GOMES, Orlando. A evolução do direito privado e o atraso da técnica jurídica

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    Ojurista que acompanha a evoluo do Direito privado no perodo com-preendido entre a promulgao do Cdigo Civil francs, em 1804, e osnossos dias, verifica que as profundas transformaes ocorridas atingiram,

    de cheio, a dogmtica jurdica, impondo inadivel reviso da tcnica.A anlise desse processo evolutivo revela duas tendncias que no condizem. De

    um lado, intensifica-se o esfro desenvolvido pelos juristas, a partir da ltima dca-da do sculo XIX, no sentido de assinalar o desgaste do instrumental jurdico. Dooutro, a sua incapacidade para substitu-lo por outra aparelhagem adequada ao novoestilo da produo.

    O que se verifica, em suma, um grande poder de receptividade aos fatos novos,a que no corresponde, porm, aptido construtiva. Eminentes juristas perceberam a

    Orlando Gomes

    A EVOLUO DO DIREITO PRIVADO E O ATRASODA TCNICA JURDICA (1955)

    RESUMO

    O T EX TO Q UE R EP UB LI CA MO S A QU I U M D OS C AP T UL OS D EACRISE DO DIREITO, O BR A C L SS ICA P UB LI CA DA E M 1955.NELE, O A UT OR R ES UM E PA RT E D OS A RG UM EN TO S D O L IV RO A O

    AP ON TA R A I NS UF IC IN CI A D A D OG MT ICA C IV IL D IA NT E D ASM UD AN A S O CO RR ID AS N A S OC IE DA DE B RA SI LE IR A. PROPEREFORMULAES DA TCNICA JURDICA PARA DAR CONTA DESTA

    N OVA R EA LI DA DE, APONTANDO DE FORMA PIONEIRA ADESPRIVATIZAO DO DIREITO CI VI L N O BRASIL.

    PALAVRAS-CHAVE

    DIREITO PRIVADO / DIREITO CIVIL / DOGMTICA, / CRISE /DESPRIVATIZAO

    ABSTRACT

    THIS TEXT IS THE REPUBLISHING OF A CHAPTER OF THE1955

    BRAZILIAN CLASSIC A CR IS E D O DIREITO. IT SUMMARIZESSOME OF THE MAIN POINTS OF THE BOOK, POINTING OUT

    THE INSUFFICIENCY OF PRIVATE LAW THEORY IN THE FACEOF CHANGES OCCURRED INBRAZILIAN SOCIAL STRUCTURE

    TO ACCOUNT FOR THESE CHANGES, IT PROPOSES

    A REFORMULATION OF THE MAINPRIVATELAW TECHNICAL

    CONCEPTS. THE TEXT IS A PIONEER IN IDENTIFYING

    THE PHENOMENA OF THE DE-PRIVATIZATION OF PRIVATE LAW.

    KEYWORDS

    PRIVATE LAW/ CIVILLAW/ LEGAL THOUGHT/ CRISIS/

    DE-PRIVATIZATION

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    THE EVOLUTION OF PRIVATE LAW AND THE BACKWARDNESS

    OF LAW TECHNIQUES

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    dissonncia entre o direito codificado e as necessidades sociais, demonstraram bri-lhantemente que os fatos se revoltavam contra o Cdigo, mostraram que as institui-es tradicionais estavam em decadncia, comprovaram, numa palavra, a imprestabi-lidade do arcabouo tcnico do Direito. Os mais curiosos tentaram interpretar assolicitaes da nova ambincia, mas no foram alm da mera alterao de sentido dosconceitos bsicos, pela crena de que essa variao superficial seria bastante paraatender s imposies irresistveis da realidade social. Outros pretenderam rever osconceitos, mas no ofereceram sugestes dotadas de poder de penetrao necessrio sua implantao no terreno da dogmtica jurdica.

    Como resultado dessa incapacidade de reconstruo, a tcnica jurdica permane-ceu prticamente estacionria.Ainda hoje o exame frio de seus elementos, mesmo noscdigos mais recentes, revela o seu atraso. Verdadeiramente, quem desconhecesse asmutaes operadas na aplicao dos conceitos jurdicos teria a impresso de que oDireito quase o mesmo que vigorava no comeo do sculo XIX. As tentativas feitaspara a sua remodelao caracterizam-se pela falta de imaginao. Exemplo significati-vo da esterilidade imaginativa dos juristas o esfro desenvolvido pelo ProfessorPerreau, no seu famoso ensaio sbre a tcnica da jurisprudncia em Direito privado.Quando o jurista se depara com uma dificuldade, oriunda de tendncia nova que recla-ma a reconstruo, vai buscar, nas legislaes mortas, termos tcnicos sepultados,cometendo, inclusive, o erro de supor que o problema consiste unicamente numa

    questo de terminologia. Esta forma de transpor obstculos, seja pelo recurso ao voca-bulrio do Direito extinto, seja pelo aplo abusivo a neologismos rebarbativos, noaltera, na sua substncia, a tcnica jurdica. Permanece de p, em conseqncia, a sen-tena de Morin, proferida h vinte anos, segundo a qual, sbre o terreno conceitual,isto , nas frmulas e nos conceitos da tcnica jurdica, a ordem nova no aparece.

