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tese de doutorado sobre cotas para negros

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE CINCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA POLTICA

KARINE PEREIRA GOSS

RETRICAS EM DISPUTA: O DEBATE ENTRE INTELECTUAIS EM RELAO S POLTICAS DE AO AFIRMATIVA PARA ESTUDANTES NEGROS NO BRASIL

FLORIANPOLIS 2008

KARINE PEREIRA GOSS

RETRICAS EM DISPUTA: O DEBATE ENTRE INTELECTUAIS EM RELAO S POLTICAS DE AO AFIRMATIVA PARA ESTUDANTES NEGROS NO BRASIL

Tese apresentada ao Programa de PsGraduao em Sociologia Poltica da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito final para a obteno do ttulo de Doutora em Sociologia Poltica. Linha de Pesquisa: Movimentos sociais, participao e democracia. Sob a orientao da Professsora Doutora Ilse Scherer-Warren.

FLORIANPOLIS 2008

KARINE PEREIRA GOSS

RETRICAS EM DISPUTA: O DEBATE ENTRE INTELECTUAIS EM RELAO S POLTICAS DE AO AFIRMATIVA PARA ESTUDANTES NEGROS NO BRASIL

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia Poltica da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito final para a obteno do ttulo de Doutora em Sociologia Poltica.

Aprovada pela Comisso Examinadora em: Florianpolis, 18 de maro de 2007.

___________________________________ Prof. Dr. Ilse Scherer-Warren (UFSC Orientadora) _______________________________________ Prof. Dr. Jos Jorge de Carvalho (UnB Examinador) ___________________________________ Prof. Dr. ngela Randolpho Paiva (PUC/RJ Examinadora) ___________________________________________ Prof. Dr. Vnia Beatriz Monteiro da Silva (UFSC Examinadora) _________________________________________ Prof. Dr. Julian Borba (UFSC Examinador)

isso que eu chamo de chance. Quando Max Weber fala em chance, no sentido de oportunidade. E o que oportunidade? A capacidade de uma pessoa enfeitar o seu destino, como diz Thomas Mann, uma coisa que depende de oportunidade. Se a pessoa nunca tem oportunidade, no enfeita o seu destino. Na minha pesquisa sobre os negros descobri homens de muito talento, mulheres inteligentssimas, mas que nunca tiveram oportunidade. Essas pessoas no podiam enfeitar o seu destino: s podiam sofrer a misria, as dificuldades. Eram talentos perdidos (FERNANDES, 1995, p. 06).

Dedico v Dada (In memorium) aos meus pais: Tana e Matro ao meu companheiro Fernando minha filha Luisa

AGRADECIMENTOS

J faz algum tempo que eu venho agradecendo a todas as pessoas que me ajudaram a concluir esta tese. Apesar de o trabalho acadmico ser solitrio, seu produto no se concretizaria sem o auxlio de uma rede de pessoas. a estas pessoas que manifesto meu mais profundo agradecimento. O que tenho a oferecer nesse momento so palavras. minha muito amada filha Luisa, pelo carinho, pelos abraos nas horas certas, por sua pacincia, por aceitar as ausncias e por todas as alegrias que tm proporcionado desde que nasceu. Ao Fernando, pelo companheirismo, que por ser jornalista sempre foi solicitado a revisar os textos, os trabalhos, a tese, pela pacincia com meus momentos de impacincia, por sua dedicao e amor. Aos meus pais Tana e Matro, pelo apoio constante, por terem me ajudado a chegar at aqui, pelo cuidado de uma vida inteira que as palavras so insuficientes para demonstrar toda a gratido. minha querida irm Ctia, por sua amizade, por estar sempre disposta a ajudar, pelos conselhos em momentos difceis e por ter me presenteado com dois sobrinhos adorveis: o Felipe, meu afilhado, companheiro de supermercado, de piqueniques na frente da televiso e de conversas sobre super-heris e o Theo, que agora o nosso beb. Ao meu cunhado Srgio, pela alegria nas festas, por sua cuidadosa reviso, pelas consultas gramaticais em horas imprprias, pela correo vivenciada da tese e comentada em conversas telefnicas. minha amiga Raquel Mombelli, por uma amizade longa e sincera, por todos os momentos nos quais compartilhamos as angstias do doutorado, pelas conversas e dicas, por ter me auxiliado, a partir de sua sensibilidade e conhecimento, a compreender melhor a situao da populao negra neste pas, pela dedicao e apoio que nunca foram negados.

Ao estimado primo Romrio Antunes da Silva, por sua valiosa e imprescindvel contribuio na normalizao da tese, pelos constantes telefonemas atendidos com preciso e boa vontade, por sua dedicao carinhosa. Ao querido amigo Luis Cardoso, pelo companheirismo e amizade que vieram de longe e que certamente jamais sero esquecidos. minha sobrinha Fernanda de Melo Goss, uma amiga prestativa e competente, consultora para o ingls e para as dvidas jurdicas que porventura surgiram durante a elaborao da tese. Ao amigo Joo Luiz Dornelles Bastos, pelas trocas de idias acerca de nossos temas de pesquisa, por sua disponibilidade, pela leitura atenta da tese, pela amizade inesperada e enriquecedora. amiga Viviane Ribeiro Corra, companheira de trabalho no Ncleo de Pesquisa em Movimentos Sociais (NPMS), por todos os muitos bons e maus momentos vividos. amiga e colega Marivone Piana, pelos caminhos que percorremos juntas durante o curso: os trabalhos elaborados em conjunto, as longa conversas, as viagens, por sua animao e fora de vontade que inspiram quem est ao seu lado. Ao amigo Fernando Taques, pelas crticas mordazes, pelos cafs

acompanhados de teoria e de terapia, pelo senso de humor maravilhoso. amiga Viviane Teixeira, pelo apoio em horas incertas, pelas conversas e conselhos virtuais, por sua amizade. s queridas amigas que mesmo distantes, so sempre lembradas: Kelly Prudencio e Wivian Weller. H pessoas que mesmo no tendo colaborado diretamente com o trabalho so significativas: tia Vnia, que de longe sempre manifesta seu carinho e tia Mariza, com sua vivacidade contagiante. s primas e amigas Cibele da Silva Biscano, Sinara Antunes da Silva e Simone Antunes da Silva, pelos agradveis momentos passados na infncia e prolongados em nossas memrias.

Graa Regina da Conceio, por auxiliar na vida domstica e mant-la ordenada para que eu pudesse trabalhar e pela amizade de muitos anos. Ftima e Albertina por constantemente estarem dispostas a ajudar a organizar as questes burocrticas que devemos cumprir, por anos de uma convivncia amistosa e agradvel. Aos colegas da Comisso de Poltica de Ampliao de Oportunidades de Acesso Socioeconmico e Diversidade tnico-racial para ingresso na

UFSC/Processo Vestibular, especialmente Vnia Beatriz Monteiro da Silva, incansvel batalhadora das trincheiras acadmicas e militante, e ao Marcelo Tragtenberg, por sua vontade e determinao em implementar uma poltica de ao afirmativa para a UFSC, por sua coragem em enfrentar as adversidades e por nos animar com sua eterna boa disposio. Duas professoras so exemplos intelectuais que procurarei perseguir: Ilka Boaventura Leite, pelo apoio e o respeito concedidos, por ter me incentivado a seguir trabalhando com esse tema, pelas conversas prolongadas, por suas sbias palavras. Tamara Benakouche, por sua leitura lgica e objetiva, por saber apontar as falhas e os acertos e fazer as perguntas certas, por sua preciosa dedicao e exemplo de vida. Ao professor Julian Borba, por suas valiosas indicaes bibliogrficas e pela disponibilidade em oferecer sua leitura e comentrios sempre que solicitados. Ao CNPq, pela concesso da bolsa que permitiu minha dedicao exclusiva ao doutorado. Finalmente, gostaria de agradecer minha orientadora, professora Ilse Scherer-Warren. Com ela compartilhei diferentes momentos da vida acadmica e aprendi a cultivar valores e caractersticas importantes no somente para a pesquisa, mas para a vida: a responsabilidade, a dedicao, a perseverana, o respeito, a confiana, a amizade e a indignao frente a injustias que parecem banais. Por tudo isso e porque ela uma mulher que soube transformar sua trajetria de vida em um exemplo, eu agradeo muitssimo.

RESUMO

A implementao de polticas de ao afirmativa para estudantes negros nas universidades pblicas brasileiras gerou um intenso debate em diversos campos sociais. As discusses sobre as polticas de ao afirmativa mobilizaram no somente atores organizados da sociedade civil brasileira como tambm a intelligentsia nacional. Em paralelo ao debate instalado na mdia a partir de 2002, iniciou-se tambm uma disputa acadmica em torno do tema. Entender o porqu dessa disputa to acirrada entre os intelectuais brasileiros sobre a necessidade ou no de aplicao dessas polticas constitui o objetivo principal da pesquisa. Para isso, sero analisadas as principais proposies apresentadas por cientistas sociais, mais especificadamente representantes da antropologia e da sociologia. H pelo menos duas posies bem demarcadas nas cincias sociais a respeito do tema: os intelectuais contrrios s polticas de ao afirmativa e aqueles que se posicionam favoravelmente. Seus argumentos sero analisados a partir de uma tipologia criada por Albert Hirschman (1992). Os autores que desenvolvem argumentos em oposio s aes afirmativas so partidrios de uma retrica denominada de conservadora, enquanto os que defendem tais polticas so classificados como partidrios de uma retrica progressista. Hirschman delimita trs teses da retrica conservadora que foram elaboradas por intelectuais, muitos deles cientistas sociais, em diferentes pocas, em relao a polticas avaliadas como progressistas e/ou reformistas: a tese da perversidade, a tese da futilidade e a tese de ameaa. Para cada tese da retrica conservadora, o autor elabora contrapartidas progressistas originando dessa maneira pares que se contrapem e se complementam. possvel concluir que as duas retricas em embate refletem posturas diferenciadas dos intelectuais em relao cincia e poltica. Alm disso, os partidrios das duas retricas partilham de concepes diversas a respeito de conceitos importantes utilizados nas cincias sociais brasileiras, especialmente o de raa e o de mestiagem. Tanto a vinculao dos intelectuais com a cincia e com a poltica quanto as matrizes tericas que usam para explicar a nao incidem sobre seus posicionamentos relativos implantao de aes afirmativas para estudantes negros no Brasil.

Palavras-chave: Ao afirmativa. Estudantes negros. Intelectuais. Retrica progressista. Retrica conservadora.

