Graça Morais Jornal de Letras 1

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  • 7/28/2019 Graa Morais Jornal de Letras 1

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    jornaldeletras.sap o.pt * 6 a 19 de maro de 201316 *artes

    como um lodo que alastra sub-terrneo, abaixo do nvel dos dias,uma mancha de leo que se espalhaespessamente supercie, umsinal do tempo. E oi esse incmodopresente que a pintora quis azerassomar na linha de horizonte dassuas telas. Sabe-se como se podetremer, paralisar, chorar, gritar demedo. Tambm pint-lo? E quaisas suas cores? Essa a indagao deGraa Morais, 64 anos, nas suasmais recentes pinturas, que podemser vistas na exposio, Os desastresda guerra, na Fundao ArpadSzenes-Vieira da Silva, ao Jardimdas Amoreiras, em Lisboa. Nelas sepode seguir o rasto do medo quecontemporaneamente se derramano mundo, abrindo trilhos sob ospassos dos xodos dos povos, dasugas, das migraes, sob o pesodos despojos da guerra, da pobreza,do desemprego e de todas as crises.

    Os desenhos a grate e os leostm nomes, que no deixam mar-gem para dvidas: A Caminhadado Medo, A Idade do Medoe AsSombras do Medo. So todos re-centes, realizados de 2011 para c. sob o signo do medo que GraaMorais est a pintar? Foi maisou menos por altura da Primaverarabe e das convulses na Grciaque comecei a azer estas pinturassobre papel, debaixo da tenso dasnotcias que todos os dias ouvia,

    lia e via, notcias tambm sobre opas e a crise na Europa. Senti quese vivia uma atmosera de gran-de ansiedade em Portugal, comose uma espada comeasse a cairsobre as nossas cabeas, recorda.Falava-se em desemprego, aspessoas isolavam-se, havia umagrande inquietao. E eu comeceia echar-me no meu ateli, muitoatenta s notcias, tal como sconversas de rua, s pessoas comquem me cruzava. Era uma sensa-o de medo que pressentia.

    Foi tambm por essa alturaque a pintora desatou a recortarnotcias e imagens de jornais erevistas portuguesas e estrangei-ras. Mostra tambm esses recortesna exposio, numa vitrina. Talcomo os pigmentos e o carvo, atinta impressa oi a matria brutadas pinturas que se seguiram.Aindafotografou notcias, se assimse pode dizer, imagens televisivas eacontecimentos reais. E oi baseadanessa realidade que comeoua pintar. S que conhecida aresistncia da realidade a deixar-secapturar por uma imagem, qual-quer que seja. Pictrica, ainda me-nos. Graa Morais quem o deixadesde logo claro: Dessa realidadeque deixou de o ser, porque osquadros so uma transormao doreal, surgiu, com muita intensida-de, a primeira srie. Chamou-lheA Caminhada do Medo: So obrasque captam a dimenso de grandeinsegurana, a grande ragilidadedo ser humano.

    E como se az das notciaspintura? H sempre uma escolhadas imagens que me tocam maisproundamente e que tm mais aver com o meu mundo interior.Mas quando escolho um recor-te, nunca sei at que ponto o voutrabalhar e desenvolver. S sei quez todo este trabalho debaixo deum sentimento de necessidade e de

    raiva. Por isso, as coisas saem deuma orma quase irracional, masdepois h um momento de controlototal, porque estou a pintar. A, jno so as imagens que me preocu-pam, mas resolver o quadro.

    xodos e desesperosGraa Morais est sentada numacadeira, num recanto da exposi-o, o mais morno, iluso talvez,dada por uma poeira de sol, quevinha l de ora, da manh. A sala

    clara e ria. Porventura, poupanano aquecimento, outro sinal dostempos. E no vo de eio paraa cultura, como salienta a pinto-ra: No h dinheiro para nada,mas tambm preciso alimentaro esprito. Se a Fundao Vieira daSilva no me tivesse eito o convitepara expor, estes quadros esta-riam guardados, as pessoas no seencontrariam, nem passava a co-municao. Estas pinturas tambmso um espelho onde se podem ver.