    Entretanto, a est, visvel a olho nu. A incapacidade dos juristas para recobri-lacom os conceitos e as frmulas que estejam em concordncia com as novas necessi-dades decorre, principalmente, da fidelidade s matrizes filosficas do Direito pri-vado, tal como foram fundidas ao calor dos ideais triunfantes no crepsculo do scu-

    lo XVIII. A persistncia dessa filosofia, a despeito dos ataques que lhe dirigem osjuristas modernos, explica, em grande parte, o atraso tcnico, pois os processossugeridos para a sua renovao visam essencialmente a harmonizar as novas soluescom o fundamento terico sobrevivente. Os juristas insurgem-se, com maior oumenor veemncia, contra o individualismo jurdico, mas, no fundo, conservam o res-peito, a admirao e o fervor por essa harmoniosa racionalizao de interesses pri-vados. No externam confessadamente esses sentimentos. Procuram, antes, dissimu-l-la. Sente-se, porm, que os conservam, porque, nas suas dissecaes mais arroja-das, suspendem o bisturi sempre que percebem que vo atingir a ponto vital. O indi-

    vidualismo, com efeito, permanece com uma fra de atrao, que, simultnea eparadoxalmente, desencadeia impulsos de dio e amor.

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    A venerao que ficou para com a concepo contra a qual investem hoje no pro-vm da tendncia conservadora dos juristas, salientada, com razo, pelos que conhe-cem as resistncias dos cultores do Direito s inovaes. O conservantismo resulta, emgrande parte, da influncia pertinaz da doutrina que floresceu no sculo XIX, de queno se libertaram mesmo os que a condenaram e, ainda hoje, a criticam.

    Para ter uma idia mais precisa dessa influncia, e compreender mais nitidamen-te o fenmeno do atraso cultural na rbita jurdica, o processo mais simples e aces-svel o de escolher um sistema jurdico como tipo ideal, examinando as reaes queprovocou na doutrina e na jurisprudncia.

    O tipo mais puro para sse fim o sistema jurdico da Frana, no s pela vee-mncia dos seus traos caractersticos, mas, tambm, por ter sido, desde a publica-o do Cdigo de Napoleo, o que mais larga e penetrante influncia exerceu sbrea codificao do Direito Civil nos pases da civilizao ocidental.

    A codificao do Direito Civil francs provocou, entre os juristas do sculoXIX, uma tendncia para o seu endeusamento. Deve-se sse sentimento, possivel-mente, circunstncia de ter sido obra legislativa que vem coroar o triunfo pro-gressivo da Revoluo, pela sedimentao dos seus ideais polticos na ordem priva-da, e sua adequao s necessidades da nova ordem econmica e social, que se eri-gia sbre os escombros do antigo regime destroado. O Cdigo de Napoleo sur-giu, nesse momento histrico, como instrumento do progresso social, numa dessas

    fases em que o Direito escrito, traduzindo anseios e aspiraes, se areja com a brisaque sopra do futuro. perfeitamente compreensvel que os juristas o admirassem com entusiasmo

    frvido e acreditassem que a sua tarefa estivesse reduzida interpretao do seutexto. Desde que estava sincronizado com o pensamento dominante, rigorosamenteem dia com a Histria, no se justificavam investigaes tendentes a demonstrar queo Direito no correspondia sua finalidade especfica. Era natural que os juristas sedeixassem dominar, naquela poca, pela impresso de que o Cdigo condensara, emsntese incomparvel, todo o Direito Civil e que, na sua aplicao, o que se deveria

    procurar era to-somente a inteno do legislador.Hoje, certas afirmaes de jurisconsultos da poca soam, em nossos ouvidos, demodo chocante. Costuma-se censurar indignadamente a sentena do ProfessorBugnet, famosa por sua significao, segundo a qual, demonstrando o seu entusias-mo apaixonado pela codificao napolenica, dizia a seus alunos: No conheo odireito civil; apenas ensino o Cdigo de Napoleo. Os juristas hodiernos se arre-piam diante da assertiva de Demolombe, no prefcio do seu volumoso Curso doCdigo Civil, com o qual, fazendo profisso de f, declarava: os textos antes de tudo;o que publico um curso do Cdigo de Napoleo; tenho, portanto, que o interpre-

    tar e o explicar. Na poca, todavia, em que tais afirmaes foram feitas eram ine-vitveis. O clima histrico em que se produziram, em verdade, no comportava

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    outras. Devem ser julgadas, pois, com esprito de relativismo, porque, ento, sseapaixonado culto do texto impunha-se, necessariamente, conscincia jurdica.

