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    UIVERSIDADE DE SO PAULOFaculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Departamento de Cincia Poltica

    Uma teoria solidarista das Intervenes Humanitrias: o dilema de ordem ejustia na obra Saving Strangers de Nicholas Wheeler

    Adele Mara Alves de Godoy

    Trabalho destinado ao V Simpsio de Ps-Graduandos em Cincia Poltica da USP.

    rea de Relaes Internacionais.

    So Paulo, 15 de Junho de 2008.

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    RESUMO:

    Esta proposta de trabalho tem como principal objetivo apresentar a concepo de uma

    teoria solidarista da interveno humanitria a partir da obra Saving Strangers (2002)

    de Nicholas Wheeler, um dos principais expoentes da reflexo sobre a interveno

    humanitria segundo uma tica poltico-normativa. O dilema entre ordem e justia,

    intrinsecamente presente nas intervenes humanitrias, o fator que propulsiona toda a

    anlise da obra. Para tanto, Wheeler investiga no perodo da Guerra Fria e nos anos

    subseqentes ao fim do contexto de bipolaridade, o quanto os Estados tm reconhecido

    tais intervenes como uma exceo legtima s regras de soberania, no-interveno e

    no-uso da fora.

    PALAVRAS-CHAVE:Interveno Humanitria - Ordem Justia Solidarismo

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    1. Introduo

    a base dos direitos do indivduo e dos direitos dos povos radica-se umadimenso de soberania nacional que reside em toda a humanidade eproporciona a todas as pessoas um legtimo envolvimento em questes queafetam o mundo em geral.

    Boutros Boutros-Ghali, 1992.

    A epgrafe acima um excerto do pargrafo 17 da Agenda para a Paz,documento no qual o ento secretrio-geral das Naes Unidas Boutros Boutros-Ghali

    desloca o Estado como sujeito da soberania e estabelece o indivduo como esse novo

    sujeito. Sua afirmao parecia indicar que o tempo da soberania absoluta havia chegado

    ao fim. Somado a isso, o texto de Boutros-Ghali indicava tambm o reconhecimento,

    mesmo que implicitamente, da legitimidade das intervenes humanitrias1, sob a gide

    das Naes Unidas, nos Estados onde os cidados nacionais estivessem sendo

    submetidos a violaes e crueldades diversas e necessitassem da proteo de seus

    direitos mais fundamentais.

    A afirmao do ento secretrio-geral da Organizao das Naes Unidas

    (ONU) inscrevia-se claramente no processo de mudana do contexto normativo de

    proteo aos direitos individuais, iniciado com o trmino da II Guerra Mundial e

    consolidado nos anos 1990, aps o fim da Guerra Fria. Nesse sentido, destacam-se as

    obrigaes legais internacionais provenientes do sistema das Naes Unidas, o qual

    estabeleceu limites ao tratamento dos Estados para com seus cidados. Pela primeira

    vez na histria da sociedade internacional moderna, a conduta domstica dos governos

    era exposta ao escrutnio de outros governos, organizaes no-governamentais (ONGs)

    e organizaes internacionais.

    Embora novos compromissos normativos em relao garantia e promoo dos

    direitos humanos tenham sido assumidos, a fraqueza do mecanismo de

    1Esta anlise parte da concepo clssica de interveno humanitria definida por Hedley Bull (1984) eJohn Vincent (1974) da seguinte forma: interference by a sovereign state, or group of such states, or

    international organization, involving the threat or use of force or some other means of duress, in thedomestic jurisdiction of an independent state against the will or wishes of its government. (JACKSON,2000, p. 250)

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    aplicao/coero desses novos compromissos possibilitou que as intervenes pela

    fora fossem acionadas, com maior freqncia e vigor, diante desse novo contexto,

    como meio de coero s normas humanitrias globais.

    Sendo assim, ao mesmo tempo em que deixava evidente o papel que a

    organizao pretendia assumir a partir da dcada de 1990 para com esses novos

    compromissos normativos, Boutros-Ghali continuava a afirmar, no mesmo texto An

    agenda for Peace - que a ONU uma organizao baseada em Estados soberanos e

    que, como estabelece a prpria carta da organizao, guiada segundo os princpios de

    soberania, no-interveno e autodeterminao. O novo contexto normativo que

    colocava o elemento humanitrio como justificativa legtima para intervir militarmente

    autorizou o recurso s chamadas intervenes humanitrias sob os auspcios do sistema

    ONU. Contudo, tal desenvolvimento passou a coexistir em forte tenso com os

    princpios tradicionais sobre o qual o sistema internacional foi edificado, em especial o

    princpio da soberania estatal.

