Gramática e Gramáticas: transpondo fronteiras no …¡tica e Gramáticas... · por meio da poesia...

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Gramática e Gramáticas: transpondo fronteiras no ensino do latim e do português Ana Catarina Fernandes Boto Relatório da Prática de Ensino Supervisionada do Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas no 3.º Ciclo do Ensino Básico e no Ensino Secundário Versão corrigida e melhorada após defesa pública Setembro 2016

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  • Gramtica e Gramticas: transpondo

    fronteiras no ensino do latim e do

    portugus

    Ana Catarina Fernandes Boto

    Relatrio da Prtica de Ensino Supervisionada

    do Mestrado em Ensino do Portugus e das Lnguas Clssicas

    no 3. Ciclo do Ensino Bsico e no Ensino Secundrio

    Verso corrigida e melhorada aps defesa pblica

    Setembro

    2016

  • ii

    Relatrio de Estgio apresentado para cumprimento dos requisitos necessrios

    obteno do grau de Mestre em Ensino de Portugus e de Lnguas Clssicas no 3. Ciclo do

    Ensino Bsico e no Ensino Secundrio, realizado sob a orientao cientfica das Professoras

    Doutoras Maria Teresa Brocardo e Maria Leonor Santa Brbara da Faculdade de Cincias

    Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

  • iii

    Aos nossos pais.

    E a ti, mano.

  • iv

    AGRADECIMENTOS

    Depois de um longo caminho, das hesitaes naturais da passagem do tempo, dos

    soluos da vida em porvir, eis que brota da escrita a fotografia de uma etapa e de um sonho,

    de um desejo profundo e de uma certeza j inabalvel. Pequeno reflexo de dois anos de

    empenho e de inmeras aprendizagens, o presente relatrio de estgio no podia ter sido

    escrito sem a pacincia de tantos que me ouviram e nunca me deixaram ceder s dvidas e aos

    receios, sem a ajuda da minha colega e amiga Constana da Marta, sem o querer to forte dos

    meus avs, Florentino e Eugnia.

    A todos os professores que me cruzaram o passo e em especial aos que me ensinaram

    a andar, como a Professora Maria do Sameiro, docente na minha escola secundria em Lagoa;

    a todos os alunos que foram meus colegas e em especial aos que me deixaram ser timoneira

    durante um ano inteiro, como os tenazes do 8. D e os ferozes do 12. A, na escola Pedro

    Nunes, ou os sonhadores do 10. K, na escola secundria de Cames; aos meus orientadores

    das escolas cooperantes, a Professora Rosrio Andorinha Silva e o Professor Mrio Martins, e

    s minhas orientadoras cientficas da FCSH, a Professora Doutora Maria Teresa Brocardo e a

    Professora Doutora Maria Leonor Santa Brbara, que tantas dvidas tiveram de me resolver e

    que me acompanharam na felicidade de fazer este caminho; minha colega de estgio de

    ensino do portugus, Diana de Frias, pelas horas de cumplicidade e de aprendizagem

    conjunta; aos meus pais, Carlos e Manuela, por terem acreditado sempre em mim e nunca me

    deixarem esquecer a vontade frrea de que somos feitos; por fim, ao sonho que nunca

    desvaneceu, o mais grato e consciente obrigada, o mais intrnseco e sentido agradecimento.

    Se ensinar foi continuamente o objetivo, aprender foi irrefutavelmente a motivao.

    Errou-se muito quando se fez, mas aprendeu-se mais ainda ao reconhecer que s no erra

    quem no faz.

    Venha o futuro.

  • v

    Gramtica e gramticas: transpondo fronteiras no ensino do latim e do portugus

    Ana Catarina Fernandes Boto

    RESUMO

    O presente relatrio decorre da reflexo sobre a prtica de ensino supervisionada em

    trs turmas, uma do Ensino Bsico (E.B.) e outra do Ensino Secundrio (E.S.) na disciplina de

    Portugus e uma do E.S. na disciplina de Latim A, ocorrida durante o ano letivo de

    2015/2016, respetivamente na Escola Secundria c/ 3. Ciclo do E.B. de Pedro Nunes e na

    Escola Secundria de Cames e sob orientao cientfica das Professoras Doutoras Maria

    Teresa Brocardo e Maria Leonor Santa Brbara.

    Partindo da ideia de que uma abordagem metodolgica assente num ensino motivador

    de prtica reflexiva e questionamento, que procure uma aprendizagem significativa de

    contedos por parte dos alunos, dever contrariar a tendncia para o psitacismo no ensino do

    portugus e do latim; que na gramtica da lngua, seja ela qual for, que se encontram os

    instrumentos necessrios ao desenvolvimento de falantes autnomos e eficientes que refletem

    sobre a sua lngua e a dominam nas suas estruturas; e da expetativa de que uma prtica de

    ensino que estreite, significativamente, as fronteiras e barreiras existentes entre as duas

    lnguas se refletir na consolidao de falantes do portugus mais bem preparados e mais

    competentes, descrever-se-o diferentes concees de lngua e gramtica que se associam

    adoo de metodologias de ensino e aprendizagem do portugus e do latim, alguns problemas

    que da decorrem e a prtica de ensino supervisionada (PES) em si.

    O projeto da PES pretendeu no s desenvolver uma postura didtica assente na

    aprendizagem significativa de estruturas morfossintticas, mecanismos e recursos da lngua,

    promovendo e consolidando a aquisio de conhecimentos sobre as suas potencialidades e o

    desenvolvimento de competncias de reflexo inferencial e dedutiva de sentidos textuais,

    significados de palavras e valores construdos linguisticamente, como reforar o

    aprofundamento da conscincia metalingustica com recurso a uma terminologia gramatical

    adequada reflexo e evidenciar a transversalidade cultural e lingustica, tanto do portugus

    como do latim, na sua condio de suportes estruturalmente integrados no saber da lngua.

    PALAVRAS-CHAVE: gramtica; concees de lngua, ensino do portugus; ensino do latim;

    metodologias de ensino.

  • vi

    ABSTRACT

    The present report derives from the reflection on the supervised teaching practice with

    three classes, one from the Basic and another from the Secondary School in the Portuguese

    subject and a third from the Secondary School in the Latin A subject, which occurred during

    the school year of 2015/2016, in Escola Secundria c/ 3. do Ciclo de E.B. Pedro Nunes and

    in Escola Secundria de Cames, under the scientific supervision of Professoras Doutoras

    Maria Teresa Brocardo and Maria Leonor Santa Brbara.

    Based on the idea that a methodological approach lying on a motivating teaching with

    reflection and questioning habits, which aims for a significant learning of contents by the

    students, shall oppose to the psittacism tendency of teaching Portuguese and Latin; that it is

    within grammar, whatever it may be, that the necessary instruments to develop autonomous

    and efficient speakers who reflect about their language and master its structures underlie; and

    on the expectation that a teaching practice which narrows, significantly, the existing frontiers

    and barriers between the two languages will be reflected on the consolidation of better

    prepared and more competent Portuguese speakers, we will describe different conceptions of

    language and grammar that are associated with the adoption of teaching and learning

    Portuguese and Latin methodologies, some problems deriving from them and the supervised

    teaching practice (PES) itself.

    The PES project not only aimed to develop a didactical posture based on the

    significant learning of morphosyntactic structures, language mechanisms and resources,

    promoting and consolidating the acquisition of knowledge about its potential and the

    development of inferential and deductive reflection skills on textual and word meanings and

    linguistically constructed values, but also to reinforce the deepening of the metalinguistic

    conscience using a grammatical terminology suited for reflection and to clarify the cultural

    and linguistic intersecting, both of Portuguese and Latin, in their condition of structurally

    integrated supports within the language knowledge.

    KEYWORDS: grammar; language conceptions, Portuguese teaching; Latin teaching; teaching

    methodologies.

  • vii

    ndice

    Introduo ................................................................................................................................. 1

    Escolha do tema e problematizao ........................................................................................ 2

    Estrutura do relatrio .............................................................................................................. 2

    Captulo I: A gramtica da lngua e o ensino ........................................................................ 4

    I.1. Concees de gramtica da lngua .................................................................................. 4

    I.2. Ensino da gramtica nas lnguas ...................................................................................... 8

    I.2.1. Na lngua materna .................................................................................................... 14

    I.2.2. Na lngua no materna ............................................................................................. 18

    I.3. Problemas prticos e algumas solues significativas ................................................... 22

    I.3.1. Problemas no ensino da gramtica .......................................................................... 22

    I.3.2. Novas abordagens e metodologias de ensino da gramtica ..................................... 27

    Captulo II: A Prtica de Ensino Supervisionada ............................................................... 30

    II.1. Caracterizao das instituies e turmas de ensino ...................................................... 31

    II.1.1. Escola Secundria c/ 3. Ciclo do E.B. de Pedro Nunes ........................................ 31

    II.1.1.1. A turma do Ensino Bsico: 8. ano ................................................................. 32

    II.1.1.2. A turma do Ensino Secundrio: 12. ano ........................................................ 33

    II.1.2. Escola Secundria de Cames ................................................................................ 33

    II.1.2.1. A turma do Ensino Secundrio: 10. ano ........................................................ 35

    II.2. Observao ................................................................................................................... 36

    II.2.1. Os instrumentos de observao .............................................................................. 36

    II.2.2. Observao das turmas ........................................................................................... 39

    II.2.2. Observao das aulas ............................................................................................. 42

    II.3. Lecionao de aulas ...................................................................................................... 44

    II.3.1. No Ensino Bsico .................................................................................................. 44

    II.3.1.1. Ao 8. D ......................................................................................................... 44

    II.3.2. No Ensino Secundrio ............................................................................................ 46

    II.3.2.1. Ao 12. A ....................................................................................................... 46

    II.3.2.2. Ao 10. K ....................................................................................................... 48

    II.4. Atividades de mbito escolar ........................................................................................ 50

    II.4.1. Na Escola Secundria c/ 3. Ciclo do E.B. de Pedro Nunes .................................. 50

    II.4.2. Na Escola Secundria de Cames .......................................................................... 51

  • viii

    II.5. Materiais de apoio e instrumentos de avaliao............................................................ 52

    Consideraes finais ........................................................................................................... 54

    Fontes e referncias bibliogrficas .................................................................................... 56

    Anexos .................................................................................................................................. 64

    Anexo 1: Instrumentos de observao .............................................................................. 65

    Anexo 1.1 - Observao da organizao e comportamento ........................................ 65

    Anexo 1.2 - Observao da oralidade planificada ....................................................... 66

    Anexo 1.3 - Observao da organizao, comportamento e proficincia de leitura ... 67

    Anexo 2: Planificao de aulas e atividades ..................................................................... 68

    Anexo 2.1 - Atividade Conquista do lxico difcil ................................................... 68

    Anexo 2.2 - Planificao Formao de palavras ...................................................... 69

    Anexo 2.3 - Atividade A fontica de hoje ............................................................... 74

    Anexo 2.4 - Planificao O Memorial do discurso .................................................. 75

    Anexo 2.5 Atividades sobre nomes de tema em consoante da 3. declinao ......... 81

    Anexo 2.6 - Planificao O superlativo latino dos adjetivos .................................... 84

    Anexo 3: Atividades de mbito escolar ............................................................................ 88

    Anexo 3.1 - Ludi nomina ............................................................................................. 88

    Anexo 3.2 - Pede papyrus ........................................................................................... 89

    Anexo 4: Instrumentos de avaliao ................................................................................. 93

    Anexo 4.1 - Teste de avaliao (12.A) ....................................................................... 93

    Anexo 4.2 - Critrios de correo do teste .................................................................. 98

    Anexo 4.3 Cotao de teste de Latim ..................................................................... 102

    Anexo 5: Questionrios aplicados aos alunos ................................................................ 106

  • 1

    INTRODUO

    No se pode ensinar a lngua sem o estudo da poesia,

    no se pode ensinar a poesia sem o estudo da lngua.1

    Comear-se a escrita de um relatrio de estgio em ensino com um advrbio de

    negao abre portas a muitas interpretaes. Mas s para aqueles que olham a lngua

    (tambm) dessa perspetiva. Para uns, talvez seja a fora ilocutria do diretivo a prevalecer.