ABSTRACT

The implementation of politics of affirmative action for black students in the Brazilian public universities generated an intense debate in several social spheres. The quarrels on the politics of affirmative action had not only mobilized organized actors of the Brazilian civil society as well as the national intelligentsia. In parallel to the debate installed in the media from 2002, an academic dispute around the subject was also initiated. To understand why this dispute so incited between the Brazilian intellectuals on the necessity or not of application of these politics do not constitute the main objective of the research. For this, the main proposals presented for social scientists, more specifically anthropology and sociology representatives will be analyzed. It has at least two well demarcated positions in social sciences regarding the subject: contrary intellectuals to the politics of affirmative action and those favorable. Its arguments will be analyzed from a tipology created for Albert Hirschman (1992). The authors who develop arguments in opposition to the affirmative actions are partisan of a called rhetoric of conservative, while the ones that defend such politics are classified as partisan of a progressive rhetoric. Hirschman delimits three theses of the rhetorical conservative that had been elaborated by intellectuals, many of them social scientists, at different times, evaluating politics as progressive and/or reformist: the thesis of the perversity, the thesis of the futility and the thesis of threat. For each thesis of the rhetorical conservative, the author elaborates progressive counterparts, originating pairs that oppose and complement each other. It is possible to conclude that the two rhetorical in shock reflect differentiated positions of intellectuals in relation to science and politics. Moreover, the partisans of the two rhetorical share diverse conceptions regarding important concepts used in Brazilian social sciences, especially of race and of mestization. As much as the entailing of the intellectuals to science and politics than the theoretical matrices that they use to explain the nation happens on its relative positionings to the implementation of affirmative actions for black students in Brazil.

Key words: Affirmative action. Black students. Intellectuals. Progressive rhetoric. Rhetorical conservative.

SUMRIO

1 INTRODUO .................................................................................................... 13 1.1 PRINCIPAIS ARGUMENTOS CONTRRIOS E FAVORVEIS ADOO DE POLTICAS DE AO AFIRMATIVA ..................................................................... 18 1.2 CONCEITUAO E OBJETIVOS DAS POLTICAS DE AO AFIRMATIVA. 20 1.3 BASES JURDICO-FILOSFICAS DAS AES AFIRMATIVAS .................... 23 1.4 O CAMINHO AT A APLICAO DE POLTICAS DE AO AFIRMATIVA NO BRASIL .................................................................................................................. 25 1.5 PROCEDIMENTOS METODOLGICOS ......................................................... 30 1.6 ESTRUTURA DA TESE ................................................................................... 31 2 A CONSTITUIO DO CAMPO CIENTFICO E/OU ACADMICO, O PAPEL DA RETRICA E A POSIO DOS INTELECTUAIS ................................................ 33 2.1 A CONSTITUIO DO CAMPO CIENTFICO E O LUGAR DAS CINCIAS SOCIAIS ................................................................................................................. 34 2.2 CINCIA E RETRICA .................................................................................... 40 2.2.1 Retrica ........................................................................................................ 40 2.2.2 A reabilitao da retrica............................................................................ 42 2.2.3 Cincia como retrica ................................................................................. 45 2.3 OS INTELECTUAIS E AS QUESTES POLTICAS ........................................ 47 2.4 AS RELAES ENTRE OS INTELECTUAIS, O CAMPO POLTICO E O CAMPO DA MDIA ............................................................................................................... 53

2.5 INTELECTUAL: A MORALIDADE DO COMPROMISSO ............................... 56 3 RAA, MESTIAGEM E NAO: RECORRENTES TOPOI DAS CINCIAS SOCIAIS BRASILEIRAS ....................................................................................... 59 3.1 TRAJETRIA DO CONCEITO DE RAA ........................................................ 62 3.2 A PREOCUPAO COM A RAA, O PROTAGONISMO DA MESTIAGEM E A INCORPORAO DAS TEORIAS RACIALISTAS PELOS INTELECTUAIS E OS HOMENS DE SCIENCIA NO BRASIL ................................................................. 64 3.3 O BRASIL MESTIO: A MISTURA DE RAAS ............................................... 72 3.4 AS NARRATIVAS DA NAO NO BRASIL ..................................................... 83 4 A RETRICA CONSERVADORA NO PENSAMENTO ACADMICO BRASILEIRO EM RELAO S POLTICAS DE AO AFIRMATIVA .............. 92 4.1 A RETRICA CONSERVADORA .................................................................... 93 4.1.1 A tese da perversidade relacionada aos trs momentos de reao s polticas progressistas e/ou reformistas............................................................ 95 4.1.2 A tese da futilidade relacionada aos trs momentos de reao s polticas progressistas e/ou reformistas ........................................................................... 97 4.1.3 A tese da ameaa ou do risco relacionada aos trs momentos de reao s polticas progressistas e/ou reformistas....................................................... 100 4.2 AS TRS TESES CONSERVADORAS EM RELAO POLTICA DE COTAS ............................................................................................................................... 102 4.2.1 A tese da perversidade ............................................................................... 103 4.2.2 A tese da futilidade...................................................................................... 106 4.2.3 A tese da ameaa ........................................................................................ 125 5 A RETRICA PROGRESSISTA NO PENSAMENTO ACADMICO BRASILEIRO EM RELAO S POLTICAS DE AO AFIRMATIVA ..................................... 141

5.1 CONTRAPARTIDA TESE DA AMEAA: O PRINCPIO DA SINERGIA OU DO APOIO MTUO ...................................................................................................... 142 5.2 CONTRAPARTIDA TESE DA FUTILIDADE: O PROGRESSO COM CARTER DE LEI .................................................................................................................... 143 5.3 CONTRAPARTIDA TESE DA PERVERSIDADE: INVOCAO DA SITUAO DE CRISE DESESPERADORA ............................................................................. 144 5.4 CONTRAPARTIDAS S TESES DA RETRICA CONSERVADORA EM RELAO S POLTICAS DE AO AFIRMATIVA ............................................. 144 5.4.1 A invocao da crise desesperadora ........................................................ 145 5.4.2 Estamos perdendo o trem da histria ....................................................... 147 5.4.3 A eficcia das polticas progressistas e/ou reformistas .......................... 149 5.5 OS LUGARES DA QUANTIDADE E OS LUGARES DA QUALIDADE ............ 152 5.6 MUDAR DE POSIO: UMA ATITUDE AUTO-SUBVERSIVA OU REVISIONISTA? .................................................................................................... 154 5.7 CONSELHOS AOS PROGRESSISTAS ........................................................... 161 6 CONCLUSO ..................................................................................................... 163 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...................................................................... 173

1 INTRODUO

O processo de implementao de aes afirmativas no Brasil, especialmente o estabelecimento de cotas para estudantes negros no ensino superior pblico, provocou uma enorme controvrsia, transformando-se em uma questo polmica sobre a qual no se tem consenso e que estimula diferentes posies de diversos setores da sociedade. As discusses sobre as polticas de ao afirmativa mobilizaram no somente atores organizados da sociedade civil brasileira como tambm a intelligentsia nacional. Os debates, desde pelo menos o ano de 2003, tornaram-se freqentes nos meios de comunicao, nas universidades, na Cmara dos Deputados, no Senado etc. Os argumentos que compem o debate estruturam um conjunto de opinies e teses que aparecem periodicamente na mdia, nos depoimentos dos representantes dos campos sociais produtores de discursos e nas relaes cotidianas das pessoas. Frente a todas essas discusses, um dos questionamentos que pode ser feito por que o estabelecimento de polticas de ao afirmativa mexe de forma to intensa com tantos campos da vida social? Uma resposta provisria a essa questo que o tema coloca em xeque uma certa atitude natural, nos termos de Schtz (1979, p. 81), em relao ao problema racial no Brasil. O pensar como sempre1 de muitos grupos questionado, pois tanto o mito da democracia racial quanto a ideologia da mestiagem perdem sua eficcia poltica e simblica no momento em que determinado setor da populao reivindica direitos at ento pouco requisitados. Ainda de acordo com Schtz, o pensar como sempre de determinados grupos ser mantido enquanto certas condies estiverem estabelecidas: a vida social permanecer mais ou menos a mesma, sem maiores alteraes; at quando houver possibilidade de confiana nos diversos tipos de conhecimentos que temos acesso; se mesmo com pouco conhecimento sobre os acontecimentos podemos control-los e, ainda, quando os cdigos de interpretao que possumos no pertencerem esfera pessoal de conhecimento e, da mesma forma, forem aceitos. Num primeiro exame parece que1

[...] inclui as suposies bvias relevantes para determinado grupo social, [...] bem como suas contradies e ambivalncias inerentes [...] (SCHTZ, 1979, p. 81).

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essa atitude natural perante a discriminao racial, que j vinha sendo questionada h algum tempo conforme comprovam vrios autores2, est definitivamente sendo colocada prova. Em paralelo ao intenso debate instalado na mdia a partir de 2002, iniciou-se tambm uma disputa acadmica em torno do tema. Antroplogos e socilogos, principalmente, mas tambm cientistas polticos, juristas, economistas, historiadores, entre outros representantes do campo acadmico, divulgaram argumentos favorveis e contrrios aplicao das cotas no ensino superior. Apesar de j existirem cerca de 51 universidades pblicas3 com algum tipo de poltica da ao afirmativa implementada, a rea das cincias sociais ainda se encontra explicitamente dividida entre os intelectuais contrrios e os favorveis a essas medidas. Entender o porqu dessa disputa to acirrada entre os intelectuais brasileiros sobre a necessidade ou no de aplicao dessas polticas constitui o objetivo principal desta pesquisa. Para isso, sero analisadas as principais proposies apresentadas pelos representantes das duas posies dentro das cincias sociais, mais especificamente da antropologia e da sociologia. Vrios autores sinalizam uma diviso de interpretao dos cientistas sociais brasileiros a respeito da implantao das polticas de ao afirmativa. Srgio Costa (2002a), em artigo sobre os dilemas do anti-racismo no Brasil, classifica as duas principais posies como anti-racismo integracionista e anti-racismo igualitarista. As posturas integracionista e igualitarista so as duas formas como se estruturou o antiracismo no Brasil. Tais posies podem ser encontradas no apenas no campo acadmico, mas tambm no campo poltico e, inclusive, nos movimentos sociais. De acordo com a categorizao do autor, os igualitaristas acreditam que para se chegar a uma igualdade substantiva na sociedade brasileira devem ser explicitadas as hierarquias raciais presentes nas relaes sociais. A implantao de2

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Desde a dcada de 1950, a forma como o racismo e a discriminao racial no Brasil eram interpretados foram questionados por autores como Florestan Fernandes, Oracy Nogueira, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso e, posteriormente, Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva, entre muitos outros autores. De acordo com levantamento realizado no primeiro semestre de 2008, pelo Laboratrio de Polticas Pblicas, responsvel pelo Programa Polticas da Cor na Educao Brasileira (PPCor), 51% das universidades estaduais e 42% das federais desenvolvem algum programa de ao afirmativa. Pelo menos 50% dessas instituies tm como beneficirios alunos negros, pobres ou oriundos da rede pblica de ensino. A maioria das instituies utiliza a poltica de cotas. Uma listagem completa das universidades que adotam algum tipo de ao afirmativa pode ser encontrada na pgina: www.lppuerj.net/olped/acoesafirmativas/univeridades_com_cotas-asp.

