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GRAMATICALIZAÇÃO E ORDENAÇÃO DE ADVÉRBIOS EM -MENTE/MENT NO PORTUGUÊS E NO FRANCÊS: UMA ANÁLISE HISTÓRICA NATHALIE PIRES VLCEK UFRJ/2011

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GRAMATICALIZAÇÃO E ORDENAÇÃO DE ADVÉRBIOS EM -MENTE/MENT NO

PORTUGUÊS E NO FRANCÊS: UMA ANÁLISE HISTÓRICA

NATHALIE PIRES VLCEK

UFRJ/2011

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GRAMATICALIZAÇÃO E ORDENAÇÃO DE ADVÉRBIOS EM -MENTE/MENT NO

PORTUGUÊS E NO FRANCÊS: UMA ANÁLISE HISTÓRICA

por

NATHALIE PIRES VLCEK

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para obtenção do Título de Mestre em Linguística. Orientador: Prof. Doutor Mário Eduardo Martelotta

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2011

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DEFESA DE DISSERTAÇÃO

VLCEK, Nathalie Pires. A gramaticalização de advérbios em -mente/ment no português e no

francês: uma análise histórica. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2011. 107 folhas.

Dissertação de Mestrado em Linguística.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________________

Orientador: Professor Doutor Mário Eduardo Martelotta – Linguística – UFRJ

_________________________________________________________________

Professora Doutora Maria Maura Cezario – Linguística – UFRJ

_________________________________________________________________

Professor Doutor Marcelo Jacques de Moraes – Neolatinas – UFRJ

_________________________________________________________________

Professora Doutora Vera Lúcia Paredes Pereira da Silva – Linguística – UFRJ

_________________________________________________________________

Professora Doutora Mariângela Rios de Oliveira – Linguística - UFF

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho ao povo brasileiro que contribuiu de forma significativa à minha

formação e estada nesta Universidade. Esta pesquisa é uma pequena forma de retribuir o

investimento e a confiança em mim depositados.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço enormemente ao grupo de pesquisa D&G, no qual trabalho há anos, com

principal admiração e cumplicidade pelas queridas Karen Alonso, Priscilla Mouta e Natalia

Ilse. Agradeço incansavelmente aos auxílios técnicos, burocráticos, teóricos, pessoais e

sempre carinhosos da Professora Maura Cezario, que tanto me ensinou como me portar, como

me importar e como me manter feliz, além de produtiva.

Agradeço a todos os meus amigos queridos, Carol, Musa e Felipe acima de tudo, e aos

meus familiares, mãe, pai, irmãos, sogra, cunhados; e principalmente ao meu marido Danilo,

que sempre me deu apoio e incentivo para fazer o que faço hoje. O coitado aprendeu muita

linguística, assistiu a muita aula, admirou muito gráfico e imprimiu muito rascunho. Não

posso esquecer das minhas amigas Luana e Julie, que tão prontamente sempre me apoiaram

numa crença em mim maior que a minha própria.

Agradeço principal e repetidamente ao meu orientador Mário Martelotta, que confiou

em mim desde cedo, que é meu amigo, que me empurra para cima sempre na ousadia, mas

que sempre me chama atenção para a importância de ser claro e simples ao invés de

complicado; para a importância de se estudar muito e de se amar o que faz e de se trabalhar

em grupo. Agradeço a ele por todos os parágrafos que ele leu e modificou e pelos poucos que

ele leu e gostou de primeira. Agradeço pela confiança, pelo tempo, pela responsabilidade que

sempre depositou em mim e pela sua forma única de me fazer crescer como ser humano

adulto, responsável e apaixonado, e muito, muito faminto de pesquisa. Agradeço pelo seu

exemplo como professor, que me formou e me ajudou no concurso e no exercício do cargo de

substituta de UFRJ, atividade que, embora tenha roubado tempo da minha pesquisa, me

amadureceu muito as ideias.

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Agradeço a outros professores que mudaram a minha vida, mas para não citar todos,

uso apenas como exemplo a ser seguido Isabella Bocaiúva, Celso Novaes e Marcelo Jacques.

Agradeço aos professores geniais, de conteúdo e de espírito, que me ensinaram que apesar de

a linguística ser muito difícil, ela vale a pena ser perseguida: obrigada Vera Paredes e Maria

Luiza Braga.

Agradeço amigos de pesquisa funcional, Julia Nunes e Julia Langer; e amigos de

pesquisa gerativa, Sara Abrahão. Agradeço a colegas externos à linguistica, como a

professora Ângela Correa e os muitos companheiros e simpáticos funcionários da UFRJ.

Não agradeço a Deus porque os gerativos podem achar que estou falando em

Chomsky. Mas agradeço a qualquer ideia metafísica que comporte toda a sorte que tenho tido

na minha vida, dentre elas, a oportunidade de fazer um mestrado em linguística na UFRJ,

acompanhada de tanta gente maravilhosa e competente. Agradeço, enfim, e muito, a todos

que me ajudaram na produção deste trabalho.

Ainda além, agradeço a todos os meus alunos que me acompanharam na grande vitória

e desafio que foi o primeiro semestre do curso noturno; e a todos os meus colegas de classe no

mestrado, que acompanharam todas as minhas dúvidas, insights e delírios. Sempre com muito

carinho.

Poderia ficar agradecendo aqui para todo o sempre, mas isso não seria prudente.

Agradeço então a você, leitor, seja você a banca ou um estudante do futuro, por esse voto de

confiança: o seu tempo. Este trabalho é sem dúvida o meu mais precioso fruto de uma longa

jornada na pesquisa da epistemologia funcionalista e da análise em colocação dos advérbios.

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E contudo – a estranha contradição para aqueles que crêem no tempo – a historia geológica nos mostra que a vida não é mais que um curto episódio entre duas eternidades de morte e que, nesse próprio episódio, o pensamento consciente não durou e não durará mais que um momento. O pensamento não é mais que um clarão em meio a uma longa noite. Mas esse clarão é tudo. (Henri Poincaré, em O Valor da Ciência, tradução de Maria Helena Martins)

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RESUMO

VLCEK, Nathalie Pires. A gramaticalização de advérbios em -mente/ment no português e no

francês: uma análise histórica. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2011. 107 folhas.

Dissertação de Mestrado em Linguística.

Este trabalho propõe uma análise dos valores dos advérbios qualitativos em -

mente/ment, bem como suas tendências de ordenação em sentenças do português, com uma

inicial comparação com o francês. A observação da ordenação desses itens implica considerar

os diferentes valores que eles apresentam, e por isso o trabalho prevê uma análise das

extensões semânticas que caracterizam seus usos. A base teórica do trabalho é a teoria da

gramaticalização tanto no que se refere aos processos de extensão de sentido dos advérbios

estudados, quanto no que concerne à sua ordenação - já que os níveis de encaixamento das

cláusulas em que eles ocorrem constituem um fator que também influencia sua colocação

efetiva na sentença.

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ABSTRACT

VLCEK, Nathalie Pires. A gramaticalização de advérbios em -mente/ment no português e no

francês: uma análise histórica. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2011. 107 folhas.

Dissertação de Mestrado em Linguística.

The aim of this document is to provide an analysis of the values of qualitative adverbs –

ment/ment, as well as their trends of ordering in Portuguese, with a small comparison with

French sentences. These item’s ordering observation, implies considering the different values

which they represent, therefore the project foresees the analysis of the semantic extensions

which characterises its use. The theoretical basis of this work is the grammaticalization theory

regarding both the extension sense process of the studied adverbs, and it’s ordering - since the

placing levels of the terms in which they occur establish a factor that also influences its

effective use is a sentence.

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SUMÁRIO    LISTA DE TABELAS ......................................................................................................................... xiv

LISTA DE FIGURAS E GRÁFICOS .................................................................................................. xv

1. Introdução .................................................................................................................................... 13 1.1. Objetivos e hipóteses ............................................................................................................ 14

2. Revisão da Literatura e alguns “pitacos .................................................................................... 17 2.1. O problema da definição dos advérbios ............................................................................. 18

2.1.1. Ausência de definição para a classe: ............................................................................... 20 2.1.2. Aglomerados de sentidos sobrepostos: ............................................................................ 22 2.1.3. Graus de representatividade: ........................................................................................... 24 2.1.4. Ausência de fronteiras nítidas: ........................................................................................ 28 2.1.5. A categoria linguística dos advérbios é prototipicamente prototípica! ........................... 29

2.2. O problema da classificação dos advérbios em –mente/ment : o que propõe a tradição, como podemos interpretá-la e o quanto devemos criticá-la. ....................................................... 31

3. Pressupostos Teóricos .................................................................................................................. 39 3.1. Uma postura epistemológica consciente ............................................................................. 39 3.2. A corrente funcionalista ...................................................................................................... 44 3.3. A teoria da gramaticalização ............................................................................................... 46

3.3.1. Uma proposta para os estudos de gramaticalização ........................................................ 48 3.3.2. Gramaticalização entre cláusulas .................................................................................... 51 3.3.3. Gramaticalização e unidirecionalidade ........................................................................... 55

4. METODOLOGIA E CORPUS ................................................................................................... 59 4.1. As variáveis utilizadas .......................................................................................................... 59

4.1.1. As Posições observadas: .................................................................................................. 59 4.1.2. O grau de gramaticalização da cláusula .......................................................................... 60

4.2. Os corpora utilizados ............................................................................................................ 60

5. Análise de Dados .......................................................................................................................... 63 5.1. Ordenação dos qualitativos em português ......................................................................... 63

5.1.1. Século XVIII ................................................................................................................... 64 5.1.2. O século XIX ................................................................................................................... 69 5.1.3. Uma visão geral do fenômeno ......................................................................................... 75

5.2. Ordenação dos advérbios qualitativos em –ment no francês ........................................... 77 5.2.1. Suposições gerativas acerca da ordenação do advérbio intra-sentencial modificador do Sintagma Verbal em inglês, francês e português: uma discussão e várias hipóteses ................... 77 5.2.2. As tendências de ordenação do advérbio qualitativo em –ment no francês dos séculos XVII, XVIII e XX ......................................................................................................................... 83

5.3. A gramaticalização dos advérbios qualitativos em -mente/ment e o surgimento de modalizadores .................................................................................................................................. 86

5.3.1. Frequência: da formação dos advérbios qualitativos em –mente/-ment ao seu enfraquecimento frente ao valor modalizador .............................................................................. 88 5.3.2. Gramaticalização e iconicidade ....................................................................................... 92

6. . CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................. 101 6.1. Sobre a ordenação dos advérbios em –mente/ment ......................................................... 101

6.1.1. Pequeno parênteses para reflexão acerca de questões levantadas anterioremente ........ 102 6.2. Sobre a gramaticalização de advérbios em –mente/ment ............................................... 106 6.3. Conclusões iniciais de um próximo trabalho ................................................................... 107

7. BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................... 109

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LISTA DE TABELAS  

Tabela 1: Quadro sinótico da natureza prototípica da categoria dos advérbios ...................... 30

Tabela 2: Distribuição das posições dos advérbios qualitativos em –mente no português do

século XVIII em função dos diferentes tipos de cláusula ....................................................... 65

Tabela 3: Distribuição das posições dos advérbios qualitativos em –mente no português do

século XVIII, incluindo informações sobre a presença e ausência de sujeito ....................... 67

Tabela 4: Distribuição dos advérbios qualitativos em –mente na primeira fase do século XIX

do português ............................................................................................................................ 70

Tabela 5: Distribuição dos advérbios qualitativos em –mente na segunda fase do século XIX

do português ............................................................................................................................ 70

Tabela 6: Distribuição dos advérbios qualitativos em –mente na terceira fase do século XIX

do português ............................................................................................................................ 70

Tabela 7: Distribuição das posições dos advérbios qualitativos em –ment no francês do século

XVIII ....................................................................................................................................... 83

Tabela 8: Distribuição das posições dos advérbios qualitativos em –ment no francês do século

XVII ........................................................................................................................................ 84

Tabela 9: Distribuição das posições dos advérbios qualitativos em –ment no francês do século

XX ........................................................................................................................................... 85

Tabela 10: Tabela sobre os reflexos do parâmetro força de AGR em diferentes línguas .... 104

Tabela 11: Tabela com resumo das propriedades apontadas por Haegerman e Guéron (1999)

como consequências do traço força de AGR ........................................................................ 104

Tabela 12: Sugestões de algumas mudanças no português, relacionadas ao traço força de

AGR ...................................................................................................................................... 105

 

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LISTAS DE FIGURAS E GRÁFICOS

Figura 1: Representação esquemática do continuum léxico-gramática ................................. 27

Figura 2: Uma análise de definição prototípica para os advérbios consequentemente, meio e

rapidamente ............................................................................................................................ 30

Figura 3: Combinação de traços dependência e encaixamento, segundo Hopper e Traugott,

2003 ......................................................................................................................................... 52

Figura 4: Imagem ilustrativa do uniforme escolar masculino do Colégio D. Pedro II,

estabelecido por decreto em 1837, discutido como um dos símbolos da reforma de ensino e

militância política da época .................................................................................................... 72

Figura 5: Tabela com compilação e re-análise dos dados de Moraes Pinto (2008) sobre

ordenação dos qualitativos em –mente no português arcaico dos séculos XVI e XVII .......... 75

Figura 6: Representação arbórea de onde o advérbio intra-sentencial seria gerado segundo a

tradição formal ........................................................................................................................ 78

Figura 7: Modelo de Faculdade da Linguagem baseado em interpretação do Programa

Minimalista (Chomsky, 1995) ................................................................................................ 79

Gráfico 1: Relação da distribuição de pré-posições e pós-posições em função da presença ou

ausência de sujeito expresso em posição pré-verbal no século XVIII do português .............. 68

Gráfico 2: Porcentagens de ocorrências das diferentes ordenações dos qualitativos em –mente

nos séculos XVIII e XIX do português ................................................................................... 71

Gráfico 3: Porcentagem de pós-posições de advérbio qualitativo em –mente no português

escrito do Brasil do século XV ao século XX ......................................................................... 76

Gráfico 4: Porcentagem de anteposições de advérbio em relação ao verbo em cláusulas mais

gramaticalizadas no português escrito do Brasil do século XV ao século XX (não houve dados

do século XX) ......................................................................................................................... 76

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1. Introdução

Este trabalho desenvolve uma pesquisa acerca das tendências de ordenação de

advérbios qualitativos em -mente em textos portugueses do século XIII e XIX, e esboça uma

comparação da situação com os advérbios em -ment em textos do francês dos séculos XVII e

XVIII, levando em consideração a situação atual e hipóteses sobre situações anteriores em

ambas as línguas. Justificamos os diferentes períodos analisados nas línguas em questão

devido à hipótese, que será apresentada com maior detalhe mais adiante na dissertação, de que

a mudança que aconteceu na língua portuguesa no século XIX aconteceu em períodos

anteriores na língua francesa.

Advérbios qualitativos seriam aqueles que estariam ligados diretamente ao verbo,

expressando o modo como a ação se dá – como em 01, em que o advérbio cruellement indica

o modo cruel como fizeram morrer a pessoa de que se fala.

(01) (...) dequoy ils furent tellement indignez, qu’ils l’ont fait mourir cruellement, Le corps a esté porré par la Ville, (...). 1 TRAD: (…) com o que eles ficaram tão indignados, que o fizeram morrer cruelmente, O corpo foi trazido/apodrecido pela cidade, (…)

O trabalho se desenvolve com base na teoria da gramaticalização, que sugere uma

forte regularidade translinguística2 da mudança, no sentido de as ordenações mais antigas se

restringirem a sentenças mais conservadoras do ponto de vista da ordenação vocabular. Além

disso, já que como acompanhando as diferentes ordenações percebemos também o surgimento

de novos usos, a teoria da gramaticalização, fortemente discutida nesta dissertação, também

está presente na clássica afirmação de que um item lexical vai assumindo progressivamente

valores gramaticais em função da atuação de processos cognitivos no ato da comunicação.

                                                                                                               1 GALLICA, XVII 2 O termo ‘translinguístico’ é uma tradução do inglês ‘cross-linguistic’, que designa um fenômeno que ocorre em várias línguas.

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Buscando identificar uma regularidade na mudança linguística, proponho nesta

dissertação não apenas confirmar as tendências já detectadas em trabalhos anteriores, tanto no

que se refere à colocação quanto à polissemia; mas também começar uma investigação sobre

se as tendências que observamos para os textos portugueses também se aplicam à análise do

francês. Além disso, a análise da ordenação dos advérbios qualitativos em -mente/ment ganha

nesta dissertação um propósito forte do ponto de vista da epistemologia linguística.

1.1. Objetivos e hipóteses

O objetivo central do trabalho é, resgatando o que foi dito anteriormente, compreender

como se dá a gramaticalização dos advérbios em -mente do português, analisando não só as

suas ordenações e o tipo de cláusula em que aparecem, mas também suas trajetórias de

mudança semântica ao longo da história. A análise comparativa com o francês é pequena,

devido a pouca quantidade de textos e a dificuldade de analisar contextos ambíguos que

encontramos; mas deverá ser capaz de apontar a existência de processos translinguísticos e,

portanto, regulares de gramaticalização e também de indicar especificidades do processo em

cada uma das línguas estudadas, o que é previsto pela própria teoria. Além disso, o presente

trabalho procura evidenciar com bastante clareza e precisão a escolha a linha funcional da

linguística para a análise destes fenômenos. Propomos, portanto, os seguintes objetivos:

a) analisar textos em língua francesa e portuguesa, contribuindo para um projeto

maior de análise da ordenação dos advérbios qualitativos;

b) levantar e analisar dados em textos de língua francesa e portuguesa e iniciar

uma comparação entre as trajetórias de gramaticalização dos advérbios em -

mente/ment do português e do francês, a fim de buscar aspectos

translinguísticos da gramaticalização e também de investigar as especificidades

de cada língua;

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c) observar se o grau de gramaticalização da cláusula em que ocorrem os

advérbios em -mente/ment com valor qualitativo influencia sua ordenação nas

duas línguas estudadas;

d) descrever essas trajetórias e analisá-las sob a luz da teoria da gramaticalização,

reparando a relação íntima entre a mudança no escopo do advérbio e o

surgimento de novos usos;

e) discutir os fenômenos citados em outras abordagens linguísticas e propor uma

justificativa para a escolha da linha funcional da linguística.

Esses objetivos estão associados às seguintes hipóteses:

a) os processos de gramaticalização, por refletirem aspectos cognitivos que não

estão necessariamente associados a esta ou àquela língua, devem se manifestar

– com alguma especificidade relativa a características de cada língua – no

português e no francês;

b) existe uma trajetória unidirecional advérbio interno à cláusula > advérbio

sentencial > marcador discursivo (Traugott e Dasher: 2005), tanto em

português quanto em francês, assim como uma trajetória unidirecional

advérbio interno à cláusula > advérbio conjuntivo, que também se manifesta

nas duas línguas;

c) existe uma tendência de mudança na ordenação dos advérbios qualitativos em -

mente/ment, que migram da posição pré-verbal para a posição pós-verbal ao

longo dos séculos, tanto no português quanto no francês. Esta mudança se

iniciaria nas cláusulas menos gramaticalizadas (como, por exemplo, nas

coordenadas) e posteriormente alcançaria as mais gramaticalizadas (como, por

exemplo, as completivas), que são mais resistentes à mudança;

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d) como há uma interação entre sintaxe, pragmática e semântica, ocorrerá,

paralelamente aos fenômenos levantados nas hipóteses a e b, uma mudança no

sentido dos advérbios partindo do seu valor mais concreto para outro mais

abstrato e subjetivo;

e) os diferentes paradigmas linguísticos existentes atualmente possuem limitações

e alcances que tornam o diálogo entre teorias, muitas vezes, essencial. Para a

análise de um elemento como o advérbio, os modelos baseados no uso parecem

ser mais adequados, já que levam em consideração a existência de categorias

prototípicas; a mudança através da gramaticalização, da iconicidade e dos

sentidos implicados pelos diferentes usos.

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2. Revisão da Literatura e alguns “pitacos

O principal objetivo deste capítulo é tratar das definições, classificações e tendências

de ordenação dos advérbios qualitativos em -mente/ment. Apesar de este trabalho se vincular

à linha funcional da linguística, levantarei importantes contribuições de outras linhas teóricas

para esta análise.

É bem verdade que seria apropriado compor uma obra de fim de curso que tivesse

uma clara revisão da literatura seguida de uma meticulosa exposição dos pressupostos

teóricos que preparariam os meus leitores e avaliadores para a análise de dados. Isso, porém,

se demonstrou perto do impossível ao lidar com o tema proposto. Omitir a teoria dos

protótipos da linguística cognitiva e a sistematização sintática da linguística gerativa da

discussão em torno da ordenação e gramaticalização dos advérbios teria um custo de

oportunidade3 muito alto. Porém, algumas dessas descobertas não podem fazer parte dos

pressupostos teóricos de um trabalho sob a orientação do funcionalismo norte-americano4;

assim como seria pouco provável que se encaixassem na revisão da literatura sem

estranhamento.

Considerei que os leitores merecem saber quais decisões metodológicas foram

tomadas, já que a escolha de um caminho metodológico muitas vezes implica na não-escolha

dos demais. Apesar de o presente texto prender-se à análise funcional da linguística, acho

importante apresentar também a visão gerativa da questão e fazer algumas comparações que

ajudam a justificar sua escolha.

É inferível, portanto, que a análise de dados comece desde o primeiro parágrafo da

revisão da literatura quando me proponho a destrinchar diferentes linhas teóricas perfilando

somente aquilo que interessa para o estudo do fenômeno da ordenação e polissemia dos                                                                                                                3 O Custo de Oportunidade representa o custo associado a uma determinada escolha medido em termos da melhor oportunidade perdida (Paulo Nunes, 2009). 4 Digo algumas, pois a teoria dos protótipos é já bastante utilizada por funcionalistas; assim como já se vê também em algumas análises funcionais a incorporação de determinadas descobertas da linguística formal.

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advérbios qualitativos e modalizadores em -mente/ment em francês e português. Além disso, a

análise de dados já é esboçada também nos pressupostos teóricos, pois ao escolher quais

pontos da linguística funcional são relevantes para chegarmos às hipóteses e objetivos

apresentados na introdução, a análise já avança em muito na parte em que, acredito, ela seja

mais significativa para a comunidade linguística. Resta, portanto, nas partes finais do

trabalho, contabilizar esses dados e analisá-los qualitativamente, buscando revelar como a

língua aponta, de fato, algumas tendências que esbocei somente na teoria anteriormente.

Romper com a separação estanque das “partes” do trabalho de dissertação é esperado,

mas é necessário até para que se possa, com o próprio texto, comprovar o que é defendido em

todo o trabalho: a divisão de elementos em categorias estanques é não só simplificadora,

como também, em parte, impossível. Assim, acredito que todo pesquisador tenha tido vontade

de fazer o mesmo. Por que dar este passo a mais? Uma vez, uma professora de Filosofia

Antiga me tirou metade dos pontos de uma prova em que eu não tinha errado nada, porque

não ousei. Simplificar um fenômeno com fins didáticos depois que já nos deparamos com a

sua complexidade no mundo é o maior erro que um pesquisador pode cometer. Lembro-me de

pensar depois que ela deveria ter-me dado zero.

2.1. O problema da definição dos advérbios

“Pourquoi choisir l’adverbe, classe réputée pour son caractère « intraitable » (…) ?”5

Qualquer que seja a área de pesquisa do linguista, a categoria dos advérbios é

reconhecidamente de difícil definição por não ser muito homogênea. Givón (2001) chega a

afirmar que esta é a classe que apresenta menos aspectos universais devido a sua função

linguística ora lexical e ora gramatical.

                                                                                                               5 Por que escolher o advérbio, classe conhecida por seu caráter “intratável” (...)? (tradução minha) de: GOES, Jean. Introduction. In: L’adverbe: un pervers polumorphe. Artois Presses Université, 2005.

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São tantos e tão diferentes os subtipos de advérbios que, muitas vezes, é difícil definir

a categoria. Parece não haver uma única característica que ocorra em todos esses itens,

definindo-os como uma classe discreta e de fronteira nítida. Um caminho promissor para a

resolução deste impasse parece ser a teoria dos protótipos, pois esta parece mostrar uma série

de questões pertinentes e esclarecedoras para o tratamento dos advérbios. Partamos em busca

destas questões.

