentro da sociedade, assim os papeis sociais são vistos como identitários, já

que a sociedade envolta na alienação espera ver cumpridas essas atribuições pelas

diferentes categorias de sexo, sendo delimitado à mulher a socialização dos filhos e o

cuidado do espaço doméstico (SAFFIOTI, 1987).

Essa desigualdade é pontuada por Engels (1984), nos seus estudos da teoria de

Morgan, como derivada da relação familiar criada pela própria sociabilidade burguesa,

provenientes das transformações geradas pela evolução dos meios de produção que

ocasionou uma modificação nas relações entre homens e mulheres, criando-se assim uma

subordinação e dominação feminina. O autor fundamenta tal teoria através dos estudos das

antigas sociedades primitivas, em que não havia distinção nem conflitos entre os sexos, em

vista que as mulheres tinham uma função central devido a sua importância relacionada à

reprodução dos herdeiros4.

No entanto, ao longo dos anos surgiram teses criticando essa linha de

pensamento, ao pontuarem que a opressão da mulher não se reduz apenas ao fator

econômico e as questões relacionadas à classe social e exploração. Conforme ressalta

4 Tal teoria aponta sobre a existência de sociedades matriarcais, onde as mulheres tinham um

domínio maior do que os homens devido a sua condição de reprodutoras. Tal teoria foi estudada

pelos antropólogos J.J. Bachofen (1861) e Lewis Morgan (1877) e reafirmada por Friedrich Engels

(1884) ao apontar que essa forma de organização social findou com o surgimento da propriedade

privada e a evolução das forças produtivas, emergindo o patriarcado e consequentemente a opressão

feminina.

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DURMAGEAT (2012, p. 12) “em todos os estágios do desenvolvimento econômico e social e

mesmo nas sociedades mais igualitárias são encontrados exemplos reconhecidos de

dominação masculina”, e para desmistificar tais ideias foram estudados povos de sociedade

primitiva. Assim a autora acima referenciada traz elementos que demonstram como a

dominação masculina é compatível com uma estrutura social desprovida de classes, onde a

dominação masculina era expressa através de mutilações, castigos e agressões físicas das

mulheres devido a não cumprimento de seus papéis sexuais e sociais.

Essa desigualdade é reafirmada pelos teóricos clássicos, que em seus escritos

inferiorizam a figura feminina, assim Aristóteles afirma que:

A fêmea é fêmea em virtude de certa falta de qualidades. A mulher é mais vulnerável

a piedade. Ela chora com maior facilidade, é mais chegada à inveja, à luxúria e à

injúria; facilmente se deixa abater pelo desespero. É menos sanguínea do que o

homem. Tem menos pudor e menos ambição. É menos digna de confiança, mais

encabulada. Decide-se com mais dificuldade a ação. Tem menos necessidade de

alimentos. (ARISTÓTELES apud ALAMBERT, 1986, p. 2).

Vale mencionar os estudos de Rousseau (1995), ao fundamentar sua teoria das

desigualdades sociais de gênero considerando-as como provenientes da natureza e da

razão, assim por ocuparem o âmbito privado (doméstico) do cuidada da casa e dos filhos, as

mulheres não seriam aptas a ocupar o espaço público, tal pensamento fica bem claro

quando o filósofo aponta que:

Quando a mulher se queixa da injusta desigualdade que o homem impõe, não tem

razão; essa desigualdade não é uma instituição humana ou, pelo menos, obra do

preconceito, e sim da razão: cabe a quem a natureza encarregou do cuidado dos

filhos a responsabilidade disso perante o outro. (ROUSSEAU, 1995, p. 428).

Esse mesmo autor naturaliza as relações entre homens e mulheres ao apontar

“que a dominação das mulheres não foi porque os homens o quisessem, mas porque assim

o quer a natureza” (ROUSSEAU, 1995, p. 427), assim é perceptível que o mesmo atribui a

dominação masculina a causas naturais, desconsiderando a teia das relações sociais e

ideológicas que influenciam diretamente na formação dessa dominação, estando inscrita no

interior da sociedade a milênios e reproduzidas dentro da lógica da alienação desde a

infância, por meio dos valores passados ao crianças sobre o papel de cada sexo.