    Sob essa influncia floresceram, no sculo XIX, vrias idias, que se sistematiza-ram numa doutrina macia, reunindo os mais notveis civilistas na Escola daExegese, cuja orientao foi definida, com segurana e firmeza, por uma atitudeinconfundvel na histria do pensamento jurdico.

    A essa Escola pertencem, como seus mais legtimos representantes, dentreoutros, Maleville (Analyse raisonne de la discussion du Code Civil, 4 v., 1804); Proudhon(Cours de droit franais, 2 v., 1809) ;Toullier (Droit civil franais suivant lordre du Code,17 v., 1811); Merlin (Repertoire universel et raisonn de jurisprudente, 1812); Duranton(Cours de droit franais suivant de Code Civil, 22 v., 1825); Demolombe (Cours de Code deNapoleon, 31 v., 1845); Aubry et Rau (Cours de droit civil, 8 v., 1838); Laurent(Principes de droit civil, 33 v., 1869);Troplong (Le droit civil expliqu suivant lordre desarticles du Code, 27 v., 1833); Marcad (Explication theorique du Code Napoleon, 11 v.,1842);Th. Huc (Commentaire theorique et pratique de droit civil, 15 v., 1892); Guillouard(Cours de Code Napoleon, 19 v., 1892); Baudry Lacantinerie (Trait de droit civil, 1882).

    Segundo Julien Bonnecase, a doutrina da Escola da Exegese caracteriza-se porcinco traos distintivos: 1. o culto do texto da lei; 2. o culto da vontade do autorda lei; 3. o culto da onipotncia jurdica do legislador; 4. o reconhecimento daexistncia de um direito natural; e 5. o respeito obra jurdica dos antecessores.

    Por outro lado, a Escola Exegtica distingue-se fundamentalmente pelo mtodoque lhe d o nome. A funo do jurista se reduz interpretao dos textos legais.Asobras jurdicas tomam, logicamente, a feio de anlise, sob a forma de comentrios.

    Dos traos caractersticos da doutrina sobrelevam, evidentemente, os trs pri-meiros: o respeito religioso ao texto, a busca ansiosa da inteno do legislador, acrena ingnua na sua infalibilidade.

    De todos os dogmas da doutrina, nenhum, contudo, exerceu influncia mais perni-ciosa do que a f na onipotncia do legislador. Decorre, seguramente, dos dois primei-ros. O culto do texto legal e o culto da vontade do legislador conduzem necessariamen-

    te estatolatria. O Direito emanado do Estado cobre tda a superfcie da ordem jur-dica. Esse monismo das fontes do Direito estiola todo esfro de pesquisa e de investi-gao do fenmeno jurdico, porque o reduz legislao promulgada pelo Estado, dita-da pela vontade soberana do legislador. sse estado de esprito se define incisivamentenuma proclamao de Aubry ao doutrinar que a misso dos professores de Direito erade protestar, sem dvida moderadamente, mas tambm com firmeza, contra tda ino-vao que se destinasse a substituir a vontade do legislador por uma vontade estranha.

    Exatamente por esse motivo, amesquinhou-se o papel da doutrina na elaboraodo Direito positivo. Se a funo dos juristas, do professor, do advogado, do juiz,

    deveria consistir unicamente na interpretao dos textos legais, com o objetivo dedescobrir a vontade do legislador, a atividade crtica lhe estava trancada e anulado,

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    por atitude preconcebida, o esfro preliminar de qualquer tarefa construtiva. Olegislador mesmo ficava privado dos instrumentos que a doutrina lhe poderia ofere-cer para captar o Direito na fonte cristalina em que borbulha. A conseqncia ine-lutvel dessa atitude no se fz demorar. Ao se comemorar o centenrio do Cdigode Napoleo, a impresso geral era de que estadeiava a sua senilidade.

    Antes de finar o sculo, que enchera com o eco de seu verbo altissonante, a rea-o contra a doutrina e o mtodo exegticos eclodira com admirvel vigor, capitanea-da, na Frana, pelo vulto preclaro de Geny. verdade que o primeiro grito contra odogmatismo reinante partiu da Alemanha, onde Adicres, em 1872, contestou o valorda lei na produo do Direito, e ressaltou o papel que cabe ao juiz. Mas na obra deGENY sbre o mtodo de interpretao e as fontes em Direito privado positivo e,posteriormente, nos seus exaustivos estudos sbre a cincia e a tcnica jurdicas quea condenao dos processos da Escola Exegtica adquire contedo sistemtico.