A teoria dos protótipos teve sua versão mais sistemática e empírica (Taylor: 1995)

com o trabalho de Eleanor Rosch (1973, 1975 e 1978), e ficou conhecida como um

rompimento com as tradicionais condições necessárias e suficientes da lógica aristotélica.

Negando a visão de que todo elemento de uma mesma categoria compartilharia as mesmas

características, o trabalho de Rosch chamou a atenção para o fato de que na categoria pássaro

haveria itens mais representativos (como pardal) do que outros (como pinguim). Além disso,

a diferença de representatividade desses itens foi atribuída ao reflexo dos modelos idealizados

que os falantes teriam dessas categorias. Assim, os itens mais radiais da categoria seriam os

menos representativos dela, enquanto um item prototípico seria aquele que compartilharia

mais características com os outros membros dessas categorias e menos características com os

membros de categorias distintas.

A teoria dos protótipos se tornou extremamente cara aos linguistas pois, apesar de não

contribuir muito para a formalização das categorias, é essencial para os outros pressupostos

metodológicos esperados pelas teorias linguísticas: adequação descritiva, profundidade

explicativa e produtividade (Geeraerts, 1989). Além disso, a teoria permite aos pesquisadores

facilmente aplicar suas intuições sobre flexibilidade, variedade de sentidos e fuzziness

(difusão); além de poder ser aplicada em diversos aspectos da linguística. Por isso a teoria dos

protótipos possibilita uma análise mais apurada da classificação e do próprio entendimento

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dos advérbios, uma vez que abarca também a análise de elementos periféricos, antes

marginalizados pela abordagem categórica, como veremos um pouco mais adiante.

Geeraerts (1989) propõe que a teoria dos protótipos é, em si mesma, um conceito

prototípico e apresenta quatro características frequentemente mencionadas como típicas da

prototipicalidade: (i) categorias prototípicas não podem ser definidas por um único conjunto

de condições necessárias e suficientes; (ii) categorias prototípicas possuem uma estrutura de

semelhança por familiaridade, ou seja, sua estrutura semântica tem a forma radial de um

aglomerado de sentidos sobrepostos; (iii) categorias prototípicas exibem diferentes graus de

pertencimento de seus constituintes, ou seja, nem todos os membros são igualmente

representativos; e (iv) categorias prototípicas têm fronteiras difusas.

Se nos atentarmos para essas quatro características, chegaremos à conclusão de que a

classe dos advérbios é prototipicamente prototípica, ou seja: possui as quatro características

típicas de um conceito prototípico. Vejamos como:

2.1.1. Ausência de definição para a classe:

Desde a tradição greco-latina, os estudos da linguagem veem o advérbio como termo

invariável modificador de verbo. Até hoje, nossas gramáticas estão impregnadas por vestígios

desses conceitos:

O ADVÉRBIO é, fundamentalmente, um modificador do verbo. (Cunha & Cintra, 2001) Un adverbe est un mot ou un groupe de mots inveriable qui modifie le sens d’un mot ou le sens d’une phrase.6 (Delatour, Jennepin, Duford & Teyssier, 2004)

                                                                                                               6 Tradução minha: O advérbio é uma palavra invariável que modifica o sentido de uma palavra ou de uma frase.

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Estas definições corriqueiras precisam ser revistas em dois aspectos fundamentais: o

seu escopo exclusivamente verbal (definição de Cunha & Cintra) e a sua invariabilidade

(definição de Delatour, Jennepin, Duford & Teyssier).

Sobre a questão da invariabilidade, como sabemos, em muitas línguas já se encontram

casos de concordância do advérbio com um sintagma nominal perto dele:

(2) a. Maria está toda molhada. b. Maria está meia cansada.

Embora apenas 2a seja reconhecida pela gramática tradicional, sabemos que ambas as

formas são gramaticais no português oral - e escrito também, se tomarmos autores mais

antigos do Brasil. Além disso, outras línguas atestam este fenômeno, como o francês (3):

(3) Des personnes nouvelles venues.7

Merece ainda maior atenção a questão de o advérbio ser ou não, por definição, um

item modificador do verbo. Martelotta (inédito) afirma que somente no Renascimento surge a

ideia de que os advérbios possam caracterizar outras classes, e assim emerge uma grande

dificuldade em caracterizá-los numa só classe. Com a gramática de Soares Barbosa editada

em Portugal em 1982, surge a visão hoje difundida em nossas gramáticas de que o advérbio

modifica o verbo, o adjetivo e outro advérbio. Esta nova definição de advérbio coloca nesta

classe uma série de itens novos, que não estão, muitas vezes, intimamente relacionados com o

verbo. Hoje já existem muitos linguistas que estudam advérbios modificadores de toda a

cláusula.

Adverb. A Word of a class whose characteristic role is traditionally that modifying a verb or a verb phrase: e.g. badly in He wrote it badly, where (in different accounts) it modifies either wrote or the phrase wrote it. (…) On the grammar of English and many similar languages, an adverb is effectively a

                                                                                                               7 Exemplo de Raemdonck, 1995.

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word that modifies anything other than a noun. Thus badly above; certainly in Certainly I’ll come, where it modifies I’ll come. (MATTHEWS, 2005)

Martelotta (inédito) traz alguns exemplos de advérbios sentenciais, que não se referem

ao verbo, mas à toda a sentença:

(4) a. Certamente, vai chover amanhã. b. Felizmente, não choveu. c. Francamente, eu não gosto de chuva.

Esses seriam casos em que ocorreria nitidamente um posicionamento ou uma atitude

do falante em relação àquilo que fala. Assim, seriam classificados em modalizadores

epistêmicos, afetivos e pragmáticos (respectivamente 4a, 4b e 4c). Entraremos mais

precisamente na questão da classificação dos advérbios qualitativos e modalizadores nas

próximas seções do trabalho, mas, por ora, é importante perceber que nos três casos do

exemplo 4 temos uma relação de extensão do uso nos advérbios sentenciais, já que estes

advérbios modalizadores são provenientes de valores qualitativos; como também discutiremos

mais adiante.

2.1.2. Aglomerados de sentidos sobrepostos:

Pesquisas em linguística funcional propõem uma tendência de o advérbio cujo escopo

é o verbo (exemplo 5) de aparecer junto ao verbo; enquanto advérbios cujo escopo é toda a

cláusula tenderiam por ordenações mais variadas, incluindo posições distantes do verbo

(exemplo 6).

(5) As pesquisas indicam consistentemente que gays e lésbicas têm uma crescente aceitação na sociedade dos EUA.8

                                                                                                               8 Jornal O Globo, versão virtual, texto publicado em 3 de Agosto de 2009. (http://oglobo.globo.com/mundo/mat/2009/08/03/lideres-episcopais-de-la-sagram-dois-bispos-homossexuais-757081753.asp)

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(6) Felizmente, a maioria dos incômodos da TPM podem ser amenizados com algumas mudanças no cotidiano.9

Embora a maioria das gramáticas escolares brasileiras listem os dois itens sublinhados

nos exemplos acima como advérbios de modo, podemos perceber algumas diferenças básicas

entre eles. A primeira, no que diz respeito à sua colocação, já que o item consistentemente

aparece próximo ao verbo e o item felizmente aparece afastado deste. A segunda, no que diz

respeito aos valores semânticos que estes possuem, já que o item consistentemente aparece

com um valor referencial, ligado ao mundo objetivo, significando “indicar de modo

consistente”; enquanto o item felizmente aparece com um valor abstrato, ligado ao mundo

inter-subjetivo, transmitindo assim o sentimento do falante sobre aquilo que ele diz.

Em termos teóricos, essas diferenças se explicam por dois pressupostos fundamentais

da linguística funcional: (i) o princípio da iconicidade - mais especificamente o subprincípio

da integração (Givón, 1990) e (ii) a teoria da gramaticalização (Hopper e Traugott, 2003;

Cezario, Martelotta e Votre, 2004).10 O subprincípio da integração observa a tendência de

codificar linguisticamente junto o que é operado cognitivamente junto. Os pressupostos

levantam, portanto, a hipótese de que advérbios modificadores do verbo (ex.: qualitativos)

tendem a aparecer próximos do sintagma verbal, enquanto advérbios modificadores de toda a

cláusula (ex.: modalizadores) não seguiriam esta tendência. Baseiam também uma análise na

teoria da gramaticalização, já que propõem uma trajetória unidirecional (advérbio interno à

cláusula > advérbio sentencial) que guia o comportamento desses advérbios através da

diacronia das línguas (Traugott e Dasher, 2005).

A Linguística Cognitiva acredita, porém, que, se olharmos atentamente para a

metáfora que ocorre com o advérbio em questão (pois junto com a mudança de escopo há uma                                                                                                                9 Jornal O Globo, versão virtual, texto publicado em 30 de Julho de 2009. (http://oglobo.globo.com/vivermelhor/mulher/mat/2009/07/30/mudancas-acentuadas-de-humor-durante-tpm-podem-indicar-transtornos-de-ansiedade-757038019.asp) 10  Abordaremos essas duas questões com maior detalhe nos pressupostos teóricos da dissertação.

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mudança de sentido), veríamos mais. Em outras palavras, acredita que estaríamos perdendo

muito se a tratássemos apenas como uma mudança diacrônica, pois o efeito da flexibilidade

semântica sincrônica do item deve ser levado em consideração também (visto que as

extensões metafóricas sincrônicas podem ser baseadas em diversos atributos enciclopédicos

do falante).

Assim, dentro desta perspectiva, quando olhamos atentamente para os sentidos

possíveis dos advérbios, deparamo-nos com aglomerados sobrepostos de sentidos que

licenciam seus mais diversos usos. Um advérbio como o item felizmente no exemplo 6

expressa a emoção do falante sobre aquilo que fala; uso que se tornou possível a partir de um

advérbio que tem como base um sentimento “feliz” (vê-se que, segundo Martelotta (Inédito),

advérbios cujas bases não eram sentimentos, mas certezas, geraram advérbios que expressam

a atitude epistêmica do falante, como certamente, e não a sua emoção). Ou seja, podemos

supor a existência de um aglomerado de sentidos latentes na própria sincronia dos advérbios.

É importante repararmos que a linguística funcional não descarta a hipótese cognitiva

de que o efeito da flexibilidade semântica sincrônica do item deve ser levado em

consideração; mas aponta para o fato de que, se há unidirecionalidade e este fenômeno é

translinguístico; a mudança não parte de um aglomerado de sentidos possíveis no dado item,

mas de uma série de processos previstos no fenômeno de gramaticalização. Assim, a mudança

diacrônica não perde seu posto como principal forma de interpretar fenômenos de mudança

como os que envolvem os diferentes advérbios.

2.1.3. Graus de representatividade:

Chomsky, maior expoente da linguística gerativa, distingue no Programa Minimalista

(1995) dois tipos de advérbio: os advérbios pertencentes à categoria lexical (gerados na

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posição de especificador do sintagma verbal11) e os advérbios pertencentes à categoria

funcional (gerados, segundo Cinque (1999) nos nódulos aspectuais da Camada Flexional12).

As consequências dessa afirmativa são numerosas, já que a linguística gerativa dá

conta de formas bastante diferentes – a depender da linha teórica do pesquisador – para

entradas lexicais e funcionais no processamento da linguagem. Pode-se dizer que a proposta

de Chomsky induz pesquisadores a lidar com os diferentes advérbios de formas diferentes, já

que o léxico seria arbitrário e idiossincrático, enquanto as categorias funcionais obedeceriam

a um conjunto de princípios universais.

A maior dificuldade colocada pela questão das diferentes origens arbóreas13 dos

advérbios é que, se a divisão da classe em duas bem distintas - uma funcional e uma lexical –

é necessária (já que um item que pertence a uma classe não poderia, de forma alguma, ser

representativo da outra classe; por exemplo, um advérbio de IP14 não pode representar a

classe dos advérbios de VP15 e vice-versa); o que fazer com advérbios que aparecem na língua

tanto como advérbio de VP como advérbio de IP? Esse é o caso de tristemente nos exemplos

abaixo:

(7) A mãe e a irmã choravam tristemente... 16

(8) Parece que desde o último dia 12 de maio essa liderança também chega tristemente aos

níveis da violência urbana e à ação mortífera do crime organizado. ... 17

                                                                                                               11 Doravante SV. 12 Doravante IP. 13 Como a sintaxe da sentença é normalmente representada por esquema de árvores, utilizamos a expressão “arbórea” para nos referirmos ao mapeamento de estruturas linguísticas na operação sintática. 14 Advérbio de IP é a terminologia da linguística gerativa para tratar de advérbios gerados na camada flexional (Inflexional Phrase). 15 Advérbio de VP é a terminologia da linguística gerativa para tratar de advérbios gerados no sintagma verbal (Verbal Phrase) 16 R. Correia, apud Celso Cunha, 2003 17 wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/...

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Enquanto em 7 o advérbio tem um valor de indicar de que modo choram a mãe e a

irmã; em 8 o advérbio revela um sentimento de tristeza que o falante tem acerca dos dados

que apresenta na sentença. Em termos mais “gerativos”, o advérbio em 7 seria gerado no VP

enquanto o advérbio em 8, no IP – mas qual a relação entre eles?

Dentre as tentativas de resposta e os silêncios do modelo formal para esta questão,

somente com Costa (2004), haverá uma proposta clara de relacionar sintaxe e semântica em

linguística gerativa, afirmando que, a depender do tipo de advérbio e da posição deste na

sentença, haverá um número possível de interpretações do mesmo – sendo, para alguns

advérbios, possível tanto uma leitura funcional (como a teoria formal chama o valor subjetivo

de atitude do falante) como uma lexical (como chama o valor referencial de modo em que

ocorreu a ação).

Esta afirmativa parece colocar em questão a proposta da cisão da categoria do

advérbio em duas classes distintas pela linguística gerativa e parece apontar para uma visão

mais moderna deste paradigma linguístico, capaz de ver a importância do estudo da semântica

para a compreensão de alguns fenômenos dos quais a sintaxe não dá conta. Costa, porém,

continua apontando para a autonomia da sintaxe e para a arbitrariedade da língua, o que,

muitas vezes em seus trabalhos, parece uma conclusão precipitada.

Esta questão, porém, não parece ser um problema para posturas baseadas no uso, quer

funcional ou cognitiva, de compreender a linguagem. Com a proposta de um continuum

(Brinton e Traugott: 2005) do léxico para a gramática, estando substantivos e adjetivos no

pólo lexical enquanto preposições e verbos auxiliares estariam no pólo gramatical; a categoria

linguística dos advérbios poderia ser imaginada centro deste continuum; pois não é

prototipicamente nem lexical nem gramatical.

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Figura 1: Representação esquemática do continuum léxico-gramática.

Esta proposta resolve também outra questão pertinente no que tange à análise dos

advérbios da linguística formal. Um dos traços prototípicos de uma categoria lexical é ser

uma classe aberta; enquanto categorias gramaticais costumam ser classes fechadas. Para a

linguística gerativa, há uma grande questão a ser superada: o projeto cartográfico de Cinque e

Rizzi (2008), que chama a atenção para o fato de que definir as classes fechadas como

funcionais (em oposição a classes abertas como lexicais) é uma tarefa que se torna

insustentável no tratamento dos advérbios – já que desde Cinque (1999), não parece haver

uma tendência advérbios de VP serem uma classe mais aberta ou mais numerosa do que a de

advérbios do IP.

Esta tarefa não é impossível, porém, se pensarmos em classes lexicais e gramaticais

como um continuum e, se colocássemos a categoria linguística dos advérbios como não

representativa nem de uma nem de outra, já que seus usos oscilam entre significados mais

representacionais do mundo (como o advérbio qualitativo rapidamente) e significados mais

associados a questão da interação entre falante e ouvinte (como o advérbio modalizador

infelizmente):

A categoria dos advérbios é reconhecidamente a menos homogênea e, portanto, a mais difícil de ser definida. Em função disso, de acordo com Givón (2001), não surpreende que os advérbios sejam a classe que, translinguisticamente, apresenta menos aspectos universais, podendo estender-se pelos planos morfológico, léxico e sintático. Essa versatilidade, provavelmente, se relaciona ao fato de os advérbios funcionarem num plano de utilização da língua que oscila entre o campo representacional, típico do léxico, e a área da gramática, relacionada à orientação intersubjetiva que normalmente se associa aos elementos de caráter gramatical. (Martelotta, inédito)

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Nosso próximo passo seria, porém, algo ainda mais difícil: definir quais seriam os

advérbios mais representativos dessa categoria difusa que é a dos advérbios. Antes de se

estabelecer quais seriam os mais representativos tipos de advérbio da categoria, precisaríamos

estabelecer quais seriam as características mais prototípicas de um advérbio, e isso parece não

ser consensual.

Porém, como já mostramos no presente trabalho, os advérbios são compreendidos

tradicionalmente como itens modificadores do verbo. Sendo assim, poderíamos propor que

advérbios qualitativos (exemplo 7) são mais prototípicos do que advérbios sentenciais

(exemplo 8); muito embora, devido à natureza intersubjetiva dos advérbios sentenciais, esses

sejam muito mais frequentes nos textos analisados. O critério para definir este advérbio como

o mais prototípico deve ser debatido com maior cautela, mas se dá, em grande parte, a partir

de um centro “ideal” que nós, pesquisadores e falantes, temos do que seria um advérbio.

Sobre os exemplos 7 e 8, apresentados acima, especificamente, lembramos que nossa

proposta seria não de imaginar uma ausência de relação entre as duas formas de tristemente,

mas propor que, após uma trajetória diacrônica de gramaticalização do advérbio interno à

clausula em alguns contextos se tornar um advérbio sentencial, as duas formas de tristemente

sobrevivem na sincronia da língua como autônomas e independentes. Assim, o advérbio do

exemplo 7 é mais representativo da categoria dos advérbios (qualificando a ação) do que o

advérbio do exemplo 8 (sentencial e de natureza intersubjetiva).

2.1.4. Ausência de fronteiras nítidas:

Até o presente momento, podemos perceber que a categoria dos advérbios é de difícil

definição. Mas, mais do que isso, muitas vezes, há uma grande dificuldade de delimitar quais

seriam os elementos que a comporiam. Vejamos alguns casos em que a categoria dos

advérbios não tem fronteira nítida que a distinga de outras categorias linguísticas:

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Alguns trabalhos em linguística tentam fazer uma análise dos chamados adjetivos

adverbializados, ou seja, adjetivos que, em contexto sintático-semântico típico de predicativo,

permanecem invariáveis, apresentando comportamento adverbial (Barbosa, 2006; Hummel,

1999a, 2001a). Seriam casos como Ela fala alto, A cerveja que desce redondo, Ela jogou sujo

com você etc. Em uma análise categorial dos advérbios, seria impossível dar conta destes

elementos mas, em uma análise devedora da noção de prototipicalidade, podemos dizer que

são elementos radiais, já que não possuem algumas características do advérbio prototípico e

compartilham características com outra categoria, a dos adjetivos.

Alguns trabalhos em linguística visam a analisar advérbios que estabelecem relações

entre cláusulas (Martelotta, inédito), como a relação de consequência em Comeu muito,

consequentemente passou mal. Este advérbio possuiria uma característica prototípica da

classe das conjunções, e não da dos advérbios: a de ter como função organizar as sentenças do

texto.

2.1.5. A categoria linguística dos advérbios é prototipicamente prototípica!

O que as seções anteriores do trabalho (de 2.1.1 a 2.1.4) tentaram demonstrar foi que

não há nenhum atributo necessário e suficiente que dê conta da classificação dos advérbios

como uma categoria estanque. Nem a forma (invariabilidade) nem a função (modificador de

verbo) foram capazes de dar conta de todos os elementos que orbitam a categoria dos

advérbios. Não há, porém, uma frustração nisso, muito pelo contrário, há uma descoberta:

categorizar os advérbios não significa determinar atributos necessários e suficientes, mas sim

“considerar o quanto as características da categoria em questão se aproximam das

características estruturais e pragmático-discursivas ideais para aquela categoria” (Martelotta,

inédito).

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Características prototípicas da

prototipicalidade Os advérbios

têm essas características?

Por quê?

Ausência de definição para a classe + Se pensarmos em todos os tipos de advérbios ( não apenas nos em –mente/ment), nem a forma invariável

nem o escopo verbal (clássicas definições dos advérbios) parecem dar conta da definição da classe.

Aglomerados de sentidos sobrepostos

+ Sentidos mais objetivos levam sistematicamente a sentidos intersubjetivos, que podem coexistir na

sincronia da língua. Graus de representatividade + Advérbios mais prototípicos, como os qualitativos,

são mais representativos da categoria do que advérbios que compartilham traços de outras

categorias, como advérbios conjuntivos. Ausência de fronteiras nítidas + Não há fronteiras nítidas na distinção entre advérbios

e outras classes, como conjunções, adjetivos etc. Tabela 1: Quadro sinótico da natureza prototípica da categoria dos advérbios.

Assim, a ausência de um dos atributos prototípicos dos advérbios não elimina sua

classificação como tal, mas o afasta do centro prototípico estipulado pelo linguista. Na

categoria dos advérbios, podemos dizer que não há nenhuma propriedade suficiente ou

necessária que distinga seus elementos das demais categorias linguísticas, o que não é um

problema, já que a teoria dos protótipos permite a visão de uma categoria em forma de rede de

similaridades entrelaçadas. Um exemplo deixaria mais clara a ideia: os advérbios meio,

consequentemente e rapidamente são membros de uma mesma classe, mas meio e

rapidamente não compartilham nenhum atributo em comum. Porém, rapidamente

compartilha com meio o atributo da função predicativa (modificador de adjetivo ou de verbo)

e com consequentemente o atributo da invariabilidade.

Figura 2: Uma análise de definição prototípica para os advérbios consequentemente, meio e rapidamente.

Invariabilidade  conseqüentemente  

rapidamente  

  meio/meia  Função  predicativa  

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Estender a figura 02 para todos os demais advérbios significa compreender que a

categoria linguística dos advérbios é esquemática e, em grande parte, indeterminada. A

definição do centro desta categoria merece um estudo além dos objetivos e possibilidades

desse trabalho, mas esta análise com certeza teria que se debruçar arduamente nos diferentes

usos que organizam os advérbios em nossa língua, buscando as relações de semelhanças e

dessemelhanças que os caracterizam. Por isso, a seção seguinte do trabalho se fixará em

advérbios em –mente/ment, que já são facilmente definíveis pela forma, e que estão previstos

na análise desta pesquisa.

2.2. O problema da classificação dos advérbios em –mente/ment : o que propõe a

tradição, como podemos interpretá-la e o quanto devemos criticá-la.

Embora para Cunha & Cintra (2001) o advérbio seja fundamentalmente um

modificador do verbo, os autores assumem também que este possa modificar adjetivos,

advérbios ou, raramente, uma oração. Interessante notar que, apesar de fazer esta ressalva, os

autores separam os advérbios que modificam a oração em uma seção que não é a dos

advérbios, mas a de palavras denotativas.

Segundo os autores, a Nomenclatura Gramatical Brasileira distingue sete tipos de

advérbios para classificá-los: advérbios de afirmação, de dúvida, de intensidade, de lugar, de

modo, de negação e de tempo. Afirmam ainda que a própria NGB acrescenta outros três tipos:

de ordem, de exclusão e de designação; sendo estes dois últimos tipos incluídos numa

categoria à parte porque não modificam verbo, adjetivo ou outro advérbio, os quais os autores

tratam como palavras denotativas.

Dentre estes tipos, nem todos foram listados em sua gramática com exemplos de

advérbios em -mente. Apenas os de afirmação (certamente, efetivamente, realmente), de

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dúvida (possivelmente, provavelmente), de modo (fielmente, levemente e, segundo os

autores, a maior parte dos advérbios terminados em -mente), de ordem (primeiramente,

ultimamente) e de exclusão (somente).

Por inúmeras razões já apontadas, esta classificação é restrita e incompleta. A mais

evidente delas é que, embora basear-se na ideia acessória que expressam os advérbios (Cunha

e Cintra: 2001) seja recorrente e, muitas vezes necessário, esquece-se de perceber se o valor

do advérbio é subjetivo ou referencial, além de ignorar-se se seu escopo é o verbo ou a

cláusula. Se considerássemos estas duas condições, certamente e efetivamente poderiam não

ocupar a mesma classificação.

