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GRAZIELLE ROCHA FRANÇA A MEDICALIZAÇÃO DO CONFLITO FAMILIAR PELA REDE DE PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE DO MUNICÍPIO DE PENHA/ SC Itajaí (SC) 2019

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GRAZIELLE ROCHA FRANÇA

A MEDICALIZAÇÃO DO CONFLITO FAMILIAR PELA REDE DE

PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE DO MUNICÍPIO DE

PENHA/ SC

Itajaí (SC)

2019

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO PROFISSIONAL EM

SAÚDE E GESTÃO DO TRABALHO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: SAÚDE DA FAMÍLIA

GRAZIELLE ROCHA FRANÇA

A MEDICALIZAÇÃO DO CONFLITO FAMILIAR PELA REDE DE

PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE DO MUNICÍPIO DE

PENHA/ SC

Dissertação submetida à Universidade do Vale do Itajaí

como parte dos requisitos para a obtenção do grau de

Mestre em Saúde e Gestão do Trabalho

Orientador: Prof. Dr. George Saliba Manske

Itajaí (SC)

Julho de 2019

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Ficha Catalográfica

Bibliotecária Eugenia Berlim Buzzi CRB 14/963

F844m

França, Grazielle Rocha, 1977-

A medicalização do conflito familiar pela rede de proteção à criança e ao adolescente do

município de Penha/ SC.

[Manuscrito] / Grazielle Rocha França. – Itajaí. SC. 2019.

105 f. ; il. ; fig.

Inclui referências bibliograficas: f. 76-84

Cópia de computador (Printout(s)).

Dissertação submetida à Universidade do Vale do Itajaí como parte dos requisitos para a

obtenção do grau de Mestre em Saúde e Gestão do Trabalho.

“ Orientador: Profº. Dr. George Saliba Manske .”

1. Conflito Familiar. 2. Rede de proteção à criança e ao adolescente. 3. Gestão em Saúde. I. Universidade do Vale do Itajaí. II. Título.

CDU: 159.922.8

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Dedicatória

Aos meus gatos Cherry e Ronneyzinho!

Meu eterno amor.

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AGRADECIMENTOS

O meu coração está cheio de alegria, e neste momento tão esperado escrevo os

meus agradecimentos.

Agradeço imensamente ao meu irmão, ao meu pai e a minha mãe, meus

amados patrocinadores, que entraram neste sonho comigo, e me oportunizaram uma

realização pessoal. Depois que eu me formei em Psicologia, passamos por tantas coisas

nessa montanha russa da vida, e sempre estivemos juntos. Desejo que a vida lhes cubra

de gratidão. Eu sei que muitas vezes vocês pagaram as mensalidades, deram o dinheiro

para a Donel, para o lanche, até para a cervejinha do boteco, pagaram gasolina,

emprestaram o carro, e que isso fez falta em casa. Mas eu jamais iria conseguir, porque

abri mão de um emprego público, ganho pessimamente mal no outro, e precisei de todo

esse amparo financeiro para chegar até aqui. Se não fossem vocês, principalmente, meu

irmão, jamais teria conseguido numa universidade privada. (Já estou chorando... coisas

de Gra). Meu obrigada mais sincero também ao meu cachorro Rico França,

companheiro de leituras. Maninho, amo você meu dog.

Agradeço ao meu “namorido” Alfredo, chamado carinhosamente por mim de

Love, que entrou nesse barco quando eu já estava a quilômetros do porto, por ter

segurado a minha mão nas minhas crises de ansiedade, por ter dormindo mal nas minhas

noites de insônia, por ter assumido tantas contas da nossa casa, por ter aprendido a me

respeitar nessa escolha de estudar, pelas broncas que me deu quando eu esquecia que

havia vida fora da dissertação, por estar presente nesse sonho e na minha vida. Obrigada

por tudo! Obrigada por nós!

Agradeço ao meu orientador George por ter me apresentado aos Estudos

Culturais, por ter me acompanhado nesse processo de tornar-me mestre em saúde, por

ter me acalmado em muitos momentos, principalmente, quando me percebi empacada

num mundo de materiais empíricos e referenciais teóricos. Para o resto da minha vida

quando for o meu aniversário, vou lembrar de você! Meu muito obrigada George!

Agradeço com um carinho grandioso ao meu querido amigo Sandro Alex, que

foi a pessoa depois do orientador, que mais leu os meus escritos, que esteve no mesmo

barco quando parecíamos dois náufragos, mas que como um bom marinheiro, ajudava-

me sempre a segurar o leme e buscar a ancora. Quero passear lá em Brusque para

conhecer a quase uma dúzia de cachorrinhos. Muito obrigada!

Agradeço com o coração cheio de boas memórias ao nosso Bonde das

Falcatruas – Renata, Aldry, Marcos, Theo, Thiago, Sandro, e Marcelo. Que a vida nos

proporcione novos encontros regados à batatinha (com bacon, queijo e cebolinha), só

que com uma cerveja melhorzinha. Obrigada pelas risadas, pelos bons momentos que

vivemos juntos.

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Agradeço aos professores do mestrado, especialmente, ao professor Carlos

Eduardo, que foi meu supervisor de estágio no curso de Psicologia, e que me viu crescer

na profissão de psicóloga atuante no SUS. Acho muito legal que durante todos os anos

que se passaram já tivemos vários momentos de nos reencontrarmos.

Deixo um abraço a professora Rita, que para mim sempre foi um referencial de

humanidade neste curso, e de entusiasmo e respeito pelo SUS.

Agradeço aos demais colegas do mestrado e do GEPEC pelas trocas que

realizamos neste dois anos de convivência.

Agradeço a minha psicóloga Ana Lúcia que nesses dois anos me escuta falando

do mestrado quase todas as semanas, me retroalimenta com a segurança de que

baixando a ansiedade tudo vai dar certo. Ana, você não tem ideia das vezes em que eu

me senti desmoronando, e você com todo seu suporte fazia com que eu me encontrasse

e que visse que em outros momentos da vida me senti tão ansiosa quanto nesse, e

consegui chegar até o fim.

Agradeço aos SUS, o lugar especial em que eu me encontrei como psicóloga,

aos anos de atuação como psicóloga de crianças, de adolescentes e de suas famílias, a

esse campo de trabalho e de pesquisa tão vasto e encantador. Agradeço aos profissionais

da Rede de Proteção à criança e ao adolescente que toparam participar desse estudo, e

que assim como eu almejam mudanças nos nossos processos de trabalho. E por fim, às

famílias reais que me motivam a levantar todos os dias cedinho para a clínica

psicológica, que me proporcionam encontros e desencontros nesse contexto clínico e de

vida.

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EPÍGRAFE

A Família de Tarsila Amaral (1925)

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A MEDICALIZAÇÃO DO CONFLITO FAMILIAR PELA REDE DE

PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE DO MUNICÍPIO DE

PENHA/ SC

Grazielle Rocha França

Julho/2019

Orientador: George Saliba Manske, Doutor em Educação.

Área de Concentração: Saúde da Família.

Número de Páginas: 105.

RESUMO: Objetivou-se nesta pesquisa compreender como os profissionais da Rede de

Proteção à Criança e ao Adolescente do município de Penha (SC) acionam

representações de sujeitos a partir dos encaminhamentos realizados para a clínica

psicológica do Sistema Único de Saúde (SUS) tendo como justificativa a queixa de

conflito familiar. Tratou-se de uma pesquisa orientada pelos métodos qualitativos no

campo dos Estudos Culturais com técnicas de pesquisa de campo. Mapeando-se a Rede,

bem como, descrevendo as instituições e os profissionais, realizaram-se entrevistas no

período de 23 de novembro de 2018 a 29 de janeiro de 2019, com cinco sujeitos,

posteriormente transcritas na integra. Além disso, registraram-se observações, reflexões

e impressões no Diário de Campo. Por meio de análise cultural amparada no campo dos

Estudos Culturais, duas categorias de representação de sujeito foram elencadas: o

sujeito caracterizado em atraso de desenvolvimento pela família conflitante; e o sujeito

da garantia de Direitos. Em seguida, elencou-se uma terceira categoria: o governamento

das crianças, adolescentes, famílias e profissionais da Rede. Por fim, por se tratar de um

mestrado profissional, como tecnologia social, um material pedagógico foi construído

para educação permanente dos profissionais da rede protetiva que realizaram os

encaminhamentos das crianças e dos adolescentes. Como conclusão apontou-se que

apesar de não haver uma definição do que é conflito familiar, por mais que houvesse

uma tentativa de fixar uma concepção, nenhum sentido seria possível de abarcar

situações tão peculiares nas diversas dinâmicas familiares, culturais e sociais. Ainda,

que o dito atraso no desenvolvimento, o rompimento do vínculo familiar, a cisão na

garantia dos direitos, por mais que aparentem devolver o direito às crianças, tratam-se

de formas de governamento e de medicalização do conflito familiar. Nesses

encaminhamentos das famílias há um jogo de poder de quem encaminha e é

encaminhado, lutas e resistências até que as relações de violência ajam coercitiva ou

punitivamente. A Tecnologia Social proposta vem como uma nova forma mais sutil de

governamento, diferente da forma direta de encaminhar as crianças e os adolescentes

para avaliação psicológica, visando um laudo técnico, mas ainda por ter um cunho

terapêutico, encontra-se no viés medicalizante do conflito familiar.

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Palavras-chave: Conflito Familiar; Medicalização; Rede de proteção à criança e ao

adolescente; Representação do sujeito.

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MEDICALIZATION OF FAMILY CONFLICT BY THE NETWORK OF

PROTECTION OF CHILDREN AND ADOLESCENTS OF THE

MUNICIPALITY OF PENHA / SC

Grazielle Rocha França

July/ 2019

Advisor: George Saliba Manske, Doctor of Education.

Area of Concentration: Family Health.

Number of Pages: 105.

ABSTRACT: The objective of this research is to understand how the professionals of

the Child and Adolescent Protection Network of the city of Penha, state of Santa

Catarina, trigger representations of subjects from the referrals made to the psychological

clinic of the Sistema Único de Saúde – SUS (Brazilian Unified Health System) after a

complaint of family conflict. The research was guided by qualitative methods in the

field of Cultural Studies using field research techniques. After mapping the network out,

and describing institutions and professionals, interviews were carried out in the period

from November, 23rd 2018 to January, 29th 2019, with 5 (five) subjects, interviews were

recorded and subsequently transcribed in full. In addition, observations, reflections and

impressions were registered in a Field Journal. Through cultural analysis based on the

Field of Cultural Studies, two categories of subject representation were listed: the

subject characterized as having developmental delay by the conflicting family; and the

subject of rights guarantees. Next, a third category was listed: the control of children,

adolescents, families and professionals of the Network. Finally, since this is a

requirement for a professional master's degree, as a social technology, a pedagogical

material was created for the in-service training of the professionals of the protection

network who referred the children and adolescents to other professionals. As a

conclusion, it was pointed out that although there is no definition of what is family

conflict and regardless of an attempt to define it, not one single meaning would be able

to encompass such peculiar situations within the diverse family, cultural, and social

dynamics. In addition, the said developmental delay, the breach in family bonding, the

termination of the assurance of rights, although they may seem to return to the child the

guarantee of rights, they are mere ways of control and medicalization of family conflict.

In these referrals of families, there is a game of power of those who makes the referral

and those who are referred, struggles and resistances until the relations of violence take

place in a coercive or punitive manner. The Social Technology proposed comes as a

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new subtle way of control, differing from the direct way of referring the child and

adolescent to psychological evaluation, aiming at a technical opinion, and also having a

therapeutic nature; it tends to be a medicalization of the family conflict.