    Desde ento, a anlise crtica ganha profundidade quando investe contra a fico dasuficincia do Direito escrito e a destri pela demonstrao de que a lei no contm todoo Direito. Assinalou-se a impossibilidade de prever, em textos legais, a soluo de tdasas situaes que a complexidade opulenta da vida social equaciona a cada instante.

    Esclareceu Saleilles que o legisilador, devendo proceder mediante idias gerais efrmulas abstratas, abria necessariamente inmeros claros, por tal forma, que umCdigo sempre contm inevitveis lacunas. O mais importante, porm, foi o reco-

    nhecimento de que a lei, emanada da vontade do legislador, a ela no ficava vincula-da. No admirvel prefcio que escreveu para a obra de Geny, o mesmo Saleillesobservou, atiladamente, que, publicada a lei, desenvolve-se um princpio que seencontra no futuro como isolado e independente da vontade que lhe deu vida, doqual se faz uma nova individualidade, que tambm se desenvolve por si mesma, pro-porcionando-lhe uma existncia fictcia, destacada da vontade do legislador e fre-qentemente em oposio , a ela.Verifica-se, em suma, uma variao de contedodentro da mesma forma, como atesta a obra notvel da jurisprudncia.

    Estava aberto o caminho para investigao do Direito, sem as peias que o pren-

    diam ao clima histrico do dogmatismo dos fetichistas do texto legal. No interessaindagar se o mtodo de interpretao preconizado pelo fundador da Escola da LivreInvestigao Cientfica pode ou deve ser aceito em tdas as suas conseqncias. Arevoluo metodolgica importa, sobretudo, porque valoriza o papel do jurista e rein-troduz a doutrina na sua funo, fecunda e insubstituvel, de fonte indireta doDireito. O reconhecimento da misso alta que incumbe aos cultores da cincia jur-dica produziu, sem demora, efeitos proveitosos, e sse o grande mrito da EscolaCientfica. Desde ento, abandonados os dogmas da Escola Exegtica, a crtica aodireito vigente irrompeu, veemente e fecunda.

    A reao toma o sentido de crtica ao contedo e forma de Direito privado vigen-te. A corrente de pensamento, que na obra de Geny tem uma de suas mais poderosas

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    fras de propulso, vem carregada de energia filosfica, mas no se exaure na eletro-cuo dos princpios, dos postulados, dos dogmas caldeados na fornalha da RevoluoFrancesa. O divrcio entre a lei e a nova realidade proclamado com um acento estri-dente, mas as suas conseqncias no so esquecidas.Verificando-se que a prpria noode Direito, deduzida da filosofia do Cdigo Napolenico, deixara de corresponder snovas solicitaes da conscincia social, enriquecida pela interpretao dos fatos novos,os juristas inconformados compreendiam que a tcnica jurdica reclamava reforma.Dessa compreenso resultou a atitude singular e curiosa que vieram a assumir. Os ata-ques dirigem-se preferencialmente contra os conceitos cristalizados na ordem superada.

    Duas razes principais ditam esse comportamento. Primeiramente, o receio deinvestir frontalmente contra os fundamentos filosficos do sistema jurdico decor-rente da convico conservantista de que o desgaste estragara apenas algumas peasda mquina. Em segundo lugar, porque a mora do Direito revelava sinais mais con-cretos nos processos de sua revelao.

    O Cdigo de Napoleo era a expresso jurdica das idias da Revoluo Francesa.Os esforos empregados por Portalis, no famoso Discurso preliminar, para demonstrarque seus redatores no estavam imbudos do esprito revolucionrio,no convenceram,porque, se les no sacrificaram violentamente os direitos para servir poltica, foramenvolvidos na atmosfera cultural que recobria a realidade nascente daqueles dias heri-cos. Pode haver nfase na afirmao de Leon Duguit, segundo a qual o Cdigo Civil

    francs foi uma simples deduo da declarao dos direitos do homem e do cidado,mas a sntese exata na essncia ltima. Os intrpretes mximos desse corpo de lei,Aubry et Rau, salientaram a perfeita correspondncia entre os dados sociais da pocae as regras do Cdigo. Nem foi por outro motivo que emprestaram sua obra clssicaum cunho eminentemente tcnico. A correspondncia no resistira a um sculo devida, mas os juristas, que testemunhavam o atraso, no compreenderam, em sua maio-ria, que as transformaes sofridas por esses dados sociais geravam, nas suas entranhasconvulsas, concepes diametralmente opostas. Persuadiram-se de que o processo deesclerose do Cdigo poderia ser detido com enxrto de glndulas rejuvenescedoras.

    Por isso concentraram o fogo sbre a tcnica. Mas no s por isso. Atravs dacrtica forma se atingia indiretamente o contedo, porque a mudana dos meiosinflui, maior ou menormente, nos fins.