Mas, uma das coisas mais interessantes que a nossa análise de dados pretende mostrar

é que, apesar do que dizem as gramáticas e o senso comum, a maior parte dos advérbios em -

mente no português não são advérbios qualitativos (de modo, como as gramáticas

chamariam), mas modalizadores.

Rocha Lima (2005) lista cinco tipos de advérbios e somente um deles não recebe

exemplo com advérbio em -mente, os advérbios de lugar. Os outros quatro são os seguintes:

advérbio de dúvida (provavelmente, eventualmente), de intensidade (excessivamente,

demasiadamente), de tempo (anteriormente, diariamente, imediatamente) e de modo (casos o

autor chama já de adjetivos adverbializados com o sufixo -mente ou sem ele, como em “Ela

fugia com os olhos, ou falava áspero”, em que áspero ocupa o lugar de asperamente).

Grevisse (1986) distingue os advérbios da língua francesa em três espécies partindo do

ponto de vista semântico: os adverbes de manière (aos quais se somam os adverbes de degré

e os adverbes de négation), os adverbes d’aspect (que, segundo o autor, são próximos muitas

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vezes dos adverbes de manière e dos adverbes de temps), e os adverbes marquant une

relation logique.

É importante destacar que o autor descarta do grupo dos advérbios as chamadas mots-

phrases e, consequentemente, os chamados adverbes de phrase, já que eles se aproximam das

mots-phrases pois são elementos incidents.

Compreender a origem dos advérbios em -mente/ment pode, muitas vezes, nos auxiliar

a melhor classificá-los. Martelotta (inédito) traz uma série de argumentos diacrônicos que nos

possibilitam, como veremos adiante, fundamentar a classificação dos advérbios em

argumentos mais convincentes do que uma ingênua leitura sincrônica de seus sentidos. Este

parece ser o objetivo de Grévisse, que faz uma breve explanação sobre os processos de

formação dos advérbios em -ment no francês, chamando a atenção para a história dos

advérbios dérivés en –ment sur des adjectifs, afirmando que o processo continua produtivo, já

que casos como sportivement, mondialement, planetairement, artisanalement,

caractériellement são do século XX. A origem adjetival dos advérbios citados nos revela uma

natureza mais lexical na origem dos advérbios.

Grévisse aponta ainda para a interessante observação que esta derivação não pode ser

vista como automática, já que muitos adjetivos não tem uma forma em -ment correspondente,

como concis, content, fâche, mobile, tremblant, vexé, entre outros. Adjetivos de cor não

podem ser derivados em advérbios em -ment, exceto vertement no sentido figurado

(bruscamente); e essa restrição de valoração também se aplica a advérbios de forma

(rondement e carrément), que também só podem ser usados no sentido figurado (suavemente

e completamente, respectivamente). Ainda sobre a produtividade da derivação, faz um

comentário bastante pertinente de que alguns autores “se arriscam” às vezes fabricando

advérbios que não existem na língua usual:

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(9) Qu’est-ce que tu as là? lui demanda le bonhomme en désignant bourrument du bout de son bâton la main [...] (Châteaubriant, Brière, I). TRAD.: O que você tem aí? lhe perguntou o homem apontando/ designando rispidamente com a ponta de sua vara a mão.

Grévisse não dá, porém, grandes passos na classificação destes advérbios, citando

apenas que existem diferentes tipos, mas não os rotulando, além de afirmar que são advérbios

em -ment. Acredito que isso se dê, em grande parte, pela astuta percepção, por parte do

gramático, de que a classe dos advérbios não apresenta características gramaticais lineares.

Com esta hipótese, e, portanto, assumindo uma visão diferente da tradicional, a

linguística funcional proporá desenvolver uma análise que parte do pressuposto de que a

chamada “classe dos advérbios” compreende uma categoria fluida, que contempla os mais

diferentes elementos, como vimos na seção a respeito da prototipicalidade dos advérbios.

Interessante é notar que, agora, além de perceber isso, vamos tentar estudar como esta

categoria se re-molda a cada momento, adaptando-se a situações comunicativas do discurso.

Martelotta (inédito) apresenta uma vasta classificação de advérbios (não só os em -

mente), dividindo-os em dois grandes grupos: (i) um grupo centrado nos qualitativos –

incluindo os próprios advérbios qualitativos, modalizadores (epistêmico, deôntico, afetivo e

pragmático), de verificação, de instrumento, de meio, conjuntivos e de atitude do sujeito e (ii)

um grupo centrado nos aspectuais – incluindo os próprios aspectuais, circunstanciais de

tempo (de referência fixa, dêitico e discursivo) e circunstanciais locativos (de referência fixa,

dêitico e discursivo).

Obviamente, não são todos os tipos de advérbios que encontram uma ocorrência com

advérbio em –mente/ment; em nenhum momento de nossa análise encontramos, por exemplo,

um advérbio de circunstância locativa com este sufixo. Nosso trabalho se focará nos dois

pólos da trajetória qualitativo > modalizador, preocupando-se básica e primeiramente com

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estes dois advérbios, embora vários outros tipos encontrem grandes números de advérbios em

–mente/ment.

Assumimos em nossa análise que o advérbio qualitativo é o tipo mais representativo

da categoria dos advérbios em -mente. Esta afirmativa traz à tona a questão acerca da

discussão se existe ou não um “centro” das categorias linguísticas. Afirmar a existência deste

centro seria ou (i) afirmar a existência de uma essência de ser das coisas ou (ii) afirmar que o

conhecimento humano cria um centro para referência da organização do mundo objetivo em

categorias. Assumimos a segunda hipótese, baseados na asserção de Tomasello (2003), de que

a aquisição e estruturação das categorias linguísticas em paradigmas é resultado da

observação que os usuários fazem de seus traços semânticos, dos seus papéis na comunicação,

e de suas características estruturais.

Assim, como o advérbio qualitativo contém os traços típicos18 das definições de

advérbios (função predicativa que atua sobre a ação verbal), ele é tomado por nós como o

prototípico dentre os advérbios e, consequentemente, dentre os advérbios em -mente. Os

traços que definem o advérbio qualitativo prototípico são: ser invariável, ter função

predicativa (modificar outro elemento da sentença); relacionar-se semanticamente com a ação

verbal, fornecendo informações referenciais sobre a cena.

(10) Veículos trafegam lentamente na Barata Ribeiro.19

O advérbio qualitativo do exemplo 10 indica o modo como ocorre a ação de trafegar:

de modo lento. O item se relaciona intimamente com o verbo, modificando-o ao indicar uma

informação da cena que a sentença descreve.

                                                                                                               18 Martelotta (inédito). 19 Portal de Notícias UOL, 2010: http://maplink.uol.com.br/v2/noticias/2010/01/04/veiculos-trafegam-lentamente-na-barata-ribeiro-109615.htm

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Podemos perceber pelo exemplo que o uso desses elementos é caracterizado por uma

natureza mais objetiva da cena. Se tentarmos analisar casos de advérbios qualitativos em –

mente que tenham como alvo20 não verbos, mas adjetivos (11), substantivos (12), outros

advérbios (13) ou toda a cláusula (14), veremos que o valor semântico original já se torna

bastante subjetivado e que sua função no contexto discursivo já passa a ser outra que não

predicar (como intensificar em 11 e excluir em 12) ou descrever (como mostrar a atitude do

falante acerca daquilo que diz em 13 ou caracterizar a atitude do sujeito em 14), dificultando a

análise destes como advérbios que indicam modo ou que modificam o verbo, ou seja, como

qualitativos.

(11) Nossa noite foi perfeitamente brilhante.21

(12) Ela não é somente uma menina mostrando vídeos no you-tube.22

(13) Acho que David Beckham está realmente bem.23

(14) Como esconder inteligentemente o seu pulo de cerca?24

Castilho e Castilho (2002) estabelecem uma distinção entre dois componentes da

sentença: o dictum (componente proposicional, constituído de sujeito e predicado) e o modus

(componente modal, correspondente à qualificação do conteúdo de acordo com o julgamento

do falante).

Se observarmos o exemplo 15, veremos que o advérbio certamente não modifica o

sujeito (não significa que sejam corretos os personagens velhacos) nem o predicado (não

                                                                                                               20 Usamos aqui a palavra “alvo” e não “escopo” pois acreditamos, como veremos nas próximas seções do trabalho, que mesmo que alguns advérbios possam ter como alvo um substantivo (por exemplo), sua atuação se dá no nível da sentença ou do discurso. 21 Blog pessoal, 2009: http://somente-pra-voce-l.blogspot.com/2009/10/nossa-noite-foi-perfeitamente-brilhante.html 22 Blog pessoal, 2006: http://www.bluebus.com.br/show/1/71786/e_ela_nao_e_somente_uma_ menina_mostrando_videos_no_youtube 23 Portal de Notícias FutNet, 2009: http://www.futnet.com.br/futebolinternacional/futebolitaliano/ noticias/?085574 24 Site de encontros, s/d: http://www.central-encontros.com.br/conselhos-para-solteiros/como-esconder-pulo-cerca-intro.htm

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significa que estes são subestimados de forma correta); mas que funciona como uma

intervenção do falante qualificando o conteúdo do enunciado. Em outras palavras, o advérbio

em 15, que é um modalizador, modifica a componente modal da sentença, expressando a

certeza que o falante tem de que os personagens velhacos são subestimados em determinada

situação.

(15) O mundo da ficção é cheio de personagens velhacos, que aparentemente não exprimem

muito respeito e certamente são subestimados quando enfrentam algum oponente. 25

Vlcek e Martelotta (2009) apontam para o fato de que esses advérbios são sentenciais,

e não verbais, pois modificam o conteúdo transmitido no nível da sentença. Esta seria a maior

diferença entre modalizadores e qualitativos (que modificam a ação verbal).

A relação dos advérbios modalizadores e dos qualitativos se torna bastante clara se

pensarmos no fenômeno com um olhar diacrônico, o que será melhor explicado nos

pressupostos teóricos. Lembremo-nos por hora que alguns trabalhos de linguística histórica

(Moraes Pinto: 2008, Vlcek e Martelotta, 2009) apontam para o fato de que o surgimento de

advérbios modalizadores se dá em um processo em que advérbios qualitativos deixam de

funcionar no nível sintático e ampliam seu escopo para o discurso, o que é conhecido como a

trajetória advérbio interno à cláusula > advérbio sentencial > marcador discursivo (Traugott

e Dasher: 2005; Traugott, 1995).

Em diferentes estudos linguísticos (Ilari et alii 1996; Neves: 2000; Castilho e Castilho:

2002; Moraes Pinto, 2008; Martelotta, inédito), o termo advérbio modalizador compreende

advérbios epistêmicos (certamente), que expressam uma avaliação de verdade sobre aquilo

que é dito; advérbios deônticos (obrigatoriamente), que são característicos por expressar uma

                                                                                                               25 Blog pessoal, 2009: http://www.interney.net/blogs/melhoresdomundo/2009/11/16/top_mdm_velhotes_ que_certamente_te_enche/

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obrigatoriedade entre os fatos; advérbios afetivos (felizmente), que exprimem reações

emotivas do falante sobre aquilo que ele diz; e os advérbios pragmáticos (resumidamente),

que descrevem a postura comunicativa do falante.

Todos esses advérbios têm em comum alguns traços que os definem como

modalizadores: (i) são predicativos, pois modificam a proposição; (ii) são sentenciais, pois

não modificam somente a ação verbal, mas o todo o conteúdo transmitido na sentença; e (ii)

são intersubjetivos, pois seu uso não está veiculado à descrição da cena, como com os

qualitativos, mas à atitude do falante acerca daquilo que diz diante de seu interlocutor, ou

seja, esses advérbios refletem um posicionamento avaliativo do falante em relação àquilo que

fala: o advérbio epistêmico reflete o modo como o falante vê o mundo, o advérbio deôntico

reflete a visão de uma inevitabilidade entre fatos; o advérbio afetivo é ainda mais subjetivo,

pois indica o sentimento que o falante tem a respeito da proposição; e o advérbio pragmático

tem uma natureza inter-subjetiva, pois reflete uma preocupação do falante com a recepção que

o ouvinte fará da proposição.

Agora, imagino, tenha ficado mais claro para o leitor a importância dos advérbios

qualitativos e modalizadores, que são o objeto de estudo deste trabalho. O mais prototípico

dos advérbios em -mente/ment sofre um processo unidirecional e translinguistico de

gramaticalização, assumindo valores intersubjetivos no discurso.

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3. Pressupostos Teóricos

3.1. Uma postura epistemológica consciente

Talvez uma das maiores distinções entre o pólo formalista e o pólo funcionalista da

linguística contemporânea seja a defesa e a rejeição (respectivamente) da autonomia da

sintaxe. Enquanto a linguística formal acredita que a sintaxe seja autônoma e, portanto,

arbitrária; para os estudos funcionalistas, ela é motivada.

Filosoficamente, esta antiga discussão remete à famosa discussão entre Parmênides e

Heráclito. Enquanto para Parmênides a mudança seria apenas aparente e ao filósofo caberia

buscar o que há de universal e imutável no Ser; para Heráclito, a única coisa de constante no

Universo seria a mudança. Desde o mais remoto instante da filosofia ocidental, esta é uma das

maiores dicotomias do nosso pensamento: tudo muda e a essência é uma aparência, como

afirmava Heráclito; ou a mudança é aparente e “o que é é, o que não é não é”, como afirmava

Parmênides?

Heráclito, audacioso pensador originário26, afirma em pleno século VI a.C. que o

papel de quem investiga é esperar pelo inesperado, ou seja, é olhar atentamente para a

mudança. Esta discussão ganha diferentes nomes até hoje em diferentes ciências, e não é

difícil prever que os estudiosos da linguística baseada no uso27, dentro os quais se encontra a

linguística funcional a que se filia este trabalho, se encaixariam, mais adequadamente, como

herdeiros da filosofia heraclítica.

Heráclito não só afirma que a mudança é inevitável, como afirma que é papel do

pensador é esperar pela mudança: “Se não esperar, não encontrará o inesperado, sendo não

encontrável e inacessível.” Neste sentido, a linha funcionalista da linguística se distingue

                                                                                                               26 Nome utilizado para referir-se aos filósofos pré-socráticos. Tradução do termo para o português por Carneiro Leão. 27   O   termo   linguística   baseada   no   uso   é   uma   tradução   para   o   correspondente   em   inglês   usage-­‐based  linguistics,   explorado   no   livro   Usage   based   models   of   language   editado   por   Michael   Barlow   e   Suzanne  Kemmer  em  2000.  Segundo  os  autores,  o  termo  usage-­‐based  foi  introduzido  por  Langacker  (1987).

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drasticamente do formalismo por buscar regularidades nas mudanças das línguas naturais

(identificar trajetórias, propor motivações para elas etc.) ao invés de simplesmente ignorá-las.

O fragmento abaixo parece transparecer essa postura epistemológica, embora já em

terminologia científica da linguística atual.

Haspelmath (2004), em uma reflexão acerca da unidirecionalidade não apenas na gramaticalização, mas também em outras áreas da mudança linguística, argumenta que é necessário identificar universais da mudança nas línguas. O argumento do autor reside principalmente na ideia de que o numero de fatores que atuam na mudança é tão grande – e nós podemos prever tão poucos deles -, que a maioria dos fenômenos de mudança pareceria um conjunto de acidentes históricos. (Martelotta, 2010)

O que defendem os parágrafos anteriores, em linhas gerais, é que o próprio momento de

surgimento das diferentes correntes linguísticas se relacionam a diferentes posturas

epistemológicas. Durante séculos, a filosofia defendeu ser absurdo afirmar que “o não ser é”.

Como disse Nietzsche, o surgimento da filosofia (desde Sócrates) representou o predomínio

do “espírito apolíneo” (deus da racionalidade) em detrimento do “espírito dionisíaco” (deus

do excesso). A filosofia do século XIX se movimenta, pela primeira vez em séculos, para

criticar o racionalismo (cujos maiores representantes seriam Descartes e Kant) e buscar

alternativas de pensamento menos aprisionantes. Assim surgiu o idealismo alemão, assim

defendeu Schopenhauer e para isso lutou com palavras Nietzsche. Não é em vão que este,

bem como muitos “filhos” da fenomenologia, referia-se a Heráclito como a atitude filosófica

esquecida que deveria ser resgatada.

Em busca da relação entre a consciência autônoma em si mesma e o real, a filosofia

abriu os olhos para analisar a linguagem. A filosofia contemporânea é, em grande parte,

resultado desta ruptura nascida no século XIX, pois nem racionalistas nem empiristas

acreditam que essa busca possa ser feita sem que se dê destaque ao estudo do discurso em si.

Surgiram teorias como a filosofia analítica da linguagem (Fregue), a semiótica (Pierce), o

positivismo lógico (círculo de Viena), o estruturalismo (Saussure), a antropologia linguística

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(Sapir e Whorf) e a teoria gerativa de Chomsky. A obra de Wittgenstein, teórico da Filosofia

da Linguagem, é um exemplo bastante representativo deste momento (diz-se com frequência

que a própria teoria dos protótipos corresponderia a uma visão linguística da proposta

epistêmica de Wittgenstein, que refutaria a visão aristotélica de categorização)28.

Não é, portanto, tão ousado propor um elo entre muitas teorias científicas hoje (teoria

dos protótipos ou relatividade geral) e a filosofia do século XIX com seu movimento de

ruptura com o racionalismo e buscar novas alternativas de pensamento. Como este debate não

é o objetivo central do presente trabalho, aqui daremos vida também a essa separação; e

partiremos para uma análise linguística mais prototípica. Imagino que aqui surja diante do

leitor uma pergunta inevitável: se o funcionalismo e o gerativismo são reflexos de

perspectivas filosóficas de bases diferentes, como – depois disto postulado – podemos nos

afastar do debate filosófico? A resposta é bastante simples: afirmar qualquer coisa além do

que já foi dito seria não só um trabalho hercúleo como também um trabalho duvidoso – pois

(i) os paradigmas linguísticos citados possuem pressupostos teóricos incompatíveis, e (ii) cada

vez mais a metodologia linguística se afasta do discurso filosófico.

É importante, porém, que o leitor deixe essa discussão com uma pergunta a ser discutida

ao longo do trabalho: o que significa a língua mudar em uma direção? Significa, acima de

tudo, a possibilidade de o pesquisador não só identificar na língua real e em constante

mudança uma regularidade, mas também dar a esta regularidade na mudança o peso de sua

teoria; e não optar pela postura, também valida – porém divergente – de observar a língua

como uma entidade abstrata cuja mudança nada mais é do que um acidente histórico. Foi

                                                                                                               28 É preciso tomar cuidado com este tipo de afirmação, por diversas razões. Mas, o mais importante e o mais perigoso aspecto de se fazer uma ponte entre linguística e filosofia da linguagem é que elas não são a mesma coisa. Há, além de muitas diferenças, uma diferença fundamental: enquanto a primeira busca estudar o real (a linguagem humana) pautada num determinado método científico; a segunda busca, como toda atividade filosófica, estudar um modo específico de considerar o real, sendo este real, no caso, a relação entre mundo e linguagem (Marcondes: 2000).

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tendo em mente a postura epistemológica que se implica ao adotar a vertente funcional da

linguística que tomamos esta decisão. Do ponto de vista mais especificamente linguístico, esta

discussão nasce com o nascimento da linguística em si, e se estende ao longo de toda a

historia desta ciência.

A linguística funcionalista vê a estrutura gramatical das línguas como um reflexo do ato

da comunicação como um todo. A gramática funcional não descarta a situação da

comunicação, os participantes e as suas intenções comunicativas. Embora assim como

Chomsky e Saussure, a linguística funcional divide a língua em gramática e discurso,

considera as regularidades daquela como provenientes deste, ou seja, do próprio uso da

língua, e também de pressões cognitivas que nele se manifestam. A vertente funcionalista da

linguística vê a língua pelo seu caráter dinâmico, prevendo, portanto, a mudança. Mas não

apenas observa a mudança, como também procura nela padrões de regularidade. A gramática

influencia o discurso e o discurso influencia a gramática. Como na filosofia de Heráclito, a

mudança é uma forma de permanecer (através da revelação) e de ir embora (através do

rompimento). Neste sentido, ao buscar detectar a mudança gradual na posição dos advérbios e

detectar seus ganhos semânticos ao longo do processo de gramaticalização, estamos partindo

em busca de uma regularidade na mudança; estamos simplesmente esperando o inesperado.

Não queremos aqui, de modo algum, colocar duas correntes linguísticas frente a frente

e afirmar que uma está ultrapassada enquanto a outra segue no “caminho verdadeiro”. O

objetivo desta pequena comparação é deixar claros os pressupostos básicos que uso no

presente trabalho, já que nem todos os pressupostos linguísticos são compartilhados entre

teorias.

Acrescento ainda que a linguística gerativa teve um papel fundamental na construção

da linguística contemporânea, inclusive nas análises funcionalistas, em grande parte por

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somar à adequação descritiva da linguística saussureana, uma grande adequação explicativa.

Para os estudos da linguagem de tradição formalista, a linguística não deveria se preocupar

com as dimensões sócio-política ou normativa; mas sim com os estados mentais que

corresponderiam a saber uma língua, abstraindo as diferenças entre os falantes. A partir da

célebre criação da imagem de um falante ouvinte ideal em uma comunidade homogênea, os

estudos da linguagem poderiam transcender as questões de variação, cujas razões seriam

extralinguísticas, e poderiam ser semelhantes aos estudos da mente humana de forma geral:

baseados em leis necessariamente universais. Portanto, ao afirmar que o objeto de estudo do

linguista é a competência, e não o desempenho; os estudos gerativos se contrastam

drasticamente com os estudos funcionalistas, cujo maior objeto de estudo é a relação entre a

gramática e o discurso.

Definindo o principal papel da linguagem como sendo a comunicação; os

funcionalistas vêem a gramática como um conjunto de regularidades decorrentes das

habilidades cognitivas e interativas dos homens, bem como da ritualização ou automatização

das estratégias que aparecem com alta frequência no discurso. O discurso, por sua vez, é

caracterizado como o uso da língua em situação real de comunicação, sendo ele o responsável

por impulsionar as habilidades cognitivas e interativas que se ritualizam ou automatizam

construindo a gramática e otimizando a comunicação.

O que pretendo ter deixado claro com este pequeno debate sobre os vácuos de poder

ao longo da história da filosofia é que toda pesquisa está necessariamente vinculada a algum

entendimento do que é fazer ciência e, consequentemente, a definição que o cientista tem o

seu objeto de estudo, no nosso caso, a língua, influencia sim nos resultados e conclusões de

nossas pesquisas. O que podemos fazer? Podemos (i) jogar a toalha e desistir pois a verdade é

inacessível, ou (ii) ignorar a base filosófica de nossas escolhas e achar ver a verdade em um

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universo em que outras teorias não teriam valor ou, (iii) neste caso, a minha escolha, tomar

consciência da postura cientifica que adotamos e dividi-la com o leitor, para que este possa

optar seguir ou refutar.29

3.2. A corrente funcionalista

Um conhecido marco considerado como o nascimento da linguística moderna é o

Cours de Linguistique Générale de Saussure, em que a língua é vista como um sistema.

Saussure, ao propor a distinção entre Langue e Parole e objetivar estudar somente a langue,

restringiu a análise linguística a uma “rede de dependências internas em que se estruturam os

elementos da língua”.30 As influências de cunho pragmático-discursivos a que as línguas

estariam sujeitas não seriam, portanto, objeto de estudo da linguística.

Herdeira da visão saussuriana, a escola estruturalista da linguística não foi, porém, um

movimento unificado. Dirven e Fried (1987, apud Martelotta e Areas 2003) afirmam que

poder-se-ia dividir esses modelos teóricos em um pólo funcionalista - cuja análise se basearia

no estudo da função linguística no ato da comunicação - e um pólo formalista - cuja análise se

basearia no forma linguística.

Sobre o pólo formalista, podemos dizer que se caracterizaria, principalmente, por

tomar a língua como um objeto autônomo cuja estrutura independe de seu uso em situações

comunicativas reais. Nesta linha teórica se enquadra a obra de Bloomfield, por exemplo,

assim como a tão conhecida, e posterior, teoria gerativa de Chomsky a que nos referimos em

seções anteriores do trabalho.

