Governança Corporativa Em Empresas Estatais

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RAP — RIO DE JANEIRO 42(6):1163-88, NOV./DEZ. 2008 ISSN 0034-7612 Governança corporativa em empresas estatais: avanços, propostas e limitações* Joaquim Rubens Fontes Filho** Lidice Meireles Picolin*** S UMÁRIO : 1. Introdução; 2. Governança corporativa: importância para empresas e países; 3. Empresas estatais e governança corporativa; 4. Diretrizes da OCDE para a governança corporativa de empresas estatais; 5. Considerações finais. S UMMARY : 1. Introduction; 2. The importance of corporate governance for compa- nies and countries; 3. State-owned enterprises and corporate governance; 4. OECD guidelines for corporate governance of state-owned enterprises; 5. Final remarks. P ALAVRAS - CHAVE : empresa estatal; governança corporativa; problema de agência; accountability. K EY WORDS : state-owned enterprise; corporate governance; agency problems; ac- countability. Apesar do amplo processo de desestatização ocorrido internacionalmente nas décadas de 1980 e 1990, as empresas estatais permanecem desempenhando significativo papel na implementação de políticas públicas e na oferta de bens e serviços à sociedade. Entretanto, sua natureza institucional e estrutura de controle tornam complexas as * Artigo recebido em mar. 2006 e aceito em set. 2007. Uma versão anterior deste artigo foi apre- sentada no X Congreso Internacional del Clad sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública. Santiago, Chile, out. 2005. ** Doutor em administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (Ebape/FGV). Foi gerente de planejamento estratégico da Previ e assessor da presidência no Banco do Brasil. Endereço: Praia de Botafogo, 190 — CEP 22253-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]. *** Coordenadora operacional de projetos e programas da Fundação Getulio Vargas. Mestre em economia empresarial pela Universidade Cândido Mendes. Curso de Política e Administração de Empresas Estatais pelo Institute Français de Gestion — Paris. Tem atuado na área de consultoria desde 1990, com trabalhos desenvolvidos em diversas organizações públicas e privadas. Endereço: Praia de Botafogo, 190/6 o andar — CEP 22253-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: lidice@ fgv.br.

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Ótimo texto sobre governança.

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    Governana corporativa em empresas estatais: avanos, propostas e limitaes*

    Joaquim rubens Fontes Filho**Lidice Meireles picolin***

    Sumrio: 1. Introduo; 2. Governana corporativa: importncia para empresas e pases; 3. Empresas estatais e governana corporativa; 4. Diretrizes da OCDE para a governana corporativa de empresas estatais; 5. Consideraes finais.

    Summary: 1. Introduction; 2. The importance of corporate governance for compa-nies and countries; 3. State-owned enterprises and corporate governance; 4. OECD guidelines for corporate governance of state-owned enterprises; 5. Final remarks.

    PalavraS-chave: empresa estatal; governana corporativa; problema de agncia; accountability.

    Key wordS: state-owned enterprise; corporate governance; agency problems; ac-countability.

    Apesar do amplo processo de desestatizao ocorrido internacionalmente nas dcadas de 1980 e 1990, as empresas estatais permanecem desempenhando significativo papel na implementao de polticas pblicas e na oferta de bens e servios sociedade. Entretanto, sua natureza institucional e estrutura de controle tornam complexas as

    * Artigo recebido em mar. 2006 e aceito em set. 2007. Uma verso anterior deste artigo foi apre-sentada no X Congreso Internacional del Clad sobre la Reforma del Estado y de la Administracin Pblica. Santiago, Chile, out. 2005.** Doutor em administrao pela Escola Brasileira de Administrao Pblica e de Empresas da Fundao Getulio Vargas (Ebape/FGV). Foi gerente de planejamento estratgico da Previ e assessor da presidncia no Banco do Brasil. Endereo: Praia de Botafogo, 190 CEP 22253-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected].*** Coordenadora operacional de projetos e programas da Fundao Getulio Vargas. Mestre em economia empresarial pela Universidade Cndido Mendes. Curso de Poltica e Administrao de Empresas Estatais pelo Institute Franais de Gestion Paris. Tem atuado na rea de consultoria desde 1990, com trabalhos desenvolvidos em diversas organizaes pblicas e privadas. Endereo: Praia de Botafogo, 190/6o andar CEP 22253-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected].

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    definies de seus objetivos operacionais, a avaliao de seu desempenho, e a prpria gesto executiva das empresas, j que sua atuao est sujeita tanto s necessida-des de seu controlador imediato, o governo; quanto aos interesses difusos de seu controlador indireto, a sociedade, alm das expectativas de retorno financeiro dos scios privados nas sociedades de economia mista. No momento que a Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico (OCDE) prope diretrizes para a governana corporativa de empresas estatais, que estabelecem referncias para o relacionamento entre Estado, conselheiros, gestores, investidores e outras partes interessadas, este artigo avalia essas diretrizes quanto adequao das propostas ao contexto das estatais brasileiras e sua possibilidade de implementao.

    Corporate governance of state-owned enterprises: advances, proposals and limitationsDespite the extensive process of privatization that has been undertaken in many countries during the 80s and 90s, the state-owned enterprises (SOEs) remain per-forming an important role in the implementation of public policies and in the offe-ring of goods and services to the society. Meanwhile, their institutional nature and control structure make it complex to define their operational objectives, to assess their performance and even to manage them, as their work depends on the guidance of their direct controller, the State, but also on the diffuse interests of their indirect controller, the society, plus the expectations of the private investors in public listed SOEs. In this context, this article analyzes the guidelines for the corporate governance of SOEs, proposed by the Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD) in 2005, which establishes references for the relationship between the State, board members, managers, investors and other stakeholders in the SOEs. The article discusses the adequacy of those guidelines for Brazilian SOEs and investigate their potential impact on the States capacity to monitor and control its companies.

    1. Introduo

    As discusses em torno do papel do Estado, seu tamanho e forma de atuao, e a melhor configurao do aparelho estatal para cumprir esse papel so recor-rentes na literatura de diversos campos do conhecimento, particularmente na economia, cincia poltica e administrao pblica. Naturalmente, as propos-tas esto associadas a determinados modelos econmicos e ideologias, mas, salvo em situaes tericas, permanece a idia de um contnuo entre os limites de pblico-privado sobre o qual se situam os Estados constitudos.

    Haver sempre, em algum grau, organizaes estatais destinadas a su-portar a implementao das funes do Estado. Esse conjunto de organiza-es que integram o aparelho estatal pode ser dividido em organizaes di-retamente ligadas estrutura do Poder Executivo, sem autonomia e em geral

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    responsveis por empreender funes tpicas de Estado, e organizaes com personalidade jurdica prpria, com maior autonomia de ao, a exemplo de empresas estatais, sejam elas pblicas ou sociedades de economia mista, com participao de capital privado.

    Mesmo com o processo de privatizao realizado nos mais diversos pases ao longo das dcadas de 1980 e 1990, as empresas estatais ainda hoje chegam a representar, em diferentes pases associados Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico (OCDE), at 20% do valor adi-cionado, cerca de 10% do emprego e at 40% da capitalizao de mercado (OECD, 2004b).