Essa subordinação é derivada as relações sociais inscritas às mulheres desde seu

nascimento, sendo perceptível no modo como a educação é diferenciada entre as meninas e

meninos, e como o entendimento é negligenciado as mulheres desde muito jovens, sendo

relegadas a elas apenas o conhecimento que as prepararam para o seu “destino” no âmbito

doméstico, assim eram-lhes passadas instruções de como ser uma agradável esposa,

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expressando apenas sentimentos de abnegação, modéstia e temperança, o que resultava

na privação do conhecimento somente daquelas normas imposta pela sociedade.

(WOLLSTONECRAFT, 2015).

Esse sistema educacional apontado pela autora acima referenciada, instrui as

mulheres em seus papeis sociais que devem cumprir, construindo identidades que são

socialmente consolidadas e aceitas. Assim como podendo ser superada através de uma

educação transformadora, que não veja a mulher apenas com um ser relegado à esfera

privada, mas que possui a capacidade intelectual de assumir posições no interior do espaço

público e tornam-se agentes de transformação. Esses estereótipos criados em torno da

figura feminina, constroem no meio da sociedade arquétipos de homens e mulheres,

apontada por Saffioti (1987) como as características marcantes que toda mulher deve

expressar, como: emoção, delicadeza, e gentil e passiva; enquanto a dos homens devem

ser o comportamento agressivo, competitivo, forte, superior.

No contexto tupiniquim, a especificidades da desigualdade de gênero apresenta uma

clivagem marcada pela questão étnico racial. Logo através desse panorama é possível

observar como o cotidiano de sujeição e exploração que os povos africanos eram

submetidos no interior da sociedade brasileira colonial, reflete de maneira nítida o objetivo

da nossa colonização, e como através da exploração a séculos sofrido ainda reverbera na

sociedade atual através dos ranços preconceitos, discriminatórios e de marginalidade que

insiste em perdurar, independente da abolição formal da escravatura.

Essa situação acentua-se mais ainda em relação à condição feminina, pois

historicamente as mulheres são relegadas a posição de submissão e subalternidade, estado

intensificado pela condição de servidão que as mulheres negras eram submetidas, pois

partindo do pressuposto de que a escravidão se caracteriza pela sujeição de um indivíduo

sobre o outro, a escrava torna-se propriedade do seu dono e seu trabalho pode ser obtido

até por meios forçados, Pinsky (2010). Desta forma, além de exercerem o trabalho braçal,

ainda eram utilizadas como meros instrumentos de satisfação das necessidades do

colonizador, por meio do abuso e exploração sexual.

A lógica da sociedade patriarcal e escravista parece delinear seus contornos mais

brutais no caso da mulher escrava. A apropriação do conjunto das potencialidades

dos escravos pelos senhores compreende, no caso da escrava, a exploração sexual

do seu corpo, que não lhe pertence pela própria lógica da escravidão. (GIACOMINI,

1988, p. 164, apud PACHECO, 2013, p. 57).

A autora contesta a tese de Gilberto Freyre referente à relação existente nas relação

entre os senhores e os escravos, visto que a relação de exploração são marcas acentuadas

da lógica patriarcal-escravista, pois a utilização das mulheres negras ia além do fator

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econômico, pois o sistema escravista se apropria não só do trabalho da escrava como ama

de leite, cozinheira, arrumadeira, mucama dos filhos da família branca, mas se apropriou do

seu corpo como mercadoria/objeto mas “investidas sexuais dos senhores”. (PACHECO,

2013, p. 58).

Enquanto na senzala as mulheres eram submetidas a diversos tipos de violências e

resistiam a eles; as mulheres da casa grande deveriam se dedicar integralmente a sua

família, sendo modelo de dedicação, obediência e subserviência em relação ao seu marido

e filhos, como ressalta D’Incao (2013, p. 229): “cada vez mais é reforçado a ideia de que ser

mulher é ser quase integralmente mãe dedicada e atenciosa, um ideal que só pode ser

plenamente atingido dentro da esfera familiar”. Assim viviam elas, sob o jugo do casamento

e a obediência devota ao marido, criando os herdeiros e cuidando da manutenção do lar. No

contexto da colônia o significado é reforçado um racismo patriarcal, que subalternizar tanto

as mulheres pela sua condição feminina, como também as mulheres negras pela sua

condição racial, como aponta Priore (2013, p. 30):

A soma dessa tradição portuguesa com a colonização agrária e escravista resultou

no chamado patriarcalismo brasileiro. Era ele que garantia a união entre parentes, a

obediência dos escravos e a influência política de um grupo familiar sobre os

demais. Tratava-se de uma grande família reunida em torno de um chefe, pai e

senhor forte e temido, que impunha sua lei e ordem nos domínios que lhe

pertenciam. Sob essa lei, a mulher tinha que se curvar.