    Diante disso, a aparente contradio nas afirmaes de Boutros-Ghali

    exemplifica a dificuldade de conciliar ordem - calcada no princpio de soberania

    territorial - e justia, representada pela pretenso universalizante dos direitos humanos,

    como poltica internacional em qualquer lugar do globo, sem a preservao das

    fronteiras nacionais.

    A tenso latente entre ordem e justia, emblematicamente ilustrada nas

    intervenes humanitrias, a matriz das reflexes dessa proposta de trabalho.

    Pretende-se, portanto, como principal objetivo desta proposta, analisar o tratamento

    normativo desse dilema, por meio da reflexo sobre as intervenes humanitrias, na

    formulao de Nicholas Wheeler, representante da concepo solidarista da Escola

    Inglesa de Relaes Internacionais.

    A escolha dessa abordagem justifica-se na medida em que a presente propostaconsidera que o dilema entre ordem e justia, suscitado pelas intervenes humanitrias,

    enriquecedoramente tratado sob a perspectiva normativa. Visto que o problema em

    questo no foi e no parece estar passvel de resoluo na realidade emprica, as

    possibilidades de reflexo sobre o dever ser se tornam ainda mais instigantes.

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    1.1. Saving Strangers: para uma teoria solidarista das intervenes humanitrias

    O dilema perene do que fazer com os cidados estrangeiros que so submetidos

    s violaes e crueldades mais diversas por seus governos em seus prprios Estados o

    ponto de partida para a reflexo e construo terica de Nicholas Wheeler na obra

    Saving Strangers. Escrita nos ltimos dois anos da dcada de 1990, perodo

    notadamente reconhecido como a dcada das intervenes humanitrias, a dvida entre

    o que ele chama de doing something, isto , salvar os no-cidados nacionais que

    esto enfrentando o extremo e provocar, ao mesmo tempo, a acusao de interferncia

    nos assuntos internos de outro Estado; e, o doing nothing, ou seja, sujeitar-se

    acusao de indiferena moral, esteve acentuadamente presente nos casos de Iraque

    (1992), Somlia (1992), Ruanda (1994), Bsnia (1993-5) e Kosovo (1998-9).

    O questionamento de quanto as intervenes humanitrias tornaram-se prticas

    legtimas na sociedade internacional, tendo em vista o perodo de Guerra Fria e seus

    anos subseqentes at a dcada de 1990 impulsionou a construo de um paradigma

    solidarista disposto a pensar as intervenes humanitrias normativamente. Nicholas

    Wheeler construiu, desse modo, uma teoria solidarista das intervenes humanitrias,

    guiada pela investigao do quanto os Estados passaram a reconhecer as intervenes

    humanitrias, nesse perodo histrico-temporal, como exceo legtima s regras de

    soberania, no-interveno e no-uso da fora.

    A contribuio e a influncia das idias grocianas na definio de sociedade

    internacional na abordagem da Escola Inglesa, especialmente tratada pelos solidaristas

    marca o incio de nossa apresentao dessa vertente de pensamento terico da Escola

    Inglesa, tratada aqui por meio do trabalho de Nicholas Wheeler, em Saving Strangers

    (2002).As origens da doutrina da interveno humanitria vm do sculo XVII do

    advogado alemo Hugo Grotius, que considerava que os direitos da soberania poderiam

    ser limitados pelos princpios de humanidade. Por afirmaes como if a

    tyrant...practices atrocities towards his subjects, which no Just man can approve, the

    right of human social connection is not cut off in such a caseIt would not follow that

    others may not take up arms for them (GROTIUS apud WHEELER, 2002, p. 45),

    Grotius considerado o pai da teoria solidarista da sociedade internacional.

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    Foi a partir de seu legado que a ordem da sociedade internacional pde ser

    definida como algo mutvel e, no como algo dado e esttico. A mutabilidade da ordem

    reside na idia de que os Estados, em suas condutas internacionais, esto

    comprometidos com regras e instituies da sociedade que formam. Portanto, a ordem

    depende de princpios sistmicos de legitimidade que esto em sua base (SOUZA, 2003,

    p. 74).