    Haver outros que se detenham ante a eleio da poesia, invocando que esta s uma

    conceo de ensino da lngua. Para mim, e ali, a lngua, como a poesia, entendida enquanto

    energia discursiva, como produtividade textual, como modulao do mundo e do homem

    (Aguiar e Silva, 2010: 208), no menos, nem mais, que isso.

    Por exemplo, no foi seno ao ler um poema de Catulo sobre o logro do amor que,

    pela primeira vez e de forma significativa, a indissociabilidade da lngua e da literatura se me

    tornou evidente. O poeta, parte o adjetivo inicial, assumia a pedra em lugar do corao.

    Perguntas retricas, vontade de no sair vencido, encorajamento a quem no desistir ante

    uma derrota e um adjetivo contrrio que tudo esclarece. Miser, afinal Catulo sabia bem mais

    que toda a razo e dureza juntas e era bem menos que o tanto que nos tentava fazer crer.

    No longo caminho escolar obrigatrio, quantos de ns tero aprendido os superlativos

    por meio da poesia de lvaro de Campos ou a escrita de um relatrio a partir de um poema de

    Nuno Jdice? E, do outro lado, quantos sucumbiram classificao das oraes em

    hiprbatos e anstrofes camonianas? Quantos acharam que aprender latim era impossvel, a

    quantos foi oferecido o excurso pela lngua materna e pelas lnguas mais conhecidas e

    estudadas? Ser sempre a literatura a Literatura e a gramtica a ortopedia escravizadora da

    linguagem? Ser sempre a gramtica a Gramtica e a literatura a perverso desviante e

    incontrolvel da lngua? Ser sempre ou literatura ou gramtica? Sempre gramtica ou texto?

    Sempre a lngua morta e a lngua a viva? No podem ser. E precisamente a partir desta

    certeza que o presente trabalho se desenvolver.

    1 Aguiar e Silva, V. (2010). As Humanidades, os Estudos Culturais, o Ensino da Literatura e a Poltica da

    Lngua Portuguesa. Coimbra: Almedina, p. 208.

  • 2

    Escolha do tema e problematizao

    O portugus, enquanto lngua romnica, apresenta um vasto conjunto de aspetos cuja

    origem se pode decifrar pela anlise da prpria lngua-me. Todavia, o ensino do latim,

    enquanto parte do currculo oficial de ensino de lnguas, no parece recolher os consensos na

    vantagem que pode trazer aprendizagem da lngua materna e das competncias a ela

    associadas. Por outro lado, dadas as substanciais diferenas entre os dois sistemas

    lingusticos, as suas descries gramaticais, os objetivos de ensino e as metodologias adotadas

    em funo destes, as duas lnguas seguem, no ensino formal, caminhos apartados e quase sem

    comunicao, valendo-se o latim do estudo da etimologia e dos paradigmas que perduraram

    quase imutveis na evoluo da lngua e o portugus de uma ou outra ida histria da sua

    origem para justificar processos fonolgicos - que pouco se exploram - e radicais eruditos que

    perderam a autonomia semntica de outros tempos. Tudo indica que, fora de se entender a

    diferena entre as duas lnguas, se desfalcam as aprendizagens numa e noutra e que, fora de

    se defender objetivos de ensino da lngua diferentes, se imortalizam concees estticas,

    metodologias repetitivas e se adquirem resultados insuficientes nas duas.

    Reconhecer-se a distino entre as duas lnguas e a sua estrutura lingustica no poder

    ser condio para se impedir o seu dilogo. Apenas tentando a transposio das fronteiras no

    ensino de uma e outra lngua ser possvel chegar-se a um patamar de onde as duas se vejam

    no que tm de comum, ponto de partida fulcral para uma conversa. S entendendo um outro

    nvel da noo de gramtica da lngua e de texto podem o portugus e o latim caminhar

    juntos. E s havendo quem se coloque nesse lugar de partida podem, o portugus e o latim,

    verdadeiramente conversar.

    Estrutura do relatrio

    Considerando os objetivos estabelecidos para o desenvolvimento da prtica de ensino

    e dos aspetos tericos nos quais aquela se alicerou, o presente trabalho de reflexo e

    descrio apresenta-se dividido em dois captulos. No primeiro, sobre a gramtica da lngua

    analisada sob o escopo do ensino, so desenvolvidas as ideias centrais ao tema proposto,

    nomeadamente as concees de gramtica envolvidas no processo didtico-pedaggico atual,

    como se processa o ensino gramatical no ensino das duas lnguas e que problemas se

    evidenciam a partir dessas prticas. Alm destes aspetos, ainda se procura demonstrar como

    as abordagens cognitivistas de ensino-aprendizagem tm contribudo para a dissoluo

    daqueles problemas. No segundo captulo, referente PES, caracteriza-se o contexto

  • 3

    educativo onde esta decorreu, apresentando as instituies e as turmas com que se trabalhou,

    descrevem-se os processos de observao e lecionao de aulas, as atividades desenvolvidas,

    tambm no mbito escolar e ainda se apresentam alguns instrumentos de avaliao. Encerram

    o relatrio as consideraes finais, as referncias bibliogrficas e os anexos.

  • 4

    CAPTULO I: A GRAMTICA DA LNGUA E O ENSINO

    I.1 Concees de gramtica da lngua

    Com origem no termo grego e chegada at ns por via latina, a gramtica,

    primria e tradicionalmente entendida como a tcnica ou arte de bem falar e escrever (Silva,

    2006: 45-46) e longe de recolher consensos no que concerne aos diferentes usos que dela se

    faz em contexto de ensino, pode ser (o mais) genericamente descrita como o conjunto de

    regras de uso de uma lngua (Possenti, 2000: 61), denotando desde logo o pendor

    marcadamente normativo de um uso correto daquela (Silva, 2006: 46). Por seu turno, a noo

    de conjunto de regras permite tambm que no s se estabelea uma distino prvia entre a

    ideia de princpios universais que refletem determinadas propriedades de uma lngua, como

    tambm uma distino entre a regulao e a descrio especfica de cada uma. Por outras

    palavras, entender-se a gramtica numa aceo geral permite-nos estabelecer uma primeira

    distino entre a gramtica implcita e a gramtica explcita, o saber intuitivo que o falante

    tem da sua lngua e aquele que s se adquire por meio do ensino formal (Silva, 2006: 46); a

    descrio que se faz daquele conjunto de regras por meio de modelos diferentes permite-nos

    ainda aferir sobre posicionamentos distintos em relao ao uso que se faz e quer que se faa

    da lngua (Cavalcanti, 2002: 37; Pereira, 2007: 11; Camillo, 2007: 60).

    O presente trabalho no pretende aprofundar a Teoria da Gramtica Universal

    proposta e desenvolvida por Chomsky em vrios momentos do seu estudo. Porm, de forma

    aparentemente incontroversa, o seu contributo para as teorias lingusticas desenvolvidas

    depois, para a distino entre a aquisio e a aprendizagem de uma lngua e,

    consequentemente, para a abordagem ao conhecimento explcito da lngua por meio do ensino

    formal (Mateus, 2002: 7; 2003: 2; Silva, 2008: 5; Prijic, 2010: 9; Araki, 2015: 1; Adrados,

    1954: 320; Longo, 2006: 97) torna incontornvel a explicitao de algumas noes que deem

    conta de uma s gramtica ensinvel, das vrias acees que se foram tendo sobre o que a

    lngua cuja gramtica se ensina, os vrios modelos de descrio adotados para a ensinar, os

    mtodos escolhidos e as finalidades subjacentes para esse ensino.

    Saber uma lngua e analis-la so dimenses diferentes, como tambm diferente

    saber uma lngua e saber a sua gramtica ou ensinar uma lngua e ensinar-se a falar sobre ela.

    A questo de fundo estar, neste momento inicial de reflexo, em compreender as finalidades

    do ensino das lnguas e a forma como a prpria lngua entendida na prossecuo dos

  • 5

    objetivos estabelecidos; se estes contemplam o desenvolvimento da competncia lingustica,

    assumindo que tem benefcios diretos na estruturao da conscincia metalingustica, nos usos

    bem-sucedidos da lngua, na reflexo sobre a linguagem e na organizao do prprio

    pensamento (Silva, 2006: vi), no desenvolvimento cognitivo do falante (Silva, 2008: 17;

    Duarte, 2000: 56; 2008: 16) ou da sua competncia comunicativa (Silva, 2006: 263; Pereira,

    2007: 14; Pinto, 2011: 1), ou se escolhem o domnio dos conceitos e das regras como veculo

    de ensino do uso exclusivo da norma culta da lngua (Camillo, 2007: 61; Travaglia, 2007: 74),

    preferencialmente a norma literria (Silva, 2006: 46; Possenti, 2000: 57).

    Tratando-se da gramtica explcita, a gramtica j no se pode assumir apenas como

    um conjunto de regras ou organizao interna de uma dada lngua natural (Silva, 2006: 50),

    mas antes como o conhecimento ensinvel - dessa organizao (idem: 46). Todavia, tambm

    o modo como se concebe a natureza da prpria lngua parece alterar substancialmente a forma

    como se estrutura o ensino formal da mesma2.