    Tendo em vista a importncia dessas organizaes, alinhada a sua mis-so de oferecer referncias para a atuao de governos, rgos reguladores e agentes econmicos, a OCDE apresentou, em abril de 2005, proposta de diretrizes para promover melhores prticas de governana na atuao das empresas estatais. A partir da referncia das diretrizes de governana corpo-rativa para empresas privadas, divulgadas pela organizao em 2004, foram realizadas diversas rodadas de discusso a fim de permitir que esse conjunto geral de diretrizes incorporasse tambm dimenses e necessidades tpicas das empresas estatais e do Estado no papel de controlador (OECD, 2004a).

    As diretrizes de governana corporativa das empresas estatais da OCDE consolidam um trabalho de dois anos de consultas pblicas e fruns de discus-so, envolvendo tanto os 30 pases-membros quanto no-membros. Este artigo analisa a adequao dessas propostas ao contexto das relaes do Estado e suas organizaes empresariais no Brasil, particularmente ao nvel federal, e avalia o impacto dessas recomendaes sobre o controle e desempenho das empresas estatais.

    2. Governana corporativa: importncia para empresas e pases

    As definies de governana corporativa seguem, de forma predominante, uma vertente financeira, associando-a ao desenho de um sistema que facilite o acesso e o controle de investidores sobre as empresas das quais participam. Conforme a definio de Shleifer e Vishny (1997:737), a governana cor-porativa trata das maneiras pelas quais os fornecedores de recursos s cor-poraes se asseguram que iro obter retorno de seus investimentos. Nessa perspectiva, no que se refere iniciativa privada, a principal preocupao de governos e legisladores deve ser promover ambientes econmico e institucio-nal adequados a esses investimentos.

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    Cabe observar que a expresso corporativa pressupe um modelo empresarial pelo qual a organizao uma entidade legal, separada de seus proprietrios, com a propriedade representada por aes (Fitch, 1997). Entre-tanto, no caso das empresas estatais brasileiras, uma significativa parcela no constituda na modalidade de aes, mas como empresa pblica, de capital fechado.

    Uma das primeiras e mais importantes definies de governana corpo-rativa foi utilizada na elaborao do relatrio Cadbury, no Reino Unido, que qualifica a governana corporativa como o sistema pelo qual as companhias so dirigidas e controladas (The Committee, 1992). Para a OCDE, a governana corporativa est relacionada aos mecanismos pelos quais as empresas so diri-gidas e, particularmente, maneira pela qual aqueles que controlam a gesto do dia-a-dia da empresa so responsabilizados por seu desempenho (OECD, 2004a). No Brasil, as definies propostas pelo Instituto Brasileiro de Governan-a Corporativa (IBGC) e pela Comisso de Valores Mobilirios (CVM) seguem orientaes semelhantes, focando no governo estratgico das empresas e na otimizao do seu desempenho e proteo s partes interessadas.

    A origem da preocupao com a governana corporativa pode ser as-sociada aos movimentos de crescimento e diversificao das empresas, o que exigiu a profissionalizao e especializao de uma nova classe de empre-gados. McCraw (1998) analisa os estudos de Alfred Chandler, em que este historiador mostra como a separao entre propriedade e gesto, acelerada no caso americano na metade do sculo XIX, permitiu a formao de uma classe de administradores especialistas, o que contribuiu para alavancar o pr-prio capitalismo. Na dcada de 1930, em texto clssico, Berle e Means (1932) mostraram como as empresas americanas constituam um sistema disperso de propriedade, o que originava conflitos entre administradores e acionistas decorrentes de situaes de oportunismo gerencial, o que se convencionou considerar impulsionador da exigncia de melhores prticas de governana.

    Entretanto, o modelo que se configura hoje na maioria dos pases, em especial na Amrica Latina, no de uma propriedade pulverizada, mas exa-tamente o oposto. A concentrao da propriedade em investidores individuais, famlias, governos ou ainda o controle via acordo entre acionistas tem predo-minado, configurando cenrio no qual o problema principal deixa de ser entre proprietrio e gestor para se situar na relao entre acionistas majoritrios e minoritrios. Conforme Sanz e Holn (2004:41), uma estimativa geral que os cinco maiores acionistas de uma tpica empresa latino-americana possuem cerca de 80% do capital social. Alm disso, muitas vezes, acionistas, direo e conselho de administrao pertencem mesma famlia, sendo usual tambm

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    que o scio majoritrio controle uma parte importante da gerncia da empre-sa. No Brasil, os estudos de Carvalhal (2002) e Leal e Silva (2008) evidenciam tambm a elevada concentrao da propriedade presente nas empresas lista-das na Bovespa.

    Para Oman e Blume (2005), um sistema nacional de governana cor-porativa compreende tanto as regras formais e informais quanto prticas aceitas e mecanismos de reforo, pblico e privado, que regem as relaes entre gestores e investidores. Carvalho (2002) discute por que as questes de governana corporativa, a princpio assumidas como relacionamento ex-clusivo entre partes privadas, se tornam um problema de interesse pblico. Boas prticas de governana, que reduzem a assimetria de informaes entre investidores e gestores ou empreendedores, e o equilbrio de direitos entre acionistas majoritrios e minoritrios fortalecem o mercado de capitais como mecanismo de financiamento s empresas. Esse fortalecimento amplia o nvel de liquidez do mercado, o que reduz o prmio de risco e torna menos onerosa a captao de recursos pela empresa. A isso deve se acrescer a proteo legal aos credores, tanto de crdito quanto de equity. Esse sistema de equilbrio nas relaes e segurana legal, ao facilitar o fluxo de recursos s empresas, tem papel importante para a promoo do desenvolvimento econmico e financei-ro dos pases.

    Conforme aumenta o valor das empresas no mercado, boas prticas de governana corporativa ampliam tambm os atrativos aos investimentos em aes, trazendo recursos ao mercado de capitais e dando liquidez ao mercado secundrio. Para o governo, o crescimento desses mercados traz, como conse-qncia, um maior fluxo de investimentos externos para o pas e uma amplia-o das fontes de capital para o desenvolvimento empresarial e a induo a projetos privados. Para a sociedade, a construo de um ambiente empresarial mais robusto se reflete diretamente no aumento da arrecadao de impostos e na expanso dos nveis de emprego. Da perspectiva dos empregados, prti-cas de transparncia, orientao para criao de valor e prestao de contas tendem a promover um ambiente mais propenso participao, meritocracia e desenvolvimento profissional, associados a gratificaes por desempenho, alm de dificultar a adoo de prticas clientelistas nas relaes de e com superiores hierrquicos.

    Cabe destacar, contudo, que o uso e reforo dessas prticas retiram poder discricionrio dos gestores, retornando esse poder aos investidores na empresa, que representam o conjunto de indivduos com direitos residuais. A cadeia de comando passa a se orientar da propriedade para a execuo, con-duzida pelo corpo de executivos e mediada pelo conselho de administrao

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    (board of directors). Ainda que com isso os gestores tenham sua liberdade de ao diminuda, passam a compartilhar responsabilidades e a contar com o apoio, experincia e conhecimento dos membros do conselho, facilitando tambm as articulaes com o conjunto dos acionistas.