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polticas de ao afirmativa seria uma das formas de diminuir as desigualdades tnico-raciais no acesso a direitos de cidadania. J para os integracionistas, a dinmica cultural brasileira inclusiva e oferece uma convivncia efetiva entre os diferentes grupos de cor. Para os adeptos dessa corrente, o combate ao racismo deve ser feito mantendo-se as identidades fluidas entre os grupos. Ainda dentro desse entendimento, a realidade racial de cada pas precisa ser tratada em seus prprios termos e no devem ser utilizadas polticas produzidas por outras culturas e em contexto diverso4. A separao de posies dentro do campo anti-racista no especfica do Brasil. Wieviorka (1995) assinala uma diviso semelhante no contexto internacional, classificando dois tipos de anti-racismo: o anti-racismo universalista e o anti-racismo diferencialista. No primeiro caso, procura-se atingir polticas de carter universalista que no comportem qualquer tipo de dimenso identitria, por considerar que fenmenos como o racismo afetam indivduos e no grupos. O objetivo o estabelecimento de igualdade de direitos individuais. O pas que mais se identifica com essa orientao, ainda segundo o autor, a Frana, devido sua cultura poltica integracionista e republicana. A crtica mais contundente ao anti-racismo4

As noes de raa e etnia se encontram muitas vezes mescladas e so utilizadas indistintamente. No caso desta pesquisa necessrio salientar que se parte do pressuposto de que a categoria raa no denota uma hereditariedade biossomtica, mas resulta das percepes das diferenas fsicas incidirem nas relaes sociais de diferentes grupos. Se raa ainda possui validade enquanto uma noo sociolgica por que representa um signo importante para as relaes sociais. Porm, o interesse da sociologia seria pelas relaes raciais e no pela raa enquanto tal. Na interpretao de Wade (apud Poutignat e Streiff-Fenart 1998), mesmo considerando-se raa uma constituio social, acaba-se abordando a variao fenotpica como natural. O que deve ser feito, de acordo com o autor, salientar que as diferenciaes fenotpicas valorizadas so aquelas salientadas na expanso colonial europia nos demais continentes. As pesquisas sobre relaes raciais, portanto, so inseparveis da histria de um discurso ocidental e de suas conseqentes transformaes (POUTIGNAT; STREIFF-FENART 1998). J um grupo tnico pode ser definido no a partir de suas caractersticas comuns, mas na forma como produz e mantm suas diferenas em relao a outros grupos. Nesse caso a comunicao das diferenas (Poutignat e Streiff-Fenart 1998, p. 40) apropriadas pelos indivduos que estabelece as fronteiras tnicas. No caso do Brasil, o contingente negro da populao desde o perodo ps-abolio foi colocado numa situao no-tnica, o que no ocorreu com os indgenas. Apesar disso, amplas camadas da populao negra produziram uma cultura e um conjunto de valores comuns, que de certa forma as ajudaram na construo de uma identidade que as mobiliza nas lutas por seus direitos. Segundo Almeida (2000), este o momento do aparecimento de uma etnicidade negra no Brasil que at agora nunca tinha tido tanta visibilidade e que reivindica direitos de pertencimento ordem polticoeconmica ao que ainda resta do Estado-nao. A expresso grupos de cor est relacionada aos estudos efetuados por pesquisadores norteamericanos da dcada de 1940 at a dcada de 1960, os quais percebiam no Brasil a existncia de diferentes grupos de cor e no propriamente de diferenas raciais. Embora as expresses tnico e racial sejam usadas em alguns momentos deste trabalho de forma no-distinta preciso deixar claro que todas essas pressuposies so consideradas.

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universalista quanto a sua incapacidade de levar em considerao as realidades identitrias especficas de grupos submetidos a situaes de racismo, alm de outras formas de problemas interculturais. No segundo caso, as polticas anti-racistas apresentam uma dominante diferencialista, no sentido de que reconhecem a existncia de minorias e a necessidade da execuo de medidas especficas que cobam a discriminao a esses grupos. O pas que melhor exemplifica essa postura os Estados Unidos, seguido pelo Reino Unido. So caractersticas do anti-racismo diferencialista a adoo de polticas de ao afirmativa, ao positiva e equal opportunity policies. Os crticos do anti-racismo diferencialista, de acordo com Wieviorka (1995, p. 367), apontam o fato de que esses tipos de polticas podem privilegiar certos grupos em detrimento de outros, alm de reforar um tipo especfico de racismo, dos brancos pobres. Em outras palavras, os brancos pobres podem se sentir discriminados por no terem acesso s mesmas medidas que os negros e conseqentemente desenvolverem atitudes racistas. Outra crtica que as polticas de ao afirmativa podem ter o efeito de racializar a vida poltica em seus diversos nveis. Tanto as caractersticas dessas duas formas de anti-racismo, como as crticas que sofrem assemelham-se com o debate atualmente travado no Brasil. A posio da corrente integracionsita anloga do anti-racismo universalista. Aqui, como na Frana, h uma forte tradio de integrao republicana dos grupos sociais e no de diferenciao. J a corrente igualitarista aproxima-se do que Wieviorka qualifica como anti-racismo diferencialista. Isso no significa, entretanto, que a disputa que ocorre no Brasil uma reproduo do que est ocorrendo em nvel internacional, mas apenas indica a ampla ressonncia do tema. A antroploga Lilia Schwarcz (2005/2006) tambm prope uma diviso no tratamento da excluso racial no Brasil, mas diferentemente de Costa, ela no situa essa diviso dentro do que o autor denomina de anti-racismo. De acordo com sua interpretao, o tema pode ser equacionado a partir de pelo menos duas posies: uma delas defendida por aqueles que optam por polticas mais universalistas e medidas mais igualitrias, ao mesmo tempo em que recuperam uma matriz ibrica de nao assentada na mestiagem. Esses intelectuais no aceitam a poltica de cotas porque ela representaria uma racializao da sociedade brasileira. A outra posio representada por aqueles pesquisadores que, mesmo sabendo dos limites 16

do conceito de raa, o aplicam porque vem sua insero efetiva nas prticas sociais. Nesse caso, as polticas de ao afirmativa seriam uma das formas de grupos discriminados alcanarem equiparao de oportunidades em relao a grupos que se encontram historicamente em condies sociais mais favorveis. No caso desta pesquisa, tambm foi realizada uma diviso da posio dos intelectuais brasileiros em torno da implementao das polticas de ao afirmativa. Essas duas posies so classificadas, a partir de uma tipologia criada por Albert Hirschman5 (1989, 1992), da seguinte forma: os intelectuais contrrios s polticas de ao afirmativa desenvolvem o que Hirschman denomina de uma retrica conservadora e os intelectuais favorveis a essas medidas compartilham de uma retrica caracterizada como progressista. Feres Jnior (2005)6 tambm utiliza a tipologia de Hirschman no exame dos argumentos de intelectuais contrrios s aes afirmativas. Porm, o autor concentra sua anlise apenas na retrica conservadora, restringindo-se s teses da ameaa e do efeito perverso. Algumas questes apontadas por Feres Jnior sero retomadas em captulos posteriores. Conforme mais adiante ser devidamente elucidado, no se est fazendo uma anlise em termos de estilo de pensamento conservador ou progressista, mas sim em relao s idias desenvolvidas a respeito de uma determinada poltica social. A diviso dos argumentos dos intelectuais nesses dois tipos no significa que no existam diferenas internas em cada um dos grupos. Porm, h determinados elementos consensuais utilizados em ambas as retricas que permitem essa classificao. Isso no elimina a possibilidade de serem realizadas outras formas de classificao ou criadas outras tipologias.

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No estudo efetuado por Hirschman, conforme ficar explicitado nos captulos 4 e 5, o autor referese, em primeiro lugar, elaborao de uma retrica conservadora em diferentes perodos histricos, sempre que importantes polticas progressistas e/ou reformistas foram propostas. Em seguida, ele prope antteses complementares a cada uma das teses da retrica conservadora. Seu trabalho no se ateve anlise de polticas de ao afirmativa que, no caso desta pesquisa, esto sendo consideradas polticas de cunho progressista e/ou reformista. 6 O texto de Feres Jnior: Ao afirmativa no Brasil: a poltica pblica entre os movimentos sociais e a opinio douta, foi apresentado no Seminrio Internacional Aes afirmativas nas polticas educacionais: o contexto ps Durban, realizado de 20 a 22 de setembro de 2005, em Braslia. O paper alm de avaliar dois processos de implementao de polticas de ao afirmativa em universidades, trata da posio dos intelectuais em relao a essas polticas pblicas e sua presena na mdia. O texto foi gentilmente cedido pelo autor.

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1.1 PRINCIPAIS ARGUMENTOS CONTRRIOS E FAVORVEIS ADOO DE POLTICAS DE AO AFIRMATIVA

As polticas de ao afirmativa ganharam visibilidade no Brasil principalmente a partir do fato de a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) terem adotado cotas para estudantes negros7 no vestibular de 2003, em decorrncia da aplicao de uma lei estadual. O acontecimento ganhou evidncia imediata nos meios de comunicao de massa, sendo possvel observar uma postura extremamente parcial, num primeiro momento, tanto nas matrias de jornal quanto nas reportagens de televiso. Em sua maioria, os meios de comunicao assumiram uma posio visivelmente contrria ao estabelecimento de cotas para estudantes negros nas universidades. Apesar desse episdio ter gerado uma maior repercusso, a Universidade de Braslia (UnB) iniciou em 1999 um processo de discusso a respeito de uma proposta de cotas, que seria aprovada em 2003, atravs de uma iniciativa da prpria universidade. No Brasil, a discusso desse tema, a exemplo do que recentemente aconteceu nos Estados Unidos, tambm vem acompanhada de polmica. No entanto, l o debate ocorre depois de pelo menos quatro dcadas de implementao de tais polticas, enquanto aqui a disputa situa-se em termos da necessidade ou no da sua aplicao. Alguns dos principais argumentos contrrios aplicao de cotas no ensino superior brasileiro, que podem ser encontrados em publicaes especializadas e nos meios de comunicao, em geral so os seguintes8:7

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O estabelecimento de cotas para a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e para a Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Vargas (UENF) foi regulamentado pela Lei Estadual 3.524/2000, que em seu artigo 2 reserva 50% das vagas nos cursos de graduao das duas universidades para candidatos que tenham freqentado a escola pblica durante todo o perodo escolar. J a Lei Estadual 3.708/2001, em seu artigo 1, reserva 40% de vagas nos cursos de graduao de ambas as instituies para negros e pardos. Para maiores detalhes sobre o processo seletivo das duas universidades, consultar: Cincia Hoje, n. 29, onde h um extenso artigo que trata da questo. Essa lei foi modificada em 14 de agosto de 2003 e atualmente estabelece que 20% das vagas sero destinadas a estudantes da rede pblica de ensino, 20% a candidatos negros e 5% a estudantes portadores de deficincias fsicas e integrantes de minorias tnicas. A maioria dos autores que trata do tema das aes afirmativas discute sobre a argumentao contrria implementao dessas polticas. Entre eles pode-se destacar: CONTINS, Mrcia; SANTANA, Luis Carlos (1996), GOMES, Joaquim B. Barbosa (2000) e GUIMARES, Antonio Srgio (1999), entre muitos outros.