    As concees mais comuns de linguagem verbal confluem para uma tripartio entre a

    ideia de uma linguagem como expresso do pensamento, como instrumento de comunicao e

    como processo de interao (Travaglia, 2007: 76). Por sua vez, cada um destes pontos de

    partida relaciona-se com um modelo gramatical e um tipo de descrio da gramtica3. De

    acordo com a primeira conceo, que d conta de uma abordagem de estudo em torno de um

    sistema de regras gerais da lngua capazes de garantir a organizao lgica do pensamento e

    da linguagem, quaisquer desvios norma padro ou culta representam um erro, vcio de

    linguagem ou vulgarismo (Possenti:2000: 75; Camillo, 2007: 61; Clemente, 2012: 1599). Esta

    conceo de gramtica, que em Duarte (2000: 41) estar abrangida pela viso de gramtica

    como instrumento de regulamentao do comportamento lingustico e, em Possenti (2000:

    62), compreende o conjunto de regras que devem ser seguidas no uso da lngua, no s

    mobiliza um modelo tradicional de gramtica, como um tipo de descrio

    normativo/prescritivo (Silva, 2006: 141). A conceo da linguagem como instrumento de

    comunicao parte do modelo estrutural e do tipo descritivo de gramtica, assumindo a lngua

    como um cdigo de signos que se combinam para transmitir uma mensagem, como um

    produto social da faculdade da linguagem (Pereira, 2007: 7). uma conceo de gramtica

    como descrio do conhecimento da lngua (Duarte, 2000: 44), aquela que descreve o

    2 No se aprofundar a noo de gramtica implcita j que a mesma tem como condio constituinte que a

    aquisio da lngua pr-exista do ensino/aprendizagem das diferentes gramticas, alm de que s teria sentido

    explorar o conceito podendo as lnguas clssicas, sem falantes naturais, incluir-se na discusso. 3 Silva (2006: 70-71) indica quatro modelos de gramtica (gramtica tradicional, filosfica, estrutural e

    generativa) e quatro tipos de (descrio da) gramtica (gramtica normativa, descritiva, pedaggica e terica).

  • 6

    conjunto de regras que so seguidas pelo falante (Possenti, 2000: 63). Por fim, a conceo da

    linguagem enquanto processo de interao, seguindo um modelo gramatical de base filosfica

    e um tipo descritivo, e diferentemente da aceo estrutural de gramtica (Leffa, 1988: 219;

    2012: 397 Leiria, 1996: 72), assume que a linguagem um lugar de interao humana

    (Camillo, 2007: 61) que no se pode entender como um sistema estvel e fechado, mas uma

    atividade social fundada nas necessidades de comunicao (Macedo, 2009: 3), num dado

    contexto comunicativo, socio-histrico e ideolgico (Camillo, 2007: 61). No seguimento da

    tipologia apresentada em Clemente (2012: 1593-1595), invocamos ainda as concees de

    gramtica comparatista4, reflexiva e histrica que, dando simultaneamente conta da amplitude

    de noes de gramtica e da possibilidade de escolha e interao entre vrias abordagens

    gramaticais, nos permitem apresentar outras perspetivas de ensino da gramtica, ainda que

    menos frequentemente adotadas dentro da sala de aula.

    A gramtica comparatista ( qual juntamos a noo de gramtica contrastiva)

    descrita como uma rea de estudo que identifica diferenas, semelhanas e inter-relaes entre

    duas ou mais lnguas (Duchowny, 2012: 8; Coelho, 2012: 30; Brando & Vitorino, 2012: 41).

    Estando na origem da identificao do snscrito ou das comparaes, feitas no sculo XIX,

    entre aquele, o grego e o latim (que em muito contriburam para a formao do conceptual

    Indo-Europeu), presente tambm no esprito iluminista do sculo XVIII portugus, pelo

    menos no gramtico Jernimo Soares Barbosa cuja perceo lingustica defendia a

    aprendizagem da lngua latina a partir da lngua materna (Couto, 2004: 12), perceo que hoje

    considerada fundamental no ensino do latim (Ferreira, 2015: 131), esta noo de gramtica

    apresenta-se como uma tendncia de qualquer falante perante a aprendizagem de outra lngua,

    isto , a tendncia, consciente ou inconsciente, de comparar a sua lngua materna quela que

    est a aprender (Flaeschen, 2012: 300). A prtica comparativa, no estando alheada do facto

    de haver cada vez mais contactos entre as diferentes lnguas (Leiria, 1996: 72) e associada a

    um domnio de conceitos gramaticais bsicos e treino de reflexo sobre a prpria lngua,

    apresenta vantagens reconhecidas na aprendizagem das lnguas no maternas (Silva, 2006:

    30-31; Duarte, 2008: 14; Torro, 1997: 3; Cubillos, 2010: 7).

    Igualmente numa perspetiva comparatista da lngua surge uma outra conceo de

    gramtica. Situa-se normalmente o desenvolvimento da gramtica histrica5 no sculo XIX

    (Sousa, 2006: 14), em paralelo com as descries sistemticas e comparadas das lnguas

    4 O autor refere gramtica comparada. Noutros estudos, aparecem ainda comparatista e comparativista.

    uma questo de preferncia usar-se aqui a designao apresentada em Couto (2004). 5 Tambm histria da lngua, lingustica histrica, lingustica diacrnica (Brocardo, 2014: 10).

  • 7

    vernculas orientadas para a aprendizagem da escrita e da ortografia, a partir de critrios

    rigorosos e objetivos, dos conjuntos de unidades fonticas e morfolgicas das lnguas indo-

    europeias (Mateus, 2010: 54-57). Analisavam-se ento as origens comuns e os

    desenvolvimentos histricos particulares de cada lngua (Sousa, 2006: 14), tentando combinar

    o material documental com a formulao de hipteses experimentais e construindo a

    abordagem histrico-comparada (ibidem). A gramtica ou lingustica histrica entendida,

    atualmente, como uma disciplina da lingustica que, num mbito mais geral, analisa as

    mudanas lingusticas ocorridas nas lnguas, assumindo uma abordagem diacrnica. A anlise

    sobre uma lngua particular, diacronicamente perspetivada, feita pela histria da lngua, que

    dever combinar os aspetos do funcionamento da lngua nos seus vrios nveis e os aspetos de

    ordem histrica, fatores condicionantes de natureza extralingustica (Brocardo, 2014: 10-13).

    Noutra aceo ainda, a abordagem da gramtica reflexiva procura descrever os

    processos de construo do funcionamento da lngua (Clemente, 2012: 1594) a partir das

    evidncias lingusticas e tentando explicitar a gramtica implcita do falante (Pereira, 2007:

    13). De acordo com Travaglia (2000: 60), o trabalho de ensino de gramtica com atividades

    do tipo da gramtica reflexiva so utilizados essencialmente para o desenvolvimento da

    competncia comunicativa, para que o falante seja capaz de usar um maior nmero de

    recursos da lngua de maneira adequada produo dos efeitos de sentido em situaes

    especficas de interao comunicativa (ibidem). Dir tambm o autor (Travaglia, 2007: 85)

    que estas atividades, por discutirem o efeito de sentido e as escolhas de recursos da lngua em

    funo destes, do objetivo e da situao, so tambm uma aula de produo e compreenso de

    texto. Para tanto, preciso acreditar-se que o ser humano comunica por textos (Travaglia,

    1997: 172), que comunicar significa de alguma forma (lingustica ou no) produzir um efeito

    de sentido entre produtor(es) de um texto e o(s) recetor(es) desse mesmo texto (ibidem). Esta

    aceo de gramtica defende um ensino que parte do conhecimento intuitivo do falante para

    chegar sistematizao dos princpios e regras do funcionamento da lngua. Tambm neste

    contexto surgem propostas como a Pedagogia dos Textos/Discursos ou o Laboratrio

    Gramatical (Rodrigues & Silvano, 2010: 277-279). Num sentido mais abrangente, uma prtica

    reflexiva no ensino do conhecimento explcito da lngua entendida como fundamental, no

    s no desenvolvimento das competncias comunicativas, como da prpria conscincia

    lingustica (Duarte, 2000: 55-57; Pinto, 2011: 17). Ainda sobre a centralidade do texto na aula

    de lngua, refiram-se as propostas metodolgicas mais recentes para o ensino do latim que

    advogam que a compreenso e aquisio das estruturas e mecanismos de construo textual

  • 8

    devem anteceder a traduo dos textos latinos (Longo, 2006; Cavalcanti, 2002), tendo por

    objetivo basilar de ensino no a competncia comunicativa dos aprendentes, mas a sua

    competncia lingustica recetiva (Fiorin, 1991: 517).

    I.2. Ensino da gramtica nas lnguas

    [E]nsinar gramtica no ensinar algo completamente novo,

    mas sim tornar os nossos alunos conscientes de um conhecimento que eles tm

    e aplicam, mas do qual no tm conscincia.6

    De acordo com o Quadro Europeu Comum de Referncia para as Lnguas (QECR),

    apenas por meio de um conhecimento das lnguas vivas europeias se conseguir facilitar a

    comunicao e interao entre Europeus de lnguas maternas diferentes (Conselho da Europa,

    2001: 20, doravante QECR, 2001). Omitida a obviedade da questo europeia, a finalidade da

    poltica lingustica aqui invocada evidencia trs pressupostos frequentemente associados ao

    ensino das lnguas: (1) a referncia a lnguas vivas pressupe que outras o no so; (2) a

    competncia comunicativa entendida como um objetivo no ensino das lnguas; (3)

    coexistem lnguas maternas e lnguas no maternas.

    Aliados enumerao precedente, comecemos por esclarecer algumas noes fulcrais

    que respeitam s lnguas e ao seu ensino formal, mobilizando alguns conceitos j descritos e

    seguindo a hierarquia de apresentao que entendemos ser a mais adequada.

    A lngua viva, geralmente reconhecida como aquela que se mantm em uso como

    meio de comunicao natural por uma comunidade lingustica e que est intrinsecamente

    sujeita a mudanas, assim designada por oposio a lngua morta, isto , aquela que j no

    se encontra em uso por nenhum falante nativo, tendo passado por um processo de obsoletismo

    at extino e cristalizao documental (ibidem). As lnguas vivas atuais so igualmente

    designadas lnguas modernas por contraste com as lnguas clssicas.

    De entre as lnguas vivas, a lngua materna de um falante a lngua natural de uma

    comunidade lingustica quando essa que as crianas ali nascidas desenvolvem

    espontaneamente como resultado do processo de aquisio da linguagem (cf., entre outros,

    Duarte, 2000: 15). O desenvolvimento espontneo da linguagem est intimamente associado

    6 Costa, J.; Cabral, A.; Santiago, A., & Viegas, F. (2011: 10).

  • 9

    aquisio da gramtica implcita dos falantes, sendo a aquisio da lngua o processo de

    apropriao subconsciente de um cdigo lingustico, sem necessidade de um mecanismo

    formal de ensino (cf., entre outros, Sim-Sim, 1995: 200). Distingue-se da aprendizagem da

    lngua na medida em que esta requer um conhecimento consciente que envolve a explicao

    de quem ensina, anlise e um certo nvel de metaconhecimento por parte de quem aprende

    (idem: 201).