Keywords: Family Conflict; Medicalization; Child and adolescent protection network;

Representation of the subject

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LISTA DE ABREVIATURAS

CID – 10 – Código Internacional das Doenças

CFP – Conselho Federal de Psicologia

CRAS – Centro de Referência de Assistência Social

CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência Social

ESF - Estratégia de Saúde da Família

GEPEC – Grupo de Estudos Culturais

NAM – Núcleo de Atenção à Mulher e a Criança

NASF – Núcleo de Apoio à Saúde da Família

SUAS – Sistema Único de Assistência Social

SUS – Sistema Único de Saúde

UBS – Unidade de Saúde Básica

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO............................................................................................ 15

2 DESENVOLVIMENTO.............................................................................. 21

2.1 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA/FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA...... 21

2.1.1 O conflito familiar.................................................................................. 21

2.1.2 A medicalização...................................................................................... 29

2.1.3 A rede de proteção à criança e ao adolescente..................................... 32

2.1.4 A representação do sujeito…………………………………………… 35

2.2 MATERIAL E MÉTODOS…………………………………………….. 40

2.3 RESULTADOS E DISCUSSÃO.............................................................. 43

2.3.1 ESCARAFUNCHANDO OS ENCAMINHAMENTOS CLÍNICOS 43

2.3.1.1 Mapeando os profissionais e a rede de proteção do conflito

familiar.............................................................................................................

43

2.3.1.2 A representação do sujeito da Instituição Saúde caracterizado pelo

atraso do desenvolvimento.....................................................................

50

2.3.1.3 O sujeito da Assistência Social encaminhado para garantir seus

Direitos..............................................................................................................

55

2.3.1.4 O governamento das famílias e dos profissionais da rede por meio da

medicalização dos conflitos familiares............................................

59

2.3.1.5 A educação permanente dos profissionais da rede de proteção à

criança e ao adolescente como tecnologia social...........................................

67

3 CONCLUSÃO.............................................................................................. 71

REFERÊNCIAS............................................................................................... 75

APENDICE...................................................................................................... 85

ANEXO............................................................................................................. 103

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1 INTRODUÇÃO

A estagiária de Psicologia me procura e avisa-me que o Conselheiro Tutelar me

aguarda. Sinto arrepios. Recebo três requisições de serviço público. Nelas constam

“conflito familiar” [sic] e nada mais. O motorista do Conselheiro Tutelar abre a porta do

consultório como se estivesse em casa, na ânsia de me entregar o encaminhamento.

Mais uma criança encaminhada devido ao conflito familiar. Nas palavras do conselheiro

“a criança reside com a genitora e o padrasto, existe conflito instalado entre genitora e

genitor. A genitora menciona que cada vez que a criança vai visitar o genitor, retorna

bastante triste, talvez em virtude dos comentários realizados pelo genitor à criança”

[sic].

Encaminhamentos com esse padrão de queixa principal, como os acima citados,

fazem parte da minha rotina de trabalho. Todavia, antes de conversamos sobre isso,

desejo me apresentar, pois parafraseando Foucault (2002), um autor só existe quando sai

do anonimato.

Muito prazer! Sou Grazielle, psicóloga, especialista em psicologia clínica de

crianças e de adolescentes, psicopedagoga e psicoterapeuta, inserida nesse universo da

medicalização da infância e da adolescência há mais de 15 anos, sendo os 10 últimos no

contexto da saúde pública.

Costumo brincar que eu sou aquela profissional que medicaliza, pois faço

avaliações psicológicas de crianças e de adolescentes, que chegam até mim pela Rede

de Proteção à Criança e ao Adolescente. Realizo encaminhamentos para as

especialidades Psiquiatria, Neurologia, e Neuropediatra para avaliação de diagnóstico

diferencial, bem como para prescrição medicamentosa. Escrevo relatórios, laudos e

pareceres psicológicos que perpassam escolas, médicos, juízes e promotores, e afirmam

um diagnóstico, motivo que muito já me orgulhou pela qualidade deles, e elogios que

recebi na minha trajetória profissional. Além disso, sou também uma sujeita

medicalizada, pois faço acompanhamento sistemático com psiquiatra e psicóloga, para

tratar dos efeitos hormonais e colaterais da Tensão Pré-Menstrual, chamada

carinhosamente de Medicalização da TPM.

Com a minha inserção no mestrado profissionalizante, naquela fase de

reconhecer um tema significativo que contribuísse para alguma transformação social,

passei a perceber que muitas crianças e adolescentes estavam sendo encaminhados com

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a queixa de conflito familiar. Todavia, não há um critério claro que defina o que é

conflito familiar por esses profissionais da rede de proteção à criança e ao adolescente.

Percebo uma generalização no uso do termo.

Os conflitos familiares ainda não foram enquadrados nos manuais de psiquiatria

como uma psicopatologia, mas já estão sendo monitorados do ponto de vista do cuidado

à atenção clínica. As crianças e adolescentes encaminhados para a clínica psicológica

com a queixa de conflito familiar chegam com a solicitação de que se realize um

diagnóstico nosológico e psicopatológico, explicando as relações familiares conflitantes

por meio de uma doença psicopatológica. Porém, não é para a família ser avaliada, e

sim a criança ou o adolescente, pois são quem apresentam os sintomas. Na Psicologia

Clínica chamamos isso de bodes expiatórios das relações familiares conflitantes.

Corrêa (2010) nos recorda que as crianças que não fornecem uma resposta

esperada são tratadas como doentes. Entendo que a resposta esperada socialmente tanto

para as crianças quanto para os adolescentes relaciona-se a um comportamento calmo,

sem traços de agitação ou de ansiedade, atento, concentrado, obediente, disciplinado,

educado, extrovertido (e não introvertido, ou tímido) com desempenho satisfatório na

escola (boas notas), capaz de seguir regras e normas de conduta no espaço escolar,

doméstico e social. Para Corrêa (2010) a criança que apresenta sintomas psicológicos,

comportamentais e emocionais precisa ser contida por medicações. Algo bem

semelhante já ocorreu com os comportamentos desviantes, com a atenção, com o corpo,

com a sexualidade, com as dificuldades para aprender, com a TPM, com a timidez, que

são tratados como problemas médicos, e agora ocorre, de modo semelhante, com os

conflitos familiares.

Zorzanelli, Ortega e Bezerra Junior (2014) explicam que uma das possibilidades

de compreensão da medicalização implica em determinar um comportamento social

como um problema médico, descrevendo um processo pelo qual problemas não médicos

são definidos em termos e doenças ou transtornos. Gaudenzi e Ortega (2012) apontam

que a recusa do diagnóstico representa um processo de desmedicalização, um ato de

resistência inerente a qualquer relação de poder.

A pesquisa em questão acerca da medicalização dos conflitos familiares foi

inserida no campo dos Estudos Culturais, com aporte no Pós-Estruturalismo. Os

Estudos Culturais trata-se de um campo acadêmico e teórico sobre culturas. A cultura é

definida como um conjunto de crenças, valores, códigos, costumes que são produzidos e

compartilhados de forma coletiva, através da linguagem. As pesquisas neste campo de

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estudo iniciaram-se na Inglaterra em 1960, buscando compreender a relação entre

cultura, sociedade e mudança social.

A partir do tema medicalização dos conflitos familiares é possível perceber sua

inserção em aspectos substantivos e epistemológicos da cultura. Hall (2000) define

como aspecto substantivo o lugar empírico de materialidades na cultura, como na

organização das atividades, instituições, relações na sociedade, em qualquer momento

histórico particular. A seguir apresento algumas situações que compõem os aspectos

substantivos da cultura no que se refere à temática em questão.

Observando os vídeos sobre conflitos familiares do Canal YouTube, percebo que

há religiosos, psicólogos, pedagogos, advogados, filósofos, sociólogos, neurocientistas,

psicanalistas abordando o tema, e ensinando o que fazer para a resolução dos conflitos.

Noto que há uma ânsia social de se viver em paz e harmonia, tanto que o poder

judiciário por meio de uma técnica chamada Constelação Familiar tem utilizado esse

recurso para resolver situações familiares conflitantes, e tem conseguido realizar

conciliações em massa, reduzindo a morosidade dos processos.

As charges do Armandinho, personagem criado em 2009 por Alexandre Beck,

agrônomo, publicitário e ilustrador, pela primeira vez para homenagear as famílias dos

envolvidos com o gravíssimo acidente na Boate Kiss em Santa Maria (RS), e que

ganhou espaço na Rede Social Facebook com mais de 135 mil seguidores, com tirinhas

a respeito de pais, mães e filhos, aborda as questões familiares. Numa delas o pai diz à

Armandinho, “não existe receita de família, filho. Família pode ser de todo o tipo... com

todo o tipo de ingrediente”. Armandinho responde, “eu sei, mas estou falando dos

biscoitos da vovó”. No cinema o filme “Álbum de Família”, ano 2013, protagonizado

pelas atrizes Julia Roberts e Meryl Streep, aborda os conflitos familiares que foram por

muito tempo escondidos, e revigoraram após o suicídio do patriarca da família... no

filme chama-me atenção a frase “a família nos dá forças, a família nos consome”. Além

desses exemplos é possível destacar, também, comerciais de margarina que projetam

famílias perfeitas, felizes e sorridentes, reunidas à mesa. Compreendo que a noção de

família circula nesses espaços culturais, nos exemplos mencionados, seja modelando um

ideal de família, seja postulando o que não se adequa ao ideal, no intuito de adequar-se.

Porém, como afirma Mello (1992) nos últimos tempos houve importantes modificações

no modelo familiar considerado normal, tratando-se dos aspectos epistemológicos da

família, enquanto cultura.

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Por outro lado, em relação aos aspectos epistemológicos da cultura, segundo

Hall (1997), estes se referem às questões de conhecimento e conceitualização

envolvidas em determinados fenômenos, ou seja, como a cultura é utilizada na

compreensão, explicação e modelos teóricos. No caso do tema deste estudo, os aspectos

epistemológicos se referem às famílias que não seguem um padrão normativo de

estrutura familiar, que vem sido cada vez mais tratadas como doentes. As famílias que

apresentam comportamentos tidos como problemáticos são taxadas como

desorganizadas, e acabam sendo desqualificadas, e seus comportamentos são

compreendidos e traduzidos em transtornos. Analisando a relação entre cultura e

sociedade, Mello (1992) aponta que a família nuclear monogâmica com pai, mãe e

filhos, é um modelo ordenador, de representação da família ideal, uma família isenta de

conflitos. Para a autora, esse é um modelo interiorizado pelas pessoas, no qual há um

modelo estereotipado de afeto. Essa representação de perfeição de família mostra como

as famílias deveriam ser e não como realmente são, e isso não significa que os conflitos

não ocorram.

Outros modelos de família que fujam da norma são vistos com preconceito. Por

exemplo, Mello (1992) aponta que nos aglomerados familiares, mesmo havendo tantas

trocas, ajudas, colaborações, ainda há brigas. Segundo a autora, nas classes populares,

enfatiza-se a desorganização familiar acentuada, como a responsável pelo fracasso

moral de seus membros. Para Mello (1992) esse olhar estigmatizante ressalta os

conflitos, deixando de se importar com a qualidade das relações, desqualificando as

famílias das classes populares.