                                                                                                               29 Essas três posturas foram traduzidas por Poincaré (1995) nas posturas do nominalismo (a ciência é feita apenas de convenções), do anti-intelectualismo (a inteligência deforma tudo o que toca) e no anti-ceticismo (se considera a inteligência como irremediavelmente impotente, é apenas para reservar o papel mais importante a outras formas de conhecimento). 30 Martelotta e Areas (2003)

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O pólo funcionalista, por sua vez, se caracteriza por uma concepção da língua como

um instrumento de comunicação. Segundo Martelotta e Areas (2003), a postura do pólo

funcionalista é identificada em diversos autores de escolas pós-saussurianas da Europa do

século XX, como Martinet, Trubetzkoy, Halliday e Dik. Nos Estados Unidos, por sua vez,

houve uma grande dominação da tendência formalista, embora alguns autores como

Langacker e Lakoff, que aderiram à Linguística Cognitiva, caminham em sentido a uma

análise mais funcional. Primeiramente, precisamos nos atentar para algumas áreas da

linguística, como os estudos de mudança diacrônica, que denunciavam as limitações dos

modelos teóricos da gramática gerativa. Destaca-se o nome de Elizabeth Closs Traugott, que

buscando alternativas teóricas mais adequadas aos fenômenos de mudança linguística, adota a

teoria da gramaticalização, focalizando os aspectos semântico-pragmáticos da mudança.

A teoria da gramaticalização, como veremos mais adiante, supõe que as formas

linguísticas são extensões de usos de outras formas devido a processos unidirecionais de

mudança motivados pelo uso e por fatores de ordem cognitiva. Ou seja, a língua não vista

como autônoma e arbitrária, como havia colocado a linguística formal.

A obra de Gillian Sankoff e Penélope Brown, publicada em 1976, é considerada como

um marco do surgimento dos trabalhos funcionalistas nos EUA. Em “The origins of syntax in

discours: a case study of Tok Pisin relatives”, as autoras conferem às motivações discursivas

o surgimento de estruturas sintáticas de relativização de um pidgin de Papua-Nova Guiné.

Outra obra de importância relevante para o surgimento da postura funcionalista é a publicação

de Givón, em 1979, do livro “From discourse to syntax: a grammar as a processing

strategy”, em grande parte motivado pelas descobertas acima mencionadas e, também, pela

bandeira “anti-gerativista” necessária para afirmar uma postura diferente à dominante na

academia naquele tempo.

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O termo funcionalismo ganhou força nos Estados Unidos a partir da década de 1970, passando a servir de rótulo para o trabalho de linguistas como Sandra Thompson, Paul Hopper e Talmy Givón, que passaram a advogar uma linguística baseada no uso, cuja tendência principal é observar a língua do ponto de vista do contexto linguístico e da situação extralinguística. De acordo com essa concepção, a sintaxe é uma estrutura em constante mutação em consequência das vicissitudes do discurso. (Martelotta e Areas, 2003)

O presente trabalho, por dever muito (senão quase tudo!) à teoria da gramaticalização,

se filia ao que costumamos chamar de funcionalismo norte-americano de base givoniana;

citando frequentemente autores como Traugott, Hopper, e Thompson. Evidentemente este

nome traz consigo limitações geográficas que não se justificam e, dentro desta mesma linha

teórica, encontram-se grandes autores também caríssimos ao trabalho, mas de diversas

origens, como Hummel, Heine, Kouteva, entre outros. Hoje, pode-se ainda dizer que parece

haver uma tendência nas academias de desfazer as dicotomias entre os paradigmas, o que se

evidencia, por um lado, no novo papel dos sistemas de interface do novo modelo gerativista e;

por outro lado, na tendência dos funcionalistas de se inserirem no que chamamos de

Linguística Baseada no Uso. Esta última, que contemplaria não apenas os estudiosos do

funcionalismo da costa oeste dos Estados Unidos ou seus “filiados” da Europa, mas também

importantes autores da Linguística Cognitiva como Tomasello e Goldberg. A presente

dissertação adota, portanto, esta terminologia mais ampla, e assim se insere nos modelos de

linguagem baseados do uso.

3.3. A teoria da gramaticalização

Hopper e Traugott (2003) chamam a atenção para duas questões bastante pertinentes

na linguística atual: qual a relação entre as duas instâncias do verbo go na sentença 16 e; o

que faria com que 17a e 17b fossem possíveis, mas que 18 fosse agramatical?

(16) Bill is going to go college after all.

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(17) a. Bill is going to college after all. b. Bill is gonna go to college after all. (18) * Bill’s gonna college after all.

Uma primeira resposta seria perceber que o verbo auxiliar expressando futuro

imediato deriva historicamente do verbo de movimento go em um contexto extremamente

específico. A metáfora do tempo como “um objeto pelo qual nós passamos” é bastante

frequente translinguisticamente, (Lakoff e Johnson , 1980); bem como muitas são as línguas

que desenvolvem uma construção de futuro cujo verbo auxiliar é oriundo do verbo de

movimento ir.

Não podemos, portanto, supor que as duas ocorrências de go em 16 sejam apenas

palavras que “coincidiram” de ter a mesma forma, nem tampouco podemos acreditar que

sejam exatamente a mesma palavra, já que se comportam de formas diferentes (17a, 17b e

18).

Analogamente, muitos são os casos em que advérbios de valor mais referencial, em

geral modificadores do predicado; passam a assumir valores mais abstratos, modificando toda

a oração. Moraes Pinto (2008) observou, ao analisar textos do português arcaico, que o

advérbio certamente permitia um valor qualitativo, ligando-se ao verbo (19); mas que ao

distanciar-se do verbo sintaticamente distanciava-se também do verbo semanticamente,

passando a imprimir um grau de certeza do autor sobre o fato descrito, modalizando toda a

oração (20).

(19) Çarrada a vista da [carne per ciguydade, a outra vista da] alma mais certamente chegua ao Senhor Deus (20) E tam bem se faz por o que sabemos que se aconteceo em algũũ feito, penssarmos o que se pode fazer em outro, ainda que nom sejam semelhantes. E o receo que vem nas cousas per tal parte, nunca traz erro; por que a rrazom sempre manda fazer o que bem he, e recear todo contrairo. E sse recearmos o que nom he de temer, certamente nom se faz per aazo da

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rrazom, mais per myngua de sabermos o que he bem, ou nom querer obrar o que dereitamente entendemos. Da mesma forma como em 19 e 20 podemos ver um advérbio se tornar um outro tipo

de advérbio na história da língua, é possível também que o advérbio sofra decategorização, ou

seja, mude de classe gramatical. Observemos o exemplo do item francês autrement, que em

21 é um advérbio de modo, expressando “pensar de outro modo”; enquanto em 22, mais

gramaticalizado, é uma conjunção que indica adversidade.

(21) Toi, tu penses qu’il n’y a que l’argent qui compte. Moi, je pense autrement.31 TRAD: Você, você pensa que só o dinheiro conta. Eu, eu penso de outra forma. . (22) Je prends toujours des notes pendant le cours. Autrement, j’oublie ce que le professeur a dit.32 TRAD: Eu faço sempre anotações durante o curso. De outra forma/ Caso contrário, eu esqueço o que o professor disse.

Esta análise permite a compreensão dos chamados “advérbios ambíguos” sem colapsar

a teoria já que, uma forma mais gramaticalizada da construção (22) pode coexistir na língua

com a sua forma menos gramaticalizada (21).

3.3.1. Uma proposta para os estudos de gramaticalização

Antes de nos concentrarmos nos processos de gramaticalização que envolvem os

advérbios estudados neste trabalho, passemos por uma pequena propedêutica para os estudos

de gramaticalização.

O termo gramaticalização foi introduzido por Meillet em 1912 (apud: Heine, 1991),

quando este argumentou a favor da existência de dois tipos de surgimento para novas formas:

a inovação analógica e a gramaticalização. Antes disso, porém, outros teóricos já haviam

                                                                                                               31 Cours de civilisation française de la Sorbonne. 32 Idem.

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percebido que o vocábulo abstrato é historicamente derivado de lexema concreto (Condillac e

Rousseau, apud: Heine 2003) e que flexões verbais derivam-se de palavras independentes

(Condillac, apud: Heine, 2003).

Givón, na década de 70, inovou os trabalhos de gramaticalização elevando-a o

conceito de simples parte da linguística diacrônica para o status de um processo contínuo:

discurso > sintaxe > morfologia > morfofonêmica > zero > discurso. Na década de 90,

surgiram inúmeros trabalhos em gramaticalização. Heine (1991) descreve o processo a partir

de conceitos originais (source concepts) que dão origem a elementos mais abstratos. Desta

forma, por exemplo, partes do corpo se tornam fontes para metáforas (Ele é o cabeça do

grupo).

Uma das questões que estão no cerne da teoria da gramaticalização é o aspecto

unidirecional do fenômeno (a questão da unidirecionalidade do processo de gramaticalização

será mais amplamente discutida em outras seções do trabalho). Acredita-se que o processo se

dê do concreto para o abstrato e do léxico para a gramática, e não ao contrário. Hopper e

Traugott (2003) chegam a definir gramaticalização como um processo de mudança linguística

através do qual itens lexicais e construções passam a assumir funções gramaticais, ou

elementos gramaticais passam a exercer funções ainda mais gramaticais. Assim, no caso da

construção com o verbo go indicando futuro em inglês (exemplos 16 a19 da seção 3.3), não

seria o verbo go que teria se gramaticalizado, mas sim toda a construção be + go + ing + to

no contexto [verbo de movimento + progressivo + cláusula indicando finalidade] (Bybee,

2003).

O processo de gramaticalização evolveria quatro mecanismos (Heine: 2003; Heine e

Kuteva, 2005): dessemantização (perda de conteúdo semântico), extensão (uso em novos

contextos), decategorização (perda de propriedades características das formas fontes) e erosão

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(redução fonética). Mesmo nenhum desses processos sendo específicos da gramaticalização,

eles podem ser vistos como componentes de um único processo geral de mudança linguística.

Este processo geral de mudança linguística, a gramaticalização, passa por três

estágios: (i) uma expressão linguística A é recrutada para cumprir gramaticalização, (ii) esta

expressão adquire um segundo padrão de uso B, que apresenta ambiguidade em relação a A, e

(iii) A se perde e agora há apenas B. Assim, poderíamos inferir sobre nossos exemplos de 12

a 15 (ver seção 2.3): I’m going to London to marry Bill. > I’m going to (London) to marry

Bill. > I’m going to marry Bill > I’m gonna marry Bill.

Este padrão (A > A, B > B) não é obrigatório para todos os processos de

gramaticalização. Muitos deles não chegam a (iii). Assim, algumas vezes, enquanto uma

forma se mantém gramaticalizada em alguns contextos, mantém sua forma de origem em

outros contextos, o que explica a gramaticalidade de 13b e a agramaticalidade de 14 (ver

seção anterior).

Quando um item se gramaticaliza, é normal que se torne mais frequente (Hopper e

Traugott, 2003). Bybee (2003) nos chama a atenção, porém, para o fato de que a frequência

não é apenas um resultado da gramaticalização, mas também é um fator que contribui para o

processo. Retornando ao nosso exemplo 12, dentre as várias construções com verbos que

expressam movimento e poderiam expressar propósito, só a construção com go se

gramaticalizou e isso se deu, segundo a autora, devido à alta frequência deste item verbal.

Os advérbios qualitativos em -mente perdem a sua frequência ao longo dos séculos no

português atual. Uma pesquisa informal33 por advérbios em -mente em diferentes sites de

busca atuais (como Google ou Bing) demonstram que os pouquíssimos advérbios em -mente

qualitativos que se encontram hoje no português atual estão condicionados a títulos e não ao

                                                                                                               33 O que chamamos aqui de pesquisa informal é somente para indicar ao leitor a origem destas hipóteses. A confirmação destas é feita com maior rigor a partir de um corpus específico do francês e do português atuais, obtidos nos sites Vie de Merde e Vida de Merda, dos quais falaremos mais adiante.

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corpo do texto. Em francês, por sua vez, embora sejam mais raros do que muitos outros tipos

de advérbios, eles aparecem com uma maior frequência, como veremos adiante.

3.3.2. Gramaticalização entre cláusulas

O discurso não consiste de frases isoladas sem contexto, mas sim de unidades

interligadas, que compreendem diversas atividades linguísticas, como comentário, descrição,

ordem e outros. Essas unidades são geralmente expressas em cláusulas e todas as línguas

naturais têm mecanismos para organizá-las em cláusulas mais complexas. Porém, a forma de

uma “cláusula complexa” pode mudar radicalmente entre línguas ou entre falantes e situações

discursivas de uma só língua, de simples justaposições relativamente independentes a

construções complexas e dependentes (Hopper e Traugott, 2003).

Muitos estudos de cláusulas complexas sugerem uma forte distinção entre

coordenação e subordinação. Esta distinção, bastante tradicional, é a encontrada atualmente

nas nossas gramáticas, em diversas línguas, como francês, português, inglês e outras. Esta não

é a visão que adotaremos aqui. Mas, para estudarmos as clausulas complexas, precisamos

definir esses tipos de construções.

Se fossemos definir sintaticamente a cláusula complexa, poderíamos dizer que se trata

de uma unidade composta por mais de uma cláusula. Segundo Hopper e Traugott (2003), a

cláusula complexa consiste de uma “nuclear” e uma ou mais nucleares adicionais ou uma ou

mais cláusulas “marginais”, relativamente dependentes, que não podem aparecer sozinhas,

mas que exibem diferentes graus de dependência. Os autores argumentam ainda que essas

cláusulas marginais podem ser diferenciadas por um aspecto semântico: as que funcionam

como complementos, as que funcionam como modificares de nomes, e as que funcionam

como modificadores do sintagma verbal ou de toda proposição. Seriam, respectivamente, o

que as gramáticas tradicionais brasileiras chamam de subordinadas substantivas, adjetivas e

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adverbiais; e as francesas de propositions subordonnées complétives, propositions

subordonnées relatives e propositions subordonnée adverbiales; respectivamente.

Hopper e Traugott (2003) propõem que uma cláusula possa ter três níveis de

encaixamento: a parataxe, a hipotaxe e a subordinação - correspondendo esta ordem a uma

disposição crescente deste nível de encaixamento.

Figura 3: Combinação de traços dependência e encaixamento, segundo Hopper e Traugott, 2003.

Ao estabelecer estes três níveis de encaixamento, Hopper e Traugott (2003) rompem

com a visão bipartida do encaixamento entre clausulas e inovam com uma visão tripartida. A

“parataxe” configuraria uma relativa independência; a hipotaxe uma interdependência; e a

subordinação, uma dependência completa. De acordo com os autores, podemos inferir uma

trajetória de gramaticalização em direção a estruturas mais encaixadas (parataxe > hipotaxe >

subordinação), sendo a subordinada mais gramatical que a hipotaxe e esta mais gramatical

que a parataxe.

Devemos nos atentar agora para um outro fator: existe uma relação entre o nível de

gramaticalização da cláusula e, por um lado, seus aspectos formais e, por outro, suas

características informacionais. No que diz respeito a questões de ordem formal, podemos

pensar, como vimos, no nível de encaixamento entre as cláusulas. A parataxe, ou

independência relativa, não é nem dependente semanticamente nem encaixada (engloba os

casos tradicionalmente chamados de justaposição e coordenação); a hipotaxe ou

interdependência é a situação em que cláusulas são dependentes, mas não são encaixadas

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(casos tradicionalmente conhecidos como subordinação adverbial e as adjetivas explicativas);

a subordinação ou encaixamento é a situação em que há dependência e encaixamento entre

cláusulas (que englobam casos tradicionalmente conhecidos como subordinadas substantivas

e as adjetivas restritivas).

De acordo com Givón (1979), existe uma maior liberdade e variedade de elementos

significativos nas cláusulas em que a complexidade pressuposicional é baixa. Desta forma, a

cláusula principal, declarativa, afirmativa, ativa é vista pelo falante (comparada a outros

tipos de cláusula) como menos difícil para o seu ouvinte determinar as referências. Givón

afirma que as variantes mais pressuposicionais exibem maior complexidade sintática, maiores

restrições distribucionais e tendem a exibir um maior conservadorismo sintático (mais

comumente na área da mudança de ordenação). Afirma também que a cláusula de menor

pressuposicionalidade é a mais neutra e a mais frequente no discurso. Outros autores, como

Matsuda (1998) e Bybee (2002) também demonstraram o caráter conservador das cláusulas

subordinadas.

Estas informações são caras a este trabalho já que, somadas, levou pesquisadores

como Martelotta (2004; 2005; 2006), Martelotta e Vlcek (2006) a proporem que as cláusulas

gramaticalizadas – que seriam mais restritas distribucionalmente e mais complexas

sintaticamente (Givón, 1979) – tendem a ser mais conservadoras, apresentando as tendências

de distribuição dos advérbios qualitativos, entre eles os advérbios em -mente, mais antigas, e

uma maior resistência à mudança.

Como cláusulas interrogativas, negativas e passivas são muito pouco frequentes na

língua, a hipótese do maior conservadorismo sintático parece ser mais facilmente estudada na

oposição entre clausulas mais gramaticalizadas (hipotaxe e subordinação) e menos

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gramaticalizadas (principais, justaposições e coordenações), para a qual nos baseamos na

explicada proposta de Hopper e Traugott (2003).

Antes de passarmos a questão de como essas hipóteses se aplicam especificamente à

questão dos advérbios, pensemos um pouco mais na questão da pressuposição, que será

revisitada ao longo do trabalho. Por pressuposição entendemos o conjunto de informações que

estão fora da sentença e que são assumidas pelo falante como evidentes ou indiscutíveis, ou

seja, o pressuposto tende a refletir o conhecimento presumido como conhecido ou

compartilhado. Segundo Givón (1979), construções mais pressuposicionais tenderiam a

apresentar ordenação mais conservadora dos elementos argumentais. Martelotta (2005; 2006)

estende esse raciocínio para analisar as características de ordenação de elementos gramaticais

apontando para o fato de que o nível de encaixamento ou gramaticalização da cláusula tem

influência sobre as tendências de ordenação de advérbios qualitativos. O português arcaico

caracteriza-se por uma variação na colocação dos advérbios, ou seja, apresenta advérbios

qualitativos nas posições pré e pós-verbais em todos os tipos de cláusulas, com uma

predominância para a anteposição do advérbio, sobretudo em clausulas mais gramaticalizadas.

Por outro lado, textos a partir do século XIX apresentam cada vez menos anteposições de

advérbios, que ficam cada vez mais restritas a cláusulas mais gramaticalizadas. Isso sugere

que, de fato, os parâmetros de pressuposicionalidade podem também ajudar a descrever

mudanças no comportamento diacrônico dos advérbios, no que diz respeito à sua ordenação.

Givón (1990) ainda nos acrescentaria que a redução das subordinadas refletiria um nível

maior de integração. Desse modo uma estrutura como quero falar é, por apresentar o segundo

verbo na forma reduzida, mais gramaticalizada do que a estrutura quero que ele fale.

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3.3.3. Gramaticalização e unidirecionalidade

Martelotta (2010) aponta para a importância da propriedade unidirecional da

gramaticalização, chamando a atenção para os chamados casos de degramaticalização e anti-

gramaticalização. Enquanto fenômenos de degramaticalização seriam aqueles em que

acontecem movimentos inversos ao de gramaticalização, como a palavra inglesa bus, oriunda

da terminação característica do dativo plural latino de omnibus; isso não constituiria um

argumento de enfraquecimento da gramaticalização como fenômeno translinguístico

recorrente. Contra-exemplos como esse, arduamente garimpados pelos estudiosos contrários à

teoria, confirmam a importância da hipótese devido não só ao seu baixíssimo número de

ocorrências, mas também devido ao fato de que não seriam casos em que se daria uma

reversão do movimento ou antigramaticalização, nos termos de Haspelmath (2004), visto que

é impossível recuperar um sentido que já se perdeu.

Repare que assumimos aqui a visão da teoria da gramaticalização como uma teoria do

desenvolvimento de formas gramaticais, e não como uma teoria da linguagem ou da mudança

linguística (Heine: 2003, apud: Martelotta, 2010). Esta informação é importante pois nos

permite colocar a gramaticalização lado a lado com outros processos de mudança linguística,

como a lexicalização por exemplo.

O que daria, então, à teoria da gramaticalização esta possibilidade de tão bem

descrever alguns fenômenos de mudança linguística? Em grande parte o caráter unidirecional

do processo de gramaticalização e o fato de não ser abrupta, mas sim um processo gradual

com passos variáveis. Em outras palavras, ao afirmar que uma mudança é unidirecional

estamos afirmando que ela não é arbitrária, mas que segue uma trajetória que se evidencia

devido a determinadas motivações funcionais ou cognitivas; e, ao afirmar que este processo é

gradual e com passos variáveis, estamos afirmando que não se trata de uma mudança de

parâmetro decorrente, por exemplo, de uma interpretação alternativa dos dados pela criança

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em processo de aquisição. Martelotta (2010) nos chama a atenção para o fato de que “embora

as crianças tenham seu papel no processo de mudanças, muitos exemplos de gramaticalização

parecem ser iniciados por adultos”.

Esta unidirecionalidade em “passos lentos” pode se dar em mudanças fonéticas

(Hopper e Traugott: 2003, Haspelmath: 2004) ou, como nos interessa mais para o presente

trabalho, em uma regularidade na mudança semântica em geral, não apenas nos processos de

gramaticalização (Traugott e Dasher: 2005, Heine e Kuteva, 2005). Se retomarmos dois dos

quatro mecanismos da gramaticalização, veremos como essas unidirecionalidades são

evidentes nos fenômenos estudados: enquanto a erosão fonética se caracteriza pela perda de

substância fonética, a dessemantização se caracterizaria por uma perda de valor

representacional dos elementos envolvidos - que adquirem função de natureza pragmático-

discursiva.

Atentemo-nos para a unidirecionalidade na mudança semântica. É comum advérbios

de modo adquirirem, ao longo da história da língua, valor de modalizador, como em 23 e 24,

mas não se conhece um caso contrário, em nossos dados para este advérbio nas análises do

português.

(23) Eufis felismente aminha Viagem ecomo medei bem nella ja / estou anciozamente suspirando pela a tornar arepetir paraese / Continente; (...)34 (24) Felizmente, o incidente foi resolvido da melhor forma (…) 35

Para bem compreendermos o exemplo acima e o caráter unidirecional que a sua

análise nos informa, precisamos nos concentrar em analisar separadamente o exemplo 23 e o

exemplo 24, como duas “fotos” estáticas, mas não podemos nos esquecer de que estudamos

um processo dinâmico de mudança linguística.

                                                                                                               34 PHPB-RJ, Documentos da Administração Privada (séc. XVIII) 35 Ciência Hoje online, 2007

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No exemplo 23, vê-se um advérbio qualitativo, que contém diversos traços típicos36

das definições de advérbios (função predicativa que atua sobre a ação verbal). O advérbio

qualitativo em -mente prototípico tem função predicativa de modificar outro elemento da

sentença e se relaciona semanticamente com a ação verbal, fornecendo informação referencial

sobre a cena. Logo, em função de outras ocorrências semelhantes encontradas nos corpora,

assumimos que o advérbio felismente apresenta, no exemplo 23, valor qualitativo, indicando o

modo como se deu ação do verbo que modifica (fazer de modo feliz). Esse uso não existe

atualmente, visto que hoje o advérbio felizmente hoje é um advérbio modalizador (24).

Os advérbios a que chamamos de modalizadores (epistêmicos, deônticos, afetivos e

pragmáticos) têm em comum algumas características prototípicas, como o fato de serem

predicativos, pois modificam a proposição; serem sentenciais, pois não modificam somente a

ação verbal, mas todo o conteúdo transmitido na sentença; e, o mais importante, são

intersubjetivos, pois seu uso não está veiculado à descrição da cena, como com os

qualitativos, mas à atitude do falante acerca daquilo que diz diante de seu interlocutor, ou

seja, esses advérbios refletem um posicionamento avaliativo do falante em relação àquilo que

fala: o advérbio epistêmico reflete o modo como o falante vê o mundo, o advérbio deôntico

reflete a visão de uma inevitabilidade entre fatos; o advérbio afetivo é ainda mais subjetivo,

pois indica o sentimento que o falante tem a respeito da proposição; e o advérbio pragmático

tem uma natureza inter-subjetiva, pois reflete uma preocupação do falante com a recepção que

o ouvinte fará da proposição. No exemplo 24, o advérbio revela como o falante se sente

                                                                                                               36 Assumimos em nossa análise que o advérbio qualitativo é o tipo mais representativo da categoria dos advérbios em –mente. Esta assunção traz a tona a questão já colocada no presente trabalho acerca da discussão se existe ou não um “centro” das categorias linguísticas. Afirmar a existência deste centro seria ou (i) afirmar a existência de uma essência de ser das coisas ou (ii) afirmar que o conhecimento humano cria um centro para referência da organização do mundo objetivo em categorias. Assumimos a segunda hipótese, baseados na asserção de Tomasello (2003), de que a aquisição e estruturação das categorias linguísticas em paradigmas é resultado da observação que os usuários fazem de seus traços semânticos, dos seus papéis na comunicação, e de suas características estruturais.  