Desta maneira é preciso compreender que não existe uma homogeneidade no

ser mulher, pois a situação da mulher não é singular, e tem manifestações diversas,

dependendo do contexto cultural específico e da posição social a qual ocupa na sociedade.

Convém ressaltar que em nenhum momento no decorrer da pesquisa, objetivou-se

relativizar a violência contra a mulher negra em detrimento da mulher branca, pois

compreende-se que ambas sofrem sob a opressão do patriarcado; porém o que pretende-se

salientar é a necessidade do recorte de gênero e raça, para demonstrar através de

referenciais teóricos e dados estatísticos, o elevando índice de situações relacionadas à

violência doméstica contra as mulheres negras.

4 AUTONOMIA E EDUCAÇÃO: FERRAMENTAS PARA A EFETIVIDADE DA REDE DE

ENFRENTAMENTO A VIOLENCIA DE GENERO CONTRA A MULHER NEGRA.

A rede de enfrentamento a violência contra a mulher é composta por um

arcabouço de políticas públicas forjadas no bojo da emergência do fenômeno que

extrapolou a ambiência doméstica/privada e ganhou visibilidade ao ser exposta na arena

pública e política. Todavia, uma rede de enfrentamento não é formada apenas com políticas

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de “punição” de agressores “proteção” emergencial à vítima. A dimensão pedagógica se faz

necessária, inclusive para que se rompa com os processos de reprodução da violência

contra a mulher, principalmente contra a mulher negra.

Esta dimensão pedagógica pode ser suprida com as metodologias que bebem

na fonte da educação popular freireana. A educação popular surge na América Latina,

atrelada às organizações e lutas populares na década de 1960. Essa forma de educação

apresenta-se como prática política de transformação da realidade, por meio do saber crítico.

Diante das mudanças estruturais da sociedade na atualidade, faz-se necessário resgatar os

princípios e valores que norteiam essa forma de saber. De acordo com Batista (2012), são

elementos da educação popular: práxis, a conscientização, o diálogo, o conhecimento

popular, a hegemonia. A práxis como atividade cotidiana se entrelaça com a participação

política em sociedade, que, por conseguinte, tem ligação intrínseca com os processos de

conscientização individual e coletiva, partindo do diálogo e da troca de conhecimentos.

A educação popular tem Paulo Freire como um dos principais representantes, as

formulações do autor são de uma educação libertadora dos oprimidos e de transformação

social da realidade, por meio de um saber crítico ligado aos saberes populares. Essa

metodologia de ensino leva em consideração o respeito, a dignidade e autonomia do

educando, reconhece o homem como ser histórico. Nesse sentido, falar em educação

popular é falar em possibilidades de resistência e transformação social, em mobilizar as

massas na luta contra as desigualdades da condição humana, contra a forma de opressão

da sociedade capitalista.

Pereira (2007) aponta que existem essencialmente duas necessidades básicas

que devem ser concomitantemente satisfeitas para que todos os seres humanos possam

efetivamente realizar qualquer outro objetivo, são elas a saúde física e a autonomia. Com

essas necessidades satisfeitas de forma integral os seres humanos seriam capazes de lutar

por questões que extrapolam os limites dos mínimos sociais. “Saúde física, portanto, é a

necessidade básica, porque sem a provisão devida para satisfazê-la os homens estarão

impedidos inclusive de viver.” (PEREIRA, 2007, p. 69). A saúde física é alcançada por meio

de vários determinantes como alimentação, moradia, trabalho em condições favoráveis,

aspectos psicológicos, a ausência de doenças, etc. Já a autonomia configura-se como mais

complexa.

