Graça Morais Jornal de Letras 2

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J 6 a 19 de março de 2013 * jornaldeletras.sapo.pt ENTREVISTA, CRÍTICA artes * 17 Tenho acompanhado e testemu- nhado o percurso de Graça Moraes desde a sua primeira exposição individual na SNBA, em 1980, intitulada “O Rosto e os Frutos” e apresentada por Fernando de Azevedo: a metamorfose do uni- verso, das formas sempre fiéis ao sopro inspirador das suas origens transmontanas. Egídio Álvaro sintetizou já em 1976 a criação da artista, quando esta, bolseira em Paris, se estreou: “O mistério, o maravilhoso, a liberdade na natu- reza. Visão romântica certamente, poética também, mas igualmente crítica, violenta.” Também Silvia Chicó caracterizou o seu pecu- liar estilo: “A tensão entre uma representação naturalista, em que um quase academismo se assume, e é deliberado, e a negação desse mesmo academismo pelo uso da desmesura e da imprevisibilidade, constituem a originalidade da pintura de Graça Morais.” Ou seja o entrecruzar das vertentes funda- doras da arte, a clássica e a bar- roca numa visão totalizadora da natureza humana e do seu destino poeticamente e metaforicamente ligado ao Cosmos. Graça Morais procurou e encontrou os parâmetros da sua sensibilidade poética em vivên- cias simultaneamente pessoais e universais na sua aldeia natal de Vieiro (Trás-os-Montes), sobretu- do a partir de 1982. Na sua lingua- gem plástica vive a memória da pintura, de Bosch, à exuberância barroca, ao tenebrismo das gravu- ras e das pinturas negras de Goya e dos grandes românticos, ao filão surrealista, ao traçado vigoroso de Rouault e ao dramatismo telúrico da Guernica de Picasso. Misto de surrealismo, de arte fantástica, de naturalismo expressionista e de expressionismo onírico, marca da sua profunda originalidade. Na sua pintura a mulher tem sido a mediadora de um poético e dramático diálogo com o universo. Os rostos femininos confundem- se com o esplendor e a beleza dos frutos da terra ou com as criaturas de um mundo animal e violento, espécie de dramática metáfora do seu destino. Atravessam o palco do que parece a ancestral cena de um sacrifício, prelúdio de um renascimento cósmico sob o signo do amor e da paixão. Paixão do vi- sível, mas também do invisível que esconde e ao mesmo tempo revela um segredo, as núpcias do céu e do inferno, o esplendor de uma presença anunciada. Regressam no seu cofre de ouro, devolvidas pelo tempo, as palavras, as minhas também e as imagens da pintura de Graça Morais. A cor guarda o brilho, explode, íntima substância de flores, asas matinais. Sabores vermelhos, colares do dia para enfeitar emoções felizes. Flores pensativas, brancas, pedaços de uma pureza que se detém, líquida e solar, coração revelado à luz, aberto ao ar e secreto. Traços arrancados à solidão, ausência povoada, rumorejar da linha entre sonhos e sombras. Noite misturada com cinzas, com a polpa dos lábios das raparigas, com o sol e a pele da terra acobreada. Vestígios da tarde alegre e cheia de melancolia, exuberantes hastes do paraíso, serenas, verdes, suma- rentas, nascidas do acaso, dons do ocaso, desenhos da terra sonha- dora onde o olhar se perde e en- contra, encanta. Íntimas vibrações do oiro dos dias. Estranha, lenta, soberba alquimia. Transmutação da cor e das formas. Ocres, bran- cos, cinzas, negros, vermelhos, delicados, bruscos, agre Via sacra de uma dor que se estende a toda uma civilização, retrato em fogo e trevas, incên- dio obscuro envolto no terror de um rosto perdido, que aparece e desaparece, espécie de visitação funambulesca de uma morte anunciada. Paisagens dantescas, sob o signo do cão, condutor das almas no além ou do bode, com os seus cornos detentores de uma energia satânica. Figuras truncadas, embrioná- rias, incompletas, fresco de almas sombrias em corpos que não lhes pertencem, imagens travestidas e fantasmáticas, uma deambu- lação sem rumo entre máscaras onde parece acender-se uma dor mais antiga do que o homem. Na caminhada do medo acendem-se os traços, negros e voluptuosos no ofício das trevas de um tempo sem espaço, de um espaço onde se acumulam os puros destroços de uma alegria que parece nunca ter existido. Avesso da luz, avesso de uma terra prometida, de um éden que se transformou em labaredas e cinzas de uma esperança amor- daçada. As emoções, os olhares, criam presenças difusas, evanes- centes e intensas, como o traço e a cor, o seu poder e a sua mais íntima substância. Olhares para dentro numa planície queimada por onde perpassam vagos dese- jos, vidas que não chegaram a ser. Sombras de uma noite que sentimos a fase negra de uma alquimia visceral e profunda- mente anímica. A artista atingiu uma fronteira que é ainda o real, mas o real vislumbrado como esfíngica assombração, dealbar de um negrume que em si contem as sementes da aurora balsâmica da alma. Este é o palco dos nossos te- mores mais secretos, entre esgares e figuras simiescas, metáforas de uma humanidade que não cum- priu a sua vocação, a mesma de séculos de pintura: a luz, imagem do conhecimento e do divino. Alguns grandes mestres da pin- tura do Ocidente, como Matisse, Chagall ou entre nós Júlio Resende, mantiveram-se fiéis a essa luz, herança do Paraíso. Outros como Goya, Duchamp ou Salvador Dali deixaram-nos como herança um labirinto onde o Minotauro nos devolve a imagem de toda uma ci- vilização. Graça Morais tem vindo a percorrer as estações de uma via sacra de paixão e dor, outros tantos retratos de um humano que parece agora longe do sagrado e das fontes salvíficas da sua regeneração. Pietás grotescas, figuras jacentes num sono realmente próximo da morte, galeria trágica que é uma caminhada para as trevas. Vieira da Silva que os azulejos de Lisboa inspiraram pintou nas suas últimas obras a turbulência de um infinito luminoso que prolonga a nossa efémera passagem neste mundo. Graça Morais foi capaz de criar a dolorosa procissão onde tomam forma todos os terrores de uma civilização separada das origens salvíficas da vida, mas é ainda aí, nessa ardente noite que cintila obscura, uma luz transfigurada. J sem condições procuram sobrevi- ver noutro lugar”, sustenta. Uma despedida na pintura, duas figuras, pai e filho, um que fica, outro que parte. Não se voltarão a ver e assim surgem na escrita de Tabucchi. “Hoje a Europa que nas- ceu da cidade fundada por teu filho já não quer intrusos, ferozmente coalizada, tem uma frota costeira que vigia os desembarques, afunda embarcações tão miseráveis como as nossas; essas criaturas outrora bárbaras enriqueceram, uns mais, outros menos, porque os pobres fazem falta aos ricos, e sem os pobres nunca os ricos seriam ricos. Mas os ricos que aí ordenam não A luz das trevas Graça Morais A Caminhada do Medo III, 2011, Carvão e pastel sobre papel Maria João Fernandes Graça Morais OS DESASTRES DA GUERRA Fundação Vieira da Silva Arpad Szènes, Praça das Amoreiras, 58, 1250-020 Lisboa. Tel. 21-3880044. Até 14 de Abril. Quarta a domingo das 10h às 18. para meia dúzia viverem com a ambição de dominarem o mundo MARCOS BORGA