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acerca daquilo que fala: ele está feliz porque não houve complicações na resolução do

incidente.

Vlcek e Martelotta (2009) ressaltam o fato de que advérbios modalizadores são

sentenciais, e não verbais (como os qualitativos), pois modificam o conteúdo transmitido no

nível da sentença. A relação dos advérbios modalizadores e dos qualitativos se torna bastante

clara se pensarmos no fenômeno com um olhar diacrônico e unidirecional: alguns trabalhos

de linguística histórica (Moraes Pinto: 2008, Vlcek e Martelotta: 2009) parecem indicar que o

surgimento de advérbios modalizadores se dá em um processo em que advérbios qualitativos

deixam de funcionar no nível sintático e ampliam seu escopo para o discurso, o que é

conhecido como a trajetória advérbio interno à cláusula > advérbio sentencial > marcador

discursivo (Traugott e Dasher: 2005; Traugott, 1995).

A trajetória advérbio interno à cláusula > advérbio sentencial se verifica, por exemplo,

com determinados advérbios qualitativos em -mente, que desenvolvem valores modalizador

de atitude epistêmica (ex.: certamente), modalizador de atitude proposicional (ex.: felizmente)

e modalizador de atitude pragmática (ex.: francamente), entre outros - a trajetória contrária

não é, por sua vez, verificada em línguas naturais!

É importante destacar que essa diferença de valores dos itens em estudo implica

colocações diferentes. Esse é um dos aspectos que apontam para a importância da teoria da

gramaticalização (Traugott e Dasher: 2005) na elaboração da pesquisa proposta.

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4. METODOLOGIA E CORPUS

4.1. As variáveis utilizadas

As ocorrências dos advérbios estudados foram analisadas tanto pela posição que

ocupam na cláusula, como pelo grau de gramaticalização da cláusula em que aparecem.

4.1.1. As Posições observadas:

Em relação ao verbo que possuem como alvo, a distribuição dos advérbios estudados

pode se dar em três diferentes posições:

4.1.1.1. Posições pré-verbais:

a) Advérbio + Verbo (AV)

(25) Dezejarei queV ossam ercê esteja mais convalecido, equetenha todas / Aquellaz [

espaço] felicidades, queeu muito verdad eira mente lhedezejo.37

4.1.1.2. Posições pós-verbais

a) Verbo + Advérbio (VA):

(26) (...) dequoy ils furent tellement indignez, qu’ils l’ont fait mourir cruellement, Le corps a esté porré par la Ville, (...). 38 TRAD: (…) com o que eles ficaram tão indignados, que o fizeram morrer cruelmente, O corpo foi trazido/apodrecido pela cidade, (…)

b) Verbo + X + Advérbio (VXA)

(27) Estimarei queDeos Guarde aVossaMerce felismente por muitos annos. Registro

deCuritiba 12 deOutubro 15 de 1794 [ espaço] [ espaço] Devossamerce Amigo eaffetuozo

Criado. 39

                                                                                                               37 PHPB- RJ, séc. XVIII, documentos particulares, nº5 38 GALLICA, XVII – previamente apresentado como exemplo 01. 39 PHPB-RJ, séc. XVIII, Cartas comum II-35,25,32

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4.1.2. O grau de gramaticalização da cláusula

Como discutido na revisão da literatura, o grau de gramaticalização da cláusula pode

inferir na tendência de ordenação dos advérbios qualitativos em –mente/ment. Hopper e

Traugott (2003), sobre a gramaticalização entre clausulas, afirmam que podemos pensar em

um nível de encaixamento entre as cláusulas, a parataxe ou independência relativa, não é nem

dependente nem encaixada (engloba os casos tradicionalmente chamados de justaposição e

coordenação); a hipotaxe ou interdependência é a situação em que cláusulas são dependentes,

mas não são encaixadas (casos tradicionalmente conhecidos como subordinação adverbial e

as adjetivas explicativas); a subordinação ou encaixamento é a situação em que há

dependência e encaixamento entre cláusulas (que englobam casos tradicionalmente

conhecidos como subordinadas substantivas e as adjetivas restritivas). As cláusulas menos

gramaticalizadas seriam mais suscetíveis à mudança do que as mais gramaticalizadas, que

seriam mais encaixadas e, portanto, mais cristalizadas. Em Givón (1990) e Cezario (2001),

encontra-se a proposta de que entre as subordinadas que são mais gramaticalizadas são as

reduzidas, o que nos permite esperar que as inovações mais antigas fiquem não só mais

restritas às clausulas subordinadas e hipotáticas, mas que elas, dentro destas, fiquem mais

restritas às reduzidas.

Os diferentes graus de gramaticalização discutidos se encontram, na análise de dados:

cláusulas menos gramaticais (cláusulas independentes, principais e paratáticas) e mais

gramaticais (cláusulas hipotáticas e subordinadas).

4.2. Os corpora utilizados

Os corpora utilizados para análise do português estão disponíveis em versão

eletrônica pelo grupo Para uma Historia do Português Brasileiro (PHPB-RJ) em seu site –

ainda em construção –, e no site do Estação da Luz e no site do Corpus Informatizado do

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Português Medieval (CIPM). O corpus conta com documentos oficiais, cartas oficiais e

pessoais, cartas da administração pública, de comércio e de militares. Os textos foram escritos

em diversas regiões do Brasil, como Rio de Janeiro, Paraná, Minas Gerais, São Paulo, Bahia,

Pernambuco e Santa Catarina.

Já os textos utilizados para a análise do francês merecem uma pequena reflexão acerca

da historia da língua francesa e de como se formou o francês que conhecemos hoje nos livros

didáticos, nos famosos escritores e nos grandes jornais. O texto mais antigo atribuído à língua

francesa é o juramento de estrasburgo40, de 842; embora sejam mais famosas as chansons de

geste que deram origem à literatura francesa. O ano de 1539 foi decisivo para a história da

língua, quando o rei Francis I criou a ordenança de Villers-Cotterêts, segundo a qual a língua

oficial em textos administrativos e judiciais deixava de ser o latim e passava a ser o francês. O

francês passou também por um outro momento, em que se deu um longo processo de

unificação, regulação o chamado “processo de purificação da língua”, em grande parte

motivado pelo movimento literário da Pléiade.41 A língua francesa oficial é, portanto, o

resultado de um grande controle da Academia Francesa, além dos poderes da padronizada

escola pública desde o período napoleônico característica da cultura francesa. Por estes

motivos, optamos por analisar o francês apenas a partir do século XVII, e não retroceder mais

do que isso; tendo em vista que nosso trabalho não poderia abrir mais um tentáculo de

raciocínio para destrinchar uma longa e não unânime noção do que seria, de fato, a língua

francesa em tempos anteriores a este.

                                                                                                               40 Os conhecidos Serments de Strasbourg são importantíssimos documentos por serem os primeiros escritos a atestar a existência do Français occidentalle (língua que deu origem ao Français d’oïl) e de um dialeto germânico. O documento tratava de uma aliança entre os dois netos de Charlemagne: Charles de Chauve e Louis de Germanique. A escolha das línguas se deu, em grande parte, para garantir o entendimento dos soldados da fidelidade com que estavam se comprometendo. 41 Instituição chamada Academia Francesa que foi criada em 1634 por Richelieu e contava com mais de quarenta membros, cada qual com direito e poder de expressar sua opinião acerca de ordenação, estrangeirismo, e outros assuntos.

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Os dados analisados nos séculos XVII e XVIII do francês foram retirados do corpus

online do site gallica, que dispõe periódicos e revistas de diferentes naturezas, como

literários, jurídicos, de comunicação, políticos e outros. Infelizmente, grande parte dos textos

do século XVII e XVIII não disponibilizavam uma versão digitalizada, então, muitas das

transcrições para caracteres do computador a partir da fotografia do manuscrito ficaram por

minha conta, o que lamentavelmente pode ter causado incorreções.

A análise destes textos antigos, tanto do português como do francês, exige um

conhecimento do estágio atual das duas línguas. Os dados do português atual foram em parte

retirados de diversos trabalhos como Martelotta (2006) e Moraes Pinto (2008) e os do francês

atual foram levantados a partir de diferentes jornais franceses, como Le Monde, Le Figaro e

Le Parisien; e de alguns blogs pessoais da França. Uma análise comparativa entre o português

e o francês atuais foi ainda proposta na dissertação baseando-se em textos do site brasileiro

Vida de Merda e seu correspondente francês Vie de Merde. Ainda sobre alguns dados

utilizados em capítulos anteriores da dissertação, foram retirados de jornais e portais de

notícia e relacionamento brasileiros (como G1 e UOL) ou franceses (já citados). No caso de

alguns exemplos mencionados para contrastar com usos praticamente inexistentes no estagio

atual da língua, algumas poucas vezes recorremos a gramáticas.

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5. Análise de Dados

Comecemos nosso percurso nas análises de dados com a ordenação dos qualitativos

em português, para assim infiltrarmos algumas importantes asserções das seções anteriores do

trabalho no tema proposto. Depois, munidos de um maior entendimento entre a relação da

teoria e dos dados que propomos analisar nesta dissertação, passaremos a uma pequena

análise do francês, a fim de descobrir se o que apontamos para o português também se aplica

para esta língua. Não podemos encerrar análise de dados sem percorrer também pela

polissemia que perpassa a história dos advérbios qualitativos nestas duas línguas, já que as

diferentes ordenações implicam também diferentes usos; lembrando-nos que, aqui mais uma

vez, a análise da língua portuguesa norteará nossas hipóteses, mas a comparação com a língua

francesa nos aponta aspectos translinguísticos das afirmativas anteriores.

5.1. Ordenação dos qualitativos em português

Comparando as diferentes tendências de ordenação dos advérbios qualitativos nas

fases evolutivas do português, Martelotta (2006) demonstra que na fase arcaica advérbios

qualitativos em -mente aparecem tanto em posição pré-verbal como pós-verbal. Exemplos

destes padrões de ordenação ainda podem ser vistos no século XIX, como demonstram os

exemplos de pré-posição (28) e posposição (29) abaixo:

(28) Queirão elles pois | aceitar este publico testemunho de meu reconhecimento, | que mais efficazmente será provado por meu constante | disvelo pela causa do Paraná, (...)42 (29) Agradeço-lhe cordealmen- | te o interesse que tem to- | mado com os meos sobrinhos | não regateando emcomodos e | sacrificios43.

Martelotta (2006) evidencia também que, nas cláusulas mais gramaticalizadas (28)

(hipotáticas e subordinadas), se concentram as ocorrências pré-verbais, enquanto nas menos                                                                                                                42 Paraná, 19 de Dezembro (1855) 43 Carta 14 (1893), In: Cartas identificadas e Cadastradas da Família Loureiro.

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gramaticais, a ordenação seria mais livre. Acrescenta ainda que no português atual,

predominaria uma forte tendência a ocorrências pós-verbais, tanto em mais gramaticalizadas

como em menos gramaticalizadas (30):

(30) A medida que seu estado de saúde piorava, Cazuza trabalhava incessantemente, já

sabendo que o tratamento não poderia estender sua vida por muito mais tempo.44

Pretendemos aqui demonstrar e analisar que esta tendência, típica do português atual

(Martelotta, 2006; Moraes Pinto, 2008), de o advérbio qualitativo em -mente aparecer

posposto ao verbo, é o resultado de uma mudança das tendências de ordenação desses itens

que migram da posição pré-verbal latina para a pós-verbal ao longo dos séculos. A teoria

parte da hipótese de que a mudança teria atingido antes as cláusulas menos gramaticalizadas,

mais suscetíveis à mudança (GIVÓN, 1979; MATSUDA, 1998; BYBEE, 1998) para, somente

depois, atingir também cláusulas mais gramaticalizadas, que são mais conservadoras.

Vale destacar que trabalhos anteriores, como Martelotta (2004) sobre bem e mal,

Benedito (2008) sobre mal e Moraes Pinto (2008) sobre qualitativos em –mente; parecem

indicar que no português arcaico dos séculos XVI e XVII, as posições pré-verbais eram

comuns, o que não se revela no português atual. Alem disso, estas predominavam já nas

cláusulas mais gramaticalizadas, que seriam, por hipótese, mais conservadoras.

5.1.1. Século XVIII

Comecemos com a análise do século XVIII, período em que a mudança ainda não

havia se delineado com tanto rigor na língua, como mencionamos anterioremente e como

                                                                                                               44 JB online (2005)

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demonstraremos mais adiante. A tabela abaixo demonstra a distribuição dos qualitativos em -

mente em textos do século XVIII:

SÉC. XVII Cláusulas menos

gramaticalizadas Cláusulas mais

gramaticalizadas TOTAL AV 6 25 31 VA 6 15 35 VXA 0 14

TOTAL 12 54 66

Pela tabela, é possível detectar algumas tendências, como, por exemplo, a relativa

equivalência de ocorrências pré-verbais (46% do total de 66 advérbios qualitativos) e pós-

verbais (54% deste mesmo total). Este equilíbrio aponta para o fato de o século XVIII ser um

século de certo “equilíbrio” de forças na mudança da tendência analisada, que não mais se

configura com predominância de ocorrências pré-verbais (como no latim) nem tampouco com

predominância quase total de pós-verbais (que começa a se configurar no século XIX e se

consagra no português de hoje).

É bastante importante reparar que, das 31 ocorrências pré-verbais, apenas 6 (16%)

ocorreram em cláusulas menos gramaticalizadas (justapostas, principais ou coordenadas);

distribuindo-se as demais pelas cláusulas com maior grau de gramaticalização (hipotáticas e

subordinadas). Este resultado aponta para a confirmação da hipótese mencionada de que a

ordenação mais antiga aparece com mais frequência nas cláusulas mais gramaticalizadas do

que menos gramaticalizadas. Voltaremos a essa hipótese com maior detalhe quando fizermos

uma análise do português ao longo dos séculos.

Após uma primeira visada nos dados, o leitor pode ser levado supor que a presença do

sujeito na posição pré-verbal deslocaria o advérbio para a posição pós-verbal. Digo isto pois,

Tabela 2: Distribuição das posições dos advérbios qualitativos em -mente no português do século XVIII em função dos diferentes tipos de cláusulas.

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em algumas apresentações do desenvolvimento desta pesquisa, esta foi uma válida e preciosa

crítica. Esta proposta que identifica no elemento pré-verbal uma “força” de deslocação do

advérbio para a posição pós-verbal, que pode ser lida também em Mattos e Silva (1989) e

Pádua (1960). Dentro desta visão, a posição pós-verbal do advérbio seria característica da

presença de um elemento antes do verbo:

(31) Eufis felismente aminha Viagem ecomo medei bem nella ja / estou anciozamente

suspirando pela a tornar arepetir paraese / Continente; (...)45

e a posição pré-verbal do advérbio seria característica da ausência de um elemento antes do

verbo:

(32) Com oadiantam ento / daNau pa ra seporpromta afazer asuaviagem, não setem

Retardado / comamolestia doComm andante porq ue o segundo Cap itam deMareGuerra; /

tem com toda[ a]eficacia posivel procurado s[ uprir] aq uela falta, porem / Sem embargo do

[ meu] bando pa ra a partida daNau, edepublicamente / ter dito por m uitas vezes aos

negociantes odia emqueella deve partir, não / temsido posivel entrar nosCofres, nemhumsó

Real, (...)46

Utilizo os dados do século XVIII para verificação desta teoria, pois (i) há maior

quantidade de textos disponíveis do que nos séculos anteriores e (ii) no século XIX, a

mudança nas tendências de ordenação dos advérbios em questão já adquire um delineamento

mais definitivo. Uma análise detalhada dos dados obtidos no século XVIII nos revela, como

demonstra a tabela, com maior nitidez, que a hipótese em questão não se verifica.

                                                                                                               45 Documentos da administração privada 46 idem

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Todos os tipos de cláusula TOTAL

SXAXV 11 11 Anteposição do advérbio mesmo com sujeito

expresso em posição pré-verbal: 11 ocorrências em um universo de 34 pré-

posições, ou seja, 32%. AV 17

23 (Anteposição do advérbio sem sujeito expresso em posição pré-verbal).

AXVXS 3 AXV 1

(V)AV 2 SVXA 7 8 (Pós-posição do advérbio com sujeito

expresso em posição pré-verbal). SVAX 1 VXA 25

27 Pós-posição do advérbio mesmo sem sujeito

expresso em posição pré-verbal: 27 ocorrências em um universo de 35 pós-

posições, ou seja, 77%.

VSA 1 VAXS 1

Tabela 3: Distribuição das posições dos advérbios qualitativos em -mente no português do século XVIII, incluindo informações sobre a presença e ausência de sujeito.

Ao observarmos a tabela47, percebemos que a presença de sujeito anteposto ao verbo

(19 casos) não impede a pré-posição do advérbio em 11 ocorrências.

(33) Dezejarei queV ossam ercê esteja mais convalecido, equetenha todas / Aquellaz [

espaço] felicidades, queeu muito verdad eira mente lhedezejo.48

Ou seja, em apenas 8 casos de sujeito pré-posto ao verbo (40%) o advérbio se encontra

posposto ao mesmo. Da tabela também podemos depreender que 66% (23 casos) das 34

ocorrências pré-verbais se dá com a ausência de sujeito nesta posição. Isso não parece ser

fruto de uma “não ocupação” da posição pré-verbal, mas sim de um maior grau de

encaixamento dessas orações: orações subordinadas tendem a não apresentar sujeito exposto.

Observando os gráficos abaixo, que revelam ilustrativamente uma certa equivalência

entre os percentuais de presença ou ausência do sujeito expresso na posição pré-verbal em

cláusulas com anteposição e pós-posição do advérbio, podemos verificar mais uma vez que                                                                                                                47 As ordenações apresentadas na tabela não fizeram parte da metodologia do trabalho por se tratarem de um pequeno aprofundamento da questão da ordenação dos advérbios qualitativos em –mente, objetivando somente refutar uma hipótese; não sendo esta investigação parte do objetivo central do trabalho. 48 Documentos da administração privada

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não é possível confirmar a hipótese de que a presença / ausência de sujeito ou outro elemento

antes do verbo seja uma variável a ser considerada na ordenação dos advérbios qualitativos

em -mente no período estudado.

Gráfico 1: Relação da distribuição de pré-posições e pós-posições em cláusulas em função da presença ou ausência de sujeito expresso em posição pré-verbal no século XVIII do Português.

O gráfico acima demonstra uma relativa maior presença em termos percentuais de

cláusulas com sujeito expresso nas ocorrências de pré-posição do advérbio (34%) do que nas

de pós-posição (24%); o que já parece apontar para a não confirmação da hipótese da

presença do sujeito como elemento de movimentação do advérbio para a posição pós-verbal.

Porém, esse diferencial percentual é muito pequeno.

Antes de finalizarmos a análise do século XVIII, é preciso mencionar que

encontramos 4 casos, não mencionados na tabela, em que entre o advérbio e o verbo aparecia

um outro elemento. Somando estes casos aos já mencionados VXA, isso representaria um

total de 25% das, agora, 72 ocorrências desses advérbios no século XVIII. Este resultado, se

contrastado com a ausência de ocorrências AXV e VXA dos séculos seguintes do português,

aponta para uma mudança na direção da tendência do português atual, em que os qualitativos

se colocam quase categoricamente ao lado do verbo (normalmente após esse elemento). Os

casos de AXV, diferentemente dos de VXA, não foram mencionados na tabela (nem na

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metodologia) visto que em todos os quatro casos, assim como no exemplo 34, o elemento que

se colocou entre o advérbio e o verbo foi um outro advérbio de modo.

(34) (...) o | dito rapaz Em Seupoder, ao qual dá oSuplicante proptissimaExecuçáo como |

tem obidiente Sudito deVossa Excelencia, em cuja prezença poem ao mesmo tempo |

om[deteriorado o tam ilicito, e impraticavel comque fortiva eviolentamente foi tirado | da

Aldea, edaCazadoSuplicante odito rapaz (...).49

5.1.2. O século XIX

Antes de mais nada, devo repetir mais claramente o que vem sendo levantado em

seções anteriores da dissertação. A análise da ordenação dos qualitativos em –mente em

português é grande devedora e aliada da hipótese de que o século XIX foi o século em que se

concretizaram inúmeras mudanças no português do Brasil. A mudança da ordenação dos

advérbios qualitativos em -mente, que transmutaram da posição pré-verbal típica do latim

para a posição pós-verbal típica do português atual se consolidou, desta forma, neste século.

Principalmente por esta razão, incorporamos a divisão do PHPB-RJ do século em três

diferentes fases e demos procedimento à análise de dados baseando-a, em grande parte, nisto.

As três diferentes fases compreenderiam textos do período (i) de 1808 a 1840, a

primeira fase; (ii) textos de 1841 a 1870, a segunda fase; e (iii) de 1871 a 1900, a terceira e

última fase. As três tabelas abaixo demonstram a distribuição dos qualitativos em –mente em

textos das três fases do século XIX:

                                                                                                               49 PHPB-RJ, séc. XVIII, aldeamento de índios

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Séc. XIX (1808-1840)

Cláusulas menos gramaticalizadas

Cláusulas mais gramaticalizadas TOTAL

AV 1 21 22 (42%)

VA 5 25 30 (57%)

TOTAL 6 (11%) 46 (88%) 52 Tabela 4: Distribuição das posições dos advérbios qualitativos em -mente na primeira fase do século XIX do português.

Séc. XIX (1841-1870)

Cláusulas menos gramaticalizadas

Cláusulas mais gramaticalizadas TOTAL

AV 2 26 28 (38%)

VA 16 29 45 (61%)

TOTAL 18 (24%) 55 (75%) 73 Tabela 5: Distribuição das posições dos advérbios qualitativos em -mente na segunda fase do século XIX do português.

Séc XIX (1871- 1900)

Cláusulas menos gramaticalizadas

Cláusulas mais gramaticalizadas TOTAL

AV 1 6 7 (12%) VA 20 29 49 (87%)

TOTAL 21 (37 %) 35 (62%) 56

Tabela 6: Distribuição das posições dos advérbios qualitativos em -mente na terceira fase do século XIX do português.

Comecemos com a primeira fase. Observando a tabela, mesmo considerando a

quantidade de ocorrências pequena, podemos perceber a tendência a um certo equilíbrio na

distribuição dos advérbios pelas posições pré e pós-verbais (56% de ocorrências pós-verbais e

44% de ocorrências pré-verbais) em 52 ocorrências. É importante destacar que das 22

ocorrências de AV, apenas uma (4,5%) ocorre em cláusula menos gramaticalizada:

(35) Quanto à censura, que nos faz a respeito | do que dissemos sobre os Eleitores nós

cordialmente lhe | agradecemos por isso que não foi da nossa intenção chocar | o melindre

de alguém... 50

                                                                                                               50 PBPB-RJ, Cartas de Redatores, nº8 (1ª fase)

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Já na segunda fase, diferentemente do que ocorreu na primeira, podemos observar uma

predominância mais significativa de ocorrências pós-verbais (61% de 73 ocorrências) em

relação às ocorrências pré-verbais (apenas 39% deste mesmo número).

Esses dados sugerem que já na segunda fase do século XIX se dá uma considerável

diminuição de posições pré-verbais, que ficam praticamente restritas a cláusulas mais

gramaticalizadas (somente 7,1 % das 28 ocorrências pré-verbais ocorreram em clausula

menos gramaticalizadas); o que nos permitiria entrever que neste período a ordenação dos

advérbios em português começa a se delinear dentro da atual tendência.

Nesta tabela da terceira fase, por sua vez, registra-se um predomínio praticamente

absoluto das ocorrências pós-verbais em relação a ocorrências pré-verbais. Foram

encontrados 49 casos pós-verbais num universo de 56 ocorrências, o que nos garantiria a

porcentagem de 87%! Repare-se que apenas 1 entre 8 das poucas ocorrências pré-verbais se

deu em cláusula menos gramatical.