    Nesse contexto, insere-se a questo do papel e da importncia das idias na

    dinmica da sociedade internacional e das relaes internacionais como um todo. De

    forma mais especfica, a questo de como as idias afetam a atividade internacional e

    como dirimem uma possvel tenso sobre processos de gerenciamento da ordem

    internacional.2

    As instituies representadas em nosso questionamento pela soberania e o

    princpio de no-interveno - dependem dos significados compartilhados que os atores

    lhes do. Desse modo, as instituies e seus significados variam historicamente de

    acordo com os princpios normativos e de legitimidade que esto na base da sociedade

    internacional de cada poca (SOUZA, 2003, p. 60).

    It does mean that they shape that the game of power politics, thenature and identity of the actors, the purposes for which force couldbe used, and the ways in which actors justify and legitimize their

    actions. Even conflict and war take place within a highlyinstitutionalized set of normative structures legal, moral andpolitical. (ALDERSON; HURRELL, 2000, p.23)

    A soberania, construda sob o pilar da no-interveno resultado do

    desdobramento jurdico da norma igualdade soberana entre os Estados - deu azo a

    prticas de sujeio e prticas territoriais que terminam por afirmar as fronteiras do

    Estado territorial soberano. (SILVA, 2003, p. 24) Pode-se considerar que a doutrina da

    soberania dividiu-se em duas dimenses: a primeira localizada em mbito interno ou

    domstico e, a segunda localizada na esfera externa, tambm chamada de internacional.

    De um lado, os Estados tm, com relao a esse territrio e a essa populao, o que

    poderamos chamar de soberania interna; de outro, detm que se poderia chamar de

    soberania externa, que consiste no na supremacia, mas na independncia com respeito

    s autoridades externas. (BULL, 2002, p. 13)

    2

    Este o argumento foi desenvolvido por Souza (2003, p. 58) em resposta formulao de Steve Smith(1999, p. 103) de que na segunda parte do livroA Sociedade Anrquica (2002) de Hedley Bull apareceuma tenso nos processos de gerenciamento da ordem internacional.

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    Tendo em vista que a soberania nasceu sob o signo da construo de

    mecanismos de controle sobre indivduos, grupos sociais e territrios em um ambiente

    de profunda instabilidade e desordem, bem como se constituiu como instituio onde

    nasce o princpio da ordem, as intervenes humanitrias da dcada de 90 suscitaram,

    como j adiantado acima, uma urgncia quanto ao debate sobre os valores da sociedade

    internacional, principalmente no tocante tenso entre ordem e justia; ou em outros

    termos, entre soberania, no-interveno e no-uso da fora e direitos humanos

    universais.

    O contexto das proposies solidaristas de Nicholas Wheeler no que concerne ao

    debate sobre os valores da sociedade internacional diretamente determinado pelos

    argumentos da vertente pluralista da Escola Inglesa. Ainda que os escritos da Escola

    sobre as intervenes humanitrias e sua legitimidade, perante a tenso entre ordem e

    justia, no tenham sido realizados numa tentativa sistemtica de desenvolvimento de

    uma teoria da interveno humanitria, houve uma produo significativa sobre o tema

    na vertente pluralista (principalmente, Robert Jackson) nos anos 90 e uma resposta da

    vertente solidarista, principalmente por meio do trabalho de Wheeler.

    A contribuio do debate entre essas duas vertentes - pluralista e solidarista -

    proveniente do fato de que essas categorias provem um entendimento muito diferente

    da legitimidade das intervenes humanitrias. Legitimidade, determinada pelo

    componente normativo que se refere ocorrncia e legitimidade das intervenes

    humanitrias em uma sociedade de Estados constituda por regras de soberania, no-

    interveno e no-uso da fora.

    As duas vertentes convergem quanto concepo de que o discurso normativo

    da sociedade internacional basicamente conduzido por um vocabulrio de normas de

    conduta internacional. Entretanto, para o pluralismo esse vocabulrio de normas est

    centrado na moralidade da soberania estatal, como revela, por exemplo, o DireitoInternacional.