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A adoo de polticas de ao afirmativa demanda o reconhecimento das diferenas tnicas e raciais dos brasileiros e isso contraria um iderio valorizado a respeito da mestiagem.

As aes afirmativas causaro uma diviso perigosa entre negros e brancos no Brasil.

A aplicao de polticas de ao afirmativa implica necessariamente a retomada do conceito de raa, apesar do fato de os defensores dessas medidas afirmarem que o termo se refere a uma construo social e no biolgica.

A defesa da igualdade de tratamento dos indivduos de acordo com o mrito.

A dificuldade de classificao dos sujeitos dessas polticas em decorrncia da existncia de uma populao mestia.

A falta de consenso, mesmo dentro da academia, de que as desigualdades raciais, apesar de correlatas questo de classe, so distintas das desigualdades de classe.

O fato de esse tipo de poltica no beneficiar a populao negra em geral, mas apenas uma pequena parcela dessa populao.

A resoluo do problema das desigualdades tnicas viria com a implantao de polticas universalistas e no de polticas

diferencialistas ou focalistas. Os negros contemplados com a poltica de cota racial seriam ainda mais discriminados e estigmatizados.

Alguns dos principais argumentos favorveis implementao de cotas no ensino superior brasileiro, que pretendem justificar a legitimidade desse procedimento, so9:

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Os argumentos favorveis aplicao das polticas de ao afirmativa foram retirados especialmente das obras de CARVALHO, Jos Jorge de (2004, 2005a e b); SEGATO Rita Laura (2005/2006); FERES JNIOR, Joo (2006).

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Reparao as cotas funcionam como um mecanismo de justia reparatria pelos 300 anos de escravido. Seriam tambm uma espcie de compensao que a comunidade negra reivindica por uma dvida que a sociedade brasileira como um todo tem para com esse contingente populacional.

Cobrana de um direito apesar de a Constituio de 1988 garantir a todos os cidados tratamento igual em relao aos servios pblicos oferecidos pelo Estado, imensa a desigualdade de participao da comunidade negra nas universidades quando comparada dos brancos. Nesse sentido, as cotas representariam a concesso de um direito j previsto constitucionalmente.

Promoo da diversidade tnica e social a presena de negros e ndios seria uma forma de enriquecer o ambiente acadmico. Esse argumento diz respeito prpria dinmica da instituio universitria, pois a presena de negros e indgenas diversificaria a produo de saberes e poderia provocar uma reviso em contedos eurocntricos, alm de proporcionar o contato com a diversidade de culturas, modos de vida, vises de mundo etc.

Intensificao da luta anti-racista propor cotas uma forma de abrir uma discusso at h pouco tempo muito silenciada sobre o racismo no Brasil. Essa seria uma das formas de reconhecer que as prticas racistas esto presentes no ambiente acadmico e que preciso discutir sobre isso e tomar posies.

1.2 CONCEITUAO E OBJETIVOS DAS POLTICAS DE AO AFIRMATIVA

De acordo com o socilogo Edward Telles (2003), as polticas sociais do Brasil que procuram combater o racismo podem ser divididas em dois grupos: legislao anti-racismo e ao afirmativa. No primeiro caso, as pessoas podem recorrer lei aps terem sofrido discriminao. Este tipo de legislao existe desde 1951, porm leis mais eficazes s surgiram em 1988, com a nova Constituio. No

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segundo

caso,

busca-se

prevenir

a

discriminao

e

contribuir

para

o

estabelecimento de uma justia reparatria. Para isso, as polticas de ao afirmativa incluem uma ampla srie de mecanismos que visam criar oportunidades iguais e reduzir o racismo. As aes afirmativas podem utilizar cotas numricas ou outros tipos de medidas como, por exemplo, pontos de bonificao, entre outras. . O pas com experincia histrica mais prolongada na aplicao de polticas de ao afirmativa a ndia10. O sistema foi implantado desde 1948, ainda sob domnio ingls, e aps a independncia foi ratificado. Um dos exemplos dessas polticas so as medidas que ampararam os chamados intocveis (dalits) e lhes garantiram acesso a empregos pblicos e a universidades (CARVALHO, 2005; DADESKY, 2001 e FERES JNIOR, 2006). J nos Estados Unidos as aes afirmativas foram implantadas somente na dcada de 1960, em grande parte como resultado da luta da populao negra pelos direitos civis. A expresso affirmative action foi utilizada pela primeira vez em um documento oficial, a Executive Order n 10.925, expedida pelo presidente John F. Kennedy dois meses aps assumir a presidncia, em 1961. O texto estabelecia a criao de uma Comisso Presidencial sobre Desigualdade no Emprego (WALTERS, 1995 e MENEZES, 2001). Apesar de a ndia ter sido o primeiro pas a adotar as polticas de ao afirmativa, a recepo do tema no Brasil veio especialmente dos Estados Unidos. Feres Jnior (2006) destaca algumas razes para a significativa influncia da experincia norte-americana. A primeira delas refere-se s similitudes histricas entre os dois pases, que se constituem nas maiores colnias europias a utilizarem o trabalho escravo dos africanos e de seus descendentes. Em segundo lugar, h a forte influncia mundial da cultura norte-americana. Uma terceira razo que as formas de luta e mobilizao do movimento negro dos Estados Unidos tornaram-se uma referncia muito importante para o movimento negro no Brasil. Em quarto lugar pode-se citar a dominncia do modo norte-americano de tratar com a questo racial em diferentes organismos e instituies internacionais e a dependncia do Brasil em

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O intelectual indiano Bhimrao Ramji Ambedkar foi lder dos dalits e conseguiu colocar na Constituio da ndia independente, em 1948, a necessidade de cotas (tratamento preferencial) para os dalits e outros grupos tribais no sistema educacional e no servio pblico.

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relao a eles. E, por fim, a crescente ascendncia de autores norte-americanos na academia brasileira. As polticas de ao afirmativa representaram uma mudana drstica na postura do Estado, que passou a levar em conta em suas decises fatores como raa, cor, sexo e origem nacional. O princpio de neutralidade estatal fundamental s sociedades liberais passou a ser questionado, pois o Estado teve que renunciar a essa postura e assumir uma posio ativa em defesa de grupos historicamente subordinados e discriminados. Num primeiro momento, as aes afirmativas foram definidas como uma espcie de encorajamento dado pelo Estado a pessoas ou instncias com certo poder decisrio em reas pblicas, para que considerassem nas decises relacionadas educao e ao mercado de trabalho condies que poderiam provocar desvantagem a determinados grupos. Posteriormente, por volta da dcada de 1960 e incio da dcada de 1970, nos Estados Unidos, em decorrncia da ineficcia dessas medidas tmidas foi desenvolvida a idia da igualdade de oportunidades, atravs da implementao de cotas, com o objetivo de favorecer a presena de negros e mulheres no mercado de trabalho e em instituies de ensino. Fica explcita ento uma concepo de igualdade que difere da igualdade liberal. O que se busca chegar a uma igualdade de fato e no a uma suposta igualdade em abstrato. Segundo Gomes (2003, p. 20), h uma mudana na concepo de igualdade, que ultrapassa uma noo esttica ou formal para chegar a uma noo substancial. O ser humano passa a ser encarado a partir de sua especificidade. Ainda segundo o autor, quando o Estado adota polticas de ao afirmativa ou, de acordo com a terminologia do direito europeu, de discriminao positiva, ele abandona a posio de neutralidade e passa a atuar efetivamente no sentido de proporcionar a seus cidados igualdade jurdica e social. Uma das definies de ao afirmativa utilizada no Brasil foi formulada por Joaquim Barbosa Gomes (2003, p. 27), ministro do Superior Tribunal Federal:

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[...] um conjunto de polticas pblicas e privadas de carter compulsrio, facultativo ou voluntrio, concebidas com vistas ao combate discriminao racial, de gnero, por deficincia fsica e de origem nacional, bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminao praticada no passado, tendo por objetivo a concretizao do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educao e o emprego.

Ainda de acordo com a interpretao de Gomes (2001, p. 44), muitos objetivos justificam a implementao de polticas de ao afirmativa. O principal deles a concretizao do ideal da igualdade de oportunidades. Essa poltica possibilita a obteno de uma igualdade concreta, j que o ideal de uma igualdade formal, presente na maioria das constituies, torna-se difcil de ser alcanado sem estratgias que favoream grupos ou indivduos que se encontram em situaes desfavorveis ou desvantajosas perante outros grupos ou segmentos sociais. Outro objetivo apontado pelo autor o de induzir a transformaes culturais, pedaggicas e psicolgicas nas sociedades em que tais aes so aplicadas, visto que elas possuem um carter de exemplaridade. Alm disso, as aes afirmativas visam eliminar as persistentes conseqncias da discriminao, que tendem a se perpetuar, como tambm abolir as barreiras invisveis que impedem o desenvolvimento de determinados grupos discriminados, como por exemplo os negros e as mulheres. Gomes tambm chama a ateno para o fato de que, por meio das aes afirmativas, possvel implementar uma certa diversidade dos grupos minoritrios em diversos setores, tanto pblicos quanto privados. Um ltimo objetivo relevante para colocar em prtica essas aes seria o de criar personalidades emblemticas que serviro de exemplo e incentivo para as geraes mais jovens.