    Nem havia acesso mais cmodo para alcanar o planalto filosfico.A tcnica jurdica caracteriza-se como conjunto de meios e de processos, atra-

    vs dos quais as regras do direito se elaboram, aparecem, transformam-se, aplicam-se e se extinguem. Geny a definira como aforma oposta matria e Brethe de laGressaye e Laborde Lacoste, numa obra de 1946, ainda viam, na oposio clssica do

    fundo e da forma, o melhor critrio para distinguir a cincia do direito, que fornece os

    elementos da norma em estado bruto, da tcnica, que a informa, transforma, mode-la e modifica, para introduzi-la em determinada frma. Foi Demogue, contudo,

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    quem a conceituou com maior latitude, ao considerar que seu objeto o conheci-mento dos meios pelos quais uma regra ideal de conduta adquire os caracteres dapositividade e se transforma em regra jurdica obrigatria.

    sses meios e caminhos diversificam-se. Dos conceitos terminologia, passando pelasconstrues e pelasfices, tudo so processos intelectuais destinados a revelar o Direito.

    Dentre les sobreleva, sem receio de contestao, o conceito. O Direito emi-nentemente conceitual. Precisa das noes gerais. Sem elas, no seria possvelentend-lo. O que se quer que essas abstraes sejam imbudas de dados da reali-dade, para que no percam seu sentido funcional.

    Acreditam alguns no dualismo gradativo dos conceitos, entendendo, comoDjuvara, professor da Universidade de Bucarest, que h conceitos imutveis, sob aforma de idias gerais, que condicionam todo o conhecimento jurdico. Poucoimporta. O que interessa frisar que, na sua maioria, os conceitos so mutveis, por-que inferidos da observao das necessidades sociais pela mentalidade dominante.sses conceitos evolutivos so os que definem o processo de desenvolvimento doDireito. No so unicamente aquelas construes do esprito destinadas a sintetizaras solues do direito positivo, como quer Gaston Morin. So abstraes que esque-matizam a realidade emergente dos dados da vida social.

    Dsse modo, a exata conceituao o processo tcnico mais preciso para favo-recer e, por vzes, precipitar a evoluo jurdica.

    Os juristas que se rebelaram contra o individualismo do Direito privado dosculo XIX assestaram baterias contra a tcnica jurdica dominante nessa poca,visando especialmente aos conceitos e aos mtodos de interpretao.

    A crtica foi severa e arguta. Mas a construo falhou.A grande lacuna da EscolaRevisionista reside na sua incapacidade de produzir e articular novos conceitos, atra-vs dos quais a nova ordem jurdica, que se afirma, e se anuncia, e se mostra impa-cientemente, pudesse ser reconhecida e identificada por seus traos fisionmicos.H vinte anos, um dos grandes pioneiros do reformismo juridico, o ProfessorGaston Morin, assinalava, em sentenas incisivas que, no fundo, so uma confisso

    melanclica , o fracasso da doutrina diante das novas situaes. No terreno real dizia le uma ordem jurdica diferente daquela do Cdigo Civil que parece debu-char-se, mas no terreno conceitual essa ordem nova no se revela.

    A corrente revisionista atacou a tcnica por ser o flanco mais exposto suapenetrao. Mas nem mesmo a conseguiu desbaratar o velho conceitualisrno.

    Sabe-se que o seu mais aguerrido e audacioso adversrio foi, paradoxalmente, umprofessor de Direito Pblico: Leon Duguit. Em conferncias memorveis, assinalou,com uma clareza meridiana e um vigor msculo, as transformaes gerais do Direitoprivado. Fz a crtica do sistema privado ento vigente sob uma forma concisa, ver-

    dadeiramente atraente, embora estivesse imbudo de concepes originais que pro-vocaram forte reao, especialmente no domnio filosfico. No seu desencanto pelos

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    conceitos tradicionais, que no mais correspondiam realidade social nascente, Duguitchegou ao extremo de negar o conceitualismo jurdico. Seus excessos doutrinrios noimportam. O que importa assinalar o insucesso de sua tentativa de reconstruo. Suapenetrante anlise dos atos jurdicos o conduziu a uma reviso total da teoria dssesatos, mediante a qual sistematiza e classifica espcies que a tcnica tradicional no dis-tingue. Alguns dos novos conceitos, como o de ato-condio, difundidos por Scelle,Jze, Bonnard, e tantos outros, penetram, sem grande aceitao, na tcnica jurdica.Outros foram repelidos, ou esquecidos. Falta ao seu esfro construtivo aqule impul-so que o elevaria ao plano de uma sntese que se inculcasse aos espritos como esque-matizao conceitual irrepreensvel.Viu-se, na sua crtica, uma obra demolidora, que,para Hauriou, seu grande contraditor, d a impresso de infecundidade e desolao.