    No contexto de aprendizagem de lnguas podemos distinguir, pois, a aprendizagem

    formal da lngua materna e a aprendizagem de outras lnguas, que designaremos lnguas no

    maternas. Esta ltima designao a mais abrangente, contemplando diferentes tipos de

    situaes de aquisio ou aprendizagem de lnguas no maternas, tais como a lngua segunda

    (L2) ou a lngua estrangeira (LE). A L2 corresponde a uma lngua qual o falante est (ou

    esteve) exposto e que, por imerso lingustica, adquiriu; a LE, pelo contexto e finalidade de

    ensino que a motivam, corresponde a uma lngua aprendida em contexto de ensino formal

    (cf., por exemplo, Leffa, 1988: 213). O termo lngua no materna aparece frequentemente

    associado, mas no exclusivamente, tambm lngua que, sendo aprendida no contexto de

    uma LE, partilha das motivaes, grau de imerso e finalidades de uma L2 (Leiria, I.,

    Queiroga, M. & Soares, N., 2005: 5-6).

    No que concerne s finalidades de aprendizagem das lnguas, aliadas a uma ideia de

    didtica pluridisciplinar que distingue saberes lingusticos7, competncias comunicativas e

    comportamentos culturais (Silva, 2006: 31), o QECR prope a elaborao de programas de

    aprendizagem de diversos tipos, dos quais destacamos os programas globais, cujo objetivo se

    centra em levar o aprendente a avanar em todas as dimenses da competncia comunicativa

    e da proficincia em lngua. A competncia comunicativa de um falante compreende as

    componentes lingustica, sociolingustica e pragmtica e consiste no conhecimento de

    recursos formais a partir dos quais se podem elaborar e formular mensagens corretas e

    significativas, bem como a capacidade de os usar (QECR, 2001: 157); a proficincia

    lingustica, por sua vez, descrita como uma competncia geral, analisvel em competncias

    parciais, que habilita os indivduos a participar ativamente por meio do uso da lngua nas

    interaes sociais (ILTEC, 2006: 6). Distinguem-se, assim, as competncias lingusticas do

    falante do prprio uso da lngua: a competncia lingustica inclui os conhecimentos e as

    7 No deixemos passar sem registo o contributo do pai da didtica, Joo Ams Comnio com a sua Didctica

    Magna (de 1657) para a definio da disciplina de Didtica como uma arte de ensinar cujo mtodo se propunha

    ser universal e de ensino de tudo a todos (Silva, 2006: 29). J defendia tambm a primazia do ensino da lngua

    nacional e, em relao Escola Latina, a disciplina de Gramtica, a par da Fsica, Matemtica, tica, Dialtica e

    Retrica (ibidem). A valorizao do ensino da lngua nacional, viva, portanto, marca a mais profunda mudana

    de paradigma de ensino das lnguas, at ento circunscrito s lnguas clssicas (Mato, 2011: 9-10).

  • 10

    capacidades lexicais, fonolgicas e sintticas, bem como outras dimenses da lngua enquanto

    sistema, independentemente do valor sociolingustico da sua variao e das funes

    pragmticas e suas realizaes (QECR, 2001: 34); o uso da lngua abrange a sua

    aprendizagem e inclui as aes realizadas pelos falantes, como indivduos e agentes sociais,

    no desenvolvimento de um conjunto de competncias gerais e, particularmente, competncias

    comunicativas (idem: 29). O conhecimento dos recursos formais de uma lngua remete, por

    sua vez, para o conhecimento do funcionamento da lngua8 e este para o conhecimento

    explcito da lngua. Como expresso em Costa et al. (2011: 8-9), conhecer o funcionamento da

    lngua implica falantes competentes, utilizadores da lngua que mobilizam de forma

    automtica regras gramaticais para gerar e produzir enunciados na sua lngua. Este

    conhecimento estende-se entre os conhecimentos fontico, fonolgico, morfolgico, sinttico,

    lexical e o conhecimento semntico, pragmtico e discursivo. O conhecimento explcito da

    lngua9 pressupe tambm, e naturalmente, um conhecimento implcito (idem: 10). O

    desenvolvimento da conscincia lingustica, assim como o desenvolvimento dos processos de

    reflexo sobre a lngua, , de forma generalizada, um dos objetivos mais transversais nos

    programas oficiais em vigor.

    A objetivao da conscincia lingustica em termos curriculares parece no carecer de

    fundamentao se entendida como um fator de desenvolvimento do conhecimento intuitivo

    dos falantes de uma lngua (Duarte, 2008: 9-10). A partir de um consentimento generalizado

    sobre a mesma, Duarte (idem: 10-16) atribui trs ordens de objetivos para o desenvolvimento

    da conscincia lingustica10

    : 1) objetivos instrumentais, entre eles o domnio da norma padro

    da lngua de escolarizao, o domnio de estruturas lingusticas de desenvolvimento tardio, o

    aperfeioamento e diversificao do uso da lngua, o desenvolvimento de competncias de

    estudo e a aprendizagem de lnguas estrangeiras; 2) objetivos atitudinais-axiolgicos, como o

    desenvolvimento da autoconfiana lingustica e o desenvolvimento da tolerncia cultural e

    lingustica; e 3) objetivos cognitivos gerais e especficos, tais como a aprendizagem do

    mtodo cientfico e treino do pensamento analtico ou o aprofundamento e sistematizao do

    conhecimento da lngua. Tendo em considerao os antigos Programas de Portugus do E.B.,

    8 Designao dos Programas de Portugus de 1991 (Silva, 2006: 47; Costa et al., 2011: 7-8). O programa para o

    E.B., desde ento, foi revogado e o do E.S. mantm-se em vigor at 2017. 9 Designao adotada para os Programas de Portugus de 2001, que foram revogados pelos Programas de 2012

    (E.S.) e 2015 (E.B.). Atualmente, todos os novos programas em vigor, para o E.B. e E.S., apresentam a

    designao gramtica. 10

    A autora (Duarte, 2008) estipula os trs eixos de objetivos em relao ao desenvolvimento da conscincia

    lingustica no primeiro ciclo de escolaridade. Em 2010, Costa et al. contextualizam-nos tambm para o 2. e 3.

    ciclos. A nossa omisso sobre o grau de escolaridade prende-se com a defesa daqueles objetivos na continuidade

    da formao escolar obrigatria.

  • 11

    mas defendendo que so orientaes que no se perderam nas revogaes e que so

    transversais ao ensino das lnguas em geral nos vrios nveis de ensino, lembremos que em

    Costa et al. (2011: 10-11) se exortavam os docentes a que assumissem a obrigao de investir

    em descries mais adequadas da gramtica; de tomar conscincia do grau de

    desenvolvimento lingustico dos alunos e dos aspetos da lngua que no decorrem de uma

    aquisio espontnea; de investir num ensino da lngua que capitaliza as regularidades; e de

    orientar o estudo da gramtica em dimenses para alm da mera correo do erro.

    A noo de se saber uma lngua nem sempre significou o mesmo. Para muitos e

    desde h muito, dando primazia compreenso de textos (Leiria, 1996: 71), a lngua foi

    entendida como um sistema independente composto de partes separadas umas das outras

    (Leffa, 2012: 392); para outros e mais recentemente, estando mais centrados na oralidade e no

    uso da lngua como instrumento de comunicao (Leiria, 1996: 71-72), a lngua

    compreendida como uma prtica social que no se consegue dissociar em departamentos

    estanques (Leffa, 2012: 392). Porm, s mais recentemente se colocou a questo no prisma da

    aquisio da lngua, tendo estado fundamentalmente circunscrita ao como ensinar e, por isso,

    tambm a uma histria dos mtodos de ensino (Leiria, 1996: 71). A proposta de um novo

    mtodo ou a escolha de um especfico depender da perceo que se tem da prpria lngua11

    (Leffa, 2012: 392) e as percees mais consistentes e duradouras da mesma tm sido ora

    normativas, ora descritivas, ora ainda interacionistas.

    Respeitando a ordem cronolgica pela qual surgiram, Leffa (1988: 214; 2012: 394)

    apresenta os mtodos de ensino mais conhecidos no ensino das lnguas maternas e

    estrangeiras, pese embora a amplitude de mtodos se tenha aplicado com mais incidncia

    aprendizagem das lnguas estrangeiras12

    : o Mtodo da Gramtica-Traduo13

    , ou Indireto14

    ; o

    Mtodo Direto, ou Natural (Stern, 1991: 457); o Mtodo udio-lingual15

    , com defensores

    como Bloomfield, na rea da Lingustica, Skinner, na Psicologia, Fries e Lado, na Lingustica

    Aplicada (Leffa, 2012: 397); o Mtodo Silencioso (Mato, 2011: 17)16

    ; o Mtodo Supra-

    aprendizagem (ibidem); o Mtodo da Aprendizagem da Linguagem na Comunidade (ibidem);

    11

    Cf. I.1., p. 5. 12

    A designao mtodo tanto usada no sentido abrangente, como restrito. Leffa (1988: 212) distingue

    abordagem (o termo mais abrangente, que engloba os pressupostos da lngua e da aprendizagem) e mtodo

    (de forma restrita, as normas de aplicao das abordagens). Usamos, todavia, os termos pelos quais mais

    frequentemente surgem na literatura revista. 13

    O autor usa a designao Mtodo da Traduo e da Gramtica. Escolhemos a designao usada em Stern

    (1991) e na maioria das referncias sobre o assunto. 14

    Tambm Mtodo Clssico (Leiria, 1996: 71) e Gramtica e Traduo (Mato, 2011: 12). 15

    Tambm Mtodo udio-Oral (Leiria, 1996: 72); Audiolingustico ou Audiovisual (Ferreira, 2013: 17). 16

    Com traduo nossa do espanhol.

  • 12

    o Mtodo Resposta Fsica Total (ibidem)17

    ; e a Abordagem Comunicativa (Leffa, 2012: 394),

    apoiando-se na teoria dos atos de fala de Austin (1962) e Searle (1969), na anlise do discurso

    e na sociolingustica (Leiria, 1996: 72). No redirecionar do escopo, de como ensinar, a o que

    ensinar e a quem, passa-se igualmente a investigar como se aprende. Esta nova preocupao e

    os vrios estudos desenvolvidos em torno do processo de aprendizagem vm mostrar tanto

    que ensinar e aprender uma lngua no materna podem constituir-se campos de trabalho

    distintos, como que a investigao sobre a aquisio de uma lngua no materna pode servir-

    se da investigao na lngua materna (e vice-versa), partilhando os aspetos cruciais idnticos e

    a validade das duas investigaes (Leiria, 1996: 73). Concluir-se- tambm que, ocorrendo o

    desenvolvimento da linguagem numa dada sequncia geralmente universal, os erros feitos

    pelo aprendente de uma lngua no materna so uma evidncia que apoia as hipteses

    construtivas do seu conhecimento (ibidem). A dualidade de sistemas lingusticos, envolvendo

    a lngua que se estuda e a lngua materna do aprendente, pode desempenhar um papel maior

    ou menor na aprendizagem da lngua no materna, dependendo da aceo que se tem da

    lngua e da aprendizagem, tendo a lngua materna sido vista, umas vezes, como um ponto de

    apoio para a aprendizagem da lngua no materna, como na aplicao do Mtodo da

    Gramtica-Traduo, de acordo com Stern, (1991: 455) e, noutras, como um problema que o

    aprendente tinha de evitar e resolver (idem: 456).