    Uma proxy utilizada para examinar a situao das prticas de governan-a corporativa nos pases o prmio de controle, representado pela diferena entre o preo pago por aes do bloco de controle e as demais, e que indire-tamente exprime a extenso, percebida; em controladores expropriam valor da empresa relativamente aos minoritrios. Conforme Oman e Blume (2005), durante a dcada de 1990, a diferena mdia nas economias em transio dos pases da Europa Central foi de 35%, com 58% na Repblica Tcheca, 11% na Polnia, enquanto na Amrica Latina foi de 33%, atingindo 65% no Brasil. Esses valores so extremamente elevados quando comparados aos 2% dos Estados Unidos, Reino Unido e frica do Sul, e os 8% da Europa no-anglo-saxnica (1% na Noruega, 2% na Frana e 37% na Itlia).

    Oman e Blume (2005) classificam trs tcnicas que podem ser utiliza-das para expropriar valor de acionistas fora do bloco de controle: estruturas piramidais, pela qual um acionista controla 51% de uma companhia que, por sua vez, controla outros 51% das aes votantes de uma segunda companhia. Outras tcnicas seriam o cruzamento de controle, quando uma firma possui aes de outra e vice-versa, e a oferta de mltiplas classes de aes com direi-tos diferenciados sobre o controle e fluxo de dividendos.

    Observando os sistemas legais e instituies de reforo s boas prti-cas de governana corporativa, La Porta, Lopez-de-Silanes e Shleifer (1998) analisaram, na dcada de 1990, 49 pases distribudos nos vrios continentes, entre os quais nove da Amrica Latina: Argentina, Brasil, Chile, Colmbia, Equador, Mxico, Peru, Uruguai e Venezuela. Foram considerados diversos as-pectos associados governana tais como proteo a acionistas minoritrios, proteo a credores, padres contbeis, eficincia do sistema judicirio e nvel de corrupo. Os resultados encontrados mostraram a deficincia do ambiente institucional desses pases, no que se refere ao conjunto das prticas de gover-nana corporativa, frente aos demais integrantes da amostra.

    A capacidade de captao de recursos via bolsas de valores permite tambm identificar as deficincias dos pases latino-americanos em relao, principalmente, aos do bloco anglo-saxo. Embora a capitalizao mdia das empresas brasileiras expressa pela relao entre o valor total de merca-do das companhias listadas em bolsa e o nmero dessas companhias te-nha crescido 1.490% entre 1990 e 2002, saltando de US$ 19 milhes para US$ 308, a capitalizao relativa dada pela capitalizao mdia dividida

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    pelo produto interno bruto ficou em 28,25% em 2002, valor prximo ao de outros pases latino-americanos como Argentina e Mxico, com respecti-vamente 16,09% e 16,20%, mas muito abaixo de pases anglo-saxes como Estados Unidos, com 105,83% e Reino Unido, com 114,64%.

    A situao evidenciada pela estrutura de propriedade, pelo prmio de controle, capitalizao burstil e, mais profundamente, pelos estudos de La Porta, Lopez-de-Silanes e Shleifer (1998) configuram um ambiente institucio-nal que apresenta srias deficincias relativamente a padres internacionais de governana corporativa. Como conseqncia, as empresas latino-america-nas tm maiores dificuldades para atrair investidores interessados em parti-cipar de seu capital, elevando os prmios de risco e o custo do dinheiro, com reflexos em perda de competitividade. Nesse contexto, alm de fortalecer o ambiente institucional, os governos desses pases podem assumir um papel de liderana significativo, promovendo em suas empresas estatais a melhoria das prticas de governana, o que certamente induzir empresas do setor privado a seguir esse exemplo.

    importante registrar os significativos avanos ocorridos no ambiente brasileiro ao longo desta dcada. A criao do Novo Mercado da Bovespa, as mudanas introduzidas na legislao societria, a atuao da Comisso de Valores Mobilirios na regulao do mercado somaram-se s condies favo-rveis trazidas por um ambiente de estabilidade econmica, crescente liquidez internacional e valorizao das commodities para impulsionar a capitalizao burstil e o volume de transaes nas bolsas.

    Entre janeiro de 2001 e de 2008, segundo informaes do informe tc-nico da Bolsa de Valores de So Paulo, o valor de mercado das empresas lis-tadas cresceu mais de 500%, saltando de US$ 251 bilhes para US$ 1.293 bi-lhes, enquanto os volumes totais negociados no mercado vista variaram de US$ 54,2 bilhes para US$ 531,6 bilhes entre os anos de 2001 e 2007.

    3. Empresas estatais e governana corporativa

    Conforme Esfahani e Ardakani (2002), os motivos que justificam a proprie-dade estatal podem ser associados tanto a questes de ideologia quanto a deficincias das instituies estatais em assegurar determinados direitos e ga-rantias populao. O primeiro motivo se refere a uma orientao ideolgica de governo, seguindo uma viso mais nacionalista ou uma retrica socialista. As demais teorias sobre a propriedade estatal focam-se no papel dessas empre-sas na redistribuio da renda, embora, conforme argumentam esses autores,

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    essa justificativa no seja capaz de explicar plenamente esse papel, dado que polticas tributrias e subsdios poderiam ser utilizados alternativamente de forma mais eficiente.

    A propriedade estatal poderia ento ser justificada pela ausncia de me-canismos institucionais que garantissem iniciativa privada que as polticas redistributivas no retirariam as quasi renda de seus investimentos. Ou seja, o motivo para a propriedade estatal assegurar investimentos em ativos so-cialmente valiosos que no podem ser realizados por investidores privados devido aos riscos de expropriao (Esfahani e Ardakani, 2002:5). A incapaci-dade do Estado em garantir um ambiente regulatrio e fiscal que promova o investimento privado poderia, portanto, explicar a necessidade de sua atuao na produo.

    Em ambientes com falhas de mercado pode ser apontada outra razo para a propriedade estatal, denominada por Perotti (2004) como problema do comprometimento privado. A dificuldade encontrada pelo Estado em contro-lar indiretamente o comportamento dos agentes privados, em virtude princi-palmente de deficincias do ambiente institucional, ou ainda em situaes que caracterizem um monoplio natural, pode funcionar como justificativa para sua ao direta no controle das empresas. Essa razo pode ser exemplificada pela propriedade, pela Unio ou por unidades da federao, de empresas de gua e esgoto.

    A configurao da empresa estatal apresenta variao entre os pases, desde modelos fechados, sem participao de investidores privados, a mo-delos onde a participao intensa, embora o proprietrio permanea como instncia de governo.

    No Brasil, o Decreto-Lei no 200, de fevereiro de 1967, disps sobre a es-trutura e funcionamento da administrao federal, caracterizando nesse mbi-to a estrutura da administrao direta e indireta no pas. O seu art. 4o estabe-lece que a administrao indireta compreenda autarquias, empresas pblicas e sociedades de economia mista, dotadas essas organizaes de personalidade jurdica prpria, vinculando essas entidades ao ministrio em cuja rea de competncia estiver enquadrada sua principal atividade (Brasil, 1967).

    Para alguns autores, no deve haver diferena nos princpios que tratam da governana corporativa em empresas privadas e estatais. Conforme Barrett (citado por Ryan e NG, 2000:12):

    os princpios de governana corporativa so os mesmos tanto no setor pblico quanto privado. Boa governana corporativa requer clara definio de respon-sabilidade e clara compreenso dos relacionamentos entre as partes interes-

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    sadas da organizao e aqueles responsveis por administrar seus recursos e produzir seus resultados.