Destacamos também que, assim como nas demais fases do século XIX, não há

ocorrências de posição VXA, o que aponta para a hipótese de uma tendência casa vez maior

do advérbio se dar ao lado do verbo.

Uma cuidadosa análise do século XIX nos

mostraria, portanto, que esse século foi decisivo para a

consolidação da mudança na tendência de ordenação

desses advérbios em português.

O gráfico 2 ilustra as mudanças na tendência de

ordenação desses advérbios ao longo do século XIX.

Lembrando das tendências quase categóricas de o advérbio ocupar a posição pós-verbal no

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

100

sécXVIII

séc XIX1

séc XIX2

séc XIX3

pós-verbal

pré-verbal

Gráfico 2: Porcentagens de ocorrência das diferentes ordenações dos qualitativos em –mente nos séculos XVIII e XIX do português.

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português atual (Moraes Pinto, 2008), esses dados sugerem que o século XIX foi o momento

em que se concretizou a mudança da ordenação dos advérbios qualitativos em -mente, que

transmutaram da posição pré-verbal típica do latim para a posição pós-verbal típica do

português atual.

Uma curta observação sobre a história do século XIX no país pode nos auxiliar a

contextualizar a análise sobre a ordenação dos advérbios em -mente, relacionando-a à

importante hipótese de que este período foi marcante para consolidação de diversas outras

mudanças em nossa língua (Tarallo: 1991/ 1993 e Pagotto: 1998); tendo em vista o projeto

romântico unificador característico deste período de nossa história.

Muito embora questões mais específicas da história de nosso país sejam mais

frequentes em estudos de historiografia, não acredito que a linguística possa se despir deste

tipo de análise sem comprometer seu rigor científico com isso. Por isto mesmo, proponho um

breve, porém suficiente para o suporte da hipótese em questão, passeio pelo que a

historiografia atual afirma a respeito do século XIX (Fausto, 2003; Hollanda, 2000; Cervo,

2008).

A preocupação com a formação de uma identidade nacional brasileira no período do

Império se refletiu na arte tanto na criações de escolas como na literatura romântica. Diz-se

que se tratava de um temor pelas “forças centrífugas” que se haviam

evidenciado no período regencial (diversas revoltas regionais

espalhadas pelo país). Assim, o chamado período da regência una de

Araújo Lima (1837 a 1840) foi o primeiro a se preocupar

enormemente com o projeto de construção de uma identidade

nacional. O pensamento era bastante simples: uma vez que a elite

 

Figura 4: Imagem ilustrativa do Uniforme escolar masculino do Colégio D. Pedro II, estabelecido por decreto em 1837, discutido como um dos símbolos da reforma de ensino e militância política da época.

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nacional se considerasse nacional, deixaria de se ver como uma defensora de interesses

regionais da elite baiana, pernambucana ou sulista, etc.

Mesmo tendo sido muito importante no período do regresso, como mencionamos

ainda agora, o projeto de construção nacional foi o pilar da política interna durante todo o

Império (1822-1889), e teve seu lugar de destaque máximo durante o reinado de D. Pedro II.

Para a construção desta identidade nacional, foram criados institutos com este fim (o Colégio

Pedro II em 1837), o IHGB em 1838, entre outros), que tinham o mesmo fim: viabilizar a

difusão de um projeto cultural nacional para evitar rebeliões nas gerações futuras a partir (i)

da socialização das elites e do ensino, e (ii) da construção de uma história oficial e de um

ideal unificador cultural (com base nas cortes). Até hoje, o ensino brasileiro é fortemente

marcado por esses ideais de unificação cultural que privilegia uma pequena elite, cujos frutos

são realidades como o preconceito linguístico que se constrói nas nossas escolas.

Aproximemos agora não só a historiografia e a linguística, mas também as ciências

literárias. O Romantismo também teve por sua vez um papel fundamental na construção desta

história e desta identidade nacional. Bosi (2007) chega a afirmar que o ufanismo romântico

possibilitou o primeiro momento em que a literatura deixa de ser feita no Brasil para ser uma

literatura do Brasil. Podemos compreender esta importância do movimento romântico em

parte porque nossa natureza é descrita, nossa língua é abrasileirada e nossos heróis são

construídos; e em parte também porque todo este projeto estético nasce não da imitação de

um problema europeu (como foi o caso do arcadismo), mas de uma tentativa de superação de

um problema político nacional: a criação de nossa identidade. Assim, não é apenas na

literatura que se vê surgir o projeto romântico, mas também nas muitas cartas de membros das

elites que tentavam, neste complexo período político de um Brasil fragmentado, recorrer a

auxílios políticos da capital do Império através de cartas e anúncios nos jornais. Nessas cartas,

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verdadeiros apelos políticos, era importante pertencer, formal e ideologicamente, a uma elite

nacional que gradativamente moldava o serviço público brasileiro.

Assim, a par do que nos informa a historia da literatura brasileira e os estudos de nossa

história política, podemos assumir uma hipótese para o porque de o século XIX ser tão

definitivo para diversas mudanças do português51. A ideia de construir uma “força centrípeta”

que unificasse as divergências regionais do país focava seus esforços nas elites que, de certa

forma, ameaçavam a unidade de Império caso continuassem lutando pelos interesses de suas

províncias. E, junto com a preocupação de centralizar o poder e de unificar as elites, veio um

contexto histórico que propiciou a consolidação de uma norma do português a ser utilizado

por estas elites, que viriam a estudar e a se socializar nos mesmos centros de ensino e a

trabalhar em funções públicas que respondiam, cada vez mais, à metrópole.

Esmiuçando os detalhes que o século XIX poderia nos oferecer em termos de analise

de dados, e também interessados por algumas tendências perceptíveis no século XIX,

analisamos também essas tendências apenas em cartas de leitores e de redatores de jornais do

século XIX. Detectamos com maior precisão o fenômeno gradual que consolidou a mudança

na tendência de ordenação destes advérbios, ao analisar somente algumas cartas de leitores e

redatores, separadamente, nos jornais do século XIX (Martelotta e Vlcek, 2006).

Encontramos, na primeira fase, mais ocorrências de posições pré-verbais do que nas

demais fases, tanto em leitores quanto em redatores. Além disso, as cartas de leitores somente

apresentaram ocorrências pré-verbais na primeira fase do século XIX, o que pode ser um

indício de como se deu, nesse século, a mudança nas tendências de ordenação em direção ao

uso praticamente categórico da pós-posição característica do português atual.                                                                                                                51 Obviamente, não foi o projeto romântico que determinou a direção tomada pela ordenação dos advérbios qualitativos em –mente no português, mas foi este o grande pivô da padronização de novas e antigas tendências no século XIX, fazendo do período em questão um momento de extrema importância para a história do português do Brasil.

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Mais interessante, porém, é reparar que, neste mesmo trabalho, identificamos que

textos mais formais tendem a utilizar ordenações mais antigas, pois encontramos mais

anteposições dos advérbios em estudo nas cartas de redatores, escritas por pessoas que

trabalham nesses jornais e reproduzem o ideal de escrita por eles veiculados. Assim, as

ocorrências pré-verbais encontradas exclusivamente nas cartas de redatores nas 2a e 3 a fases

podem ser interpretadas como um uso conservador e de caráter formal, corroborando para

nossa hipótese de que o século XIX foi decisivo na caracterização da ordenação dos advérbios

qualitativos em -mente no português do Brasil.

5.1.3. Uma visão geral do fenômeno

Para uma visão mais geral do fenômeno, a fim de re-testarmos nossa hipótese

situando-a em um contexto histórico que compreendesse um número maior de séculos,

recorremos algumas analises de trabalhos sobre o assunto e re-analisamos os dados de Moraes

Pinto (2008) a respeito da ordenação dos qualitativos em -mente no português arcaico e nos

séculos XVI e XVII, compilando-os em tabelas de acordo com nosso interesse de estudo.

Figura 5: Tabela com compilação e re-análise dos dados de Moraes Pinto (2008) sobre ordenação dos qualitativos em -mente no português arcaico e nos séculos XVI e XVII.

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Pude ver uma maior incidência de pós-posições (280 casos) do que de pré-posições

(91 casos) no português arcaico. É importante atentar também ao fato de que nesta fase ainda

encontramos, dentre as anteposições, 33 ocorrências (36%) em cláusulas menos

gramaticalizadas. Esta proporção cai para 17% no século XVIII, em que das 35 ocorrências de

anteposição do advérbio, apenas 6 ocorreram em cláusulas mais gramaticalizadas, como

demonstramos anteriormente. Estas observações corroboram a hipótese de que a ordenação

mais antiga, a anteposição do advérbio, fica cada vez mais restrita às cláusulas mais

gramaticalizadas, que são mais conservadoras.

Construí também uma análise gráfica a fim de tentar compreender com maior precisão

nossa hipótese de que a mudança se inicia pelas cláusulas menos gramaticalizadas para

somente depois atingir as mais gramaticalizadas; já que isso implicaria uma persistência das

ordenacoes mais antigas nas cláusulas mais conservadoras, enquanto seu desaparecimento

seria mais perceptível nas cláusulas menos conservadoras.

Gráfico 3: Porcentagem de pós-posições de advérbio qualitativo em -mente no português escrito do Brasil do século XV ao século XX.

Gráfico 4: Porcentagem de anteposições de advérbio em relação ao verbo em cláusulas mais gramaticalizadas no português escrito do Brasil do século XV ao século XX (não houve dados no século XX52).

Apesar de os gráficos 3 e 4 nos mostrarem que houve maior incidência de cláusulas

mais gramaticalizadas não só nas pré-posições, mas também nas pós-posições do advérbio,                                                                                                                52 Moraes Pinto (2008) só registrou 9 (de 165 ocorrências) como anteposições do advérbio ao verbo no século XX, todas extraídas de textos religiosos, o que aponta, em uma análise da língua baseada no uso, para um fator estilístico, e por isso não foram contabilizadas em nosso trabalho.

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devemos considerar que essa porcentagem não muda ao longo dos séculos, o que demonstra

que esta tendência (a mais inovadora) é mais livre para ocupar diversos tipos de cláusulas

(gráfico 3), enquanto a ordenação mais antiga se restringe, cada vez mais, às cláusulas mais

gramaticalizadas (gráfico 4), chegando a praticamente desaparecer no português atual.

5.2. Ordenação dos advérbios qualitativos em –ment no francês

A análise de outras diferentes áreas da pesquisa linguística, mais especificamente a

linguística gerativa, apontam para o fato de que em francês atual não há possibilidade de o

advérbio qualitativo em –ment aparecer em posição pré-verbal. Ao analisarmos as tendências

de ordenação destes advérbios, começamos nossa análise então pelo século XVIII, motivados

a encontrar o período de concretização da mudança de posição destes advérbios em algum

século anterior da língua.

5.2.1. Suposições gerativas acerca da ordenação do advérbio intra-sentencial modificador

do Sintagma Verbal em inglês, francês e português: uma discussão e várias

hipóteses

“Languages are the best mirror of the human mind” (LEIBNIZ, apud CHOMSKY,

1986), “language is a dialect with an army and a navy” (atribuído a Max Weinreich, apud

CHOMSKY, 1986). Essas duas famosas citações que percorrem os corredores dos centros de

estudos linguísticos definem bem como, ao longo desses estudos, foram muito divergentes as

visões acerca do que seria o objeto de estudo da linguística.

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Para os estudos da linguagem de tradição formalista, os

estudos da linguagem não deveriam se preocupar com as

dimensões sócio-políticas ou normativas, mas, sim, com os estados

mentais que corresponderiam a saber uma língua, abstraindo as

diferenças entre os falantes. A partir da célebre criação da imagem

de um falante ouvinte ideal em uma comunidade homogênea, os estudos da linguagem

poderiam transcender as questões de variação, cujas razões seriam extralinguísticas, e

poderiam ser semelhantes aos estudos da mente humana de forma geral: baseados em leis

necessariamente universais.

Ao rever seu modelo de princípios e parâmetros e substituí-lo pelo programa

minimalista, a análise gerativa dá destaque à questão da ordenação dos advérbios intra-

sentenciais como os analisados no presente trabalho, ilustrando o problema com as

divergências de ordenação entre o inglês e o francês. Enquanto o francês teria somente a

posição pós-verbal licenciada (Jean embrasse souvent Marie), em inglês só seriam

gramaticais sentenças com o advérbio em posição pré-verbal (John often kisses May).

Figura 6: Representação arbórea de onde o advérbio intra-sentencial seria gerado segunda a tradição formal.

 

 

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Para Chomsky - baseando-se em e

criticando outros textos sobre o assunto - o que

aconteceria nesses casos seria que o advérbio seria

sempre gerado na posição de especificador do

sintagma verbal (figura 6) e que, em francês, o

verbo se movimentaria para checar o traço de

concordância (AGR) antes do vértice que separa a

sintaxe visível da sintaxe coberta (figura 7).53 Em inglês, como o traço é fraco, ele pode ser

checado somente depois do vértice, não influenciando na forma fonética. Embora para a

linguística formal o verbo é que seja aquele a se mover, podemos reparar mesmo a partir deste

resumo extremamente simplificado duas grandes questões: primeiro, a postulação do spell-

out, que elimina o antigo modelo baseado em estrutura superficial + estrutura profunda e;

segundo, a diminuição da autonomia da faculdade da linguagem no novo modelo já que, o

que obriga o verbo a checar caso em francês antes do spell-out é o fato de o traço e AGR

nesta língua ser forte e que os traços fortes não podem ser lidos pelos sistemas de interface.

Muitos chegam a afirmar, com um grande exagero (prefiro acreditar) que este seria o início de

                                                                                                               53  Para  o  leitor  não  habituado  com  a  terminologia  utilizada  pela  linguística  gerativa  exposta  nesta  página,  basta  pensar  da  seguinte  forma:  o  modelo  de  faculdade  da  linguagem  formal  é  feita  de  léxico  e  sintaxe.  O  léxico   é   um   conjunto   de   elementos   lexicais,   cada   um   deles   um   sistema   de   traços   (que   especificam  propriedades  semânticas,  fonéticas  e  sintáticas  idiossincráticas).  A  sintaxe,  por  sua  vez,  seria  um  processo  de   operação   inconsciente,   constituído   de   duas   operações   básicas:   concatenar   e   mover.   Assim,   as  operações  (sintáticas)  que  acontecem  antes  do  vértice  que  separa  as  operações  da  componente   fonética  (estabelece   interface   com   o   sistema   articulatório   perceptual)   das   operações   da   componente   lógica  (estabelece  interface  com  o  sistema  conceptual)  afetam  tanto  na  forma  lógica  como  na  forma  fonética,  ou  seja,  tudo  o  que  acontece  entre  o  léxico  e  o  spell-­‐out  é  a  sintaxe  aberta  ou  visível.  Porém,  tudo  o  que  acontece   entre   o   spell-­‐out   e   a   forma   lógica   é   a   sintaxe   coberta,   ou   seja,   não   é   visível   na   forma  fonética.  Aplicando  esta  teoria  à  discussão  dos  advérbios,  percebemos  que  as  operações  de  movimento  do  verbo  em  inglês    acontecerem  somente  depois  do  vértice,  e  portanto  não  são  visíveis  na   forma  fonética,  sendo   exclusivas   da   forma   lógica.   Em   francês,   como   o   verbo   se   movimenta   antes   do   spell-­‐out,   esse  movimento  é  visível,  pois  reflete  na   forma   fonética.  Deste  modo,  a   teoria  gerativa  alcança  um  equilíbrio  muito  buscado  em  suas  análises  entre  a  adequação  descritiva  e  explicativa  da  linguística,  pois  enquanto  a  forma  lógica  em  todas  as  línguas  é  a  mesma;  as  diferenças  nas  formas  fonéticas  das  diferentes  línguas  se  explicam  por  operações  na  sintaxe  coberta.    

Figura 7: Modelo de Faculdade da Linguagem baseado em nossa interpretação do Programa Minimalista (Chomsky, 1995).

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uma funcionalização da teoria chomskyana. Independente das conclusões e das possíveis (e

impossíveis comparações) que estes dois modelos (o formal e o funcional) possam ter, é

inegável a importância do estudo do fenômeno da ordenação dos advérbios na construção do

modelo teórico.

Vale a pena, para nós, questionar em qual padrão se encaixaria o português atual, visto

que, por um simples julgamento de gramaticalidade, poderiam muito provavelmente nossos

falantes validar ambas as formas54:

(36) a. João beija frequentemente Maria.

b. João frequentemente beija Maria.55

Apontando para esta hipótese, Costa (2009) afirma que, a maioria dos advérbios

qualitativos (aqueles que não são ambíguos entre seu valor qualitativo e modalizador) pode

ocorrer em posição pré-verbal ou pós-verbal em português.

Mas, se a posição do verbo em relação ao advérbio é um reflexo, na língua-E, de

computações que acontecem na língua-I56, é preciso que se desvende qual é o padrão e

ordenação do português do Brasil para, a partir desta informação, formular hipóteses que

permitam economia descritiva e adequação explicativa para o fenômeno nas diferentes

línguas naturais.

                                                                                                               54 O texto aqui supõe um teste off-line, já que em um teste online talvez pudéssemos supor que o falante de português validaria ambas as formas, mas que demoraria um pouco mais para validar a posição pré-verbal. 55 Mesmo não chamando, em nossa análise de dados, advérbios como frequentemente como advérbios de modo, utilizamos uma tradução “literal” dos exemplos de Pollock retomados por Chomsky a fim de não “distorcer” a teoria. Baseamos a legitimidade deste exemplo para ilustrar a tendência de advérbios qualitativos no texto de Pollock em que este lista quais advérbios teriam ou não a tendência de seguir este padrão. 56 A distinção língua-E e língua-I é aqui utilizada como proposta por Chomsky (1986): sendo a língua-E aquela afetada por dimensões sócio-política ou teleológica-normativa e a língua-I aquela que corresponde aos estados mentais de se saber uma língua.

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Quando falamos em advérbios intra-sentenciais modificadores do VP57; nos referimos

somente a advérbios gerados como determinantes do VP e cujo valor semântico se relaciona

única e exclusivamente com o verbo. Um advérbio que não é gerado no sintagma verbal pode

encontrar diferentes opções de ordenação (POLLOCK, 1989; ILARI et alii, 1996), o que

envolveria fenômenos outros que não o movimento do verbo em direção à camada flexional.

É importante destacar que o que chamamos aqui então de advérbio intra-sentencial é uma

categoria ainda não claramente especificada na literatura gerativa, e, por isso, focaremos a

análise nos advérbios de modo, já que estes são prototipicamente aqueles que mais se

relacionam com o verbo58.

Assim, seguindo os pressupostos minimalistas, uma questão ainda maior seria

observar a posição do verbo em relação ao advérbio em português, mas também analisar

implicações dessa resposta, já que a ordenação é uma das consequências de um parâmetro

maior. Observando alguns dados do português contemporâneo (corpus D&G oral e escrito do

Rio de Janeiro), chamou-nos a atenção que não houve nenhum caso de advérbio qualitativo

em -mente que ocorresse anteposto ao verbo, independente do tipo de verbo, tanto em

sentenças finitas (37) como não finitas59 (38). Chegamos a afirmar, portanto, que o português

                                                                                                               57 Sigla em inglês para Sintagma Verbal. 58 Não seriam, portanto, pertinentes para esta análise, advérbios que indicam tempo (ontem) ou lugar (aqui), já que estes (i) não caracterizam a natureza da ação, apenas indicando onde e quando ela se deu e (ii) sua ordenação, como já aponta Pollock (1989), não segue as mesmas restrições que os advérbios anteriormente mencionados. Acrescento ainda que advérbios que veiculam noção de inclusão/exclusão (somente), negação (não) e focalização (mesmo) também não podem ser analisados nesta perspectiva, pois (i) ao invés de modificarem o verbo, atuam sobre a suposição de verdade da proposição (ILARI et alii: 1996) e (ii) seu padrão de ordenação também não segue o padrão dos advérbios acima descritos (POLLOCK, 1989). Os advérbios aspectuais também não são pertinentes para a análise aqui presente, já que seriam gerados nos “novos” nódulos da camada flexional (CINQUE E RIZZI, 2008), estando sujeitos a outra computação. Não seriam também de nosso interesse advérbios modificadores da sentença (felizmente, ele chegou); bem como advérbios modificadores de adjetivos ou outros advérbios (ela é bastante bonita), já que estes não são gerados na posição de especificador do verbo, pois seu escopo não é o verbo (JACKENDOFF, 1972; MORAES PINTO, 2008; VLCEK E MARTELOTTA, 2009). 59 Entendendo aqui sentenças não finitas como aquelas em que o verbo não recebe conjugação; ou seja, não somente a forma do infinitivo, mas também a do exemplo 38, em que há uma sentença gerundiva.

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teria um padrão Verbo-Advérbio60. Em outras palavras, o movimento do verbo se daria na

sintaxe visível em português.

(37) (...) aí chegando lá tive a maior decepção... fiquei sabendo que a minha irmã gostava do mesmo menino... e que:: ela já estava namorando com ele... aí... tudo bem... eu chorei... né? disfarçadamente lá... porque eu fiquei chateada... minha irmã... pô... sabendo que eu gostava dele... aprontou... aí o pessoal falou assim “pô... você vai ficar nessa? sai dessa... procura outro... (Corpus D&G, Niterói, narrativa de experiência pessoal, 15 anos, ensino fundamental)

(38) …então chegando na hora do almoço... né? pulando drasticamente aí a:: coisa... chegando na hora do almoço... uma amiga minha... né? (Corpus D&G, Niterói, narrativa de experiência pessoal, 35 anos, ensino superior)

Este resultado foi também identificado nas análises de Moraes Pinto (2008) do

português escrito do século XX, anteriormente citadas em nosso trabalho. Assim, ficaríamos

tentados a afirmar que, em português, o verbo se move para AGR antes do spell-out, tanto em

sentenças finitas quanto em sentenças infinitas. Esta conclusão, numa primeira visada, poderia

implicar a hipótese de que o traço de concordância em português seja forte (embora outras

análises também precisassem ser feitas). O problema que encontra a linguística gerativa, e que

nossa análise baseada no uso pretende enfrentar; é que a análise formal encontra um problema

bastante grave quando analisa séculos em que há variação entre as duas posições pois isto

indicaria a co-existência de dois parâmetros diferentes para o mesmo traço. Como

discutiremos um pouco mais adiante, a análise da mudança linguística do ponto de vista

funcional permite uma maior compreensão do fenômeno em questão, sem esbarrar na

incompatibilidade de traços.

                                                                                                               60 Martelotta (2004) em uma análise do português escrito atual demonstrou a ocorrência categórica dos advérbios bem e mal na posição pós-verbal.

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5.2.2. As tendências de ordenação do advérbio qualitativo em –ment no francês dos

séculos XVII, XVIII e XX

Partindo das hipóteses levantadas pela análise colocada, a ordenação dos advérbios

qualitativos em francês na posição pós-verbal é mais do que uma tendência, mas uma regra

consolidada; enquanto no português, em alguns tipos de texto, a antiga ordenação pré-verbal,

ainda que rara, ainda possa ser encontrada. Essas afirmativas nos trouxeram a luz à hipótese

de que a mudança possa ter ocorrido em períodos anteriores da história do francês.

De fato, analisando textos de jornais literários, jurídicos e políticos do francês do

século XVIII, não encontramos nenhuma ocorrência de anteposição de advérbios qualitativos

em -ment, somente posposições (39).

(39) c’étoit lui qui avoit tort; je le ramenai aisément à ses pieds: (...) TRAD: era ele que estava errado; e eu lhe dei uma lição61 com facilidade: (...)

Séc. XVIII Cláusulas menos

gramaticalizadas Cláusulas mais

gramaticalizadas TOTAL VA 5 8 13

VXA 0 2 2 TOTAL 5 10 15

Tabela 7: Distribuição das posições dos advérbios qualitativos em -ment no francês do século XVIII.

As ocorrências encontradas foram pós-verbais, tanto nas esperadas cláusulas menos

gramaticalizadas (39), como nas em que se esperava poder haver ainda anteposição do

advérbio, ou seja, nas mais gramaticalizadas, e por isso, mais conservadoras (40). Essa

constatação nos levou, mais uma vez, a imaginar que a mudança em francês tenha ocorrido

ainda em etapas mais anteriores da língua, já que mesmo nas cláusulas mais conservadores

não encontramos nenhum caso sequer de anteposição, ordenação típica do latim.