Percebo que há uma diferença no modo como se lida com filhos de famílias

oriundas de setores menos favorecidos da sociedade em relação as de setores mais

favorecidos. Em um condomínio de luxo na cidade que resido, muitas famílias foram

alertadas que as crianças e os adolescentes de diferentes idades estavam se envolvendo

em brincadeiras sexuais, e o assunto encerrou-se por ali. Pela experiência profissional

que tenho, se isso tivesse acontecido em algum bairro de periferia, teriam acionado o

Conselho Tutelar, assim como outras vezes já fizeram, e essas famílias seriam

notificadas por violação de direitos, e muitas dessas crianças seriam encaminhadas para

avaliação ou acompanhamento psicológico.

A cultura enquanto um sistema de representações e de significados opera nos

conflitos familiares regulando a conduta das famílias que não se encaixam nesse modelo

tido como ideal, ordenador e normativo. Ainda há um viés conservador e tradicionalista

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arraigado às famílias, e quem não se adequa a esse padrão é encaminhado para a

Psicologia e para a Medicina, aos tratamentos baseados no modelo biomédico, para

submeter-se ao diagnóstico e ao tratamento. Assim, acaba por existir um tipo específico

de sujeito, o sujeito medicalizado. Do mesmo modo, isso ocorre com as famílias,

transformadas em famílias medicalizadas, reguladas nessa cultura, e isso influencia na

representação social das mesmas, como afirma Hall (2000), afetando as identidades e as

subjetividades das pessoas enquanto atores sociais. Para o autor, essa homogeneização

cultural acaba com as particularidades e diferenças locais, que causam impacto no viver.

A partir do exposto, a seguinte questão de pesquisa foi elaborada: como os

profissionais da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente do município de

Penha/SC acionam representações de sujeitos a partir dos encaminhamentos realizados

para a clínica psicológica do município tendo como justificativa a queixa de conflito

familiar?

O referencial de análise teórica que norteou esse estudo ancorou-se no conceito

de sujeito e os processos de subjetivação elaborados por Michel Foucault. A discussão

acerca desses conceitos está situada mais adiante nesta dissertação. Por ora, cabe

destacar que Williams (2013) afirma que Michel Foucault e outros pós-estruturalistas

penetraram nos estudos culturais, transformando-se num poderoso referencial teórico

para a análise da sociedade, cultura e economia, vistas como sistemas de significação. O

pós-estruturalismo, conforme Peters (2000), começou na França no início dos anos 60,

inspirados nos trabalhos de Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger. Para Peters (2000,

p. 28), o pós-estruturalismo é um movimento de pensamento interdisciplinar, por ter

variadas correntes filosóficas, caracterizado por um “modo de pensamento, um estilo de

filosofar e uma forma de escrita”.

Peters (2000) ressalta que os pensadores pós-estruturalistas desenvolveram

formas de análise para à crítica de instituições, dentre elas, as escolas, as famílias, a

clínica, o Estado... Consoante Peters (2000, p. 36) o pós-estruturalismo critica a

pretensão da universalidade, cuja ênfase tende a excluir grupos sociais e culturais que

agem de acordo com critérios sociais diferentes. Para tanto, Mello (1992) aponta que o

pesquisador traz um modelo para o que ele pretende observar. Porém, como não há

famílias isentas de conflitos, quebrar o conceito de normalidade é necessário, pois como

afirma a autora “quando o pesquisador se liberta do modelo, liberta-se do preconceito,

vê as famílias como elas são, não como deveriam ser” (MELLO, 1992, p. 127). Tal

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exercício é realizado diariamente por mim enquanto psicóloga clínica, e com certeza,

como pesquisadora foi reforçado.

Desse modo e a partir do exposto, organizei o seguinte objetivo geral de

pesquisa: Compreender como os profissionais da Rede de Proteção à Criança e ao

Adolescente do município de Penha/SC acionam representações de sujeitos a partir dos

encaminhamentos realizados para a clínica psicológica do município tendo como

justificativa a queixa de conflito familiar.

Na continuidade do objetivo geral, elenquei os seguintes objetivos específicos de

pesquisa: Mapear a Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente; Descrever os

profissionais e as instituições que realizam os encaminhamentos; Identificar a

concepção de conflito familiar pelos profissionais que encaminham; Relacionar os

processos de encaminhamento às tendências de medicalização da sociedade

contemporânea; Construir material pedagógico para a formação continuada de

profissionais que fazem parte da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente acerca

dos encaminhamentos que compõe o conflito familiar.

O texto segue abarcando a seguinte estrutura: um incurso pela revisão da

literatura sobre os temas centrais e abordagem de conceitos de fundamentação teórica;

os aspectos metodológicos que guiaram a pesquisa; discussão do material empírico

produzido e, por fim, as conclusões gerais do trabalho.

21

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA/FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1.1 O conflito familiar

Fonte: Google Imagens

A foto da Cinderela e do Príncipe Encantado é provocativa. Todos os contos de

fadas da Disney encerram-se com o famoso “e foram felizes para sempre” (aspas

minhas). Este ideal de relacionamento do mundo da fantasia é muitas vezes mantido e

almejado na vida real. No entanto, diferentemente da fantasia, no mundo real os

desenhos não abordam o que ocorre quando o casal vai morar junto no castelo, quando

a princesa engravida, quando há pilhas de boletos para pagar, quando a rainha se

intromete na vida deles e na educação dos filhos, quando o marido passa o sábado no

bar e volta para casa bêbado, quando brigam, quando discutem sobre os filhos, quando

se separam, quando começam a vivenciar os “conflitos familiares”.

Para uma primeira aproximação ao termo “conflitos familiares”, desmembrarei a

composição destas palavras. Consoante Ferreira (2017) “conflito” como um substantivo

masculino significa guerra, luta armada entre países, enfrentamento, divergência,

oposição de interesses e de opiniões. De acordo com o dicionário nos diferentes estados

de saberes, na altercação, significa discussão intensa e oposição recíproca entre as partes

que disputam o mesmo direito (FERREIRA, 2017). Já na ciência psicológica, seguindo

as definições do mesmo dicionário, conceitua-se conflito como condição mental de

quem apresenta perturbação ou insegurança. No Teatro é visto como o elemento inicial

da narrativa. Por fim, na Literatura como oposição, choque de interesses, normalmente

entre o personagem principal, o ambiente externo ou a si mesmo (FERREIRA, 2017).

Ferreira (2017) apresenta como sinônimos de conflito: perturbação, tumulto,

revolta, motim, agitação, divergência, guerra, alvoroço, espalhafato e enfrentamento. O

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dicionário Michaelis (2008, p. 213) é mais sucinto nas definições, conceituando como

“1 Luta, combate. 2 Barulho, desordem, tumulto. 3 Momento crítico”.

Ao buscar conhecer a origem da palavra conflito e sua etimologia, segundo o

site a “Origem da Palavra” (2017, pergunta 165), situo-me com o fato de que esta vem

do latim – conflictus [sic], particípio passado de confligere, “bater junto, estar em

desavença” (aspas do autor). Tais acepções indicam que o conflito está associado à luta,

denotando até mesmo uma ação corporal agressiva, que visa atingir o outro, num estado

de ataque. Fonseca (2004, p. 20) explica que a violência, a agressividade, é uma “arma

mais ou menos aceita para a resolução de conflitos e, nesse sentido, podemos dizer que

a força física é um elemento importante”. Desse modo, essa conotação bélica faz muito

sentido nos tempos atuais, em que os conflitos por territórios, bens materiais, e entre

pessoas são tão vigentes, aonde verdadeiras guerras físicas e psicológicas são traçadas a

ferro e fogo.

No que se acena à família, complemento do termo “conflito” deste estudo,

Michaelis (2008, p. 385) indica que se trata de “1 Pessoas do mesmo sangue, que vivem

ou não em comum. 2 Conjunto de ascendentes, descendentes, colaterais e afins de uma

linhagem. 3 O pai, a mãe e os filhos”. De outro modo a palavra família é definida por

Ferreira (2017, p. 243) de um modo mais extenso, como:

1 Conjunto de parentes de uma pessoa, e principalmente, dos que

moram com ela; 2 Conjunto de formado pelos pais e pelos filhos; 3

Conjunto formado por duas pessoas ligadas pelo casamento e pelos

seus eventuais descendentes; 4

Conjunto de pessoas que têm um ancestral comum; 5 Conjunto de

pessoas que vivem na mesma casa; 6 Raça e estirpe; 7 Conjunto de

vocábulos que têm a mesma raiz ou o mesmo radical; 8 Grupo de

animais, de vegetais, de minerais que têm caracteres comuns; 9 Grupo

de elementos químicos com propriedades semelhantes; 10 De família:

familiar; íntimo; sem cerimônia. 11 Família miúda: filhos pequenos.

12 Sagrada família: representação de Jesus com a Virgem Maria e

José.

Piris (2007) assinala que a palavra família é derivada do latim familiae [sic]

entendido como escravo doméstico. Conforme o autor, o termo surgiu na Roma Antiga,

para nomear um grupo social que nasceu nas tribos quando essas pessoas foram

introduzidas à agricultura. A “Origem da Palavra” (2017) traz como etimologia da

palavra família, grupo doméstico, que incluía os servos da casa, chamados de famuli.

Acerca da acepção da palavra, compreendo que tratava-se de pessoas que estavam às

23

ordens ou à disposição, o que implicava numa relação de hierarquia estabelecida. Sarti

(2007) aponta sobre o padrão tradicional de autoridade e de hierarquia, presentes nas

obrigações morais, e no modo de pais e filhos se relacionarem.

Trazendo um pouco da história da família, Alves (2014) explica que na Grécia a

família era monogâmica, com a figura do homem dominante sobre a mulher, que tinha

como procriar seu único papel na sociedade. O autor explica que os filhos eram bens do

homem, e que somente ele poderia romper com o matrimônio, caracterizando o poder

paterno, no qual estão todos submetidos às vontades do paterfamilia. Conforme Alves

(2014) em Roma o paterfamilia era um poder absoluto do homem sobre a esposa e seus

filhos e filhas. Segundo o autor, o pater seria um chefe político e juiz do lar,

concomitantemente. A esposa passava por uma única transição de filha à mulher, sem

autonomia, não possuindo direitos próprios perpetuamente. Alves (2014) ainda

complementa dizendo que todos os membros estavam sob a jurisdição do pater, cujo

poder sempre centralizava-se no primogênito ou em outro homem inserido nesta

família.

De acordo com Ariés (1981) a vida em família até o século XVII era pública,

pois tudo acontecia num movimento de uma vida coletiva, e as famílias conjugais se

misturavam nesse meio. Conforme o autor, a partir do século XVIII lentas

transformações deram início no interior das famílias, surgindo um “sentimento de

família” [sic], marcado pelo desejo da privacidade. Segundo Moreira e Vasconcelos

(2003), citados por Andrade (2010, p. 49) começaram inclusive a surgir mudanças no

espaço físico no qual as famílias viviam, assim “a família começou a se manter à

distância da sociedade. Emergiram as noções de intimidade, discrição e isolamento, ao

se separar a vida mundana, a vida privada, cada uma circunscrita a espaços distintos”.

Para Andrade (2010) nesse movimento instaura-se a família burguesa.