    Entretanto, as especificidades da empresa estatal apontam para um con-junto de restries quanto plena adeso s prticas de governana indicadas ao setor privado (OECD, 2004b:6):

    t as empresas estatais esto sujeitas a restries mais brandas em termos or-amentrios, que podem proteg-las contra aes de tomada de controle via mercado e falncia. Ainda que possvel, esta ltima situao na prtica ra-ramente ocorre, gerando presses adicionais sobre os gastos pblicos para equacionar a empresa estatal em situao financeira difcil;

    t muitas estatais, por sua prpria natureza, operam em reas nas quais a competio com o setor privado pequena ou inexistente;

    t os padres de transparncia e prestao de contas so diferentes daqueles do setor privado, uma vez que orientados principalmente para o controle dos gastos pblicos;

    t com freqncia, no h um claro proprietrio, mas vrios potenciais pro-prietrios buscando objetivos diferentes. Ministrios um ou vrios e o Parlamento podem se alternar na condio de principal (proprietrio) frente empresa, em uma complexa relao de agncia, com mltiplos e por vezes dispersos grupos de principais construindo uma cadeia difusa de accountability.

    Alm dessas, diversas outras caractersticas da empresa estatal devem ser consideradas na construo dos modelos de governana, tais como seu grau de autonomia e de seus objetivos e estratgias em relao ao governo; a eficincia no equacionamento dos custos de agncia e de transao; e a disponibilidade de sistemas de controle e monitoramento no contexto insti-tucional.

    4. Diretrizes da OCDE para a governana corporativa de empresas estatais

    O documento proposto pela OCDE (2005), embora direcionado ao ambiente institucional e s questes mais especficas da governana corporativa de em-presas estatais dos pases-membros, tambm recebeu sugestes de no-mem-bros convidados.

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    Est estruturado em seis reas, que tratam respectivamente de assegu-rar um arcabouo regulatrio e legal efetivo para empresas estatais; o Estado atuando como proprietrio; eqidade no tratamento com acionistas; relaes com stakeholder; transparncia e disclosure; e responsabilidades dos conse-lhos. Cada uma dessas reas apresenta uma diretriz geral, seguida por itens de recomendao mais especfica.

    Destacamos as principais diretrizes e recomendaes da OCDE (2005), segundo a rea em que so apresentadas e sua importncia para a construo de um quadro referencial para a governana corporativa das empresas estatais bra-sileiras, particularmente no plano federal, seguidas pelas respectivas anlises.

    Assegurar um arcabouo legal e de regulao efetivo para as empresas estatais

    O referencial legal e regulatrio das estatais deve ser desenvolvido com vistas a assegurar um ambiente de atuao para essas empresas e o setor privado em reas onde competem e de forma a promover boas prticas de governana corporativa, seguindo nesse sentido os princpios de governana corporativa da OCDE (2004b):

    t deve haver clara separao entre a funo propriedade exercida pelo Estado e as demais funes;

    t os governos devem simplificar a forma legal da estatal de modo a assegurar o exerccio dos direitos pelos credores, inclusive quanto a pedidos de insol-vncia;

    t as obrigaes e responsabilidades da estatal devem ser claramente discrimi-nadas nas leis e normas;

    t as estatais devem se submeter aplicao das leis gerais e normativas;

    t esse arcabouo legal deve ser flexvel de forma a permitir ajustes na estru-tura de capital;

    t as estatais devem se relacionar em bases estritamente comerciais com for-necedores de recursos financeiros.

    A viso geral delimitar claramente o espao de atuao da empresa estatal frente s empresas privadas, evitando privilgios decorrentes de suas funes pblicas, mas assegurando sua capacidade de atuao para atingir seus objetivos legalmente definidos. Assim, cabe promover o status legal da empresa estatal, igualando-a a uma empresa privada para efeitos de atuao

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    no mercado, resguardando seus objetivos de governo; portanto, deve estar sujeita ao mesmo ambiente que as demais empresas, inclusive quanto s rela-es com fornecedores e investidores.

    Seu escopo de atuao deve estar claramente limitado de forma a evitar a diversificao ou a ampliao de suas atividades a novos setores. Delimitar a atuao do agente um princpio basilar das boas prticas de governana, dada a natureza diversa da propenso a risco e horizonte de planejamento. natural que o agente busque ampliar sua rea de atuao, seja para aumentar sua influncia ou para reduzir seu risco no negcio (Amihud e Lev, 1981). No mbito estatal, a diretriz da OCDE busca evitar que a empresa utilize de prerrogativas associadas a sua propriedade pblica para reduzir o espao da iniciativa privada.

    Uma preocupao nesse documento que, embora possam estar pro-tegidas da falncia, sob a justificativa de assegurar a continuidade da presta-o de um servio pblico, um elevado nvel de endividamento nocivo aos credores, ao governo e aos prprios contribuintes, alm de introduzir uma distoro nos mercados. Por essa razo, deve haver uma clara distino entre as responsabilidades do Estado e de suas empresas em relao aos credores, no cabendo uma garantia automtica do Estado sobre emprstimos e demais passivos das estatais. Esse problema pode ser agravado, inclusive, em situa-es que bancos estatais se tornam grandes financiadores dessas empresas, suscitando conflitos de interesse ou uma eventual sensao de desobrigao no pagamento dos emprstimos realizados junto a esses bancos.

    O Estado atuando como proprietrio

    O Estado deve agir como proprietrio informado e ativo, e estabelecer uma clara e consistente poltica de propriedade, assegurando que a governana das empresas estatais seja conduzida de forma transparente e responsvel (ac-countable), com o necessrio grau de profissionalismo e efetividade:

    t o governo deve desenvolver e divulgar uma poltica de propriedade que defina os objetivos globais da propriedade estatal, o papel do governo na governana corporativa das estatais, e como ir implementar sua poltica de propriedade;

    t no deve se envolver nas atividades dirias e operacionais das empresas;

    t o Estado deve permitir que os conselhos das estatais exeram suas respon-sabilidades e respeitar sua independncia;

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    t o exerccio dos direitos de propriedade deve ser claramente identificado na administrao estatal, preferencialmente centralizando essa responsabili-dade em um rgo nico;

    t deve exercitar seus direitos de propriedade de acordo com a estrutura le-gal de cada empresa fazendo-se representar nas assemblias e votaes; estabelecendo processo estruturado e transparente de escolha de conselhei-ros; estabelecendo sistemas de acompanhamento e avaliao das empresas; quando permitido, mantendo dilogo com auditores externos e rgos es-tatais de controle; assegurando esquemas de remunerao aos conselheiros que permitam atrair e manter motivado pessoal qualificado.

    Essa certamente a rea com as propostas mais inovadoras da OCDE, principalmente quanto recomendao de um rgo centralizador do exer-ccio de propriedade estatal nas empresas e o processo de escolha de conse-lheiros.

    Seguindo a regra geral de ampliar a autonomia da empresa dentro de um conjunto predefinido de objetivos semelhana de um contrato de gesto como forma de permitir controlar seu desempenho, inserem-se as principais diretrizes da rea. Entretanto, certamente ser tarefa rdua, mas necessria, assegurar essa independncia de atuao. No caso brasileiro, avan-os tm ocorrido nesse sentido, principalmente em sociedades de economia mista e, particularmente, naquelas que lanam ttulos no exterior na modali-dade American Depositary Receipt (ADR).