    Os outros no tentaram reconstruir com o mesmo arrebatamento. Perspicazesna crtica, contudo limitaram-se a clamar pela necessidade de reviso do Direito.Registraram a decadncia da lei e do contrato, o atraso do Direito, a impotncia dasleis, mas no ofereceram elementos para a nova dogmtica jurdica, que os fatos vmreclamando insistentemente desde o como do sculo.

    As conseqncias desse estado de carncia da doutrina mostram-se hoje perni-ciosas evoluo jurdica. A tcnica confusa. Os conceitos so vacilantes, notendo mais a firmeza e a preciso, que lhes so indispensveis.

    As fices clssicas se desgastam, e como so as molas de seguimento do motor

    jurdico, tiram-lhe a disposio. As classificaes se esgalham para abarcar novascategorias e se retorcem para alcanar categorias rebeldes. As construes se multi-plicam ao sabor de impresses superficiais e ocorre, nos domnios da jurisdicidade,aqule fenmeno assinalado por Pascal, num pensamento lapidar: a realidade fecun-da e a imaginao no concebe. Por fim, a prpria terminologia, outrora to corre-ta, to precisa, to escorreita, resvala para a ambigidade e para o preciosismo. Novocabulrio jurdico, muitos trmos adquirem sentidos mltiplos e se amidam osconceitos-proteus, a que se refere a Du Pasquier.

    O esnobismo cientfico o abarrota de neologismos extravagantes, que aumentam

    a confuso. Em todos sses processos da tcnica do Direito observa-se a incapacida-de dos juristas reformistas para a sua atualizao.Uma anlise suscinta das instituies bsicas do Direito civil hodierno revela a

    pobreza do esprito inventivo dos juristas. No direito de propriedade, no direito dasobrigaes, no domnio da responsabilidade civil, as construes doutrinrias no sefincam em terreno consistente, os conceitos novos so flutuantes e elsticos e a ter-minologia inadequada e imprecisa.

    Ainda no se soube interpretar, com clareza e exatido, o significado da evoluodo direito de propriedade nestes ltimos tempos. As teorias que a explicam no pas-

    sam de um esfro descritivo, que se esgota no momento em que deve passar para asntese conceitual. Quando saem da simples descrio de aspectos, falham. Embora se

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    enfeitem com metforas brilhantes e se apresentem dotadas de grande poder sugesti-vo, no resistem mais profunda anlise, pois at no terreno da lgica malogram. Osesforos de Josserand, Duguit e Morin para justificar o novo sentido do direito de pro-priedade no satisfazem,a despeito da aparente virtuosidade de suas teorias. Sem dvi-da, irrecusvel o influxo de suas idias na evoluo legislativa dsse direito subjeti-vo. Cdigos modernos introduziram o elemento socialno conceito de propriedade, masessa transformao no encontra explicao doutrinria satisfatria na concepo darelatividade dos direitos ou na idia de que o proprietrio exerce uma funo social.

    Difunde-se a noo de que esse Direito no qual se concentra o supremo poderdo Homem sbre as cousas deve sofrer as mais severas limitaes, em extenso eprofundidade, para que o equilbrio social, necessrio preservao da paz entre oshomens, seja mantido. Mas diversos fatos novos, que esto gerando situaes jurdi-cas originais, so atrados para o hemisfrio do Direito sob a frmula esdrxula eimprpria de novas propriedades. Despe-se a propriedade tradicional das cousas desuas vestes talares, que se reconhecem fora de moda, e quando novos poderes sbrenovos bens reclamam regulamentao jurdica, retira-se do museu a velha tnica dosromanos para recobrir os fatos novos. Como no frtil a imaginao dos juristas,procuram explicar as situaes novas com o auxlio do velho conceito. Assim, aolado da propriedade, garroteada de todos os lados, cresce e floresce a quase proprie-dade, haurindo da atmosfera, onde se diluem os caracteres evanescentes do domnio

    quiritrio. O poder reconhecido hoje a certas categorias de pessoas, como os inqui-linos, os parceiros, os comerciantes, os empregados e tantos outros se robustece eos juristas atnitos, diante da necessidade social de os garantir, vo buscar na idiade propriedade, mui desmoralizada, o substrato terico de sua justificao.