Andrade (2010, p. 50) afirma que o modelo de família burguesa provoca

alterações no contexto familiar, como por exemplo, na divisão e na diferenciação dos

papeis sexuais. De acordo com a autora, neste novo contexto “o homem passa a ser

visto como provedor, devendo, portanto, fazer parte do mundo público, e a mulher,

responsável pela casa e educação dos filhos, fazendo parte do mundo privado”. Ainda,

segundo Andrade (2010) com a burguesia surgiu um novo sentido de família,

apresentando o modelo nuclear, trazendo também um novo sentimento de infância, que

coloca a criança numa relação diferenciada do adulto. Para a autora, a família precisava

24

manter as relações sociais e produtivas do modelo capitalista, garantindo aos seus

membros a sobrevivência física, social e psicológica.

O poder centrado no pai de família com o passar dos anos perdeu seu

encantamento. Alves (2014) explica que esse enfraquecimento ocorreu na Idade Média,

caracterizado pelo Teocentrismo, devido as influências da religião. Conforme o autor, a

família tornou-se uma instituição divina, e para que nem homens e mulheres vivessem

no pecado, ordenou o casamento como forma de solução, ditando que somente a morte

poderia dissolver a união.

Conforme Alves (2014) a Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de

2002, desvincularam a família do matrimônio, exaltando a socioafetividade,

descaracterizando o modelo clássico de pai, de mãe e de filhos. Conforme Diniz (2002,

p 11) uma família monoparental é desvinculada da ideia de um casal com seus filhos,

pois “estes vivem apenas com um dos seus genitores, em razão de viuvez, separação

judicial, divórcio, adoção unilateral, não reconhecimento de sua filiação pelo outro

genitor, produção independente”.

Alves (2014) ainda aborda as famílias homoafetivas, bem como as poliafetivas.

Relata que as famílias homoafetivas são formadas por pessoas do mesmo sexo, que

mantem laços afetivos entre si. Cita uma decisão de 2011 do Supremo Tribunal Federal

que considera a União Homoafetiva como entidade familiar. Quanto às famílias

poliafetivas, refere que se trata de uma configuração familiar composta por três ou mais

pessoas, independente do sexo das mesmas. Cita uma jurisprudência de 2012, na qual

três pessoas oficializaram uma união, garantindo o direito da constituição familiar

(ALVES, 2014). Ainda, o autor Travis (2003) aborda a respeito das famílias dos

recasamentos. Trata-se da tentativa de repetição do casamento, quando um dos novos

cônjuges já foi casado, e se casa outra vez.

Outros modelos de família que fujam da norma são vistos com preconceito. Por

exemplo, Mello (1992) aponta que nos aglomerados familiares, mesmo havendo tantas

trocas, ajudas, colaborações, ainda há brigas. Segundo a autora, nas classes populares,

enfatiza-se a desorganização familiar acentuada, como a responsável pelo fracasso

moral de seus membros. Para Mello (1992) esse olhar estigmatizante ressalta os

conflitos, deixando de se importar com a qualidade das relações, desqualificando as

famílias das classes populares, tal como refere Fonseca (2004, p. 30), que ressalta que

“a cultura da pobreza explica tudo”. Sarti (2007) complementa dizendo que

culturalmente a família é vista como um lugar onde se combinam e se socializam os

25

efeitos da pobreza. Para a pesquisadora, o pobre é avaliado como bom pobre ou mau

pobre, e há uma concepção que relaciona a pobreza como um mal social, promulgador

da violência, degradação moral e promiscuidade.

Observando os temas pesquisados compreendo que em se tratando de conflito

familiar, a maioria dos estudos se dá na área da saúde, bem como, na área de humanas,

principalmente, na Psicologia, Psiquiatria, Psicanálise, e em outras áreas, no Direito e

Ciências Políticas. Todavia são temas abrangentes que enfocam o relacionamento

conjugal, do casal com seus filhos e filhas, na saúde mental, na psiquiatria forense, e nas

diversas instâncias relacionadas ao Direito (adoção, separação, divorcio, custódia e

guarda da criança).

Não há em nenhum dicionário uma definição clara e objetiva do que se define

por conflito familiar, e caso houvesse, seria uma tentativa de fixar sentidos e

significados para dinâmicas culturais tão diversas e díspares tais como a que temos

conhecimento. Consultando dicionários específicos de Direito e de Psicologia, percebo

que também não há uma definição epistemológica. Porém, os conflitos familiares têm

sido objetos de estudo de advogados, psicólogos, assistentes sociais, juízes, promotores,

conselheiros tutelares, dentre outros profissionais. A Pontifica Universidade Católica de

Minas Gerais oferece um curso de extensão de 48 horas sobre o assunto, ensinando

“tudo” (aspas minhas) sobre o conflito familiar.

Do ponto de vista do Direito, os advogados Souza, Peres, Carvalho e Cabral

(2017) explicam que os conflitos são inerentes às relações humanas. Segundo os

autores, atualmente um desajuste emocional instalou-se nas famílias, devido a

separação, partilha de bens, conflitos de diferença, e desentendimentos entre pais e

filhos. Explicam que como as famílias estão num processo dinâmico, os conflitos

surgem quando há oposição de interesses. Muller, Cruz e Beiras (2007) identificam

conflitos familiares em casos de questões patrimoniais, separações, disputa de guarda, e

investigações de paternidade.

Muller, Cruz e Beiras (2007) afirmam que a complexidade dos tipos de famílias

enseja situações que demandam estudos de diversos profissionais. Para os autores, os

operadores do Direito, não desenvolveram competências para lidar com os aspectos

psicológicos gerados pelos conflitos. Eu como psicóloga também assinalo que não cabe

aos profissionais desenvolver. Os autores citados acreditam que é a esfera psicológica

que acarreta e sustenta o conflito. Por isso, faz parte da conduta dos operadores

encaminharem os conflitantes para a Psicologia Clínica.

26

Em se tratando da Psicologia Clínica, Fonseca (2004) salienta que há um

argumento em que afirma que pessoas criadas em famílias tidas como desorganizadas,

reproduzem comportamentos disfuncionais, aprendidos com os próprios pais e mães.

Numa linguagem mais corriqueira, trata-se daquele famoso ditado popular, “filho de

peixe, peixinho é” (aspas minhas). Segundo Fonseca (2004) o olhar da Psicologia volta-

se para a patologia e para a inadaptação, no qual qualquer desvio da norma é visto como

implicitamente problemático.

Para Teodoro, Cardoso e Freitas (2010), ainda do ponto de vista da Psicologia

Clínica, o conflito familiar é caracterizado como uma gama de sentimentos que pode

gerar estresse e agressividade dentro do sistema familiar. Teodoro, Cardoso e Freitas

(2010) apontam que o sistema familiar é reconhecido como de fundamental importância

para a socialização e formação da identidade da criança. Os autores pontuam que a

interação entre os familiares vem sendo estudada, considerando que famílias de

relacionamento adequado são fatores de proteção para alguma psicopatologia infantil.

Fonseca (2004) complementa dizendo que há um modelo de comportamento certo, bem

como um modelo ideal de família que norteia. Para a autora, a família tem forças,

justamente porque no espaço privado ocorrem as fontes de organização da cultura.

Rohenkohl e Castro (2012) afirmam que as famílias transmitem crenças, ideias e

conceitos, e influenciam o comportamento das crianças. Realizaram um estudo a

respeito do nível de afetividade, conflito familiar e problemas de comportamento,

revelando que quanto maior o conflito entre pais e filhos, maiores os problemas de

comportamento infantil (ROHENKOHL e CASTRO, 2012).

E abordando o viés social, Sarti (2007) esclarece que a família como uma esfera

social tem uma dinâmica própria, e não apenas reproduz os mecanismos da sociedade.

Para a autora, “a família não é apenas o elo afetivo mais forte dos pobres, é o núcleo de

sua sobrevivência material e espiritual” (p.68). Patterson, Reid e Dishion (1992) citados

por Rohenkohl e Castro (2012), abordam, do ponto de vista social, que desajustamento

do casal, problemas sociais, desvantagens sociais dos pais, conflitos entre vizinhos,

relacionamento entre pais e filhos como possíveis conflitos.

Consoante Rohenkohl e Castro (2012) o conflito é caracterizado por emoções

negativas no âmbito familiar. Além disso, abordam o nível socioeconômico e o contexto

social e cultural das famílias. Para os autores, por exemplo, quando se fala em famílias

de baixa renda, deve-se considerar suas condições de vida e como isso influencia nas

interações entre seus membros. As mesmas pontuam sobre a cultura social e pessoal que

27

influencia as práticas educativas dos filhos. Sarti (2007) afirma que na família estrutura-

se o mundo simbólico dos indivíduos, e que se estabelecem padrões de relacionamento

que vão se reproduzir na vida social.

Realizando uma consulta no Bireme em 13 de fevereiro de 2018, constato que

não há artigos ou pesquisas que relacionem a rede de proteção à criança e ao

adolescente aos conflitos familiares. Todavia, pesquisando no Google Notícias em 31 de

janeiro de 2018, não fico surpresa quando em vários lugares do país, os conflitos

familiares lideram o ranking em primeiro lugar, do número de ocorrências nos

Conselhos Tutelares. Por exemplo, a Vara da Infância e da Juventude do Distrito

Federal, no ano de 2013, dispôs de uma cartilha de – Violação dos Direitos das Crianças

e dos Adolescentes, que elenca como ameaça ou violação de direito: o abandono

material, os conflitos familiares, a negligência e as violências (sexual, física e

psicológica). Nessa cartilha, ainda definem como rede de proteção, qualquer serviço que

preste atendimento à criança ou ao adolescente, tais como, entidades de acolhimento,

escolas, creches, conselho tutelar, delegacias, hospitais, centros de saúde, órgãos do

Ministério Público e Poder Judiciário.

Howe (1992) aponta que as famílias são objetos de inquérito de psicólogos,

assistentes sociais, promotores e juízes que compõe a rede protetiva à criança e ao

adolescente. Segundo o autor, os profissionais da rede atuam como investigadores e não

como colaboradores para a resolução dos conflitos familiares. Sarti (2007) refere que a

pobreza ainda é considerada como uma ausência de direitos. Para a autora, essa

obsessão por diagnósticos das famílias está preocupada em medir e avaliar se o pobre é

alienado ou consciente.

Falando sobre os conflitos familiares, a American Psychiatric Association

(2017) não os trata como um transtorno mental. Todavia, trata como outras condições

que podem ser foco na atenção clínica. Não há nada dito sobre os conflitos, porém há

uma categoria que aborda os problemas de relacionamento entre os adultos íntimos e os

pais, cuidadores e filhos. Consoante a American Psychiatric Association (2017) os

problemas de relacionamento são objetos na atenção clínica porque as pessoas procuram

atendimento quando isso se torna uma dificuldade. No livro organizado pela associação

citada, DSM 5, há uma categoria geral que se chama – Problemas Relacionados à

Educação Familiar, na qual se enquadram os problemas de relacionamento entre pais e

filhos, os problemas de relacionamento entre os irmãos, a educação longe dos pais, e

28

por fim, quando a criança é afetada por sofrimento na relação dos pais (AMERICAN

PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2017).

Ainda, segundo a American Psychiatric Association (2017) nesta mesma linha

de foco na atenção clínica, há a categoria - Outros Problemas Relacionados ao Grupo de

Apoio Primário. Aqui encontram-se o sofrimento na relação com o cônjuge, a ruptura

familiar pela separação ou divórcio, o nível de expressão emocional, e o luto sem

complicações (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2017).