    Como prope o documento, o Estado deve clarificar e priorizar os prin-cipais objetivos da estatal, que podem incluir lucratividade e evitar distores dos mercados. Entretanto, esses objetivos apresentam difceis balanceamentos, tais como criar valor, melhorar um servio pblico, ou assegurar estabilidade nas relaes de trabalho, de forma que as proposies e polticas devem ir alm de estabelecer objetivos gerais, mas tambm dar indicaes sobre como sero alcanados os objetivos e clarificar como sero solucionados ou balancea-dos os esquemas de compensaes entre eles (trade-offs).

    No conjunto das recomendaes da OCDE esto includas a exigncia quanto clareza da poltica de propriedade e sua forma de implementao, o no envolvimento do governo com as atividades operacionais das empresas, e a autonomia dos conselhos, alm do pleno exerccio da funo propriedade, respeitado inclusive seu dever fiducirio perante a prpria sociedade.

    Escolha de conselheiros um tema complexo mesmo em empresas pri-vadas. Como discutido anteriormente, a propriedade nas empresas da Amrica

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    Latina apresenta nveis de concentrao elevados, o que influencia diretamen-te no papel e autonomia dos conselhos de administrao. Ao contrrio de pa-ses que apresentam propriedade dispersa, a concentrao reduz os problemas do denominado efeito carona (free rider) e de aes oportunistas dos gestores, mas gera desequilbrios entre acionistas majoritrios e minoritrios. Nesse am-biente, portanto, h grandes semelhanas entre os problemas de governana corporativa de empresas privadas e estatais brasileiras no que se refere dis-tribuio de poder, dada a concentrao da propriedade, e na atuao dos conselhos de administrao.

    A concentrao induz a um controle mais prximo do proprietrio so-bre a empresa, substituindo mesmo as funes dos conselhos ou reduzindo sua importncia. As idias contemporneas de independncia do conselho, presentes na maioria dos cdigos de boas prticas de governana corporativa, visam evitar que acionistas majoritrios expropriem minoritrios, uma vez que membros independentes conferem maior autonomia ao rgo e uma orienta-o para o bem da empresa e a gerao de valor, desvinculando sua atuao dos anseios especficos de scios controladores. Assim, a independncia total ou parcial do conselho, caracterizada pela no vinculao funcional de seus membros empresa ou ente controlador, mostra-se no apenas indicada mas necessria.

    Na prtica, contudo, no representa uma mudana simples. Assim como o majoritrio em uma empresa privada procura assegurar sua influncia, seja diretamente ou via conselho, problema semelhante pode ocorrer na empresa estatal, amplificado por sua natureza poltica. notria a indicao dos ges-tores diretamente pela liderana do Poder Executivo (ver Ribeiro e Borges, 2007), suprimindo dessa forma um papel fundamental dos conselhos e re-tirando-lhe um instrumento para o exerccio de seu papel de superviso do desempenho da empresa.

    A recomendao da OCDE tambm pelo estabelecimento de um pro-cesso estruturado e transparente de escolha de conselheiros e por assegurar esquemas de remunerao que permitam atrair e manter a motivao desses profissionais. Dois desafios que novamente configuram uma situao dese-jvel, dentro da tica geral dos princpios, de atribuir autonomia empresa estatal e cobrar resultados.

    Decerto o ponto mais inovador desta rea, se no de todo o documento, se refere diretriz para que se promova uma clara separao entre a fun-o propriedade e outros papis do Estado, unificando a responsabilidade por exercer tal funo. Entre outros pontos, argumenta a OCDE que uma confu-so nesses casos pode fazer com que a empresa estatal seja percebida apenas

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    como instrumento da poltica industrial e no como um ativo cujo valor deve ser protegido e aumentado por seu proprietrio, o Estado. Alm disso, como o Estado tem poder para regular e atuar no mercado, fundamental uma clara separao entre essas funes.

    certo que essa centralizao deve evitar ser uma nova e poderosa camada de burocracia. Centralizao da funo propriedade no implica cen-tralizao da propriedade legal. Ao rgo centralizador cabe harmonizar e co-ordenar aes e polticas empreendidas por diferentes reas ou rgos repre-sentantes da propriedade em vrios ministrios e ser responsvel por elaborar uma poltica global, desenvolvendo diretrizes especficas e unificando prticas de governana. A centralizao da funo propriedade em uma entidade nica mais relevante para empresas estatais atuando em setores competitivos.

    No Brasil, a superviso e controle das empresas estatais esto distribu-dos segundo os aspectos de gesto corporativa e poltica de negcios; planeja-mento dos investimentos e acompanhamento das estatais; gesto das partici-paes acionrias (administrao de portflio).

    A primeira dessas funes permanece no mbito do ministrio supervi-sor, segundo a rea de competncia em que estiver enquadrada sua principal atividade. Cabe a esse ministrio alinhar e acompanhar a execuo dos objeti-vos da empresa s polticas governamentais no setor.

    A funo de planejamento e acompanhamento, abrangendo o conjunto das estatais, desempenhada no mbito do Ministrio do Planejamento, pelo Departamento de Coordenao e Controle das Empresas Estatais (Dest). A esse rgo cabem as funes de coordenar a elaborao do Programa de Dis-pndios Globais e da proposta do Oramento de Investimento das empresas estatais, bem como promover a articulao e a integrao das polticas das empresas estatais, inclusive poltica salarial e de benefcios.

    A gesto do portflio responsabilidade do Ministrio da Fazenda, por meio da Secretaria do Tesouro Nacional, rgo responsvel pela administra-o dos haveres da Unio junto a terceiros, inclusive as participaes acion-rias. sua conduo vinculam-se as aes voltadas para a gesto do ativo, do portflio e conduo de atos de natureza societria, como participao em assemblias de acionistas.

    As diretrizes da OCDE recomendam a centralizao da funo proprie-dade em uma nica rea, sob o argumento de que uma diviso difusa de res-ponsabilidades entre mltiplas autoridades pode conduzir falta de coerncia ou consistncia no referencial institucional. Levantamento realizado pela OCDE junto aos pases-membros quanto organizao da funo propriedade mostrou que, internacionalmente, trs modelos se destacavam (OCDE, 2004b).

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    No primeiro modelo, denominado descentralizado ou ministro-seto-rial, as empresas estatais encontram-se sob a responsabilidade de ministrios especficos, incumbidos de desempenhar as polticas de governo associadas natureza da empresa. Esse modelo predominou nos pases do antigo bloco socialista, como Repblica Tcheca, Polnia e Hungria, funcionando ainda hoje na Repblica Eslovaca, Finlndia e, com algumas variaes, tambm na Ale-manha, onde o Ministrio das Finanas exerce o papel de estabelecer diretrizes gerais para a propriedade e polticas de privatizao (2004b:24). As vantagens desse modelo esto em concentrar a expertise do setor e ampliar a capacidade estatal para implementar polticas industriais especficas, vantagens que se reduzem com uma mudana de orientao na organizao sistmica e nos ob-jetivos das estatais para uma abordagem mais estrutural, baseada na atuao conjunta das empresas (framework-oriented) e na agregao global econo-mia, e no apenas como instrumentos pontuais de poltica industrial.