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Graça Morais Uma pintura que grita e acusa Entrevista por Maria Leonor NunesA Luz das trevas - Crítica de Arte por Maria João FigueiredoJornal de Letras, Artes e Ideias publicado a 6 de Março 2013, págs. 16 a 20

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J 6 a 19 de março de 2013 * jornaldeletras.sapo.pt entrevista, crítica artes * 17

Tenho acompanhado e testemu-nhado o percurso de Graça Moraes desde a sua primeira exposição individual na SNBA, em 1980, intitulada “O Rosto e os Frutos” e apresentada por Fernando de Azevedo: a metamorfose do uni-verso, das formas sempre fiéis ao sopro inspirador das suas origens transmontanas. Egídio Álvaro sintetizou já em 1976 a criação da artista, quando esta, bolseira em Paris, se estreou: “O mistério, o maravilhoso, a liberdade na natu-reza. Visão romântica certamente, poética também, mas igualmente crítica, violenta.” Também Silvia Chicó caracterizou o seu pecu-liar estilo: “A tensão entre uma representação naturalista, em que um quase academismo se assume, e é deliberado, e a negação desse mesmo academismo pelo uso da desmesura e da imprevisibilidade, constituem a originalidade da pintura de Graça Morais.” Ou seja o entrecruzar das vertentes funda-doras da arte, a clássica e a bar-roca numa visão totalizadora da natureza humana e do seu destino poeticamente e metaforicamente ligado ao Cosmos.

Graça Morais procurou e encontrou os parâmetros da sua sensibilidade poética em vivên-cias simultaneamente pessoais e universais na sua aldeia natal de Vieiro (Trás-os-Montes), sobretu-do a partir de 1982. Na sua lingua-gem plástica vive a memória da pintura, de Bosch, à exuberância barroca, ao tenebrismo das gravu-ras e das pinturas negras de Goya e dos grandes românticos, ao filão surrealista, ao traçado vigoroso de Rouault e ao dramatismo telúrico da Guernica de Picasso. Misto de surrealismo, de arte fantástica, de naturalismo expressionista e de expressionismo onírico, marca da sua profunda originalidade.