Por autonomia básica entendemos a capacidade do indivíduo de eleger objetivos e crenças, de valorá-los com discernimento e de pô-los em prática sem opressões. Isso se opõe a noção de autossuficiência do indivíduo perante as instituições coletivas, ou como querem os liberais, a mera ausência de constrangimentos sobre preferências individuais, incluindo no rol desses constrangimentos os direitos sociais que visam protegê-lo.

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Falamos de uma autonomia que não descambe para o individualismo e o subjetivismo. (PEREIRA, 2007, p. 70).

A autonomia nessa perspectiva é a condição necessária para a construção da

emancipação humana, visto que essa categoria por si só tem uma ressalva de consciência

sobre seu lugar na sociedade, de forma a possibilitar uma ruptura com as condições que

oprimem e fazem das relações sociais um emaranhado de desigualdades, sociais, políticas

e econômicas.

A autonomia nessa perspectiva é a condição necessária para a construção da

emancipação humana, visto que essa categoria por si só tem uma ressalva de consciência

sobre seu lugar na sociedade, de forma a possibilitar uma ruptura com as condições que

oprimem e fazem das relações sociais um emaranhado de desigualdades, sociais, políticas

e econômicas. Por meio da análise de Antônio Gramsci e Potyara Pereira, que se constrói

uma reflexão sobre a educação como alcance da autonomia dos sujeitos, principalmente no

que se as massas.

Zatti (2007) explica que a concepção de autonomia em Freire tem um sentido

sócio-político-pedagógico, pois, à medida que o homem conquista a autonomia, este está se

libertando das situações de opressão. “A libertação a que não chegarão pelo acaso, mas

pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por

ela”. (FREIRE, 1983, apud ZATTI, 2007, p. 53). Essa prerrogativa deve ser levada em

consideração quando se trabalha enfrentamento a violência contra a mulher e contra a

mulher negra.

A partir do recorte étnico nossa análise histórica demonstra como a inserção do

provo negro na sociedade brasileira se deu de maneira a desconstruir as humanidades

tendo em vista o processo de escravidão. No caso da inserção da mulher negra a situação

se agrava pela presença do patriarcalismo nas entranhas da formação do povo brasileiro. A

escravidão foi, e é um processo de desumanização do sujeito, de descaracterização e

desconstrução cruel de identidades e, consequentemente um profundo processo de

alienação. Ao pensar o sistema de relações inerente à violência contra a mulher negra, não

podemos deixar de analisar tais fenômenos. Isso porque, para se tratar a dimensão

enfrentamento de uma forma eficaz, faz-se necessário a apreensão do que está na raiz da

questão.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A educação popular constitui-se medida profícua para a capacitação das classes

populares, pois suas metodologias guiam para um conhecimento crítico, permitindo a

construção de uma vontade coletiva por mudanças, indo de encontro à resistência. O

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trabalho desvelou que os elementos da educação popular, assim como o projeto ético-

político do Serviço Social possuem compromisso com a transformação social. A valorização

do homem e dos saber popular são conceitos defendidos pela educação popular, e que

encaminham a uma necessária autonomia dos sujeitos.

O reconhecimento do racismo é importante na sociedade justamente para não nega-

lo nem ocultar o seu debate, e consequentemente a elaboração de estratégias relacionadas

ao enfrentamento de tal problemática - tanto no âmbito da rede de proteção como em

relação a educação - visto que a compreensão da diferença existente entre a violência

doméstica entre mulheres negras e não negras gera uma importante forma de pesquisa e

compreensão da realidade. A dimensão do enfrentamento a violência contra a mulher e ao

racismo apresenta várias frentes de embate, várias arenas que suscitam construções de

estratégias diversas e formas de mobilização de recursos.

REFERÊNCIAS

BAPTISTA, Myrian Veras. Desenvolvimento de Comunidades e estudos da integração:

do planejamento do desenvolvimento de Comunidade no planejamento do desenvolvimento global. São Paulo: Cortez e Moraes, 1976.

BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Brasília: Senado

Federal. 1988.

_________. Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher. Brasília: Presidência da República. 2007. Disponível em: <http://www.spm.gov.br>. Acesso em: 31 out 2018.

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