    Se nos detivermos nos trs mtodos que mais marcaram a histria do ensino das

    lnguas estrangeiras, pode-se descrever a evoluo do Mtodo da Traduo para o Mtodo

    Direto e depois para a Abordagem Comunicativa como uma passagem de nfase no cdigo (a

    forma da lngua), para nfase no significado (o sentido da lngua), convergindo na nfase na

    ao (o uso da lngua). Falar fazer (Leffa, 2012: 397), dizer agir (Travaglia, 2007: 77). O

    lugar do sentido deixa de estar na lngua materna ou na lngua no materna, passando a estar

    no efeito que ele produz no interlocutor (Leffa, 2012: 397). Contra a ideia de um mtodo

    nico (ibidem), surge um perodo de Ps-Mtodo, de rutura com os vrios mtodos de ensino

    (Stern, 1991: 477), no qual o professor a construir o caminho e a escolher, partindo de um

    contexto real, seu e dos alunos, e pluridisciplinar, das prprias lnguas e dos seus contextos de

    aprendizagem, que estratgias seguir (Leffa, 2012: 397-400).

    Face proliferao de novos mtodos de ensino das lnguas estrangeiras, tambm os

    mtodos de ensino das lnguas clssicas tiveram de se adaptar e adotar novas metodologias

    (Gmez, 2000: 100). Sero distintivos os exemplos do Mtodo de Leitura, como o Cambridge

    17

    Respetivamente, Silent Way (Leffa, 2012: 394); Suggestopedia (ibidem); Communitiy Language

    Learning (ibidem); e Total Physical Response (ibidem).

  • 13

    Latin Course (Miraglia, 1996: 8) ou o Mtodo Indutivo Contextual proposto por H. H. Osberg

    (Macas, 2012), numa abordagem ecltica entre a conceo de lngua do Mtodo Direto e

    metodologias do Mtodo de Leitura (Beccari & Binato, 2014: 128).

    Do ponto de vista da aprendizagem, podem-se distinguir ainda as aprendizagens ativas

    e passivas ligadas a prticas de ensino diferentes e os mtodos dedutivos e indutivos. O ensino

    assente em metodologias ativas responsabiliza os alunos pela sua aprendizagem, envolvendo-

    os numa reflexo sobre os processos que se desenvolvem na sala de aula (Michel, Carter &

    Varela, 2009: 398-399); as metodologias passivas, pelo contrrio, ligadas s abordagens

    tradicionais de ensino, consistem na exposio docente que abre pouco espao, ou nenhum, ao

    dilogo com os alunos e que assumem como necessria a passividade do aluno na apreenso

    da informao conceptual transmitida pelo professor (idem: 400); os mtodos dedutivos, que

    partem sempre da regra para chegar aos exemplos (Mato, 2011: 13), da gramtica para o

    texto, dos mtodos indutivos, que partem dos exemplos para chegar regra (idem: 15), do

    texto para a gramtica. A dicotomia gramtica-texto exposta, esclarecendo-se que tambm

    aqui se entende texto como a fala e o discurso que se produz (Faria, 1996: 47), vem reforar

    outros binmios cuja influncia na metodologia lingustica preponderante (Araki, 2015: 1):

    a distino de natureza social que Sausurre apresentara entre langue e parole perspetivou a

    variao e mudana (diacrnica) nas lnguas por oposio s idiossincrasias (sincrnicas) das

    falas (Sousa, 2006: 23); mais tarde, a noo da lngua como adquirida por inatismo biolgico

    de Chomsky, aliada tambm noo de variao lingustica (Glenday, 2010: 187), evidencia

    a competence, um conhecimento implcito dos falantes da estrutura da lngua (Xavier, 2010:

    12-13) e a performance, um uso/desempenho efetivo da competncia lingustica (ibidem) que

    apenas um conhecimento explcito pode desenvolver e consolidar. Faltando um registo de

    falantes menos artificiais nestas dicotomias, Dell Hymes prope que a performance d

    tambm conta de uma componente sociocultural especfica (Hymes, 1972: 271) que

    demonstra a capacidade de adequao do desempenho da lngua em funo das atitudes,

    valores e motivaes do falante em relao lngua: incorporando-se a competncia

    comunicativa, uma lingustica da fala (Fonseca & Fonseca, 1990: 45), o prprio estatuto da

    competncia lingustica ficar esclarecido e novos ngulos, dimenses e princpios de

    organizao e funcionamento entraro no sistema da lngua que, assim, apresentar as

    atualizaes nas multifacetadas situaes de comunicao vividas por um sujeito falante

    (ibidem), por meio do(s) texto(s) que produz. As implicaes de todos estes conceitos, com

    efeitos diretos nas concees de lngua e, consequentemente, nas metodologias de ensino

    adotadas, estando mais, ou menos, centradas nos aspetos sociolgicos, culturais e

  • 14

    pragmticos, mudaram o paradigma do ensino da gramtica da lngua e marcaram o incio da

    era da mestria do discurso, como porta para o sucesso (Sim-Sim, 1995: 200), e do ensino dos

    gneros discursivos, como reconhecimento da dialogicidade constitutiva da comunicao

    verbal (Chaves, 2012: 788).

    I.2.1. Na lngua materna

    O ensino do portugus, lngua materna, para o E.B. e E.S., encontra-se organizado em

    funo dos domnios de referncia de Oralidade, Leitura, Escrita, Educao Literria e

    Gramtica. Os programas definem os contedos, numa ordenao sequencial e hierrquica por

    ano de escolaridade, e as metas curriculares, evidenciando o que considerado essencial para

    o encaminhamento de melhores estratgias de ensino, definem os objetivos a atingir, com

    referncia explcita aos conhecimentos e capacidades a adquirir e desenvolver pelos alunos.

    Apresentam ainda os descritores de desempenho que permitem avaliar a consecuo dos

    objetivos estabelecidos. Por seu turno, as finalidades dos programas e metas correspondentes

    em vigor, defendendo uma perspetiva integradora do ensino do portugus que valoriza as suas

    dimenses cultural, literria e lingustica, podem ser sintetizadas em cinco eixos centrais: a) o

    desenvolvimento de conhecimentos e capacidades nos vrios domnios tendo em considerao

    uma progresso gradual da complexidade dos textos (orais e escritos); b) o desenvolvimento

    da compreenso, interpretao e produo de textos (orais e escritos) de diferentes gneros,

    com diversas intenes comunicativas e em diferentes situaes de comunicao; c) a fluncia

    e adequao de uso da lngua, ligada correo lingustica, compreenso e uso do portugus

    padro nas diversas situaes de oralidade, leitura e escrita; d) a construo e aprofundamento

    de um conhecimento crtico, inferencial e reflexivo sobre a lngua; e) o desenvolvimento da

    conscincia lingustica e metalingustica para melhores desempenhos no uso da lngua, num

    trabalho estruturado e rigoroso de reflexo, de explicitao e de sistematizao gramatical.

    Pese embora se tenha feito a sntese anterior para os dois graus de ensino, importa referir que

    a ideia de texto complexo aparece exclusivamente no programa do E.S., aparecendo, no

    programa do E.B., como produo de enunciados em contextos especficos ou produo de

    discursos e compreenso das diferentes intencionalidades comunicativas (DGE, 2015a: 5).

    O discurso pedaggico oficial, atravs dos programas escolares, prope sempre uma

    verso do mundo que encontra correspondncia no perfil de formao que a se desenha

    (Castro, 2008: 377-378). A formulao dos objetivos educacionais denota igualmente as

    tendncias de uma dada conjuntura oficial e uma noo de educao. Por exemplo,

  • 15

    atualmente, a nfase na vertente profissionalizante que o discurso oficial tem veiculado em

    conformidade com as tendncias do espao europeu redefiniu os objetivos da educao

    reposicionando a literatura e a lngua e produzindo, como consequncia, uma nova verso do

    conhecimento escolarmente vlido, privilegiando o desenvolvimento da competncia

    comunicativa (idem: 378). Esta deslocao de nfase assenta em vrios pressupostos. O

    primeiro deles alicera-se na conceo de lngua enquanto processo de interao que no s a

    entende como produto social da faculdade da linguagem como tambm enquanto lugar de

    interao humana fundada nas necessidades de comunicao, num dado contexto

    comunicativo, socio-histrico e ideolgico18

    . Por outro lado, esta conceo traduz-se ainda

    num tipo de explicitao gramatical descritiva que se alia ao pressuposto de que a disciplina

    de Portugus, lngua materna, um veculo para o desenvolvimento e estruturao plena da

    competncia comunicativa do aluno, que no se restringe competncia gramatical, mas

    tambm s dimenses pragmticas da lngua (Fonseca & Fonseca, 1990: 99), e que a aula de

    Portugus uma aula de lngua (ibidem). Quando o aluno chega escola j sabe falar

    portugus e, nos anos consecutivos que nela permanece, aprende a escrev-lo. A permanncia

    num contexto de ensino de uma lngua que usada quotidianamente como meio de

    comunicao s se justifica pela aprendizagem do seu conjunto de regras (Mateus & Cardeira,

    2007: 27). A gramtica normativa, pilar do ensino da lngua, facultando um conhecimento

    lingustico consciente, no pode deixar de transcender o saber falar e escrever e de permitir a

    reflexo sobre a complexa rede lingustica de uma comunidade (idem: 28); a escola no pode

    deixar de ensinar a lngua nas suas distintas formas e nos seus distintos usos (Figueiredo,

    2010: 160), j que a aprendizagem do cdigo normativo institucional, sendo fundamental, no

    conduz a um melhor conhecimento da lngua, seno s regras dessa lngua (idem: 166).

    Efetivamente, a aula de Portugus no foi sempre uma aula de lngua. No passado

    recente, o peso excessivo de um cnone literrio e a quase exclusividade do domnio da

    escrita na aula de Portugus levaram a que se valorizasse a oralidade (Duarte, I. M., 2008: 4).