Outro importante manual é o Compêndio de Psiquiatria (KAPLAN, 1997),

utilizado para a realização de diagnósticos, prognósticos e comorbidades em psiquiatria

e psicologia. No índice remissivo nada consta sobre o conflito familiar, quando

procurado especificamente pelo termo, bem como sobre relações familiares conflituosas

ou crise familiar.

Aqui retornamos a American Psychiatric Association (2017) falando sobre

outras condições que podem ser foco na atenção clínica, como por exemplo, os

problemas de moradia e econômicos. Numa subcategoria encontra-se o

desentendimento com vizinhos e baixa renda.

Ainda, a American Psychiatric Association (2017) aborda as questões da ordem

do ambiente social, englobando os problemas relacionados à fase adulta, ao morar

sozinho, ao não se adaptar a uma nova cultura, e a exclusão ou rejeição social. Nos

problemas relacionados à fase da vida, encontram-se o “ingresso ou formatura escolar,

término do controle dos pais, casamento, início de uma nova carreira, paternidade,

maternidade, adaptação ao ninho vazio após a saída de casa, ou aposentadoria”

(AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2017, p. 724).

Compreendo que como não há claramente definido o que é conflito familiar,

qualquer dificuldade na vida, nas relações interpessoais, além dos clássicos, como por

exemplo, separação, comprovação de paternidade, partilha de bens, disputa de guarda,

pensão alimentícia, relacionamento entre pais e filhos, acordo de visitas, são encaixados

como se fossem. Talvez por causa disso, a Disney quis esconder o que ocorre realmente

nos relacionamentos familiares, já que quaisquer contratempos podem ser identificados

como conflitos, e isso assustaria muito as pessoas, e acabaria com o término fantasioso

do “e foram felizes para sempre” (aspas minhas).

29

2.1.2 A medicalização

Fonte: Pinterest

“Aqui filho! Comprei para você tomar... Oba! O que é? Rumo na vida” (aspas

minhas). O que parece um pacífico meme da internet e causa graça, vem trazendo

sentido às nossas vidas e ganhando importância por tratar dilemas, problemas pessoais

de um modo medicalizado, como se os remédios que entram pela boca dessem conta do

recado, e os diagnósticos patológicos trouxessem alívio. Inicialmente, esse jeito de

medicalizar a vida foi muito utilizado para os pacientes conhecidos como doentes

mentais, devido as suas incapacidades intelectuais, relacionais, e afetivas, estendendo-se

posteriormente a quem não desse conta de tomar rumo na vida, ou seja, não fosse capaz

de administrá-la dentro do que se espera socialmente. Nesse processo os problemas

nossos de cada dia foram sendo compreendidos e compilados por transtornos médicos,

psiquiátricos ou de comportamento, e a medicalização tornou-se prescrição terapêutica

para encontrar a cura, e a vida voltar ao normal.

Corrêa (2010) nos informa que essa lógica da medicalização domina os olhos

dos profissionais da saúde e da educação. Consoante Zorzanelli, Ortega e Bezerra Júnior

(2014), a partir da década de 90 a medicalização se fortaleceu também por fatores não

médicos. A classificação das doenças, transtornos e síndromes são feitas de acordo com

os critérios médicos. Todavia, conforme Corrêa (2010) há um discurso de proteção e de

cuidado da infância, que configura numa crescente patologização, seguindo o mesmo

itinerário terapêutico do adulto. Esses sujeitos são encaminhados para a clínica

psicológica ou médica para uma avaliação que deve identificar algum transtorno,

enquadrá-lo num diagnóstico, que culmine no uso de uma “camisa de força químico

social” (CORRÊA, 2010, p. 02).

30

Segundo Gaudenzi e Ortega (2012) o termo medicalização surgiu no final da

década de 1960, para indicar que os modos de vida do homem estavam se tornando

médicos. Conforme os autores no século XVIII os profissionais da saúde e educadores,

tornaram-se especialistas, intervindo na intimidade das pessoas. Assim, a Medicina

passou a estabelecer um controle sobre o corpo individual e coletivo, possibilitando o

exercício do poder sobre a vida.

Zorzanelli, Ortega e Bezerra Junior (2014) definem a medicalização como um

processo no qual problemas não médicos passam a ser tratados como se fossem

entendidos como transtornos ou doenças. Para os autores qualquer grupo que utilize a

linguagem médica representa uma força medicalizante. Foucault (2010) afirma que a

saúde se converteu num objeto de intervenção médica ao longo dos séculos XVIII e

XIX. Conforme o autor, a Medicina possui um poder autoritário com funções

normalizadoras. Para ele a sociedade é regida pela distinção do que é normal ou

patológico, a fim de restabelecer a normalidade. Nesse processo de normatização a

autoridade médica é uma autoridade social.

Zorzanelli, Ortega e Bezerra Junior (2014) explicam que o termo

medicalização visa definir como transtornos médicos os comportamentos que são

considerados transgressivos e desviantes. O foco inicial foi para os desvios, que

incluíam o alcoolismo, a homossexualidade, a delinquência, os problemas sexuais, as

dificuldades de aprendizagem, a falta de atenção... Todavia, Gaudenzi e Ortega (2012)

salientam que processos comuns da vida, como menopausa, menstruação, morte,

envelhecimento, estão sendo apropriados pela Medicina.

Corrêa (2010) enfatiza que o fato é que o conhecimento médico exerce uma

força tamanha, sendo transformado em uma verdade que não permite questionamentos,

que normatiza e regula nossas relações. Por isso, as crianças e os adolescentes que se

diferenciam dos ditos normais, necessitam ser controlados por psicotrópicos, para que

sejam contidos, e isso deve ser incontestável, pois quem medica é o médico.

Gaudenzi e Ortega (2012) citando Ivan Illich (1975) explicam que a

medicalização da vida foi o resultado da industrialização, que profissionalizou e

burocratizou a medicina. Foucault (2010) elucida que a Medicina é intermediária entre a

indústria farmacêutica e a demanda do cliente. Para o autor é necessário compreender os

vínculos entre a economia, o poder e a sociedade, para entender a medicalização.

Partindo das leituras a respeito de Foucault compreendo que o corpo do sujeito se

converteu num objeto de intervenção do Estado. Nos seus estudos a respeito da

31

Medicalização, Foucault (1979) aborda o nascimento da biopolítica, esclarecendo que o

Estado atua na contenção, no controle, e no registro das doenças. Como se o cuidado

com o corpo assegurasse ao sujeito o status de cidadão. Porém, fala como isso é

imposto, independente das pessoas estarem doentes ou não.

Ainda, consoante Zorzanelli, Ortega e Bezerra Júnior (2014, p. 1865), a

capacidade dos sujeitos se mobilizarem, a transformação do paciente em consumidor

ativo que busca diagnósticos, mostra que muitas vezes é “menos o imperialismo

médico, e mais a posição do paciente como consumidor, em busca de legitimar, pela

figura do médico, os sintomas que experiencia [...]”.

Para Gaudenzi e Ortega (2012) a medicalização causa uma série de iatrogêneses:

a clínica que se refere as consequências dos próprios cuidados em saúde; a social que se

trata de um sinônimo da medicalização, e dos efeitos sociais causados; ainda, aborda a

invasão farmacêutica, no qual o corpo é submetido a regulação do medicamento, e

torna-se paciente, o que causa uma dependência das pessoas quanto às prescrições

médicas. Os autores abordam o controle social pelo diagnóstico, resultante da

medicalização das categorias sociais, da etiquetagem das diferentes idades da vida

humana. Por fim, a iatrogênese cultural que transforma o sofrimento e a dor num

problema técnico. Para eles trata-se da produção de uma cultura medicalizada.

Quanto aos tipos de documentos relacionados à Medicalização, segundo o

Bireme, predominam-se artigos e teses. Quanto ao tipo de estudo, prevalecem os

estudos de caso, e na sequência encontram-se as avaliações de tecnologias de saúde, os

ensaios clínicos controlados, e os estudos de corte. Há 61 estudos direcionados às

crianças, 42 relacionados aos adolescentes. E quando digitado o termo medicalização da

família, aparecem 88 textos, associados à atenção primaria à saúde, à estratégia de saúde

da família, à saúde da família, ao uso de medicações, às relações profissionais e

famílias, e às relações familiares. Percebo que a medicalização dos conflitos familiares

ainda é um estudo inédito, e que a maioria dos estudos se referem à saúde pública.

A medicalização da vida está sendo inerente a todas as etapas do

desenvolvimento humano, da infância à velhice. Por exemplo, o Ministério da Saúde

avalia a possibilidade de realizar de forma obrigatória uma avaliação psicológica em

mulheres gestantes a fim de detectar a depressão pós-parto e as dificuldades que possam

surgir na relação mãe-bebê. Quanto à infância, no presente estudo tem se revelado que a

Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente tem mobilizado um número significativo

de pacientes com a queixa de conflito familiar, cabendo a Psicologia, como um suporte

32

qualificado à rede, acolher essa criança ou adolescente, diagnosticá-lo, e tratá-lo, a fim

de resolver seu conflito. Como cita Ferreira (2010), a avaliação complementar desta

criança ou adolescente precisa ser feita pelos profissionais do serviço de saúde, visando

a atenção integral como forma de garantia de direitos. Zilda Arns já dizia “as crianças

quando bem cuidadas, são uma semente de paz e esperança”. Entenderemos como

funciona a rede protetiva e quais são os objetivos da mesma a seguir.

2.1.3 A rede de proteção à criança e ao adolescente

Em março de 2008 nós brasileiros ficamos atônitos quando os noticiários

relataram o assassinato de uma menina chamada Isabella Nardoni, pelo seu próprio pai e

pela madrasta, que até hoje negam a autoria do crime. Segundo os noticiários, a menina

foi arremessada pela rede de proteção do seu quarto. No apartamento localizaram a

tesoura usada para cortar a rede. Os jornalistas diziam que o caso Nardoni vinha de uma

história de desagregação familiar e muitos conflitos, mas que a motivação maior foi

ciúmes. Relatos dos jornais televisivos na época diziam que os vizinhos presenciavam

brigas e discussões frequentes, que o pai de Isabela já havia ameaçado sua ex-esposa de

morte devido as pensões em atrasos. O mais triste desta história, e que não é só

simbólica, é que a rede de proteção à criança foi cortada.

A Constituição Federal Brasileira de 1988 reconhece as crianças e os

adolescentes como sujeitos de Direito. Com o Estatuto da Criança e do Adolescente –

ECA (1990) definiu-se que:

“É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder

público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos

referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao

lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à

liberdade e à convivência familiar e comunitária.” (Art. 4º)

O ECA (1990) deliberou uma política de atendimento dos direitos da criança e

do adolescente por meio de um contíguo articulado de ações governamentais e não

governamentais. Desta forma, objetivou romper com as práticas assistencialistas, dando

origem ao Sistema de Garantia de Direitos. Tal sistema é formado por três eixos:

promoção, defesa e controle. De acordo com o Conselho Nacional das Crianças e dos

33

Adolescentes – CONANDA (2006), o eixo promoção é constituído por órgãos

governamentais e não-governamentais, que formulam e implementam as políticas

públicas para as crianças e os adolescentes. Segundo Aquino (2004), trabalham

coletivamente os órgãos que executam as políticas públicas nas áreas da educação,

saúde, assistência social; os conselhos paritários de deliberação sobre as diretrizes

dessas políticas, as entidades públicas e privadas e os Conselhos de Direitos, dentre

outros.