                                                                                                               61 Faire les pieds à quelq’un, traduzido como lui donner une bonne leçon, lui apprendre à vivre.

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(40) Aimant beaucoup, elle apprenait chaque jour à penser elle avoir une si grande horreur pour la coquetterie, qu'elle croyoit qu'on ne pouvoit plus plaire innocemment lorsqu'on aimoit une fois: elle craignoit ce que les autres cherchent.

TRAD: Amando muito, ela aprendeu a cada dia a pensar ela ter um tão grande horror pela coqueteria, que ela acreditava não ser mais possível agradar inocentemente quando já se amou uma vez: ela temia o que os outros procuram.

Recorremos, portanto, ao século XVII, a fim de confirmar a hipótese de que houve, na

história da língua francesa, uma mudança na tendência de ordenação destes advérbios. Afinal,

quando não encontramos algo, em linguística histórica, há de se atentar para o fato de que

talvez isso confirme a hipótese de inexistência deste tipo de dado mas, por outro lado, talvez

isso só confirme que não encontramos este tipo de dado nos corpora de que dispúnhamos e,

no caso desse trabalho, como o leitor já deve ter percebido, o corpus fora razoavelmente

reduzido devido a dificuldade de encontrar textos históricos não exclusivamente literários e já

digitalizados em língua francesa.

A análise do século XVII, porém, se mostrou bastante reveladora e importante para

nossa hipótese de que a mudança dos advérbios em –mente/-ment da posição pré-verbal para a

pós-verbal teria um caráter translinguístico.

Séc. XVII Cláusulas menos

gramaticalizadas Cláusulas mais

gramaticalizadas TOTAL AV 1 6 7 VA 7 16 23

VXA 1 2 3 TOTAL 9 24 33

Tabela 8: Distribuição das posições dos advérbios qualitativos em -mente no francês do século XVII.

Ao encontrarmos algumas raras pré-posições (41), constatamos que, no século XVII,

ainda se poderia encontrar anteposições dos advérbios qualitativos em -ment no francês. Esse

fato, somado à inexistência deste tipo de ocorrência em séculos posteriores da língua, coloca a

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trajetória de ordenação dos itens estudados na mesma análise do português, embora em outro

momento da história.

(41) Il faut necessairement qu’un homme de peu, qui s’échappe iusque’à ce point d’insolence que de Porter les mains ou d’attenter par quelque autre voye moins brutalle à l’honneur d’vn Prince du Sang, soit resolu de perdre la vie, parce qu’il ne peut pas esperer de la sauuer apres le succez de son dessein; & cette necessite de perir ou il s’engage visiblement fait voir qu’il est sol, par ce que s’il estoit sage, (...) TRAD: É necessariamente preciso que um homem de poucos recursos, que escapa a esse ponto de insolência de levar as mãos ou de atentar por algum outro meio menos brutal à honra de um Príncipe de Sangue; esteja resolvido a perder a sua vida porque ele não pode ter esperança de salvá-la após o sucesso de seu plano: e essa necessidade de perecer em que ele se engaja visivelmente faz ver que ele está só, pois se ele fosse sábio, (...)

A existência destas anteposições, ainda que raras, nos permite supor que a língua

francesa também tenha tido um estágio de coexistência entre anteposições e posposições e,

assim como o português, evoluiu para uma predominância da posição pós-verbal, como

pudemos verificar na análise do francês atual.

Assim, como último passo, a fim de comprovar a hipótese de que a posição pós-verbal

é categórica na língua francesa nos dias de hoje, analisamos textos jornalísticos do francês

atual, além de dois blogs pessoais. Não encontramos nenhum caso de anteposição do advérbio

qualitativo em relação ao verbo, apontando para o fato de que atualmente o português e o

francês têm a posição pós-verbal como a preferida para estes itens na sentença.

Séc. XX Cláusulas menos

gramaticalizadas Cláusulas mais

gramaticalizadas TOTAL VA 15 11 26

Tabela 9: Distribuição das posições dos advérbios qualitativos em -mente no francês do século XX.

(42) Aujourd'hui, ma fille commence à lire correctement et, lors d'une pause pipi sur une aire d'autoroute, elle a lu à voix haute sur la porte des toilettes : (…)62

                                                                                                               62 Francês atual, blog pessoal.

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TRAD: Hoje minha filha começa a ler corretamente e na hora de uma pausa para fazer xixi em uma área de repouso da estrada, ela leu em voz alta na porta do banheiro: (…).

(43) (...) Après avoir fait ce qu'il avait à faire dans sa litière, il [mon chat] se nettoie naturellement les pattes... dans l'aquarium.63 TRAD: (…) Depois de fazer o que tinha que fazer na sua caixinha, ele [meu gato] naturalmente limpa as patas ... no aquário.

5.3. A gramaticalização dos advérbios qualitativos em -mente/ment e o surgimento de

modalizadores

Além de ocorrer uma mudança na tendência de ordenação dos advérbios analisados,

podemos notar também que alguns deles também apresentam uma variação semântica.

No exemplo 44, vê-se um advérbio qualitativo, que contém diversos traços típicos64

das definições de advérbios (função predicativa que atua sobre a ação verbal). O advérbio

qualitativo em –mente/ment prototípico tem função predicativa de modificar outro elemento

da sentença e se relaciona semanticamente com a ação verbal, fornecendo informação

referencial sobre a cena. Em função de outras ocorrências semelhantes encontradas nos

corpora, assumimos que o advérbio felismente apresenta, no exemplo 44, valor qualitativo,

indicando o modo como se deu ação do verbo que modifica (fazer de modo feliz). Esse uso

não existe atualmente, visto que hoje o advérbio felizmente é um advérbio modalizador (45).

(44) Eufis felismente aminha Viagem ecomo medei bem nella ja / estou anciozamente suspirando pela a tornar arepetir paraese / Continente; (...) 65

                                                                                                               63 Idem. 64 Assumimos em nossa análise que o advérbio qualitativo é o tipo mais representativo da categoria dos advérbios em -mente. Esta afirmativa traz à tona a questão já colocada no presente trabalho acerca da discussão se existe ou não um “centro” das categorias linguísticas. Afirmar a existência deste centro seria ou (i) afirmar a existência de uma essência de ser das coisas ou (ii) afirmar que o conhecimento humano cria um centro para referência da organização do mundo objetivo em categorias. Assumimos a segunda hipótese, baseados na asserção de Tomasello (2003), de que a aquisição e estruturação das categorias linguísticas em paradigmas é resultado da observação que os usuários fazem de seus traços semânticos, dos seus papéis na comunicação, e de suas características estruturais. 65 Documentos da Administração Privada

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(45) Felizmente, o incidente foi resolvido da melhor forma (…)66

De fato, nossas pesquisas demonstraram que determinados advérbios qualitativos em -

mente desenvolvem valores conjuntivo (ex.: consequentemente/contrairement), modalizador

de atitude epistêmica (ex.: certamente/sûrement), de atitude proposicional (ex.:

felizmente/heureusement) e de atitude pragmática (ex.: francamente/franchement), entre

outros. Em geral, junto a este processo de polissemia e de mudança de ordenação, acontece

uma expansão do escopo, no sentido de que o advérbio deixa de se relacionar especificamente

com o verbo (46), ou seja de ser parte do predicado e passa a modificar toda a cláusula,

funcionado como uma modificador da proposição (47).

(46) Pour agir plus sûrement, je me rendis chez lui dans le dessein de le questionner67.

(47) Excuse moi, tu as sûrement déjà répondu à cette question, mais Ipomée, ça vient d’où?

C’est joli.68

No exemplo 46, observado no século XVIII da língua francesa, o advérbio em questão

se relaciona exclusivamente com o verbo, indicando uma forma certa, correta, de agir; já no

exemplo 47, observado em um blog pessoal da atualidade, relacionando-se com toda a oração,

o advérbio em questão perde seu valor qualitativo e assume valor modalizador, ao expressar a

certeza que o falante tem de que aquilo sobre o qual ele fala é certo, é verdadeiro.

Martelotta (2008) aponta para o fato da existência de uma trajetória de

gramaticalização envolvendo construções adverbiais que leva as construções qualitativas a

assumirem valor de modalizador, passando a expressar o posicionamento epistêmico do

                                                                                                               66 Ciência Hoje online, 2007 67 Gallica, XVIII 68 Francês atual, blog pessoal (http://www.formspring.me/dwam/q/1471565159)

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falante em relação ao que está falando (Traugott e Dasher: 2005). Segundo os autores, essa

trajetória unidirecional pode ser caracterizada do seguinte modo: advérbio interno à cláusula

> advérbio sentencial > marcador discursivo.

5.3.1. Frequência: da formação dos advérbios qualitativos em –mente/-ment ao seu

enfraquecimento frente ao valor modalizador

Bybee (2003) é pioneira ao propor uma sistematização do papel da frequência nos

processos de gramaticalização e observar que (i) a frequência de uso leva ao enfraquecimento

da força semântica pelo hábito; (ii) ocorre redução fonética e fusão fonológica com a

repetição; (iii) a frequência condiciona uma autonomia maior para a construção, o que

significa que os componentes individuais da construção perdem ou enfraquecem suas

associações com outros usos dos mesmos itens; (iv) a perda da transparência semântica leva

ao uso da construção a novos contextos; (v) a autonomia do sintagma frequente o torna mais

entranhado na língua, preservando as características morfossintáticas antigas.

A autora afirma que a construção be going to sofreu mudança na frequência de tipo.

Saiu de um contexto mais específico, encontrado no inglês de Shakespeare, em que só

aparecia em sentenças cujos sujeitos eram animados e podiam se mover; e se estendeu para

um contexto mais geral, típico do inglês atual, em que a construção pode aparecer incluindo

todos os inanimados e os seres que não se movem.

Mais uma vez, podemos aplicar a questão colocada pela gramaticalização dos

advérbios em questão, mas em um estágio anterior. Voltemos a sua formação. Demonstramos

que (Campos e Martelotta, 2010) advérbios qualitativos em –mente/ment surgiram a partir da

concordância em gênero, número e caso do substantivo latino mens, no caso ablativo, mente, a

um adjetivo modificador deste substantivo. Inicialmente, mente designava apenas atividade

psíquica, mental, alma, espírito; assim, adjetivo + mente. formavam um sintagma nominal,

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em que o adjetivo modificava a natureza do substantivo. Sendo assim, o uso desta estrutura se

restringia a contextos em que o sujeito fosse humano, individuado e também singular (48),

visto que apenas humanos e individuados possuem uma mente (cérebro), ou seja, se restringia

ao sentido original do substantivo. No entanto a frequência desta estrutura passou a ser maior

na fase medieval da língua latina, posterior à fase clássica. E nesta fase medieval, o contexto

de uso desta estrutura começou a ampliar-se, permitindo relacionar-se com outros sujeitos em

contextos não esperados, como por exemplo, não humanos (49), que não fossem individuados

(50) ou que não estivessem no singular (51).

(48) “sede o diuinius ipsa sompniat archana rerum celique profunda mente Plato, sensumque Dei perquirere templat.” Trad.: mas Platão imagina as próprias coisas celestes com a mente mais profunda que ele (Aristóteles), e tenta procurar o sentimento de Deus. (Anticlaudianus)

(49) “Haec autem apostolicus mente voluntária et intenta ut accepit, in omnibus se promisit mandatis parere sanctorum precibus.” Trad.: Assim, visto que o ato apostólico retomou estas coisas voluntária e com a mente atenta, e prometeu que estaria presente nos mandamentos de todos os santos. (Historia Hierosolymitanae Expeditionis)

(50) “Procedunt portis Siculi, non star eferentes, Egressique foras audaci mente repugnant”. Trad.: Os Siculos saem pelas portas, postos para fora e recriminam com a mente audaciosa. (Gesta Roberti Wiscardi)

(51) “Quam etiam reges sereníssima mente excipientes, papae et episcoporum mandatis in nullo tunc refragati sunt” Trad.: Os reis que vieram depois se opuseram com a mente sereníssima aos pedidos dos papas e dos bispos. (Richeri Historiarum)

É importante destacarmos também que o processo de formação destes advérbios prevê

uma fixação na ordem dos constituintes da construção, uma vez que o substantivo mente, item

lexical, se tornará um sufixo, item gramatical, este tenderá a vir imediatamente posposto ao

adjetivo modificador. Esta regularização ocorre também por uma questão de aumento na

frequência. Podemos contrastar a ordenação mais livre do latim clássico (52) com ordenações

mais regulares de fases posteriores à língua clássica, como a fase medieval e etapas

posteriores (53) e (54):

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(52) “Mente tibi laeta studuit parere poeta.” Trad.: O poeta aplicou-se em obedecer-te com a mente alegre. (Latim clássico)

(53) “In celo mente beata viuat et in terris peregrinet corpore solo”. Trad.: Depositado na terra, que viva no céu com a mente feliz e que só o corpo peregrine nas terras.

(54) “Hec autem Sanctissimi Patres et Predecessores vestri sollicita mente pensantes ipsum Regnum et populum” Trad.: Desse modo os Santíssimos padres e seus predecessores que examinam com a mente solicita o próprio reino e o povo.

Este processo se tornou extremamente produtivo, substituindo a forma já existente e

disponível na língua latina para formação de advérbios de base adjetival, em que se somava

ao adjetivo às desinências -e -o para palavras de tema em -u/-o e o sufixo -ter para palavras de

tema em –e.

Quando um item se gramaticaliza, é normal que se torne mais frequente (Hopper e

Traugott, 2003). Bybee (2003) nos chama a atenção, porém, para o fato de que a frequência

não é apenas um resultado da gramaticalização, mas também é um fator que contribui para o

processo. Retornando aos nossos exemplos (15, 16 e 17), dentre as várias construções com

verbos que expressam movimento e poderiam expressar propósito, só a construção com go se

gramaticalizou e isso se deu, segundo a autora, devido a sua alta frequência.

Analogamente, os advérbios qualitativos em -mente perdem a sua frequência ao longo

dos séculos no português e no francês atuais, dando lugar a uma grande proliferação de

advérbios modalizadores. Uma pesquisa informal por advérbios em -mente em diferentes sites

de busca atuais (como Google ou Bing) demonstram que os pouquíssimos advérbios em -

mente qualitativos que se encontram hoje no português atual estão condicionados a títulos e

não ao corpo do texto. Em francês, por outro lado, ainda há bastante incidência de advérbios

qualitativos em –ment, já que o uso do que chamamos de adjetivos adverbializados é listado

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nas gramáticas de francês como uma forma marcada e; como vimos na revisão da literatura,

esta nova forma é bastante presente no português de hoje.

A fim de tornar mais clara esta percepção que tive ao longo das pesquisas, verificamos

a frequência de advérbios qualitativos e modalizadores em –mente/ment no português e no

francês atuais. Os dados foram retirados do site “vida de merda”, por ter um correspondente

em francês “vie de merde” e por ser uma boa amostra da língua já que se trata de depoimentos

espontâneos de pessoas das mais diferentes idades, em uma linguagem bastante informal. O

site, tanto a versão francesa quanto a versão brasileira, são construídos de tal forma que há um

espaço para que toda a comunidade participe contando porque a sua vida é ou está um

fracasso e há também um blog, em que alguém responsável pelo mesmo publica informações

sobre o site, sobre as postagens e outras coisas.

No site em francês, a quantidade de advérbios, não só qualitativos, em -ment foi de

144 num universo de 13166 palavras, ou seja, aproximadamente 1%. Em português, por sua

vez, num universo de 90000, 36 eram advérbios em -mente, ou seja, aproximadamente 0,04%.

O que demonstra (i) um índice muito baixo de recorrência deste sufixo em ambas as línguas,

como havíamos levantado anteriormente, e (ii) que em francês, a ocorrência de advérbios em

–ment é bastante superior a ocorrência de advérbios em –mente no português.

Mas o interessante é verificar, dentro deste universo de palavras, quantos são os

advérbios qualitativos. Em francês, essa porcentagem é de 0,7% e em português, apenas

0,01%. Em outras palavras (ou em outros números), enquanto em francês 70% dos advérbios

em –ment são qualitativos, em português, somente 25 % dos advérbios em -mente são

qualitativos.

Concluímos destes dados que os advérbios qualitativos, embora ainda não muito

frequentes em francês, são comparativamente muito menos frequentes em português. A partir

disso, bolamos a hipótese de que os adjetivos adverbializados mencionados em capítulos

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anteriores do texto teriam ocupado esta função em português, mas não em francês. Talvez

devido ao fato de que em língua francesa este tipo de construção seja marcada, vista como

típico da fala adolescente. Já no que se refere a uma incidência maior de modalizadores do

que de qualitativos, acreditamos na hipótese de que isso se deve ao fato de que os advérbios

em -mente sejam criticados pelas editoras do Brasil em traduções do francês69 e em revisões

sejam de livros ou de jornais nacionais. Desta forma, somente modalizadores e outros tipos de

advérbios em –mente (que não os qualitativos) permanecem, pois é inviável (ou marcado) na

língua retirar o sufixo –mente de alguns advérbios, como um modalizador, mas sim de um

qualitativo (Ele chegou rápido/rapidamente; Certamente/Certo (?), a crise acabará em

breve.)

5.3.2. Gramaticalização e iconicidade

Como pretendemos demonstrar nesta seção, quanto mais afastado da ação verbal está

o valor semântico dos advérbios, mais este se permite afastar do verbo. Mas, para bem

delinearmos esta hipótese, precisamos nos familiarizar com um conceito muito caro aos

estudos funcionais da linguagem: o princípio da iconicidade.

Assumir a existência de uma motivação funcional para as estruturas linguísticas, sejam

elas de base cognitiva ou sócio-culturais, significa assumir que a linguagem é icônica.

A noção de que a linguagem reflete o pensamento que, por sua vez, reflete a realidade

do mundo exterior é uma visão que remonta à lógica aristotélica, embora para Aristóteles a

linguagem fosse icônica num sentido mais trivial do que para a linguística atual. Pierce (apud:

Givón 1990) trouxe a noção de que a sintaxe humana não é arbitrária, mas sim isomórfica

                                                                                                               69 Em trabalhos de tradução que tive a oportunidade de fazer para editoras, como José Olympio, no trabalho “A Rive Gache”, constava nos manuais uma observação específica para quem faria a tradução a partir do francês, instruindo-nos a substituir todas as formas em –ment por adjetivos adverbializados do português.

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com o seu designatum mental. Isso não significa dizer que a sintaxe de uma língua é

totalmente icônica, mas sim que ela é substancialmente icônica, ou seja, motivada; e não

arbitrária, como acreditou-se (e ainda se acredita) na linguística formal.

Os estudiosos de uma linguística baseada no uso, como vimos, se caracterizam, em

grande parte, pela rejeição da linguagem como sistema arbitrário e autônomo, em prol de uma

explicação funcional.

A noção de iconicidade está relacionada ao princípio de que as línguas, de alguma forma, refletem o pensamento, que, por sua vez, se espelha na realidade externa, referente ao mundo biossocial em que vivemos. Essa proposta se opõe à visão, típica dos linguistas do pólo formalista, para quem a arbitrariedade constitui a marca da linguagem humana, em oposição à comunicação animal, que seria icônica. (Martelotta, 2006)

Pode-se entender, portanto, o Princípio da Iconicidade como a propriedade das estruturas

de uma língua de refletirem a concepção que temos da nossa experiência. Assim, afirmar que

a linguagem é icônica significa assumir que a estrutura linguística revela as propriedades de

conceitualização que o homem faz do mundo.

O princípio da iconicidade pode ser codificado nas diferentes línguas de diferentes

maneiras, o que muitas vezes poderia levar alguns teóricos a imaginar uma verdadeira

arbitrariedade onde, na verdade, existem sub-princípios. Existem três importantes sub-

princípios relacionados ao princípio da iconicidade e cada um deles revela uma relação entre a

estrutura linguística e o modo como a mente humana processa as informações do universo em

que vivemos.

O sub-princípio da ordenação sequencial prevê a existência de tendências de ordenação

nas diferentes línguas naturais, como o fato de as informações novas tenderem a ocorrer no

final da frase. O sub-princípio da quantidade, por sua vez, prevê que o tamanho da estrutura

gramatical depende do tamanho da informação que esta pretende expressar, assim, o que é

simples ou esperado pode ser expresso por expressões menos complexas. Já o sub-princípio

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da proximidade torna-se mais relevante para o presente trabalho, pois prevê que os conceitos

que concebemos mentalmente juntos tendem a aparecer codificados de forma mais integrada

na sintaxe, ou seja, o que está mentalmente junto ou afastado, está também sintaticamente

junto ou afastado, respectivamente.

Este sub-princípio é caro a este trabalho pois, como já aponta Martelotta (2006), a

ordenação dos advérbios de modo, mais intimamente ligados ao verbo, não é livre; visto que

este tende a vir ao lado do verbo:

(55) a. Ele joga bem. b. * Bem ele joga.

Mas, cabe ainda reparar o fato de que a estrutura 55b só é agramatical se compreendermos

bem como um advérbio de modo. Se interpretássemos o item bem como um advérbio

sentencial (ou como um marcador discursivo), a estrutura se tornaria não só gramatical, mas

extremamente produtiva em português contemporâneo.

Em outras palavras, a estrutura 55b só seria gramatical em português se o item bem não

for um advérbio qualitativo. Isto pois, sendo um advérbio sentencial (e não um advérbio intra-

sentencial) o seu escopo seria toda a cláusula, e não apenas o verbo. Logo, pelo sub-princípio

da proximidade, este advérbio poderia aparecer afastado do verbo, diferentemente do

advérbio de modo (55a), cuja noção está intimamente ligada ao verbo.

O mesmo parece ocorrer com advérbios qualitativos e modalizadores. Enquanto os

primeiros tendem a aparecer cada vez mais próximos ao verbo (56); os advérbios

modalizadores tendem a afastar-se do verbo (57), muitas vezes preferindo as margens da

cláusula.

(56) J’avois vêcu jusqu’alors avec elle dans cette familiarité, auq l’indifférence & l’estime rendent naturelle & réciproque : mon amour m’avoit ôté jusqu’au pouvoir de l’aborder librement : tout étoit devenu contrainte , ¶ tout étoit amour.

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TRAD: Eu havia vivido até então com ela nesta familiaridade; que a indiferença e a estima tornam natural e recíproca: meu amor me havia tirado até mesmo o poder de abordá-la livremente: tudo havia se tornado coerção/ constrangimento, tudo era amor.

(57) J’allois voler chez elle; au mepris de toutes les idees que cette démarche pourroit Donner à s abarbare mere : heureusement le carrosse sortit au meme instant , & j’exécutai mon destein. TRAD: Eu ia voar para a casa dela, a despeito de todas as ideias que esta atitude pudesse despertar em sua mãe bárbara: felizmente a carruagem saiu no mesmo instante, e eu executei meu plano.

No exemplo 56 percebemos que o advérbio librement, de valor qualitativo, segue

diretamente o verbo aborder; enquanto no exemplo 57, em que o advérbio heureusement

possui um valor mais intersujetivo, indicando que a pessoa que diz está feliz com o aquilo que

conta, o advérbio aparece na margem da cláusula.

Este raciocínio de tendências de ordenação motivadas pela proximidade cognitiva dos

elementos em questão soluciona uma questão mal resolvida pela linguística formal, como

veremos agora.

5.3.2.1. Um problema do qual a iconicidade parece dar conta

A questão da posição dos advérbios na sentença e da implicação das diferentes

posições em (i) seu escopo e (ii) seu sentido é de grande importância para a teoria linguística

contemporânea e não é uma preocupação exclusiva da linguística funcional.

Muitos autores de linguística gerativa, vertente de grande difusão acadêmica,

estudaram o fenômeno de forma detalhada e precisa. Jackendoff (1972) inovou os estudos

formalistas quando apontou para o fato de que, dependendo da posição do advérbio na

sentença, este poderia ter escopos diferentes:

(58) John cleverly/clumsily dropped his cup of coffee. (59) Cleverly/clumsily (,) John dropped his cup of coffee. (60) John dropped his cup of coffee cleverly/clumsily.