    Por outro lado, a adoo de preocupaes de natureza sociocultural no ensino da lngua

    materna, no seguimento da defesa de perspetivas de ensino que explorassem os aspetos

    sistemticos do uso individual da linguagem no seio das comunidades (Fonseca & Fonseca,

    1990: 30-31), ou a abertura pluralidade de discursos na aula de Portugus e ao

    desenvolvimento da competncia comunicativa, redundou numa excessiva valorizao do

    lado utilitrio do uso lingustico, em detrimento de outras dimenses, como as atividades

    18

    Cf. I.1. Concees de gramtica da lngua.

  • 16

    cognitivas e ldico-afetivas ligadas lngua (ibidem). Este entendimento restritivo da

    competncia comunicativa (Castro, 2008: 384) diminuiu o espao real e simblico que a

    leitura dos textos literrios ocupava na aula de Lngua Materna (Duarte, I. M., 2008: 4). No

    sero de espantar comentrios avessos ao reforo e supremacia da lingustica (Vieira, 2010:

    100), quando revisitados os programas de Portugus, j que, os que o comentam, tambm

    acreditam que a Literatura [] s em aparncia valorizada por palavras que se afirmam

    para contentar os descontentes, simultaneamente incautos (ibidem). Consequentemente,

    extremam-se posies e na escola e na aula de Portugus, com os seus intervenientes (o

    professor e os alunos), que a lngua se define, o falante se desenvolve e o discurso oficial se

    recontextualiza (Castro, 2008: 378; Figueiredo, 2010: 160). A ancoragem no conceito de

    texto complexo e respetivos parmetros e a focalizao no trabalho sobre os textos (orais e

    escritos), mediada pela noo de gnero, so duas opes fundamentais dos atuais programas

    de Portugus, com especial aprofundamento para o E.S.. O texto complexo, de acordo com a

    documentao normativa mais recente, no apenas o texto que transmite informao, mas

    tambm o que exprime valores e perspetivas, permitindo exercitar as capacidades de

    observao e de anlise crtica dos seus leitores ou ouvintes por forma a que a informao

    compreendida seja utilizada em novos contextos (DGE, 2014: 7). Nesse sentido, o texto

    literrio o texto complexo por excelncia, onde convergem todas as hipteses de realizao

    da lngua (idem: 5).

    Assumida a finalidade de ensino da lngua como o desenvolvimento das competncias

    comunicativas dos alunos e o desenvolvimento da conscincia lingustica como parte

    estruturante daquele amadurecimento, na verdade, o desenvolvimento da competncia

    lingustica, isto , o desenvolvimento do conhecimento implcito da lngua por meio do

    desenvolvimento do conhecimento explcito da mesma, nem sempre foi entendido da mesma

    forma. As diferentes conceptualizaes do papel da gramtica no contexto educacional

    mostram evidncias que vo desde o ensino prescritivo da lngua, ausncia do ensino

    gramatical no ensino do portugus, at ao ensino de qualquer gramtica sem a validao e

    reflexo necessrias (Rodrigues & Silvano, 2010: 277). Ser distintivo pensar-se na adoo de

    designaes diferentes, de programa para programa de Portugus, no que concerne ao

    conhecimento explcito da lngua, enquanto um dos domnios de referncia. A ttulo de

    exemplo, pense-se que os programas at dcada de 90 apresentavam a designao

    funcionamento da lngua para o conhecimento explcito, colocando-o ao servio dos vrios

    domnios de referncia (Silvano, 2014: 30) e que essa designao foi fortemente contestada

    nos documentos de operacionalizao dos programas de 2009, que propunham a designao

  • 17

    conhecimento explcito da lngua, por considerarem que s esta daria conta da gramtica

    ensinvel da lngua (Costa et al., 2011: 8), enquanto competncia nuclear ao nvel dos

    restantes domnios (Silvano, 2014: 30) e ainda que, atualmente, a designao adotada em

    todos os novos programas gramtica, uma designao internacionalmente conhecida do

    estudo dos factos e das estruturas lingusticas, comummente utilizada por alunos, pais e

    professores (Buescu, Morais, Rocha & Magalhes, 2012: 6), j que a expresso

    conhecimento explcito da lngua, muitas vezes substituda pelo acrnimo CEL, perdia a

    essncia do valor semntico da designao (ibidem) que apenas o termo gramtica pode

    reforar e clarificar, isto , o estudo dos factos da lngua e das normas que os regem

    (ibidem). Duarte (2008: 17), antes da adoo da designao atual, esclarecia que gramtica,

    no contexto educativo, tem uma acepo alargada, designando tanto o estudo do

    conhecimento intuitivo da lngua que tm os falantes de uma dada comunidade como os

    princpios e regras que regulam o uso oral e escrito desse conhecimento.

    variabilidade das acees de gramtica nos programas e prticas de ensino, junte-se

    a implicao do manual escolar na modelao da disciplina de Portugus. Entre uma conceo

    tradicional de aula-tipo de Portugus, cujo esquema clssico consiste na leitura e comentrio

    de um texto literrio, onde, tipicamente, se aplica/avalia o conhecimento gramatical, seguido

    de um momento de escrita, normalmente, como trabalho para casa (Silva, 2006: 88), e a aula

    de lngua que intenta o equilbrio entre os objetivos instrumentais do ensino da gramtica e os

    seus objetivos cognitivos (idem: 89), a descrio do padro escrito e falado e a pluralidade da

    norma (Mateus & Cardeira, 2007: 28-29), os livros de Portugus passaram a ser o espelho das

    diferentes dimenses da aula (Silva, 2006: 95) j que, longe das antigas antologias,

    determinam contedos, apresentam mtodos de ensino e ainda direcionam a avaliao (idem:

    94). No que concerne configurao do ensino da gramtica nos manuais escolares de

    Portugus, a imagem mais corrente daquilo que se pe em prtica remete, ainda, para um

    ncleo duro tradicional no qual se apresentam, por um lado, o texto literrio e, por outro, a

    gramtica normativa (idem: 95) e para a apresentao de atividades rotineiras e empobrecidas

    do ensino da gramtica, a ponto de se assimilarem as novas propostas a velhas

    metodologias (Figueiredo, 2010: 161).

  • 18

    I.2.2. Na lngua no materna

    A designao lngua no materna, como descrita anteriormente, abrange vrias

    circunstncias de aprendizagem e ensino das lnguas. Na altura19

    distinguamos diferentes

    designaes da lngua, mas sem especificarmos em qual das abrangidas pela lngua no

    materna se poderia considerar o latim. A questo no fcil, embora do ponto de vista

    lingustico parea simples: o latim, uma lngua sem falantes nativos que a utilizem numa

    comunidade lingustica, no pode ser adquirido e/ou aprendido como lngua segunda; o latim,

    a partir das metodologias de ensino tradicionais e sem a finalidade do desenvolvimento da

    competncia comunicativa, no pode ser aprendido como as demais lnguas estrangeiras

    modernas; o latim, sem falantes nativos, no lngua materna de ningum. Ainda assim,

    embora o latim tambm seja uma lngua clssica e, como frequentemente rotulado, uma

    lngua morta, no est extinto, sendo distintivos os seus vestgios tanto nas lnguas romnicas

    como noutras cujo contacto com aquele deixou marcas indelveis20

    . Todavia, do ponto de

    vista da sua insero nos sistemas de ensino, o facto de se continuar a entender o latim como

    lngua morta e intil tem promovido um desinteresse generalizado pelo seu ensino

    (Rodrigues, 1987 [1984]: 7), tanto por parte das instituies que regulamentam a educao

    (Ferreira, 2015: 128; Lawlor, 2010: 2; Torro, 1994: 359; Pimentel, 1989: 6), como por parte

    dos alunos, que no encontram motivos para o aprender, dada a panormica de ensino de

    lnguas modernas centradas na aprendizagem prtica, eficaz e til para os falantes (Gmez,

    2000: 97; Rodrigues, 1987 [1984]: 9); do ponto de vista do espao que ocupa nos currculos

    oficiais, o facto de ser lngua clssica to pouco chega para o definir, at porque, por exemplo,

    o grego antigo tambm uma lngua clssica - oferecido como opo nos cursos Cientfico-

    Humansticos, mas a frequncia no latim apenas uma opo de Lnguas e Humanidades

    (Ferreira, 2015: 128). De entre as opes disponveis, aprender alemo, espanhol, ingls,

    francs e, mais recentemente, tambm o mandarim est no mesmo patamar que aprender

    latim. , oficialmente, uma lngua estrangeira (Haag & Stern, 2003: 174). Provavelmente ao

    constatar a natureza lingustica especfica do latim e ao verificar o seu tratamento institucional

    junto das demais lnguas estrangeiras, propostas atuais de reformulao do seu ensino

    preferem que se entenda esta lngua como um sistema de sincronia fechada (Longo, 2006:

    15), cuja fala se vivifica na produo textual que se eternizou pela escrita (idem: 27), tentando

    no s mostrar a aplicabilidade dos contributos da lingustica no contexto de aprendizagem do

    19

    Cf. I.2. O ensino da gramtica nas lnguas, p.8. 20

    Pense-se, por exemplo, que o ingls apresenta cerca de 60% de vocabulrio de origem no latim (Yamazaki &

    Yamazaki, 2007: 113).

  • 19

    latim, como atualizar os seus mtodos em funo das necessidades e exigncias concretas do

    ensino dos dias de hoje. No podendo trabalhar trs das quatro competncias comunicativas

    envolvidas no estudo de qualquer lngua moderna, nomeadamente a produo oral e escrita e

    a receo oral, estas propostas de ensino do latim centram-se na formao de leitores para

    desenvolver a competncia recetiva (idem: 21; 2014: 176) ou leitora (Sobrinho, 2013: 205).

    Para nos mantermos neutrais na designao do latim no contexto do ensino das lnguas,

    optamos por design-lo lngua no materna, o termo mais abrangente, mas mais adequado,

    especialmente se atendermos a que tambm a lngua-me do portugus e de outras

    (modernas) lnguas romnicas.

    No contexto curricular atual, a disciplina opcional de Latim bianual e circunscreve-

    se ao E.S., podendo ser continuada no 12. ano a ttulo opcional, se iniciada no 10. ano. Em

    2015, todavia, ao abrigo das Ofertas de Escola, foi aberta a possibilidade de preenchimento

    dos tempos letivos do E.B. com a componente Introduo cultura e lnguas clssicas,

    dependente do interesse das instituies em ministr-la (Ferreira, 2015: 128), uma disciplina

    que se vem juntar a um conceituado conjunto de projetos destinados aos diferentes nveis do

    E.B. e cursos livres que j funcionavam como ofertas complementares de ensino. Em termos

    programticos s existem documentos normativos para o E.S., elaborados no seguimento da

    reestruturao curricular deste grau, em conformidade com a Lei de Bases do Sistema

    Educativo e com os princpios definidos no Relatrio da Comisso Internacional sobre a

    Educao para o sculo XXI (DGE, 2001: 3). Neste sentido, os programas defendem que a

    disciplina de Latim, pela especificidade da sua natureza o contacto com a permanncia dos

    valores humanos desde o passado, a reflexo sobre a lngua que obriga a uma melhor

    estruturao do pensamento e reforo da competncia comunicativa, a anlise e reflexo que

    permitem o relacionamento de culturas e saberes um pilar importante tanto na construo

    do ser integral como na compreenso das lnguas e literaturas modernas ou no alargamento

    dos conhecimentos histrico-culturais (idem: 3-4).