    ala. Conserva as mos resguar-dadas o mais possvel nas mangas.No despiu o casaco que conser-va apertado. riorenta. Nem asinvernias transmontanas da suainncia no Vieiro, o vento agrestesobre os lameiros e as geadas que se

    entranhavam na terra at s razesdas rvores e nos corpos at aosossos, a habituaram s temperatu-ras mais baixas. No Centro de ArteContempornea de Bragana, quetem o seu nome e onde est expos-ta em permanncia uma mostraantolgica da sua obra, que azquesto de renovar trs vezes porano, est sempre quentinho, dizela. Talvez por estar na sua casa,que no nal de junho ar cincoanos, com uma mostra retrospe-tiva, com obras raramente vistas,iniciais, dos tempos de estudantee de Paris, de dierentes colees,reconstituindo um percurso jcom quatro dcadas.

    Mas na casa museu de Vieira

    da Silva, onde mostra agora o seutrabalho, por certo a sua prpriapintura que mais gela o olhar.Graa aponta o undo da sala, umquadro em que se v uma mulher-polcia que segura uma crianamorta. A palavra morta parecesair-lhe suspensa, ligeiramentehesitante, sumindo-se na gargan-ta. Os telejornais esto cheiosde homens a segurarem corposmortos, enterrando-os envoltosem panos, num grande desespero,observa, lembrando as imagens daSria, como antes da Lbia ou doEgito. Raramente nesses pasesas mulheres alam, mas quandoo azem, gritam e dizem palavrasmuito ortes.

    Podem ouvir-se nas suas pintu-ras. Assim como se desdobram ospanos e rituais unerrios islmicose se estampa a morte universal.So pinturas eitas com muita ur-gncia, sublinha ainda a pintora.E acrescenta: O que tambm meimpressionou e pressionou muitooi a certeza de que h milhares depessoas a viajarem no mundo,no por turismo ou procura do co-nhecimento, para irem ao Louvreou ver as Pirmides, mas porquea necessidade os obriga a deixaras suas casas, os seus pases. Somilhares de pessoas em deslocaopelo mundo procura de um stioonde possam viver com dignidade.Fogem da guerra, do caos, da ome,de muitos medos.

    real e metamorfoseQuando, no vero de 2011, GraaMorais estava a pintar a srie ACaminhada do Medo, recebeu noseu ateli da Costa do Castelo a vi-sita do escritor Antonio Tabucchi,j bastante debilitado viria amorrer no ano passado que emu-deceu algum tempo diante de umquadro que remete para a tragdiados aricanos que demandam ascostas de Lampedusa, em Itlia,muitos dos quais so vtimas denaurgios. E disse ento que que-ria escrever sobre ele. E escreveuFim do Mito. Breve Auto sobre um

    quadro de Graa Morais, que pu-

    blicado no catlogo da exposiAquele mar est cheio de mortque caram pelo caminho. E vemmuitas vezes relatos terrveis dereugiados exaustos que conse-guem chegar a terra, mas depoisso recambiados para rica. Esemigrao um exemplo do madesespero de seres humanos, qu

    Uma denncia e um apelo refexo sobre o tempo que vivemos,sob o signo do medo, numa exposio, Os desastres da guerra, quepode ser vista at 14 de abril na Fundao Arpad Szenes-Vieirada Silva e no mbito da qual se vo realizar dois debates. Porque preciso pensar o que est a acontecer, como a pintora diz ao Jl.E a esse propsito, das relaes entre a arte e o mundo,a interveno (ou no) dos criadores, na sequncia do que zemosna penltima edio com os escritores, lanamos um inqurito a querespondem oito conhecidos artistas de vrias tendncias e geraes

    Graa Morais

    A urgncia de umapintura que acusa

    Maria Leonor Nunes

    e

    Faz alta sempre ler, ver teatro,ir a exposies, ouvir msica e aspessoas saberem que h criadoresque esto em sintonia com os seussentimentos, as suas diculdades,o seu sorimento. S que as queesto desempregadas no devemter dinheiro nem para comer.

    Poucos gestos lhe sublinham a

    No posso fcar calada.

    Como possvelazer uma pinturadecorativa ou queignore o que esta acontecer?

    Graa Morais H milhares de pessoa