    No direito das obrigaes, a confuso no menor. A idia de contrato dilata-separa abranger situaes que a negam. Sob essa denominao, e no seu esprito, in-meras relaes jurdicas se disciplinam, pelo recurso grosseiro e presunes, quesacrificam inteiramente o papel da vontade da sua formao. Dissociaes extravagan-tes se admitem, transpondo para o mundo objetivo a separao de aspectos da mesma

    realidade, cindveis, apenas, por abstrao do esprito, como ocorre com a dissocia-o do contrato e da relao de emprego ou do contrato e da locao. Controvrsiasinterminveis lavram sbre a valorizao do fim das convenes, porque os juristashesitam em reconhecer que todo contrato tem funo econmica especfica, que asua causa final. Presunes arbitrrias de vontade e de inteno so criadas para encai-xar situaes jurdicas na moldura do contrato, porque as novas categorias no encon-tram a necessria armadura tcnica. Em suma, a tcnica do direito das obrigaes sesubverte por incapacidade da doutrina de lhe proporcionar novos quadros.

    No domnio da responsabilidade civil, a tortura dos juristas angustiante. Poucos

    perceberam que as novas situaes exigem novo modo de equacionar o problema.Mais do que nunca, o dever de indenizar o dano causado a outrem precisa da fra

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    coercitiva do Direito. Para que seja cumprido, de acordo com os novos ditames daconscincia social, no h mais que indagar se o agente foi culpado. A questo no mais de responsabilidade, propriamente dita, mas de simples distribuio dos riscos,de predeterminao dos que devem suportar o prejuzo, independentemente da idiade culpa. Falham, porm, os critrios, porque os fundamentos apresentados pelospartidrios da teoria objetiva no possuem teor psicolgico de densidade tericasatisfatria. O recurso s presunes de culpa denotam a insuficincia de renovaotcnica e o gsto pelos subterfgios, mas, tambm, a incapacidade de levar at s suasltimas conseqncias o desdobramento lgico das sugestes da realidade social, quesolicitam visivelmente a socializao da responsabilidade.

    Mister no se faz, porm, descer a particularidades para sublinhar os defeitos eas lacunas da tcnica do Direito privado nos dias fluentes.

    De todos os vcios que a contaminam, nenhum mais grave, nas suas conseqn-cias, do que a deliberada dissimulao das transformaes que agitam a ordem jur-dica atual, na sua evoluo irresistvel. Por dois processos se vem conseguindo esseobjetivo. O primeiro consiste na preservao do vocabulrio jurdico, por sua defesaintransigente contra qualquer inovao terminolgica. O segundo, no abuso dasfic-es. Conservando as mesmas palavras para designar situaes diferentes, evita-seque a massa dos homens adquira conscincia imediata das transformaes sociais.Sob a denominao de contrato, por exemplo, travam-se inmeras relaes jurdi-

    cas nas quais a vontade de uma das partes no exerce a sua funo especfica e cria-dora. A sobrevivncia do vocbulo conduz ao absurdo conceitual do contrato obriga-trio, mas a maioria no percebe que a situao deixou de ser verdadeiramente con-tratual e se comporta como se estivesse na atmosfera dessa instituio jurdica.Alega-se que a vantagem dsse expediente reside na adaptao insensvel da massas transformaes sociais. A invariabilidade terminolgica encerraria o Direitonuma cabine compensada, para manter artificialmente condies de vida que a pres-so externa no permite mais. Os inconvenientes dsses processos de dissimulaoso manifestos. Primeiramente porque a conscincia dessas transformaes que

    impulsiona o pensamento jurdico, uma vez que a sua verdadeira funo consiste emassimilar aquelas aspiraes sociais, que, por sua generalidade e intensidade, seimpregnam de substncia jurdica. Ocultar as transformaes atrs dessa cortina defumaa pretender acompanhar a marcha da evoluo do Direito, estugando opasso. Em seguida, a impresso da inalterabilidade domina os prprios tcnicos,sejam les legisladores, juzes ou advogados. Na lei, so inevitveis as interfernciasde aspectos da instituio que emprestou o nome nova situao jurdica. Na juris-prudncia, os critrios dominantes na aplicao das regras disciplinadoras do insti-tuto que proporcionou a denominao so utilizados como se a coincidncia no

    fora apenas terminolgica. Basta considerar, por exemplo, o inconveniente de inter-pretar os contratos de adeso de acordo com as regras adotadas para a exegese das

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    clusulas genuinamente contratuais. Por fim, inqualificvel o deliberado propsi-to de camuflara realidade pelo temor de declar-la.

    O segundo processo consiste no uso imoderado dasfices. Sempre se lhes reconheceua utilidade, como um dos meios indispensveis de que se serve a tcnica jurdica para alcan-ar os seus fins, a despeito de seu artificialismo imanente. Diz-se que a ficco jurdica aconsagrao da mentira,porque tem por verdadeiro o que falso, a fim de se chegar a umresultado que se reputa conveniente. Essas mentiras convencionais esto sendo empregadascom desenvoltura. Carregando nas presunes arbitrrias, os juristas recorrem freqente-mente a sse processo de disfarce da realidade, graas ao qual, como observa GastonMorin,mascaram-se as novas solues,vinculando-as aos velhos conceitos,que so aparen-temente respeitados, mas cujo contedo sistemticamente alterado.