    Em 2015, a implementao de metas curriculares ao ensino oficial do latim vem

    complementar a operacionalizao dos objetivos da disciplina definidos no Programa, alm de

    que representa, a nvel institucional, uma mudana na valorizao do ensino do latim e uma

    tentativa de adequao deste ao ensino das demais lnguas (DGE, 2015b: 2). So finalidades

    transversais do ensino do latim nos programas: a) contribuir para a compreenso, conscincia

    e entendimento da gnese cultural ocidental, dos elementos que estruturam a cultura

    portuguesa e da perenidade dos valores humanos; b) promover o desenvolvimento de

  • 20

    capacidades que levem reflexo lingustica, reforando a competncia comunicativa,

    nomeadamente no portugus escrito; c) fomentar, pelo enriquecimento da linguagem, uma

    melhor expresso do pensamento. Os eixos culturais e lingusticos dos programas, assim

    sintetizados, associam-se ao entendimento de que a lngua o principal objeto de estudo e o

    veculo para a transmisso dos aspetos culturais (DGE, 2001: 6). Cada unidade temtica

    combina uma componente cultural, alicerada em aspetos de lngua que se evidenciam no

    estudo dos textos latinos, literrios e no literrios, regidos por um princpio de progresso na

    aprendizagem, apresentando adaptaes, notas ou traduo (ibidem). As metas curriculares

    apresentam-se divididas tambm em trs domnios, a civilizao e cultura, gramtica e autores

    e textos (DGE, 2015b) e vm introduzidas pela noo de que se pretende fomentar o ensino

    do latim, fazendo ressurgir o seu duplo valor, quer o intrnseco ao da lngua latina e ao

    conhecimento civilizacional que lhe est agregado, quer o funcional que se lhe reconhece,

    sobretudo na aprendizagem de outras lnguas (DGE, 2015b: 2), com destaque para o

    portugus, considerando que deve ser dada especial ateno ao desenvolvimento lingustico

    e cultural dos alunos, com particular destaque para o conhecimento mais profundo da lngua

    materna e das suas razes21

    .

    O ensino dos aspetos referentes estrutura da lngua, nos Programas (funcionamento

    da lngua) e Metas (gramtica), centra-se na descrio dos nveis fonticos e prosdicos,

    morfolgicos e sintticos e lexicais da lngua latina. No subdomnio Do latim ao portugus, a

    descrio alia-se ainda, a partir das questes etimolgicas, histria da lngua portuguesa e

    evoluo semntica de vocbulos. No 11. ano, a descrio gramatical incorpora tambm a

    histria da lngua latina, do indo-europeu s lnguas romnicas. No domnio dos Autores e

    textos, para alm de se objetivar o conhecimento dos autores latinos mais importantes, as

    Metas propem a leitura, compreenso e anlise de textos latinos, adaptados ou autnticos, de

    dificuldade mdia, tendo como objetivos a apreenso do sentido global do texto, o

    reconhecimento dos seus nexos lgicos e estruturas morfossintticas e a traduo para

    portugus correto e elegante, alm da identificao das marcas de gnero dos textos de poesia,

    narrativos, cartas e fbulas. O facto de, no Programa de Latim de 2001, se usar a designao

    funcionamento da lngua e de, nas Metas Curriculares de 2015, a designao ser gramtica

    permite-nos tecer alguns comentrios. Considerando as teorias lingusticas que mais influem

    no ensino das lnguas, e imagem da descrio feita sobre as diferentes designaes nos

    programas de Portugus, a designao funcionamento da lngua pode dar conta da

    21

    Cf. http://www.dge.mec.pt/noticias/metas-curriculares/metas-curriculares-de-latim-do-ensino-secundario.

  • 21

    antiguidade do programa em relao a documentos mais recentes, que incorporam uma

    designao mais abrangente e, por isso, mais integradora dos vrios aspetos da lngua, mas

    no pode ser entendida como uma negao existncia de um conhecimento implcito dos

    falantes. Os novos falantes de latim no tm um conhecimento inato adquirido a partir do

    crescimento e desenvolvimento numa comunidade lingustica. Os novos falantes do latim no

    falam latim, leem-no, traduzem-no, compreendem as suas estruturas e, muitas vezes,

    compreendem que aquelas so a origem das que adquiriram, de forma natural e inata, pelo uso

    da lngua materna (Longo, 2006: 23). Estritamente do ponto de vista do ensino do latim, no

    a questo terminolgica que se problematiza, mesmo que, do ponto de vista da aprendizagem

    da lngua materna, as duas descries gramaticais possam ser problemticas quando

    aprendidas ao mesmo tempo (Gmez, 2000: 106). O ensino do latim tem outros problemas,

    tais como a desadequao dos mtodos de ensino face aos avanos na didtica das lnguas

    (Gmez, 2000: 97; Cubillos, 2010: 7; Pimentel, 1989: 6-7, Jimnez Delgado, 1959: 154 e

    tantos outros) e aos avanos da Lingustica (Longo, 2006: 6; Cavalcanti, 2002: 13-14) e os

    resultados insatisfatrios de aprendizagem obtidos pelos alunos, no decorrer de tais prticas,

    tambm por comparao com os resultados na aprendizagem de outras lnguas no maternas

    (Cubillos, 2010: 4; Cavalcanti, 2002: 37).

    O ensino do latim, assente, ainda hoje, no mtodo da Gramtica-Traduo, que se tem

    caracterizado pelo ensino da lngua a partir da lngua materna com a finalidade de

    desenvolver o gosto pela cultura e literatura latinas, tentando o aprofundamento do

    conhecimento do portugus e o desenvolvimento cognitivo do aluno (Leffa, 1988: 215-216),

    tem sido feito a partir de mtodos dedutivos de aprendizagem que contam com a

    memorizao e repetio mecnica de regras (Cavalcanti, 2002: 10-11) e de mais excees

    (Miraglia, 1996: 4; Pimentel, 1989: 6) para conseguir traduzir um texto, sem que, para tal,

    seja necessrio adquirir um conhecimento significativo sobre o seu contedo (Cavalcanti,

    2002: 47; Miraglia, 1996: 3; Gmez, 2000: 124; Ribeiro, 2015: 13). Essencialmente

    dependente de atividades centradas no manual ou semelhantes, o docente expe a

    terminologia gramatical e d pouca importncia aos aspetos de pronncia e entoao da lngua

    (Leffa, 1988: 215); a anlise das estruturas lingusticas resume-se anlise da Morfologia

    condimentada com receitas de Sintaxe (Adrados, 1954: 312), como se uma e outra pudessem

    ser compartimentos estanques sem prejuzo de aceder realidade da lngua (Pimentel, 1989:

    6), independentemente de o esquema no funcionar para a maioria dos alunos, seno para

    alguns - e para quase todos os professores, quando foram eles os alunos (Patrick, 2011: 16).

  • 22

    Do ponto de vista diacrnico, todavia, os normativos para o ensino do latim parecem

    ter evoludo. com certeza conscientes das prticas ineficazes e desmotivadoras de ensino

    que se sugere a aplicao de metodologias ativas que fomentem a autonomia, envolvimento e

    motivao dos aprendentes e que estimulem a reflexo e descoberta, considerando os

    conhecimentos prvios dos alunos (DGE, 2001: 7), que se invocam abordagens indutivas de

    aprendizagem que apresentem prticas diversificadas e adequadas ao contexto da turma

    (idem: 8); com certeza conscientes de que aquela tradio secular assente na razo e na lngua

    como expresso do pensamento j no corresponde prtica docente que se exige de um

    magister hic et nunc que reconhece a experincia, o que h de intuitivo e cumulativo no saber

    de cada um, tambm como uma fonte de conhecimento (Alvelos, 1997: 70), que se prope o

    recurso ao dicionrio o mais tarde possvel (DGE, 2001: 24; Torro, 1997: 179), que se

    combinam as dimenses da cultura, lngua e literatura no estudo dos textos latinos, prtica que

    nem sempre foi adotada (Torro, 2006: 208). com certeza conscientes da potncia da

    centralidade dos textos nas aulas de lngua que se prope a progresso da complexidade

    daqueles at fruio e compreenso do autntico, como se, tambm aqui, o texto literrio

    fosse o texto complexo por excelncia do latim. Ainda a combater o peso da longa tradio

    metodolgica (Pimentel, 2001: 188) e contra os lugares comuns da situao apocalptica do

    ensino do latim (idem: 184), hoje, para alm de um lugar no currculo do ensino das lnguas,

    exige-se rigor e poder de seduo (Torro, 1994: 362; Rodrigues, 1987 [1984]: 13) para que

    aos alunos, diante do latim que se ensina, no falte nunca o desafio e to pouco falte a

    motivao.

    I.3. Problemas prticos e algumas solues significativas

    costume de um tolo, quando erra, queixar-se dos outros.

    costume de um sbio queixar-se de si mesmo.

    Scrates

    I.3.1. Problemas no ensino da gramtica

    A mudana estrutural dos atuais programas de Portugus, centrada no

    desenvolvimento comunicativo dos falantes, tambm no seguimento de recomendaes

    oficiais, devolve gramtica um espao nuclear entre os outros domnios de referncia

    (Ferreira, 2012: 117), ultrapassando certos problemas terminolgicos debatidos no processo

  • 23

    de reestruturao programtica22

    . A conceo da lngua enquanto processo de interao

    implica que o ensino da gramtica explcita tenha em vista o desenvolvimento da conscincia

    lingustica, caracterizada por alguma capacidade de distanciamento, reflexo e sistematizao

    (Duarte, 2008: 18). Como tal, tm sido propostas metodologias ativas que responsabilizam os

    alunos pelo conhecimento que adquirem e os envolvem em processos reflexivos sobre a

    lngua a partir de mtodos indutivos que analisam as produes textuais reais para chegar

    regra latente, sendo que alguns manuais tambm j as recomendam (Gomes, 2012: 46).