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Segundo Jackendoff, em inglês, o advérbio em -ly poderia ocorrer em três posições:

inicial (58), final (59) e em posição auxiliar (60). A partir da ocorrência desses advérbios

nessas três posições, poder-se-ia distingui-los em várias classes.

Seriam seis diferentes grandes classes de advérbios em –ly (análogos aos nossos

advérbios em –mente/-ment). Uma classe de advérbios seria aquela cujos advérbios pudessem

ocupar as três posições e seus sentidos se modificassem de acordo com o a posição (cleverly);

outra classe seria aquela em que os advérbios poderiam ocupar as três posições, mas seu

sentido continuaria o mesmo (quickly). Jackendoff cita ainda (i) advérbios que só podem

ocupar a posição inicial ou de posição auxiliar (evidently), (ii) advérbios que só podem ocupar

a posição final e a auxiliar (completely), (iii) advérbios que só podem ocupar a posição final

(terribly) e (iv) advérbios que só podem aparecer em posição auxiliar (merely).

É importante destacar que, para Jackendoff, o exemplo 58 é ambíguo, podendo

corresponder em significação ao exemplo 59 (it was clever of John to drop his cup of coffee)

ou ao exemplo 60 (the manner in witch John dropped his cup of coffee was clever).

Jackendoff afirma portanto ser o exemplo 59 um caso em que o advérbio cleverly expressa

alguma informação adicional sobre o sujeito, não limitando seu escopo somente ao sintagma

verbal – afirmativa esta muitíssimo cara a este trabalho pois, mesmo em uma linha teórica um

pouco distante, aponta para a percepção do fenômeno de que diferentes colocações

implicariam diferentes sentidos.

Motivado pelas inúmeras questões que vêm à tona com o projeto cartográfico

gerativista (teoria que tenta mapear as estruturas linguísticas) e a grande dificuldade em

inserir os advérbios na “árvore”, Cinque e Rizzi (2008) propõem que há uma diferença básica

no local de geração dos advérbios cujo escopo é o verbo e aqueles cujo escopo é toda a

proposição. Enquanto os primeiros seriam gerados na posição de especificador do sintagma

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verbal (Chomsky 1995), os segundos seriam gerados na camada flexional. Esta poderia ser

dividida em inúmeros nódulos e cada nódulo (aspecto, frequência, pressuposição do falante,

etc) teria uma posição de especificador disponível para um advérbio ocupar (Cinque, 1999).

João Costa (2004, 2009), porém, faz uma pequena problematização para a questão

colocada por Cinque. Não parece ser tão fácil definir até que ponto o sentido do advérbio

estaria no léxico e até que ponto estaria na posição em que este foi gerado. Enquanto alguns

advérbios apresentariam o mesmo sentido independente da posição (exemplo 61), outros

advérbios (chamados de ambíguos) teriam seu sentido drasticamente alterado – e por isso,

caso a leitura desejada para o advérbio seja de subject orientation e não de um advérbio de

modo, as possibilidades de posicionamento dele seriam menores70 (exemplo 62).

(61) a. O João propositadamente tinha estado a falar com os amigos.

b. O João tinha propositadamente estado a falar com os amigos.

(62) a. O João estupidamente tinha estado a falar com os amigos.

b. ? O João tinha estupidamente estado a falar com os amigos.

c. * O João tinha estado a falar com os amigos estupidamente.

Apesar de reconhecer que nem a sintaxe pura nem a semântica pura poderiam dar

conta das tendências de ordenação dos advérbios em português, João Costa, devido a sua

formação formalista, ainda defende a autonomia da sintaxe, ou seja, sua arbitrariedade e

modularidade.

                                                                                                               70 Como será demonstrado neste trabalho, uma análise funcionalista desses exemplos defenderia não uma menor possibilidade de posições para os advérbios sentenciais (exemplo 62), mas sim uma maior liberdade de posicionamento, já que estes não precisariam estar imediatamente próximos ao verbo, como os advérbios de modo (exemplo 61). Talvez o grande fator para as distintas posições não seja apenas a base teórica, mas a natureza do exemplo utilizado por João Costa. Quando lidamos com análise de dados reais (como no caso do presente trabalho) encontramos resultados, às vezes, diferentes daqueles que encontramos quando trabalhamos com exemplos criados para dar conta da teoria, como é o caso do texto de Costa (2009).

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Podemos tirar da análise de João Costa (2009) a importante observação de que o fato

de alguns advérbios qualitativos em -mente modificadores do VP (sintagma verbal) não

poderem aparecer distantes do verbo em português europeu (exemplo 38). Isso, em linguística

gerativa, parece difícil de ser explicado se pensarmos que alguns advérbios (como tristemente,

por exemplo) podem aparecer em ambas as posições e seriam, portanto, gerados em locais

diferentes da árvore.

Tomemos os exemplos (63) e (64). Perceba-se que são ambos existentes no português

atual, mas embora sua forma seja a mesma, não podemos assumir que os seus sentidos

também o sejam. Em (63), há um advérbio de modo modificador do verbo; enquanto em (64)

há um advérbio sentencial que traz alguma informação sobre como o falante se sente em

relação ao que diz. Perceba-se que em (64), o advérbio, que não está relacionado

especificamente com o verbo (e sim com toda a cláusula), não aparece próximo ao verbo,

como em (63) (em que o escopo do item é o sintagma verbal).

(63) A mãe e a irmã choravam tristemente...71 (64) Parece que desde o último dia 12 de maio essa liderança também chega tristemente aos níveis da violência urbana e à ação mortífera do crime organizado. ...72

É demasiado interessante perceber que, assim como nos exemplos (63) e (64)

podemos identificar uma certa tendência de o advérbio modificador do verbo aparecer

próximo a ele e do advérbio modificador da cláusula de ocorrer distante dele; podemos

identificar também casos em que esta tendência já se tornou uma regra (65).

(65) * O João tinha estado a falar com os amigos estupidamente.73

                                                                                                               71 R. Correia, apud Celso Cunha, 2003. 72 wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/.../

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Dois pontos teóricos fundamentais serão utilizados, pela linguística funcional, para

esclarecer este fenômeno: o princípio da iconicidade (Givón, 1990) e a teoria da

gramaticalização (Hopper e Traugott, 2003; Cezario, Martelotta e Votre, 2004). Utilizando o

princípio de iconicidade para observar a tendência de codificar linguisticamente junto o que é

operado cognitivamente junto, levantamos, portanto, a hipótese de que advérbios

modificadores do verbo (como os qualitativos) tendem a aparecer próximos do sintagma

verbal, enquanto advérbios modificadores de toda a cláusula (como os modalizadores) não

seguiriam esta tendência. Baseamos também este trabalho na teoria da gramaticalização, já

que temos conhecimento do fato de que há uma trajetória unidirecional (advérbio interno à

cláusula > advérbio sentencial) que guia o comportamento desses advérbios através da

diacronia das línguas (Traugott e Dasher, 2005). Como a observação da tendência de

ordenação dos advérbios (próxima ou distante do verbo) implica também considerar os

diferentes valores que estes apresentam, a análise funcional prevê um estudo das extensões

semânticas que caracterizam seus usos, unidirecional do mais representacional em direção ao

mundo inter-subjetivo do falante.

Esta análise permite a compreensão dos chamados “advérbios ambíguos” sem colapsar

a teoria já que uma forma mais gramaticalizada da construção pode coexistir na língua com a

sua forma não gramaticalizada, como vimos em seções anteriores do trabalho (exemplos 43 e

66).

(66) Dans ce que l’on appelle la médecine d’école (…) Par contre, dans la GNM il y a 98 % de survivants. Mais ces 98% ne s’appliquent pas, naturellement aux cas ayant déjà été traités au poison ou en cours de « traitement » (...). TRAD: No que chamamos de medicina de escola (...) Em compensação, na GNM há 98% de sobreviventes. Mas esses 98% não se aplicam naturalmente aos casos que já foram tratados com veneno ou em processo de “tratamento” (...).

O advérbio naturellement no exemplo 66 não tem mais o valor de o modo natural com

que o gato limpou as patas, como no exemplo 43, mas sim um uso em que é expressada a

atitude do falante acerca daquilo que diz, que acredita ser esperado pelo ouvinte. Observemos

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que em alguns casos, o processo de gramaticalização pode envolver, como vimos nos

pressupostos teóricos, mudança na categoria da construção em questão (67 e 68, previamente

apresentados como exemplos 21 e 22):

(67) Toi, tu penses qu’il n’y a que l’argent qui compte. Moi, je pense autrement.74 TRAD: Você, você pensa que não há dinheiro que só o dinheiro conta. Eu, eu penso de outra forma.

(68) Je prends toujours des notes pendant le cours. Autrement, j’oublie ce que le professeur a dit.75 TRAD: Eu faço sempre anotações durante o curso. De outra forma / caso contrário, eu esqueço o que o professor disse.

Enquanto em 67 o item francês autrement é um advérbio de modo, expressando

“pensar de outro modo”; em 68, mais gramaticalizado, é uma conjunção que indica

adversidade.

                                                                                                               74 Cours de civilisation française de la Sorbonne. 75 Idem.

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6. . CONSIDERAÇÕES FINAIS

6.1. Sobre a ordenação dos advérbios em –mente/ment

A análise proposta por esta dissertação espera ter chegado à conclusão de que –

enquanto a tendência atual tanto do português quanto do francês é a posposição dos advérbios

qualitativos em –ment/ment – houve uma alteração na tendência de ordenação destes itens ao

longo da historia das línguas estudadas. No português, a pós-posição teve seu

desaparecimento ao longo do século XIX, enquanto, nos textos que analisamos do francês, as

últimas ocorrências foram vistas no século XVII.

Em ambas as línguas, os dados analisados parecem corroborar para com a hipótese de

que esta mudança começa nas cláusulas menos gramaticalizadas, mais suscetíveis à mudança,

para somente depois atingir as mais gramaticalizadas.

Além de inserir esta pesquisa em uma análise das diferentes tendências de ordenação

dos advérbios ao longo da história do português e do francês, esta pesquisa traz duas

importantes contribuições para grandes questionamentos linguísticos não plenamente

resolvidos pela linguística atual, principalmente pela linguística formal.

A questão, por exemplo, de uma tendência de ordenação pré-verbal que foi substituída

pela pós-verbal implicaria uma analise gerativa, na mudança da força do traço de

concordância entre gerações. O que daria, então, ao processo de gramaticalização esta

possibilidade de tão bem descrever alguns fenômenos de mudança linguística de forma como

a linguística formal não parece ser capaz? Em grande parte o seu caráter unidirecional e o fato

de não ser abrupta, mas sim um processo gradual com passos variáveis. Em outras palavras,

ao afirmar que uma mudança é unidirecional estamos afirmando que ela não é arbitrária, mas

que segue uma trajetória que se evidencia devido a determinadas motivações funcionais ou

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cognitivas; e, ao afirmar que este processo é gradual e com passos variáveis, estamos

afirmando que não se trata de uma mudança de parâmetro decorrente, por exemplo, de uma

interpretação alternativa dos dados pela criança em processo de aquisição. Martelotta (2010)

nos chama a atenção para o fato de que “embora as crianças tenham seu papel no processo de

mudanças, muitos exemplos de gramaticalização parecem ser iniciados por adultos”.

Por outro lado, é vital que expressemos aqui que a única explicação da motivação

funcional para que o advérbio tenha deixado a posição pré-verbal nessas línguas para assumir

a posição pós-verbal seja a questão da mudança de ordenação padrão em busca de maior

expressividade – enquanto a análise gerativa traz uma clara e precisa justificativa para a

mudança desta posição, que seria na verdade uma consequência, provavelmente, da mudança

de um parâmetro no português e no francês: de um traço de concordância fraco para um traço

de concordância forte. Aqui o leitor deve ainda refletir novamente sobre a obrigatoriedade do

sujeito e a sua relação com a forca de concordância, dentro do modelo gerativo. Façamos este

parênteses antes de encerrar o trabalho.

6.1.1. Pequeno parênteses para reflexão acerca de questões levantadas anterioremente

Para a análise gerativa, os advérbios basicamente não se movem (Edmonds, apud:

Cinque e Rizzi, 2008), exceto em fenômenos de topicalização, focalização etc. As variações

translinguísticas entre diferentes ordens entre advérbios e verbos (aqui chamadas padrão VA e

AV) são devidas ao movimento do verbo na camada flexional (Cinque e Rizzi, 2008).

Considerando que o verbo se moveria (ou não), antes do spell-out, para diferentes heads e que

todas as línguas selecionam suas heads de um inventário universal, pode-se afirmar que a

hierarquia de determinados elementos na árvore sintática é determinada, em grande parte, por

restrições de movimento do verbo. Assim, chegamos a duas conclusões básicas. Chegamos

assim a uma nova conclusão (observando os dados da diacronia do português sob a luz da

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cartografia gerativa): estes dados poderiam também apontar para uma mudança no parâmetro

do português, que deixaria de ter AGR fraco e passaria a ter AGR forte. Porém, para fazermos

esta afirmação, outras pesquisas, que incluíssem a análise de outros fenômenos, teriam que ser

feitas. E essas discussões perpassariam outras já levantadas no trabalho. Passemos então a

discutir quais seriam elas.

Como já foi mencionado no presente trabalho, o padrão de ordenação Verbo-Advérbio

ou Advérbio-Verbo que diferencia algumas línguas é, para o programa gerativo, uma

consequência da parametrização do movimento do verbo em diferentes momentos da

computação linguística (antes e depois do spell-out). Vimos também que a força do traço de

concordância de uma língua está relacionado com o movimento do verbo de tal forma que a

força de AGR atrairia os verbos em francês para a camada flexional antes do spell-out,

enquanto em inglês, a fraqueza de AGR impediria os verbos lexicais de se moverem

(Haegerman e Guéron, 1999). Podemos, também afirmar que, em português, os verbos

lexicais sobem para AGR antes do spell-out.

Mas isso talvez ainda seria pouco para postularmos a hipótese de que AGR é fraco em

português. Precisaríamos, portanto, recorrer a algumas outras evidências. Isto pois, se

acreditamos que os diferentes valores para os parâmetros constituem as diferenças

paramétricas entre os sistemas gramaticais das línguas naturais, podemos supor também que

estas propriedades interajam entre si e com os princípios inatos da Gramática Universal (UG).

Haegerman e Guéron (1999) apontam para o fato de que, ao identificar determinadas

propriedades em uma língua, podemos pressupor muitas outras. Seria o caso do parâmetro

força de concordância no caso do movimento do verbo, que se percebe pela posição à

esquerda ou à direita do advérbio em que o verbo pode aparecer nas diferentes línguas. Além

da parametrização do traço de AGRs forte ser responsável pela posição Verbo-Advérbio

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(típica do francês e do português) e da parametrização do traço de AGRs fraco ser

responsável pela ordenação Advérbio-Verbo (típica do inglês) no caso de advérbios intra-

sentenciais; os autores também chamam a atenção para outros parâmetros que podem levar a

outras mais propriedades. O traço da concordância de nome também influencia, de forma

análoga, a posição em que o nome aparece em relação ao adjetivo. Em língua em que o AGR

é forte, como o francês, o nome sobe, aparecendo na antes do adjetivo; e em línguas em que o

AGR é fraco, como o inglês, o nome só subiria depois do spell-out.

Inglês Francês Português AGR (verbo) fraco forte ?

movimento de V para AGR sintaxe coberta sintaxe visível sintaxe visível AGR (nome) fraco forte ?

movimento de N para AGR sintaxe coberta sintaxe visível sintaxe visível Tabela 10: Tabela sobre os reflexos da parâmetro força de AGR em diferentes línguas.

 

De uma forma análoga, podemos também inferir que, dentro desta visão, o traço de

concordância de nome seja forte em português, colocando mais uma vez o português ao lado

do francês (ordenação Nome-Adjetivo) em contraste com o inglês (ordenação Adjetivo-

nome), uma língua de AGR fraco. Outro feixe de propriedades que Haegerman e Guéron

(1999) apontam como consequências de algum traço de AGRs são as que definem as

propriedades básicas das línguas com padrão pro-drop e as diferencia das demais línguas.

Feito isso, chegam à importante conclusão de que, ao saber se AGRs76 é rico ou pobre em

uma determinada língua, podemos pressupor outras propriedades que se seguem:

italiano inglês francês riqueza de AGRs sim não não

possibilidade de sujeito nulo sim não não expletivo visível não sim sim

sujeito pós-verbal sim não não complementizador na sintaxe visível sim não não

Tabela 11: Tabela com resumo das propriedades apontadas por Haegerman e Guéron (1999) como consequências do traço força de AGR.

                                                                                                               76 Como foi mencionado em outra nota de rodapé, para Chomsky; o fato de algumas línguas terem concordância Sujeito-Verbo e outras têm concordância Verbo-Objeto gera a necessidade de existirem dois traços de concordância distintos: AGRs e AGRo.

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Em português contemporâneo, podemos dizer que a riqueza de AGRs é um parâmetro

que parece estar sofrendo mudança. Percebe-se que, enquanto as gramáticas tradicionais

listam uma flexão verbal rica, o português falado atualmente é marcado por uma flexão verbal

bastante pobre. Além, disso, as propriedades que podemos tipicamente prever nas línguas

como consequência do parâmetro da riqueza de AGRs parecem também, em português,

estarem sofrendo mudanças:

Tabela 12: Sugestões de algumas mudanças no português, relacionadas ao traço força de AGR.

 

Se fizermos então uma análise detalhada do português falado no Brasil, poderemos

inferir que a língua apresentou características de uma língua de AGRs rico no passado, mas

que cada vez mais apresenta propriedades de uma língua de AGRs pobre. Não parece,

portanto, absurdo considerar que uma língua possa, na sua diacronia, mudar o valor atribuído

a um traço e que, em consequência desta mudança, inúmeras propriedades suas possam (e

tendam a) sofrer alterações. Este parece ser o caso da riqueza de AGRs no português do

                                                                                                               77 DUARTE, Maria Eugênia. Do pronome nulo ao pronome pleno: a trajetória do sujeito no português do Brasil. In: ROBERTS, Ian e KATO, Mary A. (orgs) Português Brasileiro – uma viagem diacrônica. 2 ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1996 78 Idem. 79 É preciso remarcar que esta parece ser a única propriedade, no português atual do Brasil, que não é típica de uma língua com AGRs pobre.

português riqueza de AGRs sim > não Ao analisar dados de texto oral, percebe-se cada vez mais

em português um empobrecimento da flexão verbal.77 possibilidade de sujeito

nulo sim > não Até mesmo por conta do empobrecimento da flexão verbal,

cada vez mais o português do Brasil parece exigir a presença de um sujeito expresso.78

expletivo visível não79 sujeito pós-verbal sim > não Ocorre quase exclusivamente em verbos inacusativos ou

por fatores estilísticos. complementizador na

sintaxe visível não

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Brasil. Não seria, portanto, absurdo, afirmarmos também a possibilidade da mudança

diacrônica da forca de AGRs no português do Brasil, levando em consideração que uma das

propriedades decorrentes deste parâmetro (a ordenação verbo-advérbio) nos indicaria isso.

Proponho, num resumo telegráfico, uma pequena comparação entre as línguas citadas e

investigadas nesta seção do trabalho; inglês teria um AGRs fraco e pobre; o francês, por sua

vez, teria um AGRs forte e pobre; enquanto o italiano teria um AGRs forte e rico. O

português parece, até o momento em que se encontra esta pesquisa, ter um AGRs forte e

pobre.

A grande questão, que se coloca mais uma vez neste trabalho, é que – enquanto a

análise funcional parece não dar conta da explicação de determinados fatores, como a razão

da mudança da ordenação e a relação desta com a presença/ausência do sujeito e ouros traços

– é a própria análise funcional que parece dar conta de outros momentos obscuros da análise

em que a teoria gerativa é fraca.

6.2. Sobre a gramaticalização de advérbios em –mente/ment

O modelo funcional, sustentado pela teoria da gramaticalização e pelos princípios da

iconicidade, parece dar conta de um problema mal resolvido pela linguística formal: a questão

da posição dos advérbios na sentença e da implicação das diferentes posições em (i) seu

escopo e (ii) seu sentido. Muitos autores de linguística gerativa, vertente de grande difusão

acadêmica, estudaram o fenômeno de forma detalhada e precisa. Cinque e Rizzi (2008)

propõem que há uma diferença básica no local de geração dos advérbios cujo escopo é o

verbo e aqueles cujo escopo é toda a proposição. Enquanto os primeiros seriam gerados na

posição de especificador do sintagma verbal (Chomsky 1995), os segundos seriam gerados na

camada flexional. Esta poderia ser dividida em inúmeros nódulos e cada nódulo (aspecto,

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frequência, pressuposição do falante, etc) teria uma posição de especificador disponível para

um advérbio ocupar (Cinque, 1999). Costa (2004, 2009), porém, faz uma pequena

problematização para a questão colocada por Cinque. Não parece ser tão fácil definir até que

ponto o sentido do advérbio estaria no léxico e até que ponto estaria na posição em que este

foi gerado. Enquanto alguns advérbios apresentariam o mesmo sentido independente da

posição (O João propositadamente tinha estado a falar com os amigos. / O João tinha

propositadamente estado a falar com os amigos.), outros advérbios (chamados de ambíguos)

teriam seu sentido drasticamente alterado (O João (estupidamente) tinha estado a falar

(estupidamente) com os amigos com os amigos.)

Utilizando o princípio de iconicidade para observar a tendência de codificar

linguisticamente junto o que é operado cognitivamente junto, levantamos, portanto, a hipótese

de que advérbios modificadores do verbo (como os qualitativos) tendem a aparecer próximos

do sintagma verbal, enquanto advérbios modificadores de toda a cláusula (como os

modalizadores) não seguiriam esta tendência. Como a observação da tendência de ordenação

dos advérbios (próxima ou distante do verbo) implica também considerar os diferentes valores

que estes apresentam, a análise funcional prevê um estudo das extensões semânticas que

caracterizam seus usos, unidirecional do mais representacional em direção ao mundo inter-

subjetivo do falante. Esta análise permite a compreensão dos chamados “advérbios ambíguos”

sem colapsar a teoria já que uma forma mais gramaticalizada da construção pode coexistir na

língua com a sua forma não gramaticalizada.

6.3. Conclusões iniciais de um próximo trabalho

O que pretendemos defender nessas breves considerações finais sobre os possíveis

debates acerca das questões que levantamos neste trabalho é que a ordenação dos advérbios

em -mente na história do português traz importantes conclusões para a linguística. Além das

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que foram levantadas ao longo do trabalho - (i) os advérbios qualitativos em mente/ment

sofreram uma mudança gradual na sua tendência de ordenação, que deixou de ser pré-verbal,

típica do latim, para ser pós-verbal, típica do português e do francês atuais; (ii) o século XIX

foi crucial na mudança não só da tendência de ordenação dos advérbios em –mente no

português, mas foi um século importante para a consolidação de mudanças no português do

Brasil; (iii) as mudança na tendência de ordenação dos advérbios em –ment ocorreu em um

período anterior ao ocorrido em português, provavelmente no século XVII; (iv) existe uma

trajetória unidirecional advérbio interno à cláusula > advérbio sentencial - também outras

questões bastante pertinentes, embora mais genéricas podem ser levantadas a partir desta

análise: (v) como processo de gramaticalização acompanha um processo de subjetificação dos

sentidos, não é possível estudar a gramática de uma língua sem considerar seu uso real no

discurso nem tampouco desvincular o estudo da sintaxe do estudo da semântica e, como

mencionado no início do primeiro capítulo (vi) as categorias com que lidamos em ciência,

inclusive as categorias linguísticas (como a própria dos advérbios) não podem ser vistas como

estanques e com propriedades suficientes e discretas. Há mais uma conclusão, talvez bastante

inconclusiva, a que esta pesquisa nos levou: é impossível fazer uma análise minimamente

razoável dos fenômenos que englobam a ordenação e gramaticalização de advérbios

qualitativos em –mente/ment sem levar em consideração um diálogo entre teorias, a princípio,

incompatíveis. Nesse ponto, espero ter deixado clara a importância de Point-Carré para o

presente trabalho: “O pensamento não é mais que um clarão em meio a uma longa noite”, e

aceito as limitações de minha análise fortemente guiada pela linha funcional. “Mas esse

clarão é tudo”: É, porém, a partir da análise detalhada de uma linha teórica e da aceitação de

que esta não é o fim, que chegaremos mais longe em trabalhos futuros. Daí minha

contribuição.

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