1.3 BASES JURDICO-FILOSFICAS DAS AES AFIRMATIVAS

As aes afirmativas podem ser fundamentadas por diversos postulados filosficos e jurdicos. Dois desses princpios se destacam: o da justia compensatria e o da justia distributiva. No caso da justia compensatria, o argumento central seria o de corrigir os efeitos de discriminaes passadas ou

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ressarcir danos causados por diferentes agentes poder pblico, determinadas pessoas ou grupos. Dentro dessa viso, a melhor forma de reparar esses danos seria aumentar as possibilidades das vtimas de obterem melhores condies de emprego, de acesso educao e a posies de prestgio. O problema com esse tipo de fundamentao que somente os responsveis pelos atos devem ser penalizados e apenas as vtimas reais podem ser de alguma forma ressarcidas (GOMES, 2001; MENEZES, 2001). O argumento da justia distributiva o que melhor fundamenta a aplicao das aes afirmativas. O pressuposto dessa noo o de que os indivduos ou os grupos sociais tm o direito de reivindicar determinadas vantagens, benefcios ou direitos, porque as condies em que vivem no possibilitam tal eqidade em relao a outros indivduos ou grupos. A ao afirmativa, nesse caso, permitiria uma igualdade proporcional na distribuio de direitos, privilgios e nus entre os membros da sociedade (MENEZES, 2001, p. 38). Ronald Dworkin um dos autores que defende a tese distributivista, porm sua argumentao est baseada na utilidade social. Para esse autor, alm do fato de a ao afirmativa favorecer a uma maior participao de certos grupos na sociedade, ela ainda teria por finalidade proporcionar a reduo das desigualdades sociais para a sociedade como um todo. Portanto, os custos que teriam que ser suportados, mesmo por aqueles indivduos ou grupos no beneficiados por essas polticas, poderiam ser justificados porque elas acabam se revertendo em um bem maior para toda a comunidade (GOMES, 2001; MENEZES, 2001). Algumas vertentes do multiculturalismo, especialmente a derivada dos trabalhos de Charles Taylor, tambm so utilizadas para justificar as polticas de ao afirmativa. De acordo com a interpretao de Taylor (1994), os cidados com identidades e etnias diversas das dominantes devem ser representados com eqidade perante os Estado e suas instituies. Porm, o que muitas vezes ocorre que esses grupos no tm suas especificidades reconhecidas. Tanto o no reconhecimento quanto o reconhecimento incorreto podem ser formas de opresso que alteram o modo de ser dos indivduos, provocando danos estruturais em sua personalidade. Essas formas de no reconhecimento ou de

reconhecimento precrio ou distorcido esto relacionadas discriminao e ao preconceito disseminados na sociedade, o que dificulta o alcance de uma sociedade 24

mais igualitria. As aes afirmativas, de acordo com essa interpretao, no visam somente a concesso de direitos materiais a determinados grupos, mas implicam o reconhecimento de que o respeito devido no um acto de gentileza para com os outros. uma necessidade humana vital (TAYLOR, 1994, p. 46). Nesse sentido, a utilizao de polticas de ao afirmativa pode ser justificada pela adoo do princpio do reconhecimento das diferenas, considerando que os diversos grupos presentes em determinada sociedade esto expostos a condies desiguais no acesso a bens e a direitos materiais ou simblicos.

1.4 O CAMINHO AT A APLICAO DE POLTICAS DE AO AFIRMATIVA NO BRASIL

Apesar de as aes afirmativas se constiturem em uma prtica recente e fomentarem uma ampla discusso no Brasil, possvel assegurar que o contexto social e histrico para que isso acontecesse estava se configurando desde a dcada de 1980. Alguns eventos que aconteceram no Brasil a partir do processo de redemocratizao e no exterior colaboraram para que o tema atingisse tamanha amplitude. Hoje existe uma rede que atua em prol dessas polticas formada por diversas organizaes do movimento negro, por intelectuais, por organismos e agncias nacionais e internacionais que financiam projetos de ao afirmativa, alm de rgos governamentais. Uma srie de acontecimentos ocorridos em um passado recente contriburam para que essa rede se tornasse efetiva. Primeiro, pode-se citar o chamado ressurgimento do movimento negro no Brasil, que comeou em meados dos anos 1970, a exemplo de outros movimentos sociais. Uma das principais organizaes polticas criadas no final da dcada de 1970 no Brasil foi o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminao Racial (MNUCDR), que depois se transformaria em Movimento Negro Unificado (MNU). Outros grupos importantes surgidos nessa poca foram os de origem religiosa, como as Pastorais Negras, as Comisses de Padres Negros e o Grupo Unio e Conscincia Negra, alm de inmeras Organizaes No-Governamentais (ONGs). Esse ressurgimento, segundo Hasenbalg e Silva (1993), deve-se principalmente formao de uma parcela ascendente e educada da populao negra que sentiu 25

dificuldades em seu projeto de mobilidade social devido discriminao racial. Alm disso, houve o impacto de fatores externos, como a campanha pelos direitos civis nos Estados Unidos e as lutas pela libertao colonial na frica. O movimento, ainda segundo os autores Hasenbalg e Silva (1993, p. 149), tem como caractersticas a crtica s vises de mundo eurocntricas, a recusa do ideal do embranquecimento, um retorno s razes, uma adeso negritude e uma revalorizao da frica de origem. O movimento negro faz ainda uma crtica contundente ao mito da democracia racial e ao racismo existente na sociedade brasileira. Um outro fator que permitiu o aparecimento dessa discusso foi a reintroduo do quesito cor/raa no censo de 1980, o que possibilitou a elaborao de indicadores econmicos e sociais relativos populao negra. No ano de 1985 foi promulgada uma nova lei11 contra o racismo, que considera qualquer prtica discriminatria como crime inafianvel. Outro momento importante foi a comemorao do centenrio da abolio da escravatura no Brasil, em 1988. Hanchard (2001) sustenta que esse foi um dos acontecimentos mais importantes para o movimento negro brasileiro, depois da Segunda Guerra Mundial, por duas razes. Uma delas que a comemorao proporcionou que as desigualdades raciais fossem um dos temas centrais do debate nacional. A outra que as comemoraes de sociedades multirraciais so geralmente uma

oportunidade dos grupos subalternos contestarem a identidade nacional. Embora os festejos tenham a inteno de suspender os antagonismos, o que freqentemente ocorre que as relaes de desigualdade aparecem com maior nitidez. O ano de 1988 foi significativo, pois alm dos eventos comemorativos ao centenrio da abolio houve tambm a promulgao da Constituio, na qual consta o artigo 68, que prev o reconhecimento de propriedade das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos. Ainda nesse ano foi criada a Fundao Palmares vinculada ao Ministrio da Cultura com o objetivo de formular e implantar polticas pblicas voltadas para a populao negra. Em 1995, em comemorao aos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares, os movimentos negro e sindical, alm de diferentes ONGs, organizaram a Marcha Zumbi dos Palmares contra o racismo, pela cidadania e a vida, na cidade de Braslia. Essa foi11

A Lei Ca Lei n 7.437, de 20 de dezembro de 1985, inclui entre as contravenes penais, a prtica de atos resultantes de preconceito de raa, cor, de sexo ou de estado civil.

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uma das maiores manifestaes de rua contra o racismo no Brasil e que no tinha apenas carter de protesto, mas reivindicou aes anti-racistas concretas e polticas pblicas especficas para a populao negra por parte do Estado. No ano seguinte, 1996, o ento presidente Fernando Henrique Cardoso criou o Grupo de Trabalho Interministerial, encarregado de pensar e elaborar projetos direcionados para a melhoria da qualidade de vida da populao negra. Tambm houve a realizao do seminrio Ao afirmativa e multiculturalismo, organizado pelo governo brasileiro e com a participao de vrios acadmicos brasileiros e norte-americanos que se reuniram para discutir as polticas de ao afirmativa para o Brasil em comparao com as desenvolvidas nos Estados Unidos. No ano de 2001 ocorreu a 3 Conferncia Mundial Contra o Racismo, a Discriminao Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerncia, em Durban, frica do Sul. Nela o Brasil assumiu o compromisso de desenvolver polticas de ao afirmativa para a populao negra. Essa conferncia constituiu-se em um marco internacional da luta anti-racista e da promoo de polticas de ao afirmativa. Em maro de 2003 o governo federal criou a Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial (SEPPIR), que tem como competncia a coordenao de polticas de ao afirmativa para a proteo dos direitos de indivduos e grupos raciais e tnicos, com nfase na populao negra. Faz parte da SEPPIR o Conselho Nacional de Promoo da Igualdade Racial, constitudo por representantes de entidades e instituies da sociedade civil. Tambm foi organizada a Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (SECAD), que desenvolve polticas pblicas e educacionais que visam o acesso e a permanncia de estudantes negros em todos os nveis educacionais. Ainda em 2003, foi sancionada a Lei 10.639, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de histria e cultura afro-brasileira na Educao Bsica. A criao e o fortalecimento de programas e ncleos de pesquisas para estudos relativos s relaes raciais nas universidades brasileiras tambm contribuem para o estabelecimento de polticas pblicas voltadas para a populao negra. Ncleos de Estudos Afro-brasileiros (NEABs) espalhados por vrias universidades do pas e o Programa Polticas da Cor (PPCor) uma rede de projetos de aes afirmativas que desenvolve pesquisas e projetos e promove a

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edio de livros e documentos no campo das relaes raciais so exemplos dessas iniciativas. A elaborao e a divulgao de pesquisas com dados desagregados com relao questo tnico-racial tambm colaborou para a disseminao de informaes sobre uma parte da realidade at ento pouca conhecida. Pode-se citar como exemplos o nmero de pessoas afetadas pela AIDS e o registro de homicdios que passam a levar em considerao a cor. O Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Socioeconmicos (DIEESE)12 tambm realiza estudos sobre a populao negra em mercados de trabalho metropolitanos. O Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) lanou o Atlas Racial Brasileiro13 - um banco de dados eletrnico que rene a mais ampla srie histrica de indicadores sociais desagregados por raa/cor j produzida no Brasil. O mrito dessas iniciativas reside em dar visibilidade e tornar acessveis informaes que, apesar de se originarem de bases pblicas, permaneciam fora do alcance geral. Esse banco de dados disponibiliza mais de 100 indicadores sociais abertos por raa/cor para o Brasil e, sempre que possvel, desagregados por sexo, por grandes regies e por unidades da federao. De 30 de junho a 2 de julho de 2005 foi realizada a 1 Conferncia Nacional de Promoo da Igualdade Racial, com o objetivo de construir um Plano Nacional de Promoo da Igualdade Racial. Nos dias 28 e 29 de junho, que antecederam a Conferncia, houve a realizao de um Painel Internacional sobre Aes Afirmativas e os Objetivos de Desenvolvimento do Milnio. Os objetivos do milnio14 so uma proposio internacional coordenada pela Organizao das Naes Unidas (ONU) como forma de acelerar o processo de incluso social. A finalidade do painel foi refletir sobre as polticas de ao afirmativa no contexto do Desenvolvimento do Milnio. Participaram da atividade convidados internacionais, representantes governamentais e no-governamentais de diversos pases, especialmente da frica, da Amrica Latina e do Caribe, o que denota uma ateno internacional relacionada12

Verificar no endereo www.dieese.org.br os estudos do DIEESE relativos populao negra, como por exemplo, o Mapa da Populao Negra no Mercado de Trabalho, A mulher negra no mercado de trabalho metropolitano: insero marcada pela dupla discriminao, entre outros. 13 Consultar o seguinte endereo: http://www.pnud.org.br/publicacoes/atlas_racial/index.php. 14 Os objetivos so os seguintes: erradicar a extrema pobreza e a fome, atingir o ensino bsico universal, promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres, reduzir a mortalidade na infncia, melhorar a sade materna, combater o HIV/AIDS, a malria e outras doenas, garantir a sustentabilidade ambiental e estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento.