Já o eixo defesa, contemplado pelo Poder Judiciário, Ministério Público,

Conselhos Tutelares, Secretarias, segundo o CONANDA (2006), tem a obrigação de

certificar o cumprimento e a exigibilidade dos direitos estabelecidos na legislação,

responsabilizando de maneira judicial, administrativa ou social às famílias, ao poder

público e ou à própria sociedade pela violação. Por fim, o eixo do controle, composto

pela sociedade civil e outras instâncias não governamentais.

Falando da minha realidade, as ações dos Poderes Judiciário, Ministério

Público e Conselho Tutelar, órgãos de defesa para a garantia de direitos, ou seja,

garantia de que a criança ou adolescente receberá acompanhamento psicológico na rede

pública (no meu caso, no centro de especialidades do munícipio em que eu atuo),

chegam à Secretaria de Saúde, por meio de encaminhamentos, solicitações e intimações,

com um prazo restrito de normalmente 15 dias para agendamento. Casos assim, acabam

ganhando prioridade, tanto que essas crianças e ou adolescentes não aguardam na fila de

espera, não tendo este seu direito à saúde violado, acessando brevemente o serviço.

De acordo com Brasília (2013, p. 01), a violação de direitos é “toda e qualquer

situação que ameace ou viole os direitos da criança ou do adolescente, em decorrência

da ação ou omissão dos pais ou responsáveis, da sociedade ou do Estado, ou até mesmo

em face do seu próprio comportamento”. Conforme Brasília (2013, p. 02), “abandono,

negligência, conflitos familiares, convivência com pessoas que fazem uso abusivo de

álcool e outras drogas, além de todas as formas de violência (física, sexual e

psicológica), configuram violação de direitos infanto-juvenis”.

A rede compreende uma atuação integrada e interssetorial que envolve todas as

instituições que atuam na atenção à criança e ao adolescente (RIZZINI ET AL., 2004).

Sendo assim, segundo a Cartilha de Violação de Direitos de Brasília (2013) compõem a

rede protetiva todos os serviços que prestam atendimento à criança ou o adolescente,

dentre eles, as entidades de acolhimento (abrigos, casas de passagem, repúblicas),

creches, conselhos tutelares, escolas, delegacias locais, hospitais, centros de saúde,

34

órgãos do Judiciário, Ministério Público, serviços que atendam a clientela infanto-

juvenil, ou qualquer cidadão, ou pessoa de direito.

Becker, Souza, Oliveira e Paraguay (2014) assinalam que essas instituições

devem agir de forma integral para atender às crianças e adolescentes que estão em

situação de risco pessoal. Conforme os autores, uma rede de proteção é eficaz quando

proporciona para a criança ou adolescente, um crescimento livre de riscos sociais e de

violência.

Lorencini, Ferrari e Garcia (2002, p. 298) definem rede como “um espaço de

formação de parcerias, cooperações e articulações dos sujeitos institucionais”. Para

Ferreira (2010) o trabalho em rede favorece uma visão ampliada das situações, permite

o planejamento de ações integradas, bem como, de responsabilidades. Conforme a

autora para o trabalho efetivo da rede são consideradas como características básicas:

“flexibilidade, diversidade, horizontalidade, multiliderança, corresponsabilidade,

compartilhamento, autonomia e sustentabilidade” (2010, p. 204).

Aquino (2004) explica que as redes de proteção objetivam o atendimento

integral à criança e ao adolescente. Conforme o autor, a perspectiva de rede exprime a

trama de conexões entre os órgãos e instituições que devem proteger a criança e ao

adolescente.

Moreira, Muller e Da Cruz (2012) apontam que a rede envolve uma construção

coletiva de ações, que abrangem a recepção e o encaminhamento dos ditos casos, por

todos os profissionais envolvidos no atendimento. Nesse sentido, a rede de proteção

concebe uma nova forma de atenção voltada para a infância e adolescência, que visa à

atuação integrada e articulada das instituições, órgãos e atores que atuam no

atendimento de crianças, adolescentes e suas famílias (OLIVEIRA, PFEIFFER,

RIBEIRO, GOLÇALVES, & RUY, 2006).

Lorencini, Ferrari e Garcia (2002) identificam como ações da rede, dentre

outras: que os casos sejam discutidos de forma sistemática ou em situações de crise por

todos os profissionais envolvidos no atendimento; que esses profissionais tenham

acesso aos registros de prontuários e processos judiciais; que haja visitas aos locais de

atendimento, como abrigos, fórum, escola, clínica, serviço de saúde, domicílio; que

sejam interinstitucionais para troca de saberes e experiências.

Para Ferreira (2010) o trabalho em rede é um mecanismo eficaz para a

interrupção da violência, favorece uma visão ampliada das situações, e permite que se

planejem ações integradas. Além disso, para a autora é uma forma de compartilhar

35

responsabilidades sobre os casos, permitindo que cada setor atue com foco nas questões

que lhe cabem.

Como já mencionei anteriormente, conforme um levantamento prévio a

respeito dos encaminhamentos recebidos na clínica de Psicologia do município, o

Conselho Tutelar é um dos órgãos do sistema de garantia de direitos, que mais realiza

encaminhamentos para a solicitação de atendimento psicológico. Todavia, respeitam

uma hierarquia, e caso não consigam priorizar o atendimento, acionam o Judiciário ou

Ministério Público. A grande questão é que os profissionais que trabalham na rede são

responsáveis por atender todas as crianças do município, respeitando os princípios do

Sistema Único de Saúde (SUS) que deve atender a todos, sem exceção. Num telefonema

da Secretaria de Saúde fui avisada que havia 15 encaminhamentos para avaliação

psicológica para diagnóstico diferencial na mesa da regulação, em janeiro de 2018,

entregues para solicitação de serviço público em caráter de urgência pelo Conselho

Tutelar e Assistência Social. Assim, como é impossível pela demanda infantil e juvenil

gerada, trabalho com prioridades em relação às crianças e adolescentes que correm

risco. Como o leitor pode ver, minha rede também é cortada.

Como afirmam Collares e Moysés (1994), voltamos a discussão da

medicalização, no qual procura-se transformar problemas eminentemente de origem

social e política, em questões médicas. Becker, Souza, Oliveira e Paraguay (2014)

lembram que atribuir aos problemas de ordem social e política às causas de origem

orgânica, causa um processo de estigmatização, por afetar a representação do sujeito,

cuja discussão virá a seguir.

2.1.4 A representação do sujeito

Fonte: SENAD

36

A imagem anterior elucubra uma situação de conflito familiar. É utilizada pela

Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) para mostrar o impacto de uma

família com problemas sociais sobre seus membros familiares. Descrevendo seus

componentes eu percebo uma certa indiferença da mãe, uma postura agressiva do pai,

uma atitude acolhedora da irmã, e uma criança ou adolescente chorando. Das quatro

pessoas representadas nessa imagem, qual delas seria encaminhada para

acompanhamento psicológico?

As crianças e adolescentes que chegam à clínica psicológica do SUS trazem

um histórico de problemas comportamentais e emocionais que vem ocorrendo há algum

tempo; chegam com a intenção de que se realize uma avaliação e um tratamento que

vise rapidamente a redução dos sintomas. Porém, como abordam Becker, Oliveira,

Souza e Paraguay (2014, p. 247), tratar problemas não médicos como se fossem, trata-se

de uma “omissão por parte das instituições médica, escolar e familiar em relação aos

problemas de cunho emocional e psicológico da criança”.

Foucault (1979) explica que a família se tornou o agente mais constante da

medicalização. Segundo o autor a partir do século XVIII a família foi alvo da acultura

médica, e a política médica passou a se organizar em função da família e dos seus

membros, focando na medicalização do indivíduo.

Nessa sintomatologia social, cultural e educacional de adoecer crianças e

adolescentes e os conflitos que ocorrem dentro de suas famílias, surge uma nova

perspectiva de sujeito, um novo modelo de sujeitos e de famílias medicalizadas.

Lembrando que um dos objetivos desse trabalho foi compreender como os profissionais

da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente do município de Penha/SC acionam

representações de sujeitos a partir dos encaminhamentos realizados para a clínica

psicológica do município tendo como justificativa a queixa de conflito familiar. Assim

sendo, esclarecerei de quem falamos quando falamos do sujeito.

O Dicionário Aurélio (2018, sem página) traz as seguintes definições para a

palavra sujeito:

1 - Pessoa de quem se omite ou desconhece o nome. 2 - Pessoa

dependente de um rei ou suserano. 3 - Assunto, tema. 4 - Função

sintática desempenhada por palavra ou grupo de palavras de natureza

nominal com que concorda e sobre que se expressa o predicado. 5 -

Entidade que tem a capacidade de conhecer, por oposição ao objeto. 6

- Pessoa ou coisa de que o verbo afirma ou nega alguma propriedade

ou atributo. 7 - Sujeito expletivo: sujeito gramatical que não pode ter

um referente, apenas com função de estilo ou de ênfase (como em ele

37

acontece cada coisa). 8 - Sujeito indeterminado: sujeito que se refere

a uma entidade indefinida (como em dizem que amanhã dá sol; diz-se

que fugiu do país). 9 - Sujeito nulo: sujeito que não se encontra

expresso em palavras na frase (como em hoje acordei tarde). 10 - Que

se sujeitou a algo ou alguém. 11 - Dependente, subordinado. 12 -

Domado, subjugado, submetido. 13 - Que está sob determinado dever,

obrigação, etc. 14 - Obediente; dócil, cativo. 15 - Que apresenta

determinada vulnerabilidade ou possibilidade. 16 - Função sintática

desempenhada por palavra ou grupo de palavras de natureza nominal

com que concorda e sobre que se expressa o predicado. 17 - Que se

sujeitou a algo ou alguém. 18 - Dependente, subordinado. 19 -

Domado, subjugado, submetido. 20 - Que está sob determinado dever,

obrigação, etc. 21 - Obediente; dócil, cativo. 22 - Que apresenta

determinada vulnerabilidade ou possibilidade. 23 - Que apresenta

determinada vulnerabilidade ou possibilidade.

O Dicionário da Língua Portuguesa (2008) traz como etimologia da palavra

sujeito o latim subjectu. O Dicionário Brasileiro dos Insultos escrito por Aranha (2002),

afirma que subjectu em latim significa “posto debaixo” (aspas do autor). “Designa o que

é sujeito ao comando de alguém. Como insulto é o homem desprezível que nem merece

ter o nome mencionado” (p. 328).

Fonseca (2012) ressalta que a constituição do sujeito perpassa toda obra de

Foucault. De acordo com o autor, o sujeito está associado às relações de poder, bem

como, às práticas de saber de si, uma resistência as determinações estruturadas pela

subjetivação, que será explicada logo em seguida. Para Fonseca (2012) Foucault volta-

se para a determinação histórica desse sujeito. Conforme o autor, no texto o Sujeito e o

Poder, Foucault esclarece sobre a necessidade de tratar de sujeitos livres, considerando

uma transformação possível em sujeitos éticos.

Outrora, segundo o próprio Foucault (2004) mais importante do que determinar

quem é o sujeito, é compreender as causas pelas quais está ele submetido ou

subordinado, assim como, como se dão as formas de resistência. Ainda, qual seu status

no real ou no imaginário para se desenvolver num legítimo sujeito. Trata-se de

determinar seu processo de subjetivação, ou como explica o próprio Foucault (2004)

determinar os modos de objetivação que transforam os seres humanos em sujeitos.

Assim, o autor se refere ao sujeito objetivado, importando-se com o como a constituição

histórica do tipo de sujeito irá formá-lo.