    Um segundo modelo identificado pela OCDE (2004b) denominado modelo dual (dual ministry model), por meio do qual dois ministrios dividem a responsabilidade pela propriedade da empresa estatal. Usualmente, h um ministrio setorial especfico e um comum a todas as empresas, em geral o Ministrio de Finanas ou equivalente, que dividem responsabilidades sobre certos aspectos da empresa, tais como nomear os membros do conselho.

    O exemplo da Nova Zelndia permite evidenciar as diferenas desse mo-delo frente ao anterior. Nesse pas, o Ministrio de Finanas trata as questes de eficincia econmica e impactos fiscais da atuao das estatais. O minist-rio setorial segue uma orientao comercial, acompanhando seu desempenho e enfatizando a busca pelo bom desempenho econmico da empresa.

    O estudo da OCDE (2004a) comenta os casos da Turquia e Coria, nos quais ocorre um modelo triplo, com pelo menos trs ministrios envolvidos. Na Coria, o Ministrio das Finanas e Economia representa o governo nas assemblias gerais das empresas, o ministrio setorial prope os conselheiros e executivos, e o Ministrio de Oramento e Planejamento indica conselhei-ros independentes e auditores, e acompanha o desempenho da empresa. Na Turquia, o Tesouro o proprietrio legal da empresa estatal, e tem como atri-buies apontar os representantes nos conselhos e participar das assemblias gerais; o rgo de planejamento estatal e o Tesouro supervisionam o desem-penho da empresa e ao ministrio setorial cabe ainda apontar outro membro do conselho (OECD, 2004b:27).

    Esse modelo dual, ou triplo, apresenta grande semelhana com o caso brasileiro, onde trs ministrios, o supervisor, o Ministrio da Fazenda e o Mi-nistrio do Planejamento exercem essas funes de forma complementar.

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    O terceiro modelo, denominado centralizado, caracterizado por uma forte concentrao da funo propriedade, subordinada na maioria dos casos ao Ministrio das Finanas, como na Dinamarca, Holanda e Espanha, ou ainda ao Ministrio da Indstria ou a uma agncia especfica, a exemplo da Noruega e Sucia. A adoo desse modelo recente na maioria dos pases e representa a possibilidade de clarificar responsabilidades entre diferentes rgos e fun-es governamentais e exercer com mais consistncia a funo-propriedade. o modelo apontado pela OCDE (2004b) como o mais efetivo, e que certamen-te serviu de base para as propostas de centralizao da funo propriedade no documento das diretrizes.

    Alinhado s recomendaes da OCDE, o Executivo brasileiro promul-gou, em janeiro de 2007, o Decreto no 6.021, instituindo a Comisso Inter-ministerial de Governana Corporativa e de Administrao de Participaes Societrias da Unio (CGPAR), composta pelos ministros do Planejamento, da Fazenda e da Casa Civil. Entre suas competncias, cabe CGPAR aprovar diretrizes e estratgias relacionadas participao acionria da Unio nas em-presas estatais federais, estabelecer critrios para avaliao dessas empresas e para indicao de diretores e representantes da Unio nos conselhos de admi-nistrao e fiscal, estabelecendo diretrizes e padres de conduta tica para sua atuao. A CGPAR, quando em funcionamento, dever contribuir com signifi-cativos avanos na organizao e orientao do sistema de empresas estatais federais.

    Tratamento eqitativo dos acionistas

    O Estado e empresas estatais devem reconhecer o direito de todos os acio-nistas e assegurar a eqidade no tratamento e igual acesso informao da empresa, como referido nos princpios de governana corporativa da OCDE.

    O Estado deve ser exemplar nesse comportamento e seguir as melhores prticas relacionadas ao igual tratamento de acionistas minoritrios:

    t a entidade de coordenao ou funo propriedade e a estatal devem asse-gurar a eqidade no tratamento aos acionistas;

    t as empresas devem observar um alto grau de transparncia com todos os acionistas;

    t as estatais devem desenvolver uma ativa poltica de comunicao e consulta com todos os acionistas;

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    t a participao de acionistas minoritrios em assemblias deve ser facilitada para permitir que tomem parte de decises importantes, a exemplo da esco-lha dos membros do conselho.

    A diretriz, e recomendaes vinculadas, delineadas nessa rea so apli-cveis s estatais constitudas na forma de sociedade annima, particularmen-te aquelas de capital aberto e com aes negociadas em bolsas de valores. No caso das estatais federais brasileiras, de um total de 135 empresas, incluindo subsidirias (Dest, 2006), apenas oito Banco do Brasil, Petrobras, Eletro-brs, Basa, BNB, BEC, Besc e BEP se enquadram nessa situao de capital aberto e apenas as trs primeiras apresentam volume significativo de tran-saes de suas aes. Contudo, mesmo em pequeno nmero, a importncia econmica dessas empresas significativa, segundo Oliveira (2005):

    Os tcnicos do Ministrio do Planejamento confirmam. As maiores estatais so de capital aberto, com aes negociadas em bolsa. O investimento anual delas estimado em cerca de R$ 36 bilhes (em torno de US$ 14 bilhes). Seus ativos somaram R$ 860 bilhes em 2004, ou US$ 350 bilhes, acrescentam os tcnicos.

    Uma questo fundamental no caso brasileiro se refere legislao so-cietria vigente, que permite duas classes de aes, com e sem direito a voto. Como regra geral, as melhores prticas de governana corporativa, a exem-plo da divulgada pelo Instituto Brasileiro de Governana Corporativa (IBGC) (2005:11) e da prpria OCDE (2004a:20), recomendam a prtica de uma ao, um voto. A adoo desse mecanismo, que daria maior equilbrio de po-der aos acionistas, encontra-se inclusive como requisito no denominado Novo Mercado da Bovespa, onde so negociadas aes de empresas com prticas recomendadas de governana.

    Essa no seria uma mudana elementar para as estatais no Brasil, dado que a simples transformao das aes sem direito a voto em aes votantes retiraria do Estado a maioria no controle da empresa ou exigiria um elevado aporte de recursos para manter a empresa na condio de estatal. Dada a re-gulamentao em vigor at a promulgao da Lei no 10.303, em outubro de 2001, o capital social podia ser formado por at 2/3 de aes sem direito a voto. Bastaria portanto ao Estado controlar metade das aes votantes (1/6 ou 17%) para ter o controle integral da empresa. Assim, para igualar o direito de voto das aes e no perder o controle das empresas mantendo-as na condio de estatal deveriam ser adquiridas pelo Estado no mnimo mais

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    2/3 mais um de aes, em um eventual processo de converso, considerando que a participao estatal j razoavelmente maior que esse limite mnimo de controle.

    Entre as recomendaes feitas nessa rea est a de assegurar a partici-pao dos minoritrios no processo decisrio, permitindo, por exemplo, o uso de voto cumulativo, para que os minoritrios possam concentrar seus direitos de voto em um mesmo diretor e balancear, com isso, o poder dos majoritrios. Observe-se que essas recomendaes j esto contidas na Lei das Sociedades Annimas (Lei no 6.404/76), contempladas as incorporaes da Lei no 10.303, de 2001, legislao seguida tambm pelas estatais listadas em bolsa.