Na sua pintura a mulher tem sido a mediadora de um poético e dramático diálogo com o universo. Os rostos femininos confundem-se com o esplendor e a beleza dos frutos da terra ou com as criaturas de um mundo animal e violento, espécie de dramática metáfora do seu destino. Atravessam o palco do que parece a ancestral cena de um sacrifício, prelúdio de um renascimento cósmico sob o signo do amor e da paixão. Paixão do vi-sível, mas também do invisível que esconde e ao mesmo tempo revela um segredo, as núpcias do céu e do inferno, o esplendor de uma presença anunciada. Regressam no seu cofre de ouro, devolvidas pelo tempo, as palavras, as minhas também e as imagens da pintura

de Graça Morais. A cor guarda o brilho, explode, íntima substância de flores, asas matinais. Sabores vermelhos, colares do dia para enfeitar emoções felizes. Flores pensativas, brancas, pedaços de uma pureza que se detém, líquida e solar, coração revelado à luz, aberto ao ar e secreto. Traços arrancados à solidão, ausência povoada, rumorejar da linha entre sonhos e sombras. Noite misturada com cinzas, com a polpa dos lábios das raparigas, com o sol e a pele da terra acobreada.

Vestígios da tarde alegre e cheia de melancolia, exuberantes hastes do paraíso, serenas, verdes, suma-rentas, nascidas do acaso, dons do ocaso, desenhos da terra sonha-dora onde o olhar se perde e en-contra, encanta. Íntimas vibrações do oiro dos dias. Estranha, lenta,

soberba alquimia. Transmutação da cor e das formas. Ocres, bran-cos, cinzas, negros, vermelhos, delicados, bruscos, agre

Via sacra de uma dor que se estende a toda uma civilização, retrato em fogo e trevas, incên-dio obscuro envolto no terror de um rosto perdido, que aparece e desaparece, espécie de visitação funambulesca de uma morte anunciada. Paisagens dantescas, sob o signo do cão, condutor das almas no além ou do bode, com os seus cornos detentores de uma energia satânica.

Figuras truncadas, embrioná-rias, incompletas, fresco de almas sombrias em corpos que não lhes pertencem, imagens travestidas e fantasmáticas, uma deambu-lação sem rumo entre máscaras onde parece acender-se uma dor mais antiga do que o homem. Na caminhada do medo acendem-se os traços, negros e voluptuosos no ofício das trevas de um tempo sem espaço, de um espaço onde se acumulam os puros destroços de uma alegria que parece nunca ter existido. Avesso da luz, avesso de uma terra prometida, de um éden que se transformou em labaredas

e cinzas de uma esperança amor-daçada. As emoções, os olhares, criam presenças difusas, evanes-centes e intensas, como o traço e a cor, o seu poder e a sua mais íntima substância. Olhares para dentro numa planície queimada por onde perpassam vagos dese-jos, vidas que não chegaram a ser.

Sombras de uma noite que sentimos a fase negra de uma alquimia visceral e profunda-mente anímica. A artista atingiu uma fronteira que é ainda o real, mas o real vislumbrado como esfíngica assombração, dealbar de um negrume que em si contem as sementes da aurora balsâmica da alma. Este é o palco dos nossos te-mores mais secretos, entre esgares e figuras simiescas, metáforas de uma humanidade que não cum-priu a sua vocação, a mesma de séculos de pintura: a luz, imagem do conhecimento e do divino.

Alguns grandes mestres da pin-tura do Ocidente, como Matisse, Chagall ou entre nós Júlio Resende, mantiveram-se fiéis a essa luz, herança do Paraíso. Outros como

Goya, Duchamp ou Salvador Dali deixaram-nos como herança um labirinto onde o Minotauro nos devolve a imagem de toda uma ci-vilização. Graça Morais tem vindo a percorrer as estações de uma via sacra de paixão e dor, outros tantos retratos de um humano que parece agora longe do sagrado e das fontes salvíficas da sua regeneração. Pietás grotescas, figuras jacentes num sono realmente próximo da morte, galeria trágica que é uma caminhada para as trevas. Vieira da Silva que os azulejos de Lisboa inspiraram pintou nas suas últimas obras a turbulência de um infinito luminoso que prolonga a nossa efémera passagem neste mundo. Graça Morais foi capaz de criar a dolorosa procissão onde tomam forma todos os terrores de uma civilização separada das origens salvíficas da vida, mas é ainda aí, nessa ardente noite que cintila obscura, uma luz transfigurada. Jsem condições procuram sobrevi-

ver noutro lugar”, sustenta. Uma despedida na pintura, duas

figuras, pai e filho, um que fica, outro que parte. Não se voltarão a ver e assim surgem na escrita de Tabucchi. “Hoje a Europa que nas-ceu da cidade fundada por teu filho já não quer intrusos, ferozmente

coalizada, tem uma frota costeira que vigia os desembarques, afunda embarcações tão miseráveis como as nossas; essas criaturas outrora bárbaras enriqueceram, uns mais, outros menos, porque os pobres fazem falta aos ricos, e sem os pobres nunca os ricos seriam ricos. Mas os ricos que aí ordenam não

A luz das trevas

Graça Morais A Caminhada do Medo III, 2011, Carvão e pastel sobre papel

Maria João Fernandes

›Graça MoraisOs Desastres Da GuerraFundação Vieira da Silva Arpad Szènes, Praça das Amoreiras, 58, 1250-020 Lisboa. Tel. 21-3880044. Até 14 de Abril. Quarta a domingo das 10h às 18.

Graça Morais Há milhares de pessoas que sofrem para meia dúzia viverem com a ambição de dominarem o mundo

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