    Robert Jackson, em sua obra The Global Covenant (2000) aponta que essas

    normas bsicas de conduta so especificadas pela Organization of Security and

    Cooperation in Europe (OSCE) nos Dez mandamentos de Helsinki (1975):

    1. Igualdade soberana, respeito aos direitos inerentes soberania;

    2. Privar-se da ameaa ou uso da fora;

    3.

    Inviolabilidade das fronteiras;4. Integridade territorial das fronteiras;

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    5. Resoluo pacfica das disputas;

    6. No-interveno nas relaes internas;

    7. Respeito aos direitos humanos;

    8. Direitos iguais e autodeterminao dos povos;

    9. Cooperao entre os Estados;

    10.Cumprimento com boa f das obrigaes do Direito Internacional.

    (JACKSON, 2000, p. 16)

    Essas normas - tipicamente liberal-constitucionais da poltica mundial, derivadas

    da Carta da ONU e baseadas no princpio de Estados independentes e soberanos -

    ilustram bem a hierarquia de conduta da sociedade internacional normativamente

    considerada para o pluralismo. Elas evidenciam a inquestionabilidade da ordem

    internacional vigente, j que as seis primeiras normas mais importantes pertencem

    inviolabilidade e preservao da soberania estatal e regulao de fora armada e

    resoluo pacfica de disputas entre os Estados.

    Os pilares desse arranjo de conduta so as doutrinas da soberania estatal e da

    no-interveno, as quais expressam o pluralismo normativo base da sociedade

    internacional moderna.

    In general, human rights norms do not pre-empt the grundnorm of

    non-intervention. If human rights were a pre-emptive norm, we wouldbe living in a different world. It would be a world in which the

    fundamental norm would effectively be intervention rather non-intervention. If intervention became the basic norm, state boundarieswould no longer be a significant normative barrier against theinternational use of armed force. There would be intrusive norms thatcould justify intervention, perhaps something along the lines of the oldstandard of civilization which was employed by Western states in thenineteenth century to justify their colonization of Africa and someothers parts of non-Western world. (JACKSON, 2000, p. 373)

    Fica evidente, portanto, que dentre as concepes e justificativas compartilhadaspelos membros da sociedade internacional, h o valor dos direitos humanos e o

    reconhecimento dos compromissos para com eles tido como norma. Contudo, fica

    tambm latente que os direitos humanos, apesar de terem tornado-se proeminentes no

    discurso internacional na segunda metade do sculo XX, no atingiram o mesmo

    patamar das normas de conduta da soberania estatal.

    Todavia, a justificao e a condenao das polticas externas e das atividades

    internacionais dos governos nacionais ao redor do mundo so coerentemente possveis,

    segundo essa abordagem, porque podem ser baseadas nas normas da sociedade

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    internacional na qual todos os governos colocam-se perante os outros como Estados

    soberanos. Desse modo, o discurso normativo nas relaes internacionais opera pela

    referncia a certas concepes e justificativas correspondentes s condutas justificadas e

    injustificadas.

    Dessa maneira, a estrutura normativa da sociedade internacional constituda de

    normas de reconhecimento e respeito mtuo, e reciprocidade. O consenso pluralista a

    respeito da validade de se recorrer s intervenes humanitrias em casos que chocam a

    conscincia humana (genocdio, limpeza tnica e assassinatos em massa), portanto,

    parece estar muito prximo de uma base normativa atualmente j compartilhada pelos

    Estados do sistema internacional. No entanto, quando a questo a legitimidade e a

    aceitao das intervenes humanitrias como prtica unilateral, isto , sem a

    autorizao do CS da ONU, a preocupao pluralista manifesta-se, apoiando-se no fato

    de que, diante da ausncia de um consenso internacional sobre as regras que governam a

    prtica da interveno humanitria unilateral, os Estados agiro segundo seus prprios

    princpios morais, enfraquecendo uma ordem construda sob as regras de soberania,

    no-interveno e no-uso da fora.

    O foco pluralista continua a considerar os Estados e no os indivduos como os

    principais portadores dos direitos e obrigaes no Direito Internacional vigente.