    Porm, estes programas s recentemente entraram em vigor. Nos ltimos dois anos, num

    universo de mais de cinquenta mil alunos inscritos na 1. fase dos exames de Portugus do

    12. ano, a percentagem de reprovao no supera os 6%, mas a mdia obtida no atinge os 12

    valores23

    . No 9. ano, em cerca de cem mil alunos inscritos, a percentagem de reprovao de

    10% e as notas no so superiores a 3,2. Tambm nos programas e metas curriculares de

    Latim (2001/2015) se vislumbra a vontade de mudana e afirmao da lngua no contexto de

    ensino atual, propondo-se inclusive para o seu ensino o mesmo tipo de metodologias

    sugeridas para a lngua materna. A anlise e reflexo sobre a estrutura interna da lngua so

    elementos intrnsecos ao ensino das lnguas clssicas, especialmente quando temos presente

    que s as conhecemos por meio da sua forma escrita e que o ensino assenta

    fundamentalmente sobre a lngua culta e elaborada de um perodo concreto da sua evoluo,

    mesmo que se proponha a anlise de uma herana textual cada vez mais diferenciada (DGE,

    2001: 19). Com a finalidade de contribuir para a compreenso da gnese da cultura ocidental

    e promover o desenvolvimento de capacidades que levem reflexo lingustica, o ensino do

    latim carrega o peso das (ms) opes metodolgicas do passado e v-se obrigado adoo

    de prticas que motivem a aprendizagem dos alunos e desfaam o dogma da dificuldade em o

    aprender, at porque, do ponto de vista lingustico, o latim to difcil como a lngua materna

    ou como qualquer outra lngua. Ainda assim, os resultados das duas disciplinas no distam

    muito: na 1. fase dos exames nacionais de Latim do mesmo perodo, a percentagem de

    reprovao diminuiu de 8% para 0% e a mdia aumentou de 9,6 para 12,2 valores. A

    diferena substancial, todavia, est no universo de inscritos que, de 114 alunos em 2014,

    passou para 31 inscritos nos exames, em todo o pas, em 2015.

    Os dados que expusemos so referentes a um perodo de aplicao do antigo programa

    Portugus24

    , que j oferecia ao funcionamento da lngua um lugar de autonomia face aos

    22

    Cf. I.2. O ensino da gramtica nas lnguas (I.2.1. Na lngua materna, p.14). 23

    Cf. http://www.dge.mec.pt/estatisticas. 24

    Ainda em vigor no 12. ano para o Ensino Secundrio.

  • 24

    demais domnios de referncia e promovia a sua interligao com estes, e de um programa de

    Latim que assume pressupostos adaptados conforme as recomendaes mais atuais de poltica

    de lngua. Porm, na evidncia dos resultados obtidos pelos alunos, fazem falta mais estudos

    que permitam compreender que impacto tem o programa oficial (ou a sua mudana) nas

    prticas docentes na conduo das aprendizagens ou quanto tempo necessrio para que essas

    orientaes surtam efeito nos resultados ou ainda em que medida no esto os prprios

    instrumentos de avaliao a aferir sobre aspetos e conhecimentos que a escola no est a

    ensinar, nem pretende ensinar (Silva & Silva, 2010: 1363). Por outro lado, j no se duvida de

    que as finalidades subjacentes ao ensino e aprendizagem das lnguas, assumidas pelos

    documentos normativos e pelos professores, enformam a descrio gramatical que se escolhe,

    o grau de explicitao que se defende e a prtica de ensino que se adota. Assim, que gramtica

    se estar a ensinar e como? Que gramtica (no) se est a aprender e porqu?

    Sabe-se que o peso da gramtica no ensino tem variado ao longo dos tempos. Basta

    lembrar aquela arte de bem falar e escrever que os antigos gregos e romanos estudaram e que,

    recentemente, no s incorporava as gramticas em uso (Silva, 2001: 84) como era o modelo

    (profundamente contestado) a partir do qual se ensinava; ou pensar nas mais recentes acees,

    como gramtica de valncias25

    , que d conta das relaes de dependncia dentro da frase e

    da determinao do regime do verbo, do adjetivo e do substantivo (idem: 91) e cujo

    contributo, feita a sntese necessria para um ensino gramatical pedaggico, poderia

    rentabilizar terminologia tradicional considerada pertinente, mas tambm atualizar o

    repertrio de classificao morfolgica (idem: 102). No mesmo sentido, Gomes (2012: 57)

    prope algumas estratgias de dissoluo do conflito terminolgico nas aulas de Portugus

    (com alunos pr e ps DT, o Dicionrio Terminolgico) e nas aulas de Latim (com alunos

    a aprender com terminologia da gramtica tradicional e do DT). A gramtica descritiva e a

    terminologia que hoje esto na base do ensino gramatical do portugus j no se coadunam

    com o ensino tradicional essencialmente normativo, que detetava erros ou apelava

    memorizao de regras e categorias gramaticais (idem: 22). Contudo, no ensino do latim,

    foram os fundamentos da gramtica tradicional que perduraram, elegendo como unidades

    preferenciais a palavra e a frase, as descries morfolgicas e sintticas da lngua (Silva,

    2001: 85), tendncia que os programas ainda atestam e os exames nacionais avaliam. Porque

    aliada ao mtodo da Gramtica-Traduo, aplicado a partir da lngua materna, a coexistncia

    de terminologias distintas com base em tradies gramaticais diferentes parece no fazer

    25

    Ou gramtica de dependncias. Esta aceo de gramtica no foi explorada em I.1. pela especificidade do

    objeto de estudo.

  • 25

    sentido (Gomes, 2012: 49), especialmente se tivermos em conta que os alunos, em princpio,

    tambm estudam o portugus e que os professores de Latim, em princpio, o so tambm da

    Lngua Portuguesa. Ainda assim, tudo indica que, enquanto os alunos de Latim dominarem as

    duas terminologias, no haver grande conflito (idem: 65), embora no se possa afirmar o

    mesmo em relao aos alunos que, nunca tendo conhecido outra terminologia na lngua

    materna seno a do DT, venham a frequentar a disciplina de Latim.

    A descrio gramatical que se adota consubstanciada numa metalinguagem, de

    nomenclatura prpria, que compe o conhecimento terico sobre a lngua (Travaglia, 2007:

    74) e que serve de mediadora para que se fale sobre ela de forma menos genrica e imprecisa

    (Travaglia, 2002: 163), para que se crie uma distncia entre o objeto de estudo e aquele que o

    analisa (Mateus, 2002: 25). A progressiva consciencializao e sistematizao do

    conhecimento implcito no uso lingustico facilitam a referncia aos contedos a trabalhar,

    ajudam os alunos a descobrir regras gramaticais que usam (e as que devem usar), permitem a

    identificao das dificuldades que se manifestam no uso que fazem da lngua e ainda podem

    ser mobilizadas na aprendizagem das lnguas estrangeiras curriculares (Sim-Sim, Duarte &

    Ferraz, 1997: 31). A escola deve fomentar o desenvolvimento da conscincia lingustica dos

    alunos com o grau de sistematizao necessrio para que a possam mobilizar para o uso da

    lngua (idem: 32). A normatividade gramatical assente na seleo do padro lingustico que a

    escola deve ensinar, ou propiciar que se aprenda (Possenti, 2000: 13), j que um fator de

    coeso social (Mateus & Cardeira, 2007: 27-28), advm de critrios externos lngua (idem:

    28) e no poder ser confundida com o padro ideal, nem se limitar literatura, prescrevendo

    um nico uso possvel (ibidem), mas ser o ensino das normas sociais para o uso de diferentes

    variedades da lngua (Travaglia, 2002: 139). Neste sentido, qualquer aspeto da lngua

    passvel de abordagens normativas, tericas ou no tericas, mediante o grau de explicitao

    das regras da lngua que seja desenvolvido (idem: 140). Uma abordagem terica da gramtica,

    requerendo um maior grau de explicitao e sem implicaes diretas na competncia

    comunicativa, pode ser secundarizada ou at mesmo eliminada (idem: 137)26

    . Todavia, esta

    abordagem ter de ser consciente e estruturada, sabendo que se est a dar uma explicao

    descritiva de entre vrias possveis, que esta ou outras no abrangem todos os fenmenos da

    lngua (idem: 220-222), que apenas uma possibilidade de ensino e que no pode ser

    ministrada por ser mais cmoda e fcil ou porque o que mais se tem feito (idem: 223).

    26

    Em Duarte (2008: 19) introduzem-se atividades que no exigem o recurso a qualquer metalinguagem

    gramatical, por exemplo.

  • 26

    Num estudo relativamente recente apontava-se como soluo para o abandono

    progressivo do ensino gramatical nas aulas de Portugus a formao dos professores, a

    estabilidade terminolgica27

    , a utilizao de metodologias de ensino da gramtica adequadas

    ou ainda a articulao entre os contedos gramaticais e os restantes domnios28

    ao nvel da

    lngua (Silva, 2008: 89). Dois anos depois, a partir dos resultados obtidos por um grupo de

    formandos entrada no Ensino Superior, a mesma autora advoga, noutro estudo e tendo por

    base concluses como as retiradas em Costa (2007: 158), que as lacunas no conhecimento

    gramatical da prpria lngua apenas se poderiam explicar assumindo que tal conhecimento

    no foi ensinado ou, tendo-o sido, nunca chegou a ser aprendido (Silva, 2010: 22). Mais

    recentes so as concluses de Ferreira (2012: 117), mostrando que a aplicao do Novo

    Acordo Ortogrfico, a nova terminologia do DT e o novo Programa de Portugus exigem

    capacidades de adaptao e atualizao constantes aos professores de Portugus, que a

    formao e o desenvolvimento profissionais ainda esto aqum das necessidades e dos

    contextos individuais (idem: 118) e que nem sempre o que os professores dizem fazer e a sua

    prtica efetiva so unvocos ou apresentam a mesma coerncia (ibidem). Sintetizando dcadas

    de lamentos dos professores de Latim, Cristina Pimentel (2001: 184) relata que os alunos

    tm m preparao em portugus; o professor de latim tem de ensinar a gramtica das duas

    lnguas; [] a culpa da sociedade economicista em que vivemos [] e dos professores que

    vm cada vez mais mal preparados.

    Tem-se insistido na mudana de metodologias no ensino das lnguas porque, de forma

    mais ou menos evidente, esto relacionadas com o sucesso da aprendizagem. Entende-se a

    aprendizagem, hoje, como um processo que advm da experincia e no como um resultado

    que se pode esperar que surja (Michel, Carter & Varela, 2009: 399). O que o professor pensa,

    aquilo em que acredita e o que faz ao nvel da sala de aula o que, em ltima instncia, d

    forma ao tipo de aprendizagem dos alunos (Soares, 2007: 8). Presentemente, no ensino das

    lnguas, a substituio da utilizao de abordagens e mtodos tericos bem definidos, que

    corroboravam uma proposta unificada de ensino, por uma srie de estratgias diversificadas

    (Leffa, 2012: 402) tender a uma perda gradual da visibilidade do pr