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ao tema da incluso de grupos que sofrem algum tipo de discriminao, especialmente negros e indgenas. Estiveram presentes na conferncia cerca de 1.100 delegados escolhidos nas plenrias estaduais anteriores ao encontro nacional, alm de 365 convidados. A conferncia representou o compromisso do governo com relao concesso de direitos, principalmente s populaes negras j que contou com a presena de muitos ministros e representantes do governo em suas diferentes instncias , alm de demonstrar a articulao de inmeras organizaes participantes do movimento negro nacional. A presena de Clare Roberts Presidente da Comisso Interamericana de Direitos Humanos da Organizao dos Estados Americanos (OEA) e Relator da Relatoria Especial dos Afrodescendentes da OEA em uma das mesas da conferncia demonstrou que a preocupao com polticas pblicas que atendam os afrodescendentes no exclusiva do Brasil, mas perpassa o continente americano. O Projeto de Lei (PL) 73/9915 constitui uma matria que se transformada em lei vai estabelecer a obrigatoriedade do sistema de cotas para todas as Instituies Federais de Ensino Superior (IFES). Alm desse projeto de lei, h tambm o Estatuto da Igualdade Racial, proposto pelo senador Paulo Paim, que se encontra em tramitao no Congresso Nacional desde o ano de 1998. O objetivo principal do estatuto estabelecer critrios para o combate discriminao racial de cidados afro-brasileiros. O documento contm 85 artigos que abordam os seguintes temas: o acesso justia, a criao de ouvidorias, o funcionamento dos meios de comunicao, o sistema de cotas raciais, o mercado de trabalho, os direitos dos quilombolas, os direitos da mulher afro-brasileira, incentivos financeiros, religio, cultura, esporte e lazer.

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O projeto, de autoria da deputada Nice Lobo, estabelece que as Instituies Federais de Ensino Superior (IFES) devem reservar 50% de suas vagas para estudantes oriundos de escolas pblicas, alm de respeitar em suas matrculas a proporo de negros e indgenas existente na regio da instituio.

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1.5 PROCEDIMENTOS METODOLGICOS

A pesquisa foi realizada por meio de anlise bibliogrfica e teve como objetivo mapear os principais argumentos elaborados pelos intelectuais brasileiros, especialmente cientistas sociais, em relao s polticas de ao afirmativa. Foram utilizados como fontes de pesquisa16 livros, peridicos de circulao nacional17, revistas e publicaes especializadas. Alm disso, foram transcritas fitas de palestras que tratavam sobre o tema em encontros acadmicos, seminrios sobre aes afirmativas, alm de gravaes de audincias na Cmara Federal e no Senado. Apesar de a pesquisa estar alicerada basicamente em investigao documental, foi fundamental a participao da pesquisadora em outras instncias. O fato de ter feito parte da Comisso de Poltica de Ampliao de Oportunidades de Acesso Socioeconmico e Diversidade tnico-racial para ingresso na UFSC /Processo Vestibular18, possibilitou o acesso a muitas informaes relativas adoo de polticas de ao afirmativa em vrias universidades do pas, alm da participao em debates nos mais variados locais como a prpria universidade, as escolas pblicas de ensino mdio e os Centros Federais de Educao Tecnolgica (CEFETs). Foi possvel observar a tentativa de implementao de uma poltica pblica na prtica, as foras atuantes, as dificuldades a serem enfrentadas, entre muitos outros fatores. Houve tambm o contato com diferentes atores sociais, desde16

Os dados foram coletados a partir do ano 2000, embora seja a partir do ano 2003 que a discusso tenha se tornado mais presente nos meios de comunicao. 17 Os principais jornais utilizados foram: Folha de S. Paulo, O Estado de So Paulo e O Globo. 18 A pesquisadora fez parte da Comisso como representante do Centro de Filosofia e Cincias Humanas, juntamente com a Professora Ilse Scherer-Warren. A Comisso foi criada pela Portaria 195/GR/2006 de 03/04/2006 com o objetivo de elaborar uma proposta de ao afirmativa para a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ela composta por representantes dos Centros de Ensino, dos sindicatos dos docentes e tcnico-administrativos, dos movimentos negro e indgena, da Comisso Permanente de Vestibular (COPERVE) e da Secretaria de Estado da Educao, Cincia e Tecnologia. No dia 10 de julho de 2007 o Conselho Universitrio aprovou a Resoluo Normativa n 008/CUN/2007, que criou o Programa de Aes Afirmativas da UFSC. O Programa atende especificamente estudantes oriundos de escolas pblicas, estudantes negros e estudantes indgenas. Foi estipulado pelo Programa de Aes Afirmativas que no acesso aos cursos de graduao ser destinado 30% das vagas do vestibular, em cada curso, distribudas da seguinte forma: 20% para candidatos que tenham cursado integralmente os ensinos fundamental e mdio em instituies pblicas de ensino; 10% para candidatos autodeclarados negros, que tenham cursado integralmente o ensino fundamental e mdio em instituies pblicas de ensino. Aos candidatos pertencentes aos povos indgenas sero criadas cinco vagas complementares, observando-se o limite de duas vagas por curso. O programa foi aplicado no vestibular de 2008.

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intelectuais engajados na luta pela implementao de polticas de ao afirmativa, at profissionais, professores e estudantes do ensino mdio pblico.

1.6 ESTRUTURA DA TESE

No segundo captulo analisada inicialmente a constituio do campo cientfico, utilizando-se especialmente as concepes de Pierre Bourdieu,

Boaventura de Sousa Santos e Bruno Latour. Em seguida, examinado o processo de reabilitao da retrica e sua importncia para o entendimento da configurao do campo cientfico. Para isso, utilizada a teoria da nova retrica desenvolvida por Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), responsveis pela renovao da retrica e pela ampliao de seu significado. O uso dessa categoria importante porque na compreenso de Santos e Latour a cincia considerada uma atividade retrica, pois em ltima instncia visa o convencimento e a persuaso. Em seguida, procedese analise do papel dos intelectuais no interior do campo cientfico, estabelecendo sua relao com outros campos como o da poltica e o da mdia. Na seqncia, no terceiro captulo, so escolhidos trs temas ou topoi, devido a sua constante presena nas cincias sociais brasileiras: a raa, a mestiagem e a nao. Esses temas tero sua trajetria recuperada no interior das cincias sociais brasileiras, por meio de alguns autores como Lilia Schwarcz, Thomas Skidmore e Giralda Seyferth, entre outros. Primeiramente apresentada uma sntese do significado do conceito de raa. Logo aps, realizada uma anlise de como a questo racial tornou-se uma fonte de preocupao para a elite intelectual e poltica do pas. Finalmente, examinada a utilizao dessas categorias no discurso dos intelectuais contrrios e favorveis s polticas de ao afirmativa. A retrica conservadora a temtica especfica do quarto captulo. Inicialmente demonstrado como esse tipo de retrica se desenvolveu sempre que polticas avaliadas como progressistas e/ou reformistas foram colocadas em prtica no Ocidente. A partir da anlise de Hirschman a respeito de trs momentos especficos da histria ocidental: a revoluo francesa, o sufrgio universal e o welfare state, pode-se observar como a retrica conservadora foi organizada, de forma mais ou menos consciente, em oposio a essas transformaes. Esse tipo 31

de retrica, por sua vez, pode ser dividido em trs principais teses: a tese da perversidade, a tese da futilidade e a tese da ameaa. Num segundo momento, a tipologia criada por Hirschman ser utilizada para a anlise e a classificao dos argumentos contrrios s cotas para estudantes negros, elaborados pelos cientistas sociais brasileiros. Nesse caso, sero localizadas e desenvolvidas as trs teses acima citadas em relao aos discursos produzidos pelos intelectuais. O quinto captulo tratar especificamente da retrica progressista. Da mesma forma que no captulo precedente, em primeiro lugar sero apresentadas as contrapartidas progressistas criadas pelo autor em contraposio retrica conservadora. Para, depois, aplic-las retrica progressista desenvolvida pelos intelectuais brasileiros. preciso acrescentar que a tipologia de Hirschman foi parcialmente utilizada, pois foram criadas outras antteses retrica conservadora para a anlise dos discursos progressistas sobre as aes afirmativas. Finalmente, possvel concluir que as duas retricas em embate refletem posturas diferenciadas dos intelectuais em relao cincia e poltica. Alm disso, os partidrios das duas retricas partilham de concepes diversas a respeito de conceitos importantes usados nas cincias sociais brasileiras, especialmente o de raa e o de mestiagem. Tanto a vinculao dos intelectuais com a cincia e a poltica quanto as matrizes tericas que usam para explicar a nao, incidem sobre seus posicionamentos relativos implementao de aes afirmativas para estudantes negros no Brasil.

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2 A CONSTITUIO DO CAMPO CIENTFICO E/OU ACADMICO, O PAPEL DA RETRICA E A POSIO DOS INTELECTUAIS

A noo de campo cientfico implica o entendimento de que h uma lgica prpria de configurao da cincia, que lhe confere certa autonomia em relao a outras esferas. No caso desta pesquisa, relevante a anlise da constituio do campo cientfico, particularmente o das cincias sociais, pois no debate sobre a implementao de aes afirmativas no ensino superior no Brasil os intelectuais contrrios e favorveis a essas medidas sustentam opinies divergentes tanto em relao ao papel da cincia quanto de suas posies no interior do campo e fora dele. Nesse sentido, torna-se importante refletir sobre o campo cientfico e distinguir a sua vinculao com outros campos, como o da poltica e o da mdia. Uma das principais caractersticas do campo cientfico o uso da retrica. Ela utilizada justamente como um instrumento na luta pelas posies de poder no interior do campo. Boaventura de Sousa Santos (1989, 2000, 2004 e 2005) e Bruno Latour (1994 e 2000) afirmam que a cincia uma atividade retrica porque procura atingir, em ltima instncia, o convencimento e a persuaso. A delimitao de elementos da atual configurao do campo cientfico brasileiro, com nfase nas cincias sociais, procurar demonstrar que existem pelo menos duas formas de retrica em disputa em relao s polticas de ao afirmativa: uma retrica conservadora e uma retrica progressista. Ao considerarmos a cincia como uma atividade retrica, possvel perceber que essas duas retricas so vlidas na medida em que utilizam argumentos e teorias que visam o convencimento de um determinado auditrio1, seja acadmico ou de um pblico mais amplo. O que determinar a posio dos intelectuais em cada lado dessa disputa no sero somente as retricas desenvolvidas acerca do tema, mas tambm sua postura poltica, que, alis, dificilmente se desvincula da cientfica.

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A noo de auditrio ser examinada ainda nesse captulo.