    The states who are in position to pursue and preserve internationaljustice have a responsibility to do that whenever and whereverpossible. But they have a fundamental responsibility not to sacrifice oreven jeopardize other fundamental values in the attempt. Internationalorder and stability, international peace and security, are such values.(JACKSON, 2000, p. 291)

    Os pluralistas temem que, por no haver um consenso na sociedade

    internacional, princpios expansivos de justia como interveno humanitria

    possam colocar os princpios constitutivos da ordem soberania e no-interveno - emperigo. Para essa perspectiva, os Estados no vo alm de um acordo no qual existe uma

    tica mnima de coexistncia. Para eles, a cooperao entre os estados mnima, porque

    estes so capazes de acordarem somente com relao a propsitos mnimos, como o

    reconhecimento recproco da soberania e a norma da no-interveno. (BULL, 1966, p.

    67)

    Alm disso, as regras conflitantes da sociedade internacional para uma ordem

    internacional entre Estados, que comportam a pretenso universalizante dos direitos

    humanos juntamente com a conservao da soberania estatal, por exemplo, retratam

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    diferentes concepes de justia. Ou em outras palavras, diferentes concepes plurais

    de bem.

    If a right of intervention is proclaimed for purpose of enforcingStandards of conduct, and yet no consensus exists in international

    community governing its use, then the door is open to interventions byparticular states using such a right as a pretext, and the principle ofterritorial sovereignty is placed in jeopardy(BULL, 1966, p. 73).

    O foco nas verdadeiras reas de acordo entre os Estados faz com que a

    sociedade internacional receie toda ao que coloque em risco as instituies

    internacionais plenamente estabelecidas. (SOUZA, 2003, p.75) Sendo assim, os

    pluralistas so cticos quanto possibilidade de reconciliar ordem e justia por meio das

    intervenes humanitrias, j que elas constituem per se uma violao s regras

    cardinais de soberania, no-interveno e no-uso da fora. Alm de dividirem uma

    profunda desconfiana sobre o valor moral da doutrina de interveno humanitria.

    Segundo essa vertente, o Estado e suas atribuies soberanas no esto em

    questo, mesmo diante de propostas normativas cujo intuito pensar a resoluo das

    graves violaes dos direitos humanos para alm da estrutura estatal. Um exemplo

    dessas proposies seria retirar do Estado violador de direitos fundamentais de seus

    nacionais as prerrogativas soberanas que ele tem direito segundo a ordem

    internacional vigente. Para este autor, a resoluo do problema das violaes internas

    dos direitos humanos no deveria corresponder ao questionamento do Estado como

    unidade bsica organizacional da sociedade internacional.

    De acordo com ele, o problema est na composio profundamente heterognea

    do sistema de Estados contemporneo, cuja composio caracterizada pela disparidade

    nas condies domsticas de seus Estados membros. ()state produced suffering is a

    defining feature of the states system rather than a contingent feature of many states?

    (JACKSON, 2000, p. 384).The fact is that the only political organization available to

    humankind on a global scale is the states system and probably theonly way to effectively promote human well-being world-wide is viathe same states system. The possibility of a non-state politicalorganization of humankind that could rival and somehow displace thestates system is far-fetched to say the least. (JACKSON, 2000, p.384)

    Nesse contexto, enquanto a proposio pluralista toma a ordem como valor

    prioritrio, posicionando-se ceticamente quanto a possibilidade de formao de um

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    consenso entre os Estados, especialmente no que se refere questo da expanso dos

    princpios de justia na sociedade internacional. Os solidaristas, por outro lado,

    acreditam que a justia pode ser promovida, sem colocar em risco a ordem.

    A concepo solidarista, contrariamente concepo pluralista, prev uma

    cooperao extensiva e no limitada, baseando-se no argumento grociano da

    solidariedade, ou potencial de solidariedade, entre os Estados. (BULL, 1966, p.52) A

    pressuposio solidarista de interveno humanitria desloca o sujeito do Direito

    Internacional do Estado para o indivduo, postulando-o como membro da sociedade

    internacional, assim como tornando de responsabilidade de seus governantes, alm da

    promoo e garantia da segurana e bem estar de seus cidados, assim como a proteo

    dos direitos humanos sem os limites territoriais de um s Estado. (BULL, 1966, p. 63-

    64)

    A vertente solidarista de Nicholas Wheeler defende que o conceito de

    legitimidade seja ampliado na sociedade internacional por um aprofundamento do

    comprometimento com a justia, sem que isso signifique uma ameaa a estabilidade da

    prpria sociedade ou sequer de sua ordem. Os solidaristas acreditam que numa

    reconciliao entre ordem e justia atravs do desenvolvimento de prticas que

    reconheam uma mtua interdependncia entre essas duas reivindicaes, numa

    concepo de sociedade internacional que reconhece os direitos e obrigaes dos

    indivduos no Direito Internacional, mas que tambm postula que esses direitos

    individuais s possam ser aplicados pelos Estados.