    Deste modo, a tcnica jurdica se transforma na apoteose do subterfgio falhando nasua finalidade, mentindo aos seus propsitos, fugindo sua misso. O jurista que con-corre para essa frustrao apeia-se da sua eminente dignidade para a subservincia dopapel de empreiteiro de camuflagem. Porque essa atitude tem encontrado seguidores,conscientes ou inconscientes, o descrdito do Direito perante as massas se acentuaassustadoramente, como se aprofunda o desencanto dos que buscam na seara jurdicaa resposta para as suas angstias, as suas esperanas e as suas incompreenses.

    A intrepidez no combate ao velho sistema anula-se inteiramente quando chega ahora de reconstruir.Tem-se a impresso de que o temor do fracasso inspirafugas pro-

    filticas. O que submergiu na torrente destruidora vem tona, como se o espritode rotina retornasse, de cada imerso, superfcie das guas revoltas, para lhe pre-sidir o curso. Sob a influncia da tirania do passado, a razo, atordoada e intimida-da, e por vezes cautelosa e fascinada, procura argumentos, para continuar a crer noque no acredita. Os conceitos se tingem de um matiz que lhes disfara a essncialtima. A tcnica jurdica, assim tratada, deixa de ser uma representao fiel domomento evolutivo do Direito nos dias correntes.

    doutrina se reserva, em conseqncia, grave misso, de alta responsabilidade.Cabe-lhe, com urgncia, a tarefa de construir sistemticamente a armadura tcnica

    da nova ordem jurdica.No possvel desconhecer que essa tarefa, a despeito da sua orientao errnea,j foi encetada, e tem produzido alguns frutos, como testemunham leis e cdigos recen-tes. Mas, em verdade, seu objetivo muito mais amplo e mais profundo, porque no secumprir seno no dia em que se houver realizado completamente a estabilizao jur-dica das transformaes sociais, que outros processos de racionalizao tm revelado.

    Para atingir a sse fim, o que sobretudo importa a escolha do processo. No sedar nova ordem a utensilagem adequada se se persiste no propsito de disfararas realidades inovatrias sob o manto da velha tcnica. preciso dominar a tendn-

    cia do esprito para sobrevalorizar as construes do passado, como necessriocontrolar a sua inclinao contrria para a apoteose do momento em que vive. So

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    de suas sugestes, para construir sbre esse terreno acrescido o bloco grantico, delinhas funcionais que, a um tempo, revele o sentido da nova ordem jurdica e o sensoartstico de sua construo.

    Cabe-lhes a tarefa de constru-la, ligando e fundindo os elementos esparsos numtodo homogneo, para que desordem das condutas no se venha ajuntar, comolembra Dabin, uma desordem mais monstruosa: a desordem no prprio ordena-mento que pretende fazer reinar a ordem.

    Para atingir o objetivo de racionalizao jurdica da realidade social, o juristaconstri incessantemente. Segundo Du Pasquier, a atividade construtora diversifica-se em trs planos, dos quais so mais importantes os que se reservam sistematiza-o e criao. A construo sistemtica consiste em reunir numa idia geral regrasdiversas que a tdas explica, num conceito que as religa entre si.A construo cria-dora parte da observao da vida real, para inferir conceitos adaptados ao tempo.No primeiro caso a operao consiste em estabelecer relaes puramente lgicasentre regras e conceitos. No segundo, em criar os conceitos em que se condensemos fins da poltica jurdica, para a moldagem das realidades sociais.

    Os esforos que tm sido empregados, tanto para a sistematizao como para aconstruo, no revelam rendimento aprecivel. Possivelmente o atraso da tcnica doDireito, a pobreza do novo conceitualismo jurdico, se deve em grande parte s hesita-es e tergiversaes que fervem no caldeiro da poltica jurdica. Mas os juristas, dedi-

    cando-se construo sistemtica, podem favorecer e estimular a construo criadora,porquanto a expanso das fras sociais jurgenas, longo tempo reprimidas e compri-midas, tem determinado a formao desordenada de regras, de cunho aparentementecircunstancial ou isolado, nas quais se concentram, todavia, tendncias gerais.

    A reconstruo sistemtica do Direito se apresenta, dsse modo, como o maisinstante cometimento que clama e reclama pela dedicao dos juristas que notraem, dos tericos que no empregam a inteligncia e o saber para deformar a rea-lidade social no propsito de arrefecer o calor de suas sugestes.

    NOTAS

    1 Republicao de captulo da obra A Crise do Direito, So Paulo: Max Limonad, 1955, pp. 234-255, com auto-rizao de Marcelo Gomes, presidente da Fundao Orlando Gomes.

    Orlando Gomes