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1.1.2.1 A CONSTITUIO DO CAMPO CIENTFICO E O LUGAR DAS CINCIAS SOCIAIS

A discusso sobre a relao entre o conhecimento cientfico, os valores e as condies sociais no recente na sociologia2. Merton promoveu uma espcie de inverso da problemtica epistemolgica de Max Weber. Enquanto para o segundo os valores permanecem com um significado epistemolgico, o primeiro transfere a problemtica dos valores de um foco epistemolgico para um sociolgico (MATTEDI, 2004, p. 46-47). Esse deslocamento efetuado por Merton permite que a cincia seja considerada uma esfera institucionalizada e parcialmente autnoma. Para o autor, portanto, o que garantiria a autonomia do campo cientfico seria o respeito dos cientistas a um conjunto de normas, impedindo que a cincia estivesse completamente sujeita poltica e economia. Por outro lado, ser o Programa Forte em Sociologia do Conhecimento3 que ir dessacralizar a imagem da cincia, demonstrando que o conhecimento cientfico est diretamente relacionado com a ordem social. Dessa forma, o Programa Forte redefine o papel dos fatores sociais na produo do conhecimento cientfico. Esse debate ter continuidade com os trabalhos desenvolvidas por Bruno Latour e Michel Callon na dcada de 1980, que criaram o conceito de simetria generalizada. O princpio da simetria pressupe que tanto os enunciados cientficos considerados como falsos como aqueles considerados verdadeiros assumem essa qualificao no necessariamente devido a um bom ou a um mau uso do conhecimento cientfico, mas devido ao processo social de convencimento que possibilitou que eles fossem reconhecidos enquanto tais (KROPF; FERREIRA,

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A tradio weberiana procura alcanar na prtica cientfica uma ntida distino entre enunciados factuais e avaliatrios (embora reconhecendo o papel dos valores na orientao da investigao cientfica) (OUTWAITE; Willian, 1996., p. 792). Para Weber, portanto, na interpretao dos autores, seria possvel a separao entre os enunciados cientficos e as expresses de valor. Para uma discusso mais aprofundada sobre a relao entre a objetividade cientfica, o sentido da neutralidade axiolgica e os juzos de valor, consultar: WEBER, Max. Metodologia das Cincias Sociais, parte 1. Metodologia das Cincias Sociais, parte 2. So Paulo: Cortez, UNICAMP, 2001. O Programa Forte da Sociologia do Conhecimento foi desenvolvido por David Bloor e Barry Barnes na dcada de 1970 e consistiu em empreender uma anlise sociolgica dos contedos do conhecimento cientfico, rompendo assim com a tradio de estudos sociais da cincia restrita investigao da relao entre cientistas e dos aspectos institucionais da atividade cientfica (KROPF; FERREIRA, 1998, p. 590).

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1998, p. 592). As verdades possuindo ou no um carter cientfico podem ser caracterizadas da seguinte forma:

O que verdade, portanto? Um batalho mvel de metforas, metonmias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relaes humanas, que foram enfatizadas retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, aps longo uso, parecem a um povo slidas, cannicas e obrigatrias: as verdades so iluses das quais se esqueceu o que so... (NIETZSCHE, 1974, p. 54-56).

A separao entre fato, poder e discurso (Latour, 1994, p. 12) ser definitivamente questionada por esses autores. Para eles, especialmente na viso de Latour, sociedade e conhecimento cientfico interagem permanentemente. Ou seja: ao mesmo tempo em que a sociedade constri o conhecimento cientfico, tambm por ele construda. No h de um lado a cincia e do outro lado a sociedade, conforme expressa o autor em seu Terceiro Princpio (LATOUR, 2000, p. 423):

Nunca somos postos diante da cincia, da tecnologia e da sociedade, mas sim diante de uma gama de associaes mais fraca e mais forte; portanto, entender o que so fatos e mquinas o mesmo que entender o que as pessoas so.

A sociologia latouriana, portanto, no considera a idia de que h um campo cientfico, nem que ele tenha algum grau de autonomia em relao sociedade. Ser Pierre Bourdieu um dos principais autores a desenvolver uma teoria que determina o campo cientfico enquanto um espao com relativa autonomia. Aproximando a teoria dos dois autores, possvel afirmar que cincia e sociedade participam de uma mesma rede, porm isso no significa que no exista determinado grau de autonomia no campo cientfico para que possa se constituir socialmente. O conceito de campo tem como referncia a sociologia dos campos desenvolvida por Pierre Bourdieu em diferentes obras (1989, 1996, 1997, 2004). O campo pode ser entendido como o espao em que se revelam as relaes de poder estruturadas a partir da diviso desigual de um quantum social (Ortiz, 2003, p. 164), que determinar as posies dos agentes nele envolvidos.

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A noo de campo empregada como um espao social, com determinado grau de autonomia, formado pelas relaes sociais de poder que se estabelecem entre os agentes e, ao mesmo tempo, vinculado a outros campos e espaos. O campo o locus social onde os agentes se posicionam e travam suas batalhas na aquisio e distribuio dos diversos tipos de capitais4. Para Bourdieu (2003), portanto, o que est em disputa no campo cientfico so tanto os monoplios da autoridade, quanto os da competncia cientfica. A luta entre os agentes dentro do campo se dar em funo da disputa pela legitimidade cientfica. Uma das caractersticas das prticas cientficas parecer desinteressada. Da mesma forma que o artista tem que manter uma aparncia de desinteresse, de isolamento e de que no est disposto a expor-se a influncias externas, assim deve comportar-se o cientista. Ocorre, nesses casos, o que o autor denomina de mundo econmico invertido. Em quaisquer desses campos, aqueles que o compem possuem interesse no desinteresse (BOURDIEU, 1996, p.245). Se o campo artstico construiu sua autonomia atravs da posio da arte pela arte ou da arte pura, o campo cientfico tambm constituiu a posio da cincia pela cincia. a crena coletiva no jogo, a ilusio, que permite ao conhecimento cientfico ser percebido como um interesse puro, desinteressado. Apesar desse interesse no desinteresse, os julgamentos das capacidades de intelectuais e pesquisadores estar sempre contaminado (Bourdieu, 2003, p 114) pelo conhecimento das posies que ocupam na hierarquia acadmica. Seria impensvel na concepo desse autor tentar isolar o puramente poltico ou o cientfico nas lutas que ocorrem pela dominao do campo.

Uma autntica cincia das cincias s pode estabelecer-se sob condio de recusar radicalmente a oposio abstrata (presente na histria da arte, por exemplo) entre uma anlise imanente ou interna que caberia mais epistemologia e restituiria a lgica segundo a qual a cincia engendra seus problemas e uma anlise externa, que relacionaria esses problemas com as condies sociais de seu surgimento. BOURDIEU (2003, p. 116).

No campo cientfico encontra-se sempre em jogo a luta para impor uma determinada definio de cincia, do que seja cientfico ou de quem seja cientista. E,4

Segundo Bourdieu (2004), cada campo um lugar de constituio de um determinado tipo de capital. O capital cientfico um tipo particular de capital simblico que consiste na atribuio de reconhecimento pelo conjunto de pares no interior do campo cientfico.

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nessa luta, ainda segundo Bourdieu, ningum bom juiz o suficiente porque sempre parte interessada na disputa. O grau de autonomia do campo ser determinado em funo da relao de maior ou menor dependncia com as demandas externas: [...] reside na relao de dependncia pela aparncia de independncia (Bourdieu, 2003, p. 135). Na interpretao de Bourdieu, as cincias sociais so heternomas se comparadas s cincias da natureza, pois elas dispem de uma falsa autonomia. Ou seja, os problemas exteriores ao campo, especialmente os polticos, se manifestam diretamente. O que est em jogo na luta interna pelo poder nas cincias sociais tambm se encontra em disputa entre as classes no campo da poltica: o estabelecimento de uma representao legtima do mundo social. Por esse motivo,

[...] a idia de uma cincia neutra uma fico interessada que permiteaparentar como cientfica uma forma neutralizada e eufmica (simbolicamente muito eficaz porque particularmente irreconhecvel) da representao dominante do mundo social (BOURDIEU, 2003, p. 137).

Qualquer campo , portanto, objeto de luta tanto em relao sua representao quanto sua realidade. As estratgias dessas lutas se orientam seja pela conservao seja pela transformao das estruturas do campo em questo. Os conflitos intelectuais presentes no campo cientfico sempre comportam, na interpretao de Bourdieu (2004), uma dimenso poltica e uma dimenso cientfica, e essas duas dimenses devem ser levadas em conta quando so analisadas as foras e os agentes em disputa no campo. Portanto, aquelas posies que procuram manifestar uma ausncia de ponto de vista ou, segundo Bourdieu (2004, p. 45), aparentam uma pretenso absolutista objetividade devem ser situadas e relacionadas s demais tomadas de posies. No se pode pensar, portanto, em termos de uma neutralidade de aes, porque todas as ocorrncias indicam uma srie de interesses em jogo. Bruno Latour (1994, 2000) parte da premissa de que no possvel separar a cincia da sociedade. No entanto, Latour no utiliza o conceito de campo, mas de redes sociotcnicas ou tecnocientficas. Para o autor, no estamos diante de