    A abordagem solidarista prev o deslocamento das atribuies do Direito do

    Estado para os indivduos, ao propor a superao do estado-centrismo pela adoo de

    um indivduo-centrismo, por meio de uma comunidade global da humanidade e da

    relativizao dos princpios constituintes da ordem e, conseqentemente do prprio

    Estado, embora o Estado continue sendo a unidade definidora do sistema internacional.Mas o que faria com os Estados se comprometessem com novos compromissos

    normativos de universalismo moral e de relativizao dos princpios de ordem, como

    prope a teoria solidarista? Por que os Estados validariam novas normas que os

    comprometem com a proteo e garantia dos direitos humanos de todos os cidados,

    nacionais ou no, ao redor do mundo?

    Wheeler aponta o poder das normas como a resposta para esses

    questionamentos. Segundo ele, importante distinguir entre o poder que baseado emrelaes de dominao e fora e o poder que legtimo porque estabelecido em

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    normas compartilhadas. Sob essa perspectiva, o modelo realista de clculo consciente

    dos Estados muito limitado porque ignora como os Estados so socializados numa

    srie de predisposies que no so questionadas. Os Estados seguem seus interesses,

    mas o modo como eles os definem formado pelas regras que prevalecem na sociedade

    de Estados.

    Martin Wight afirma que a marca que defini a sociedade de Estados o

    recproco reconhecimento da soberania, mas soberania no um objeto fsico que

    podemos tocar, sentir ou medir; ela existe em virtude de significados intersubjetivos que

    evocam sua existncia. (WHEELER, 2002, p. 22)

    Tendo em vista, portanto, que novos compromissos podem advir de novas

    normas compartilhadas, a proposta apresentada por Wheeler em Saving Strangers

    (2002) definir novos critrios que legitimem as intervenes humanitrias, segundo a

    tica solidarista, formulando uma verdadeira teoria solidarista das intervenes

    humanitrias. Tais requisitos normativos visam reconciliar ordem e justia, por meio da

    expanso dos princpios de justia num contexto de relativizao dos princpios

    ordenadores da ordem.

    O primeiro elemento dessa proposio refere-se aos motivos da interveno. A

    causa para intervir deve ser considerada justa, o que no caso da formulao de Wheeler

    significa que deve ser um caso de emergncia humanitria suprema, ou seja, where

    civilians in another state are in imminent danger of losing their life or facing appalling

    hardship, and where indigenous forcer cannot be relied upon to end these violations of

    human rights.(WHEELER, 2002, p. 50)

    Uma suprema emergncia humanitria se configura quando a nica esperana de

    salvar vidas depende de ajuda externa. Isto , quando somente o uso da fora por parte

    de outro Estado, grupo de Estados ou organizao internacional pode cessar as

    violaes que chocam a conscincia moral da humanidade, como define MichaelWalzer. (1978, p. 108) Entretanto, este argumento no encontra correspondncia na

    idia de que as regras da soberania, da no- interveno e no-uso da fora deveriam ser

    desprezadas, uma vez que permanecem como as regras constitutivas da ordem

    internacional.

    Ainda segundo Walzer, a sociedade internacional constituda por uma estrutura

    governada por regras que permitem que as soberanias protejam os valores da vida

    individual e liberdade pblica dentro de suas fronteiras. Partindo dessa afirmao, quevalores morais esto ligados as regras de soberania e no-interveno se elas permitem

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    que governos violem os padres humanitrios globais? A soberania de um Estado que

    abusa dos direitos humanos de sua populao deve continuar sendo respeitada?

    O solidarismo responde que a partir do momento em que um Estado viola

    gravemente os direitos humanos de seus cidados, este deveria perder seu direito e

    prerrogativa de ser tratado como uma soberania legtima, conferindo assim moralmente

    outros Estados o direito de usar a fora para parar as violaes em curso.