Segundo Pinto (1989) citado por Fischer (2001) os sujeitos não são causas,

nem origens do discurso, mas são efeitos discursivos. Consoante Pez (2008) é

necessário cautela quando tentarmos definir o conceito de sujeito na obra de Foucault.

38

Pez (2008) explica que o termo sujeito serve para designar o indivíduo preso a uma

identidade que reconhece enquanto sua. Todavia, Fonseca (2012) afirma que o filósofo

Foucault não emprega o termo como sinônimo de pessoa ou forma de identidade, porém

ressalta que emprega num sentido de relação consigo mesmo. Ferraz (2005) salienta

que Foucault se afasta da crença de um sujeito autocentrado, inaugurando um método

que pensa nas relações de poder. Conforme o autor, não se quer buscar quem está por

trás das estratégias, mas “identificar como se exercem e se processam seus mecanismos

em nossos corpos e vidas” (FERRAZ, 2005, p. 79).

Para Foucault (2004) o poder está em todos os lugares e é peculiar das relações

que nós humanos estabelecemos. Para o autor uma definição de poder é tentar dirigir ou

determinar a conduta do outro, aproximando-se daquilo que vem a ser o governo dos

outros e de si. O filósofo considera que as instituições de acordo com seus estatutos

sociais são capazes de determinar a formação de determinados tipos de sujeitos,

impondo algumas formas de vida aos seus indivíduos. Consoante Fonseca (2012, p.

149) “essa concepção de poder permite a Foucault pensar as relações de poder em seu

aspecto positivo, como um mecanismo gerador de ações e produtor de realidades,

comportamentos e saberes, e enfim, numa produção de verdades sobre os sujeitos”.

Ferraz (2005) cita que Foucault aborda que em um solo histórico emerge

formas históricas de subjetivação, de percepção e de determinadas concepções do corpo.

Para tal, Ferraz (2005) utiliza a exemplificação da passagem do regime analógico e

digital, que causam efeitos na forma de ver, perceber e conhecer, não remetendo ao

mesmo sujeito, mas as transformações do próprio corpo e da percepção.

Foucault (1984) afirma que um pensamento é diferente do conjunto de

representações implicadas em um comportamento. Além disso, consoante o filósofo um

pensamento é completamente diferente das atitudes que podem formá-lo. “O

pensamento não é o que se presentifica em uma conduta, dá um sentido” (FOUCAULT,

1984, p. 231). O autor explica que quando um comportamento entrou no domínio do

pensamento, foi porque perdeu sua familiaridade, ou porque ao redor dele surgiram

inúmeras dificuldades. Foucault (2004) ressalta que a família deve representar a

articulação dos objetivos relativos à boa saúde do corpo social com o desejo e o cuidado

de seus membros familiares. Quando não cumpre seu papel, caberá a alguma instituição

encaminhá-la à medicalização.

Em uma consulta realizada na base de dados Scielo, em 18 de fevereiro de

2018, ao digitar como palavra-chave “a representação do sujeito em Foucault”,

39

elencam-se três artigos, dois brasileiros e um colombiano, no período de 1989 a 2012,

todos nas áreas da ciência humanas. Na base de dados da Biblioteca Virtual em Saúde,

na mesma data em questão, elencam-se três artigos e três teses no período de 2006 a

2011, na área de ciências humanas, cujos assuntos principais referem-se à humanidade,

estética, psicanálise e crianças. Trata-se de pesquisas qualitativas.

A seguir, apresento os materiais e métodos utilizados nessa dissertação bem

como, como foram os procedimentos de coleta e de análise de dados.

40

2.2 MATERIAL E MÉTODOS

O presente estudo foi realizado no município de Penha, que se encontra no

litoral norte do Estado de Santa Catarina, Sul do Brasil. Segundo dados do IBGE do

censo demográfico de 2017, a população atual de Penha é estimada em 31.025 mil

pessoas, chegando a ultrapassar os 100 mil na temporada de verão. Na cidade de Penha

está localizado o parque multitemático Beto Carrero World, maior da América Latina.

Outro atrativo no município são as 19 praias localizadas ao longo da costa, atrativos

para visitantes, famílias e surfistas.

De acordo com informações sobre a história do município, que constam no site

da Prefeitura, a região de Penha foi colonizada a partir do século XVIII por portugueses

vindos dos Açores, que haviam colonizado primeiramente Desterro (Florianópolis). No

entanto, com a invasão dos espanhóis na Ilha, tais pescadores rumaram a outros locais

para caçar baleias. Segundo o histórico, a Praia de Armação do Itapocoroy se tornou

uma das maiores armações baleeiras do sul do Brasil. A Penha em 21 de junho de 1958

foi municipalizada, conquistando sua autonomia política, e o município foi efetivamente

instalado em 19 de julho do mesmo ano.

Conforme o IBGE (2017), quanto à educação, a taxa de escolarização (para

pessoas de 6 a 14 anos) foi de 97.6 em 2010. Esse índice posicionou o município na

colocação 209 de 295 dentre as cidades do Estado de Santa Catarina, e na colocação

2733 de 5570 dentre as cidades do nosso país. Quanto aos dados epidemiológicos, ainda

segundo informações do IBGE (2017) a taxa de mortalidade infantil média na cidade é

de 13.3 para 1.000 nascidos vivos. Em se tratando de internações por causa de diarreias

estima-se de 0.2 para cada 1.000 habitantes. Por isso, quando comparado com os

municípios do estado, fica nas posições 90 de 295 e 235 de 295, respectivamente.

Quando comparado as cidades do Brasil todo, essas posições são de 2427 de 5570 e

4284 de 5570, respectivamente (IBGE, 2017).

Devido à colonização de pescadores vindos dos Açores, a cultura e a tradição

açoriana são marcantes no município, nas festas, culinária e gastronomia, bebidas,

cultivo de marisco, sotaque dos pescadores, na pesca artesanal, e até no momento que

velam seus mortos (muitos são velados em casa).

A minha relação com Penha teve início na minha infância, porque meus avós

paternos saíram de Curitibanos para morar aqui, devido indicação médica. Devo ter

41

vindo ao município pela primeira vez aos nove anos de idade. Passei algumas férias por

aqui durante a minha infância e adolescência, até firmar residência em 2006, por ter

passado em um concurso público na prefeitura de Piçarras, município vizinho. Na

prefeitura de Penha efetivei-me em 2015. Como psicóloga clínica da rede nesses quase

quatro anos de experiência, tenho observado que muitas das famílias atendidas vieram

do interior do Paraná, do Norte e Nordeste do país, de Blumenau, de Indaial, de Luis

Alves (principalmente após as enchentes de 2012), em busca de emprego, pois com o

Parque Beto Carrero instalado na cidade, além de oferecer inúmeras vagas de emprego,

a forte rede hoteleira também é um chamariz.

Essa pesquisa foi realizada em duas instituições da Rede de Proteção à Criança e

ao Adolescente de Penha (SC), especificamente nos setores de Atenção Especializada

das Secretarias Municipais de Saúde e de Assistência Social. A coleta de dados

realizou-se na instituição de saúde no Núcleo de Atenção à Mulher e à Criança (NAM);

na instituição de Assistência Social, no Centro de Referência Especializado de

Assistência Social (CREAS), no Conselho Tutelar, e na Instituição de Acolhimento

(abrigo municipal).

Ressalto que a Secretaria de Educação e setores adjacentes não participaram da

pesquisa por não atenderem aos critérios de seleção, que incluíam somente os

profissionais da Rede que encaminharam crianças ou adolescentes com queixas de

conflito familiar para a clínica psicológica do SUS. Na medida em que os

encaminhamentos oriundos da Educação não registravam a queixa de conflito familiar,

não foram inclusos no processo de pesquisa, pois não atendiam ao critério de inclusão

previamente elaborado. Outro critério de seleção de entrevistados era que fossem

profissionais que trabalhassem há mais de dois anos em suas funções, para que

pudessem contribuir com suas experiências.

Por meio de um levantamento dos encaminhamentos recebidos entre abril de

2017 a abril de 2018 foram mapeados as instituições e os profissionais que comporiam o

estudo. Estimava entrevistar 11 profissionais, porém com a eleição de novos

conselheiros tutelares e exoneração de alguns funcionários da Rede, após contato

telefônico e apresentação da pesquisa, elenquei cinco profissionais para serem sujeitos

da pesquisa, sendo: duas fonoaudiólogas do NAN; um psicólogo do CREAS; uma

psicóloga do abrigo; e um conselheiro tutelar. Depois de assinarem os Termos de

Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), os mesmos foram entrevistados em seus

locais de trabalho, no período de novembro de 2018 a janeiro de 2019. As entrevistas

42

foram guiadas por um roteiro no qual perguntava-se o que os profissionais entendiam

sobre conflito familiar; se poderiam citar exemplos; quando identificavam que a família

estava numa situação conflitante; quais as características que tais crianças e

adolescentes que vivenciam esses conflitos apresentavam; quais etapas para encaminha-

los à clínica especializada, e ainda, quais os papeis da família e das instituições da Rede

na situação conflitante em questão. Além das entrevistas, foram utilizados registros em

diários de campo a respeito das notas, reflexões e impressões dos pesquisadores.

Após a realização das entrevistas e transição do material empírico, utilizei o

conceito de representação tal como proposto no campo dos Estudos Culturais como

operador analítico. Tomando, então, a compreensão de que os processos de atribuição

de significados por meio da linguagem se dão através de mecanismos de representação

sobre algo, compondo sentidos vinculados ao mundo em que estamos inseridos,

procurei atentar para as formas pelas quais determinados significados compunham o que

viriam a ser considerados sujeitos com queixas de conflito familiar, de modo que estas

significações acionam representações de sujeito. Nesse ínterim, o conceito de

representação foi organizador das categorias de análise, na medida em que a partir de

sua compreensão encontraram-se dois tipos de usuários a serem considerados como

necessários de atendimento, a saber, o sujeito caracterizado em atraso de

desenvolvimento pela família conflitante; e o sujeito da garantia de Direitos. Em

seguida, surgiu a terceira categoria: o governamento das famílias e dos profissionais da

Rede por meio da medicalização dos conflitos familiares.

Destaco que os conceitos selecionados para a discussão não apenas permitiram a

organização do material empírico e suas problematizações, mas também,

potencializaram a perspectiva sobre o objeto de estudo do modo como aqui se apresenta.

Tais conceitos serão mais bem apresentados no decorrer da discussão na medida em que

estes fazem sentido em seus usos consoante a problematização dos dados de pesquisa.

Esta pesquisa foi submetida e aprovada no Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da

Universidade em que foi desenvolvida, tendo sido aprovado sob parecer número

3.024.446.

43

2.3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

2.3.1 ESCARAFUNCHANDO OS ENCAMINHAMENTOS CLÍNICOS

2.3.1.1 Mapeando os profissionais e a rede de proteção do conflito familiar

Eu gosto da palavra escarafunchar, utilizada na abordagem em que tenho

formação – Gestalt-Terapia. Foi bem isso que fiz lendo encaminhamentos para a

Psicologia Clínica recebidos no período de abril de 2017 a abril de 2018, selecionando

os pertinentes ao estudo em questão. Como psicóloga clínica da Secretaria Municipal de

Saúde do município de Penha, recebo encaminhamentos de crianças de 01 a 13 anos de

idade de várias instituições da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente, dentre as

mais significativas, escolas públicas e privadas, Unidades Básicas de Saúde (UBS),

Conselho Tutelar, Casa de Passagem, Poder Judiciário e Ministério Público. Sei que as

pessoas ficam pasmas quando me escutam falando sobre o atendimento psicológico de

bebês, mas é comum para rastrear o autismo, por exemplo. Porém, a faixa etária

encaminhada para a clínica especializada de Psicologia de maior predominância são as

crianças em início da alfabetização, nas idades de seis a oito anos, que devido as suas

dificuldades de aprendizagem ou comportamento, confrontam o que a instituição escola

espera delas.