    Relaes com stakeholders

    A poltica de propriedade estatal deve reconhecer plenamente as responsabi-lidades dessas empresas com grupos de interesse (stakeholders) e demanda a divulgao dos termos e prticas de relacionamento com esses grupos. So recomendaes vinculadas a essa diretriz:

    t o governo, a entidade coordenadora e as prprias estatais devem reconhe-cer e proteger direitos dos stakeholders estabelecidos por lei ou por acordo mtuo, e se referir aos princpios a esse respeito;

    t grandes empresas estatais ou aquelas de capital aberto listadas em bolsas de valores devem comunicar em relatrios suas relaes com stakeholers, assim como aquelas que desempenham papis ou objetivos importantes de polticas pblicas;

    t o conselho da empresa estatal deve desenvolver e aplicar programas de compliance relacionados a cdigos de tica internos.

    O relacionamento estvel com grupos de interesse representa um im-portante capital social ou ativo intangvel para as empresas, que pode ser entendido inclusive como estratgia de longo prazo. No caso de estatais, como patrimnio pblico, a preocupao com esse relacionamento deve ser priori-dade, pelo efeito demonstrao que apresentam. Principalmente em pases em desenvolvimento, onde o ambiente institucional e as prticas empresarias encontram-se em consolidao, cabe s empresas estatais a responsabilidade adicional de promover o comportamento tico e o bom nvel nos relaciona-mentos entre empresas e sociedade, criando exemplos e liderando iniciativas que estimulem melhores prticas de governana.

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    O documento reconhece, nessa rea, a ampliao do papel das empre-sas e a necessidade de seu compromisso com a sociedade, com o interesse coletivo.

    Transparncia e abertura das informaes (disclosure)

    Empresas estatais devem observar elevados padres de transparncia, em con-cordncia com os princpios de governana corporativa da OCDE (2004a):

    t a entidade de coordenao ou funo propriedade deve desenvolver e di-vulgar relatrios consistentes e agregados sobre as empresas, e publicar anualmente um relatrio agregado sobre as empresas estatais;

    t estatais devem desenvolver eficientes procedimentos e funes de auditoria interna, sob o controle do conselho e se reportando a ele ou ao comit de auditoria;

    t empresas estatais, especialmente as maiores, devem estar sujeitas a audi-toria externa independente anual, baseada em padres internacionais. A existncia de procedimentos especficos de controle estatal no substitui a auditoria externa;

    t empresas estatais devem estar sujeitas aos mesmos padres de qualidade e auditoria que companhias listadas em bolsa (abertas). Estatais grandes ou listadas devem abrir suas informaes financeiras e no financeiras segun-do melhores prticas internacionais, assim como aquelas desempenhando papis ou objetivos importantes de poltica pblica;

    t as estatais devem abrir informao material sobre todos os assuntos des-critos nos princpios de governana corporativa da OCDE e adicionalmente focar em reas de significante ateno para o Estado como um proprietrio e o pblico em geral. So exemplos dessas informaes: uma clara decla-rao dos objetivos da companhia deve ser fornecida ao pblico em geral, bem como relatrios reportando quanto ao cumprimento desses objetivos; a estrutura de propriedade e votao das estatais deve ser transparente; ateno especfica deve ser dada adequada abertura de fatores de risco material; a comunicao deve detalhar qualquer assistncia financeira, in-clusive garantias, recebida do Estado e comprometimentos que realize em benefcio das estatais; transaes materiais realizadas com entidades rela-cionadas.

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    As novidades desta rea para as empresas estatais esto, principalmen-te, na recomendao de relatrio agregado sobre o conjunto das empresas. Embora possa se argumentar quanto dificuldade da produo de tal docu-mento, a possibilidade de uma viso consolidada sobre a funo propriedade estatal e suas prticas de gesto e desempenho acarretar avanos significati-vos para a transparncia de todo o sistema estatal.

    O documento recomenda maior transparncia da funo propriedade e independncia para a atuao da empresa, principalmente quanto aos proces-sos de votao. O item e, em seu inciso 4, destaca tambm a necessidade de divulgar e separar o risco e custos da atuao estatal, enquanto o inciso 5 recomenda tambm a transparncia no relacionamento com entidades rela-cionadas. Essas medidas vo ao encontro da necessidade de se permitir uma melhor avaliao do resultado da empresa per si, evitando que ela se respon-sabilize por passivos de outras reas do setor pblico.

    Uma vez que a sociedade , em ltima instncia, a proprietria das em-presas estatais o que representa uma complexa relao de agncia cabe s estatais serem, no mnimo, to transparentes quanto as corporaes priva-das. Dada sua importncia para promover as boas prticas de governana cor-porativa no pas, correto recomendar que princpios de transparncia sejam seguidos de forma exemplar.

    O documento da OCDE destaca que, quando uma estatal tambm uti-lizada para propsitos polticos, deve ser reportado como tais propsitos fo-ram alcanados e a que custo. Lembra tambm que, sem adequada informao sobre fatores de risco, essas empresas podem dar uma falsa representao de sua situao financeira e desempenho global. Recomenda que a abertura do risco deva ser considerada prioridade em setores recentemente liberalizados ou crescentemente internacionalizados. Essa abertura requer o estabeleci-mento de slido sistema interno de gesto de risco para identificar, gerenciar, controlar e reportar esses riscos, reportando tambm os denominados itens off-balance sheet, referentes a aspectos no includos no balano e que afetam o valor e resultados da empresa como alianas, garantias e arrendamento de equipamentos, bem como estratgias para sua gesto.

    Responsabilidades do conselho de administrao da empresa estatal

    Os conselhos das empresas estatais devem possuir adequada autoridade, com-petncia e objetividade para desempenhar suas funes de condutores da es-

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    tratgia e monitoramento dos gestores. O conselho deve agir com integridade e ser responsvel por suas aes:

    t os membros dos conselhos das estatais devem ter mandato e responsabili-dades claramente definidos, inclusive quanto ao desempenho da estatal;

    t devem exercer julgamento objetivo e independente. O conselho deve ser formado por membros com relevante competncia e experincia, e incluir um nmero suficiente de no-executivos e membros independentes. O n-mero de seus membros deve ser limitado e sua nomeao ocorrer por pro-cesso transparente;

    t nas empresas onde a representao dos empregados no conselho autori-zada, devem ser desenvolvidos mecanismos para garantir que sua voz seja exercida efetivamente;

    t o presidente do conselho deve ter relevantes competncias para desem-penhar seu papel, e as boas prticas de governana apontam que deve ser separada a figura do presidente do conselho e a do presidente executivo;

    t os conselhos das empresas estatais devem desempenhar suas funes de monitoramento da gesto e direcionamento estratgico, sujeitos aos objeti-vos ditados pelo governo e pela entidade coordenadora. Devem ter poder para indicar e destituir o presidente executivo;

    t quando necessrio, o conselho pode constituir comits especializados para apoi-lo em suas funes essenciais, particularmente comits de auditoria, risco, de remunerao, nomeao e tica;

    t os conselhos das estatais devem fazer avaliao anual de seu desempenho.

    Nessa rea, as diretrizes da OCDE guardam grandes semelhanas com as diretrizes gerais, aplicveis ao setor privado. O papel do conselho como condutor das estratgias gerais da empresa, sua independncia, capacitao e formao so princpios gerais.