    E o que permitido ou mesmo requerido moralmente dos outsiders diante

    de tais violaes? Nesses casos, os solidaristas de modo geral, postulam que os Estados

    so moralmente chamados a intervir, enquanto que para um grupo menor de solidaristas

    como Vincent e o prprio Wheeler, os Estados passam a ter a obrigao moral de

    intervir em socorro desses indivduos que se tornam vtimas de seus governos em seus

    prprios Estados.

    A premissa-chave do solidarismo que os governos so responsveis no s

    pela proteo dos direitos humanos internamente, mas tambm por defend-los

    externamente. Esse argumento baseia-se na hiptese de que as fronteiras soberanas so

    construes morais mutveis. Sendo assim, uma vez que se aceita que no h nada de

    natural ou dado sobre a soberania como o limite externo das responsabilidades morais,

    torna-se possvel reivindicar uma mudana nos horizontes morais que torne legtimo aos

    lderes dos Estados arriscar a vida de seus soldados para cessar terrveis abusos de

    direitos humanos externamente.

    O segundo e terceiro requisito formulados por Wheeler referem-se questo de

    como reconciliar o imperativo moral para uma ao rpida que impea um nmero

    elevado de vtimas com a condio da Guerra Justa de que a fora deve ser sempre o

    ltimo recurso. O autor trabalha com os princpios de necessidade e proporcionalidade

    de Nigel Rodley. O primeiro princpio diz respeito a uma condio onde nenhuma

    pequena aplicao de fora armada seria suficiente para cessar as violaes de direitoshumanos em questo. J o segundo critrio requer que a gravidade e a extenso das

    violaes estejam em um nvel comensurvel com um razovel clculo de perda de

    vidas, destruio de propriedade e gasto de recursos razovel. (RODLEY, 1992, p. 37)

    O ltimo requisito dentro de um conjunto de requisitos normativos mnimos para

    que uma interveno possa ser considerada humanitria o fato de que deve haver uma

    alta probabilidade de que o uso da fora terminar num resultado humanitrio positivo.

    Fernando Teson entende que um resultado humanitrio positivo caracterizado por: se

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    a interveno resgata as vtimas de opresso, e se os direitos humanos so

    subseqentemente restaurados. (TESON, 1988, p. 106)

    As duas condies - resgate e proteo - refletem a diviso de resultados

    humanitrios em curto e longo prazo: o primeiro refere-se ao sucesso da interveno em

    cessar uma emergncia humanitria suprema e, a segunda definida em termos do

    quanto a interveno dirigiu-se s causas polticas que de fato produziram os abusos dos

    direitos humanos.

    Em suma, os requisitos mnimos para legitimar uma interveno, de acordo com

    a teoria solidarista da interveno humanitria, formulada por Wheeler so os seguintes:

    1. Emergncia humanitria suprema (causa justa);

    2. O uso da fora deve ser o ltimo recurso;

    3. O uso da fora deve encontrar o requisito da proporcionalidade;

    4. Resultado humanitrio positivo.

    Um dos pontos diferenciais dessa proposio solidarista para as intervenes

    que ela recusa a primazia dos alegados motivos humanitrios, dentre as condies

    mnimas que definiro a legitimidade da interveno. Isso pode parecer primeira vista

    uma proposio irracional, uma vez que como uma ao pode ser classificada como

    humanitria se no inspirada em ideais e propsitos humanitrios?

    Wheeler esclarece essa aparente contradio por meio da ressalva de que essa

    abordagem, denominada motives-first, considera o Estado interventor como o objeto

    de referncia ao invs das vtimas que sero salvas como conseqncia do uso da fora.

    O solidarismo, por sua vez, est comprometido a sustentar padres mnimos de

    humanidade comum, colocando assim as vtimas dos abusos de direitos humanos no

    centro de seu projeto terico. Como conseqncia, a mudana do referencial dos

    Estados para as vtimas do poder estatal leva diferentes nfases a respeito da

    importncia dos motivos no ato de julgar as credenciais humanitrias dos interventores.A primazia dos motivos humanitrios no uma pr-condio dentro daquelas

    outras quatro anteriores que compe o marco limtrofe para a legitimao de uma

    interveno. Entretanto, se outros motivos, alm do humanitrio impossibilitam ou

    geram conseqncias inconsistentes com um resultado humanitrio positivo, tal ao

    no poder ser qualificada como humanitria. Dessa maneira, mesmo que uma

    interveno seja motivada por razes no humanitrias, ainda sim ser considerada

    como tal se os motivos e os meios empregados no minarem o resultado humanitriopositivo pretendido.