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cincia, tecnologia e sociedade como esferas separadas, mas de uma srie de associaes que podem ser mais fracas ou mais fortes. No h de um lado o conhecimento e do outro lado a sociedade, mas relaes de fora que revelam elos mais fortes ou mais fracos. Ele distingue dois modelos de entendimento dessa relao: o modelo de difuso que v a cincia e a tcnica de um lado e a sociedade de outro e o modelo de translao, onde no existe tal distino, pois h cadeias heterogneas de associaes que criam pontos de passagem. Latour, portanto, v a cincia como parte de uma rede, um empreendimento que tem por caracterstica multiplicar o nmero de aliados e formar uma associao poderosa e concentrada. Contrariamente a Bourdieu, Latour no aceita a diferena entre cincias naturais e sociais, nem o maior ou menor grau de autonomia que possa haver em cada uma delas. De acordo com sua interpretao, nenhuma delas deve ser digna de mais crdito do que a outra, visto que elas no podem sair da rede que ajudam a construir. Da mesma forma que Latour, Santos (1989, 2000, 2004, 2005) tambm afirma que no faz mais sentido a distino entre os dois tipos de cincias: sociais e naturais. Para o autor, as cincias sociais se transformaro em uma espcie de plo catalisador para todos os tipos de cincias. Santos argumenta que a concepo de atraso em relao s cincias naturais ainda vigente na anlise sobre as cincias sociais faz parte do paradigma da cincia moderna, que se encontra em crise. No modelo ps-moderno de cincia emergente, ela ser tanto analgica quanto tradutora, possibilitando que seus conceitos possam ser utilizados fora de seu local de origem. Apesar de Latour e Santos desconsiderarem as diferenciaes entre cincias sociais e naturais, visto que ambas se utilizam da retrica para o convencimento de um determinado auditrio, preciso acrescentar, de acordo com Coelho (1996), que o modo analtico de raciocinar foi privilegiado em relao argumentao. Nesse sentido, as cincias naturais e as cincias matemticas foram, de certa forma, priorizadas dentro de uma concepo que considera racionais apenas as demonstraes e as evidncias. Na interpretao de Bourdieu (2003), as cincias sociais so menos autnomas que as demais, porque sofrem maiores influncias externas. Alm disso, de acordo com Ortiz (2003), a autonomia das cincias sociais est diretamente 38

relacionada com as respectivas sociedades de origem ou de adoo s quais os intelectuais encontram-se vinculados. Na Amrica Latina, a constituio tardia de centros de pesquisa e o freqente engajamento de intelectuais no processo de constituio de identidades nacionais e de Estados, permitiu uma autonomia frgil do campo cientfico. O pensamento sociolgico no Brasil, pelo menos at 1940, de acordo com Ortiz (2003), se pautava por um contexto em que literatura, filosofia e discurso poltico se misturavam, compondo um discurso marcado pelo ensasmo. Os assuntos que marcam a produo sobre o Brasil nessa poca esto diretamente vinculados identidade brasileira. Os principais temas tratados diziam respeito cultura indgena, ao folclore e questo racial. Apesar de as cincias sociais terem se institucionalizado simultaneamente em vrias regies do pas, o caso da criao da Universidade de So Paulo5 (USP) exemplar para analisar a constituio do campo sociolgico no Brasil. Segundo Ortiz (2003), foi com a criao da universidade moderna que as cincias sociais estabeleceram uma relativa autonomia cientfica. Depois dessa gerao de socilogos paulistas seria impossvel interpretar o Brasil sem considerar as especificidades do conhecimento cientfico. Embora as cincias sociais brasileiras estejam, a partir da dcada de 1940, adquirindo uma certa autonomia, sua identidade, especialmente da sociologia e da antropologia, ainda amorfa (ORTIZ, 2003, p. 185). Esse quadro somente seria modificado com o processo de profissionalizao e de criao de uma poltica voltada para a ps-graduao a partir do final da dcada de 19606. Durante o regime militar, os cientistas sociais brasileiros no escaparam do esquema repressor do Estado. E, ao mesmo tempo em que se ampliava o mercado editorial universitrio, a produo da rea das cincias sociais acabava caindo em uma posio de reprodutora de uma razo puramente organizacional. A preocupao com a profissionalizao acabava por deixar de lado o dilogo com a sociedade. Seguindo ainda a interpretao de Ortiz (2003, p. 196), o fato de a5

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A Universidade de So Paulo foi criada em 1934. Para maiores detalhes sobre a Escola Paulista de Sociologia consultar ORTIZ (2002, 2003) e GUIMARES (1999). A partir de 1967 so criados rgos como a Financiadora de Estudos e Projetos do Ministrio da Cincia e Tecnologia (FINEP), a Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior do Ministrio da Educao (CAPES), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) e a Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP).

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consolidao das cincias sociais no pas ter ocorrido a partir da dcada de 1960 coincidiu com o momento em que o trabalho intelectual encontrava-se em transformao. Por esse motivo, segundo o autor: A poltica de ps-graduao teve, portanto, de ser construda sobre uma tradio que ainda no existia.

1.3.2.2 CINCIA E RETRICA

Na compreenso de Santos e de Latour, a cincia uma atividade eminentemente retrica. Para Bourdieu (2003, p. 134), a cincia nunca teve outro fundamento, seno a crena coletiva em seus fundamentos. por meio da retrica7 que a cincia produz essa crena coletiva que lhe d sustentao. Veremos, a seguir, em que consiste essa atividade e como ela foi reabilitada

contemporaneamente.

2.2.1 Retrica

A retrica8 apareceu na filosofia platnica de duas formas. Nos dois dilogos em que foi abordada, Grgias e Fedro, estabelecida uma distino entre duas formas de retrica. Em Grgias, conforme sugere Grcio (1988), est-se perante uma retrica perigosa, que tem como finalidade ltima a manipulao do auditrio. Esse tipo de retrica identificado por Plato com a sofstica. J em Fedro tem-se a retrica salvadora, ou seja, aquela que se encaminha para o encontro da verdade e que pode ser identificada com a vocao da filosofia. No primeiro caso observa-se o mau uso da retrica, enquanto no segundo ela utilizada de forma positiva (verdadeira). Porm, foi o aspecto vulgo da retrica que prevaleceu e influenciou o seu declnio na filosofia (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996).7

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A retrica foi desenvolvida especialmente por filsofos como Aristteles, Ccero e Quintiliano. Porm, as idias mais importantes que prevaleceram acerca dessa teoria do universo discursivo foram as de Aristteles. O conceito de retrica utilizado a partir da reviso que Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) fazem da categoria. Os autores criam a nova retrica, ampliando o conceito de retrica advindo principalmente de Aristteles. A nova retrica retoma um importante elemento da retrica antiga, o auditrio, e visa pesquisar uma determinada lgica de juzos de valor, a fim de retirar-lhes do domnio do irracional.

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J para Aristteles h dois modos bsicos de raciocnio: por demonstrao analtica ou pela argumentao dialtica. De acordo com Coelho (1996), o que foi perdido na evoluo do pensamento filosfico foi justamente a equiparao entre esses dois tipos de raciocnio. O conceito de retrica9 estabelecido por Aristteles predominou por muito tempo. Porm, a partir do Renascimento, a retrica decaiu a tal ponto que quase chegou ao desaparecimento no sculo XIX. Conforme assinala Santos (2000), entre diversos outros autores10, a retrica uma das mais tradicionais artes de persuaso pela argumentao presentes no pensamento ocidental. Ela atravessou perodos de glria e de excluso e competiu diretamente com o conhecimento cientfico. Os sculos XVI e XVII, marcados pelas revolues cientficas, representaram um perodo em que a retrica foi vencida pela fora do mtodo. A retrica, ento avaliada como uma forma de persuaso e no de demonstrao de um tipo de saber, foi considerada falsa. Sua trajetria permaneceu descendente at pelo menos o sculo XIX, com a preponderncia assumida pela racionalidade cientfica e seus diferentes tipos de positivismos. Durante o perodo de dogmatizao da cincia, o conhecimento advindo da retrica11 parecia estar completamente superado. A partir da dcada de 1960, no entanto, com a reao aos pressupostos positivistas e funcionalistas da cincia, ocorre a reemergncia da retrica, que, na compreenso de Santos (2000, p. 97), parte integrante da crise paradigmtica da cincia moderna. Santos parte da premissa de que a centralidade da retrica no perodo de transio paradigmtica pelo qual a cincia moderna est passando12 pode ser explicada da seguinte forma: a cincia moderna, apesar de aparentar um conhecimento evidente e indubitvel, um conhecimento retrico. Essa afirmao, por sua vez, apresenta duas verses. Uma verso que o autor denomina fraca, segundo a qual o discurso cientfico est saturado de referncias retricas, e outra9

A retrica como a faculdade de considerar, em qualquer caso, os meios de persuaso disponveis (ARISTTELES apud ABBAGNANO, 1988, p. 856). 10 Grcio, (1998), Latour, (1994, 2000), Perelman e Olbrechts-Tyteca, (1996). 11 Segundo Santos (2000, p. 97): aquele conhecimento provvel, resultante de uma argumentao razovel. 12 Para maiores detalhes consultar as seguintes obras de Santos: Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as cincias revisitado. So Paulo: Cortez, 2003. Um discurso sobre as cincias. Coimbra: Edies Afrontamento, 1987 Introduo a uma cincia ps-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

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verso, denominada forte, a qual considera o conhecimento cientfico em si como retrico.

2.2.2 A reabilitao da retrica

Na interpretao de Santos (2000), a natureza retrica do conhecimento cientfico moderno vem de pelo menos trs fontes intelectuais: uma delas seria a crtica da epistemologia modernista efetuada desde Friedrich Nietzsche at Michel Foucault, Paul Feyerabend e Richard Rorty, passando tambm por Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer. A outra fonte o pragmatismo de William James e de John Dewey e, por ltimo, um novo interesse pela retrica grega e medieval que comea a partir de 1947 com as publicaes de Cham Perelman. Grcio (1988) afirma que uma das caractersticas da retrica o seu aparecimento em tempos de crise. Tal constatao vem ao encontro da interpretao de Santos de que a retrica ressurge justamente no perodo em que se inicia a desdogmatizao do conhecimento cientfico. Os trabalhos de Perelman e Olbrechts-Tyteca indicam no s a renovao da retrica como a sua reabilitao, pois essa noo ficou por muito tempo marginalizada e associada a uma atividade no-racional. As inovaes de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) concentram-se na reabilitao do discurso argumentativo e na ampliao da idia de retrica utilizada na Antigidade. A nova retrica permitiu possibilidades inditas para o conhecimento jurdico, pois parte da premissa de que no h interpretaes jurdicas verdadeiras (Coelho,1996). Santos e Latour transpem essa concluso para a cincia quando afirmam que essa atividade tambm se constitui em um processo de convencimento que utilizar uma srie de argumentos e teorias posteriormente reconhecidos como cientficos. A nova retrica prope uma racionalidade que no se esquiva aos debates, do mesmo modo que o modelo de cincia proposto por Santos. O objetivo da teoria da argumentao, na viso de Perelman e OlbrechtsTyteca (1996, p. 04), o estudo das tcnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adeso dos espritos s teses que lhes apresentam ao assentimento. 42

H pelo menos duas condies que devem ser preenchidas em um processo concreto de argumentao na anlise de Perelman (Santos, 2000): devem existir determinadas premissas que tm que ser aceitas como pontos de partida e tem que haver um auditrio a persuadir ou convencer. Um outro ponto importante da nova retrica, que no abordado por Santos, refere-se s relaes que a argumentao mantm com a ao. Com efeito, essas argumentaes no ocorrem em um vazio e, por esse motivo, comprometem aqueles que delas tomam parte (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA 1996, p. 65). Apesar de Perelman excluir da retrica as formas de violncia e os afetos, o autor reconhece que muito mais difcil dela eliminar as promessas e as ameaas, pois estas fazem parte da linguagem e servem como meios de obteno da adeso (SERBENA, 2000). Ainda de acordo com a interpretao de Santos acerca da teoria desenvolvida por Perelman e Olbrechts-Tyteca, h dois tipos de proposies: uma delas seriam os fatos e as verdades e, a outra, os topoi. Os fatos e as verdades so aqueles objetos de aceitao imediata que no necessitam de argumentao. Porm, esse nvel de aceitao pode diminuir e, por sua vez, os fatos e as verdades convertem-se em argumentos. J os