    So tambm princpios gerais suas obrigaes quanto ao monitoramen-to dos executivos, os requisitos de competncia, a exigncia de serem subme-tidos a uma avaliao anual, a constituio de comits para assuntos espec-ficos, e a separao entre a figura do presidente do conselho e do presidente executivo.

    Um ponto importante que observa o documento que as funes do conselho podem, eventualmente, ser duplicadas por rgos reguladores em algumas reas, por isso a exigncia de clareza nas funes do conselho e na

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    funo direta do Estado na propriedade. O documento contempla ainda a recomendao de que os conselhos sejam formados por nmero suficiente de membros externos e independentes, principalmente em ambientes mais com-petitivos de atuao, que sejam livres de conflitos de interesse, e preferencial-mente recrutados no setor privado, medidas que ajudaro a tornar o conselho mais orientado a negcios. Alm disso, indica que o nmero dos membros do conselho que vm diretamente da administrao estatal deve ser reduzido, para limitar interferncia poltica direta e indevida, e sugere explicitamente excluir do conselho ministro, secretrios de Estado e membros do Parlamento, e evitar aqueles com representao poltica. Objetivos polticos amplos devem ser canalizados por meio da entidade de coordenao.

    Especificamente quanto ao contexto das empresas estatais, o texto re-mete novamente indicao e independncia do conselho. Um princpio que norteia todo o documento da OCDE a independncia da empresa estatal. Sua orientao para questes pblicas dada no prprio momento de criao. Deve ter autonomia para executar suas funes e ser cobrada quanto ao de-sempenho e alcance dos objetivos.

    Entretanto, a entidade coordenadora ou o prprio governo muitas vezes se envolvem com as questes estratgicas. Como aponta o documento, em al-guns pases h forte ligao entre os executivos das estatais e a entidade coor-denadora ou diretamente com o governo, resultado do processo de indicao, que pode implicar o no envolvimento do conselho nas decises, fazendo com que este se sinta menos responsvel por prestar informaes.

    Tambm o papel do conselho de apontar e destituir o presidente da empresa percebido como fundamental pela OCDE, de forma a permitir que o rgo possa exercitar plenamente sua funo de monitoramento e se sentir responsvel pelo desempenho da empresa.

    Conforme informaes da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), ao fi-nal de 2007, a Unio detinha participao majoritria em 50 empresas (27 sociedades de economia mista e 23 empresas pblicas) e minoritria em 81 empresas, no consideradas as participaes acionrias de rgos e entida-des da administrao federal indireta (Secretaria do Tesouro Nacional, 2008). Considerando que o Decreto no 757, de 19 de fevereiro de 1993, estabelece o teto de seis membros para o conselho de administrao e de trs membros efetivos e trs suplentes para as empresas estatais, justifica destacar a impor-tncia do processo de nomeao, formao e acompanhamento da atuao desses conselheiros (Brasil, 1993).

    As diretrizes dessa rea so certamente de implementao complexa, embora de grande importncia. Inibir a capacidade do conselho de exercer

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    suas funes torna difusa a responsabilidade pelo desempenho da empresa, com impactos inclusive sobre os mecanismos de controle. necessrio um amadurecimento do processo poltico para que seja resguardada a empresa, enquanto ativo, e asseguradas condies para que seja capaz de atuar com essa independncia.

    5. Consideraes finais

    O ambiente da governana corporativa das empresas privadas no Brasil, mesmo considerados os desenvolvimentos ocorridos posteriormente s anlises de La Porta, Lopez-de-Silanes e Shleifer (1998), aponta para a necessidade de uma evoluo nas dimenses referentes ao arcabouo institucional-legal, nos mode-los de prestao de contas da gesto, e no tratamento aos acionistas minorit-rios, para que as empresas se tornem mais competitivas na atrao de recursos de investidores para financiar suas atividades. Por extenso, essa recomendao se aplica tambm s empresas estatais que, alm dessas deficincias, tm a natu-reza difusa do controlador e a caracterstica poltica de seu ambiente, tornando ainda mais crtica a exigncia de consolidao das boas prticas de governana corporativa para ampliar a capacidade da ao dos gestores e a correta avalia-o de seu desempenho. Nesse caso, a justificativa no a atrao de investido-res salvo nas sociedades de economia mista mas o aumento da eficincia e eficcia na produo de bens e servios pblicos.

    As diretrizes propostas pela OCDE para as estatais tm como tnica for-talecer a autonomia da empresa e dos conselhos. Ambos os aspectos podem trazer profundos impactos sobre o monitoramento e controle das empresas, dando visibilidade a custos usualmente no discriminados, relativos exe-cuo de polticas pblicas, permitindo separar a eficincia empresarial da estatal da ao governamental, cujo custo deveria ser mais claramente dis-posto no oramento pblico. S assim ser possvel promover a qualidade da gesto, a meritocracia e o direcionamento das responsabilidades pelo alcance dos objetivos.

    importante destacar tambm essas diretrizes que, ao estabelecerem arranjos que permitem ampliar a visibilidade da empresa estatal como ativo do governo, contribuem para promover o aumento da accountability e a maior estabilidade do trabalho de seus administradores, uma vez que os mecanismos de avaliao dos gestores tornam-se mais objetivos. semelhana dos mode-los de contrato de gesto, a adoo das diretrizes facilita a identificao dos resultados das empresas e o nvel de realizao de seus gestores, promovendo

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    um crculo virtuoso pela busca de bons desempenhos e reduzindo interfern-cias na sua atuao operacional. Ao propor a separao dos custos advindos da implementao de polticas governamentais daqueles gerados por eventu-ais problemas de ineficincia da gesto, as prticas propostas nas diretrizes podero contribuir para melhorar a qualidade dos executivos das empresas estatais, j que a evidncia de suas aes e resultados permitir desenvolver as mtricas de um sistema externo de controle para comparao de sua atuao com correspondentes privados.

    Por ora, mesmo entre os pases-membros da OCDE h vrios aspectos dispostos nas diretrizes que exigiro significativas mudanas, principalmente quanto centralizao da funo propriedade, critrios para seleo de con-selheiros, e explicitao dos custos inerentes funo pblica das empresas. Somem-se aos esforos de mudana as exigncias particulares de cada pas, visto que as profundas diferenas entre os modelos empresariais anglo-saxo, nipo-germnico, da Europa Meridional e da Amrica Latina, presentes no sis-tema legal, nas prticas culturais e no nvel de desenvolvimento dos mercados financeiros e ambiente institucional no so considerados de forma explcita no documento, por se pretender uma referncia geral. Ser necessrio um esforo adicional e uma reflexo mais ampla para adequar aspectos das diretrizes ao ambiente brasileiro.

    O principal mrito das diretrizes apontar referncias internacionais e possibilidades de soluo para as questes prprias da governana das empre-sas estatais, respeitando sua natureza pblica e sua importncia nas economias nacionais. medida que sua aceitao se amplie e suas diretrizes sejam inter-nalizadas pelas empresas, aumentar a fora dos movimentos que vinculam as boas prticas de governana ao desenvolvimento dos pases, a exemplo do que j vem ocorrendo com as diretrizes de governana corporativa propostas para empresas privadas. As solues encontradas pelos pases para segui-las iro mostrar certamente exemplos de criatividade, inovao em gesto pblica e organizao do interesse poltico.

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