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    Wheeler contra-argumenta a posio realista de que os Estados iro abusar das

    razes humanitrias para atingir objetivos escusos. Para ele, o abuso alegado pelos

    realistas s uma objeo interveno humanitria caso os motivos no humanitrios,

    por trs da interveno, minem ou questionem seus propsitos humanitrios. Junto a

    isso, segundo Wheeler, o criticismo realista dos motivos encobertos ignora o fato de que

    os lderes dos Estados possam reconhecer uma responsabilidade moral em defender os

    direitos humanos, bem como a possibilidade de que a justificao possa corresponder

    com a motivao.

    Mesmo no caso em que justificao e motivao no so correspondentes, o

    quanto os atores tornam-se envolvidos por suas justificativas no pode ser subestimado;

    uma vez que quando os governos justificam suas aes em termos humanitrios

    estabelecem, concomitantemente, um padro normativo no qual eles podem julgar e

    serem julgados em suas subseqentes aes.

    O autor considera a mudana normativa dos anos 1990 - na qual os Estados

    passaram a mobilizar o argumento, anteriormente inadmissvel, de que as consideraes

    de direitos humanos poderiam formar uma base legtima para a autorizao do uso da

    fora nas intervenes - o pano de fundo para o alcance dos debates respeito da

    legitimidade das intervenes humanitrias.

    States do disagree over the meaning and priority to beaccorded civil, political, economic, and social rights, but thesescontroversies should not obscure the fact that governments havesigned up to legal instruments that commit them to upholding basicstandards of humanity. Indeed, no government questions thesenormative standards, even when breaching them, and the dispute isover the means that can legitimately be employed to enforce thesesstandards on governments that violate them. (WHEELER, 2002, p.295)

    Enquanto os casos de interveno da ndia no Paquisto em 1971, do Vietn no

    Camboja em 1979 e da Tanznia em Uganda tambm em 1979 ilustram o contexto

    normativo no qual o argumento humanitrio no era aceito como base legtima para o

    uso da fora nos anos 70, os casos do Iraque (1992), da Somlia (1992), de Ruanda

    (1994), Bsnia (1993-5) e Kosovo (1998-9) pareciam demonstrar o desenvolvimento de

    uma norma internacional de apoio as intervenes. Entretanto, tal mudana normativa

    alvo de uma importante limitao: a sociedade de Estados mostra pouco ou nenhum

    entusiasmo para legitimar atos de interveno humanitria sem a autorizao da ONU.

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    Nesse contexto, inscreve-se a formulao normativa de Nicholas Wheeler. Ele

    pretendia, por meio do solidarismo, criar e fornecer critrios normativos que

    permitissem a expanso da justia por meio das intervenes humanitrias unilaterais.

    Isto , requisitos que dirimissem a grande controvrsia acerca da legalidade e

    legitimidade de um nico Estado, ou grupo de Estados, que intervm para cessar abusos

    de direitos humanos quando no h autorizao do CS. A no-autorizao da ONU, em

    especial devido questo do veto prerrogativa dos cinco membros permanentes do CS

    - no pode ser entrave para que uma interveno humanitria ocorra ou mesmo seja

    legitimada e justificada como tal, de acordo com essa proposio.

    Nos casos em que h apoio internacional significativo para legitimar uma

    interveno que tenha sido vetada pelo CS, Wheeler afirma que o desafio criar uma

    esfera pblica global na qual os atores no-estatais tenham um importante papel no

    processo de julgar as credenciais humanitrias de uma interveno.

    Uma teoria solidarista das intervenes humanitrias foi ento formulada como

    resposta contnua relutncia da sociedade de Estados em conceder um direito de

    interveno humanitria unilateral a Estados ou organizaes regionais. Em outras

    palavras, uma resposta solidarista voz pluralista que permanece reafirmando o conflito

    entre ordem e justia como irreconcilivel.

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