A palavra encaminhamento é conceituada pelo dicionário como “ensinar o

caminho a; guiar; dar um bom conselho; ir direto a; dirigir-se a; tender a um fim”

(SILVA, sem p., 2018). Lembro-me das aulas no mestrado com o professor Marco

Aurélio Da Ros em que nos dizia que vivemos da era da “medicina ao”, referindo-se

justamente sobre os encaminhamentos para a clínica especializada, realizados ao

psicólogo, ao fonoaudiólogo, ao psiquiatra, ao cardiologista, ao dermatologista, ao

reumatologista, e assim por diante.

Encaminhar é muito mais do que passar o paciente para que outro profissional

atenda. O endosso a esse argumento está presente em documento oficial elaborado pelo

Ministério da Saúde (MS), intitulado “Caminhos para uma Política de Saúde Mental

Infanto-Juvenil” (BRASIL, 2005), e indica que no processo de encaminhamento de

44

casos clínicos e de usuários no Sistema único de Saúde (SUS) três autores devem ser

incluídos, quais sejam:

O sujeito/caso a ser encaminhado, o profissional/ serviço que

encaminha e o profissional/serviço a quem se encaminha,

mediatizados pela gestão, por outros serviços, pela família, pela

comunidade ou por outros agentes (BRASIL, 2005, p. 53).

Como psicóloga clínica no município de Penha atuo no Núcleo de Atendimento

à Mulher e à Criança (NAM), que não é uma porta de entrada para o atendimento por se

tratar de uma clínica especializada, diferente de uma Unidade Básica de Saúde (UBS),

em que o paciente pode se dirigir ao balcão da recepção e solicitar uma marcação de

consulta. Isso significa que para a pessoa ou família ser atendida no NAM precisa ter

sido encaminhada ou referenciada1 por algum profissional ou serviço, não podendo sem

um documento de encaminhamento solicitar um agendamento de consulta de forma

espontânea ou por livre demanda.

Contextualizando os encaminhamentos para a clínica psicológica do NAM

enfatizo que não há um documento comum utilizado por toda a Rede de Proteção à

Criança e ao Adolescente. Cada instituição encaminha à sua maneira. A Instituição

Educação encaminha as crianças e os adolescentes por meio de um relatório

educacional, a respeito de como os alunos se comportam e aprendem, solicitando ao

final do documento uma avaliação psicológica. Já a Instituição Assistência Social

encaminha por meio de uma ficha, explicando a demanda e os motivos pelos quais está

acompanhando a família, solicitando avaliação e acompanhamento psicológico. O

Conselho Tutelar costuma encaminhar uma ficha, em que constam data e horário para a

primeira consulta, a fim de ser devolvida aos conselheiros pelas famílias após a triagem

psicológica, como forma de monitorar a presença. Todavia, na Instituição Saúde os

profissionais encaminham por meio da Referência2, que constam os motivos da

1 Para que o leitor possa melhor compreender, Santos (2015) corrobora afirmando que o sistema de

referência e de contrarreferência em saúde foi criado pensando na perspectiva de saúde global do

paciente. Funciona por meio da troca de informações entre os setores e instituições. Segundo o autor, é

utilizado para diminuir o número de encaminhamentos desnecessários. 2 Ressalto que o Sistema de Referência está além de um modo de encaminhamento, Conforme Santos

(2015) o sistema de referência e de contrarreferência funciona dentro de uma hierarquia, transitando pelo

fluxo da rede de assistência em diferentes níveis. Para tanto, referenciar significa “indicar o paciente para

outro nível de cuidado” (SANTOS, 2015, p. 17).

45

consulta, queixas, histórico pregresso, sintomas identificados e relacionados ao Código

Internacional das Doenças (CDI), conduta do profissional que encaminha, solicitação do

procedimento (avaliação e conduta), e por fim, recomendações. No caso do médico

neurologista ou psiquiatra é corriqueira a solicitação de relatório ou laudo psicológico

para avaliação de diagnóstico diferencial, e avaliações bem diretivas, solicitando a

aplicação de um teste psicológico específico, por exemplo.

Geralmente os profissionais da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente que

encaminham casos, situações ou usuários para clínicas de psicologia inseridas no SUS

objetivam o retorno de informações da avaliação ou tratamento psicológico. Corrobora

Noal (2009) afirmando que a pessoa que realiza o encaminhamento e a forma como o

faz revelam ser aspectos fundamentais para a busca de uma compreensão do que se

espera de uma avaliação psicológica. Wainstein (2011) autentica tal assertiva

assegurando que o profissional que realiza o encaminhamento almeja uma suposta

avaliação cognitiva, da personalidade e do emocional de um sujeito.

Todavia, o encaminhamento para uma avaliação gera a expectativa da devolução

por meio de um material impresso, o laudo psicológico. Wainstein (2011) salienta que o

encaminhamento busca auxiliar não só a criança e ao adolescente, como também,

colaborar com a fonte que os encaminhou. Entendo que com o retorno desses dados em

forma de documento psicológico o encaminhador pauta-se nos resultados analíticos da

devolutiva, podendo traçar com mais propriedade seu plano terapêutico perante à

criança ou ao adolescente encaminhado.

Dentre os inúmeros motivos e intenções de encaminhamentos oriundos de

diferentes profissionais das instituições da Rede de Proteção à Criança e ao

Adolescente, participantes desse estudo, para a clínica especializada de Psicologia, a

queixa de conflito familiar é a mais abundante. Nos encaminhamentos realizados pela

Rede de Proteção deste estudo observei que os conflitos familiares, mesmo na falta de

uma denominação clara, coesa e explicativa do que ocorre com os membros da família,

são motivos importantes para que a criança e o adolescente se consultem com o

psicólogo clínico.

Lacerda e Junior (2013) em um estudo a respeito dos encaminhamentos de

crianças para acompanhamento psicológico enfatizam que o surgimento de distúrbios

psicológicos em crianças é precedido pelo pressuposto de conflito familiar, o que

corrobora para o encaminhamento maciço das mesmas. Na mesma direção, Alberto et

al. (2008) definem que a atuação do psicólogo que recebe sujeitos tidos em conflito

46

familiar deve ser de diagnosticar a situação, planejar ações de enfrentamento, e ainda,

mobilizar os profissionais da Rede tendo em vista à prevenção e o tratamento. No caso

dos encaminhamentos do Ministério Público ou Judiciário, por intermédio de

Instituições da Assistência Social como ocorre no município pesquisado,

o psicólogo prestador de serviço para as Varas de Família, da Infância

e Juventude tem trabalhado bastante na mediação familiar, visando à

resolução de conflitos, como também, proporcionando aos envolvidos

a responsabilidade acerca de seus problemas (CRUZ, COSTA e

CAMPOS, 2006).

Santos e Costa (2007) numa perspectiva interdisciplinar, reconhecem que

enquanto a Psicologia Clínica busca conhecer a dinâmica familiar com um paradigma

compreensivo, o Direito aplica a normatividade às questões familiares visando regular o

comportamento de seus membros. Compreendo que em algumas situações, como por

exemplo, no caso de uma violência familiar perpetuada pelo pai ou pela mãe ao filho,

entendo necessário o acompanhamento psicológico dependendo da capacidade de

resiliência do infante. Todavia, questiono a banalidade dos encaminhamentos frente às

queixas de conflito familiar, no qual não são todos os membros familiares

encaminhados para processos psicoterapêuticos, e sim somente os menores de 18 anos,

voltando ao que Foucault (1979) se refere à medicalização do indivíduo e, nesse caso,

da criança. Azevedo (2001) apoia esta argumentação afirmando que se trata de uma

negação dos direitos que as crianças e os adolescentes possuem de serem tratados como

sujeitos em condição peculiar de desenvolvimento. Por isso, na legitimidade do direito,

encaminham-se para a clínica especializada do SUS.

Para a minha surpresa, no intervalo de tempo de abril de 2017 a abril de 2018,

não encontro encaminhamentos realizados pelas escolas, representadas na Rede

protetiva pela Secretaria Municipal de Educação, especificamente com a queixa de

conflito familiar. Eu como psicóloga clínica entendo que isso ocorra pelo modo de

administração das queixas escolares, sempre pautado no sujeito que apresenta os

sintomas, que não lê, não se concentra, é agitado, não para um minuto, é agressivo, é

tímido, é isso ou aquilo, sem vê-lo dentro de uma configuração sistêmica que

compreenda que esse sujeito possa estar assim apresentando os referidos sintomas em

função das relações que estabelece com as pessoas da sua família. Por isso, o motivo do

encaminhamento dos escolares não é por conflitos familiares, e sim, pelos sintomas que

a criança e o adolescente apresentam na escola e, principalmente, em sala de aula.

47

Portanto, nenhum profissional das escolas foi selecionado a participar deste estudo, em

virtude que o critério de inclusão eram os encaminhamentos especificamente descritos

como conflitos familiares.

Entrementes, nesse levantamento, percebo que o excedente de encaminhamentos

vinha do Conselho Tutelar, e sempre dos mesmos quatro conselheiros que escreviam em

suas folhas de encaminhamento: “Conflito Familiar”. Desses quatro conselheiros que

encaminham os clientes um é formado em Direito, dois não possuem curso superior e

outro é técnico de enfermagem. Com a espera da liberação do Comitê de Ética em

Pesquisa (CEP), o tempo previsto para a coleta de dados se prolongou e, em julho de

2018, uma nova eleição do Conselho Tutelar ocorreu, culminando na substituição dos

possíveis entrevistados pelos novos conselheiros eleitos. Por meio de telefone eu entrei

em contato com dois conselheiros, sendo que um se recusou a participar não retornando

as mensagens e o outro estava de atestado médico e me indicou entrevistar seu parceiro

de trabalho. Os demais não estavam mais trabalhando no Conselho e os novos não

atendiam aos critérios de seleção para participarem da pesquisa, que além de

encaminhar com a queixa de conflito familiar, era que fossem profissionais que

trabalhassem há mais de dois anos em suas funções, para que pudessem contribuir com

suas experiências. Então, apenas um conselheiro tutelar participou desta investigação. A

entrevista com o profissional foi realizada na própria sede do Conselho Tutelar. Conta-

me o conselheiro que em “virtude da troca de profissionais no Conselho o número de

encaminhamentos para a saúde caiu” (Diário de Campo, 29/01/2019), referindo-se a

dois profissionais que costumeiramente encaminhavam crianças e adolescentes com a

queixa de conflito familiar.

Em outro desdobramento acerca dos sujeitos a serem ouvidos nesta pesquisa

procurei entrevistar os cinco profissionais da Assistência Social que estavam elencados.

Através do psicólogo do CREAS3 fui informada que uma Assistente Social e duas

3 O CREAS é um programa federal de Assistência Social, de alta complexidade, que oferece apoio e

assistência às famílias e sujeitos em situação de ameaça ou violação de direitos. Segundo informações do

site da Assistência Social do Governo Federal, há no país 2.155 CREAS, locais ou regionais, prestando

cerca de 65 mil atendimentos anuais. É um serviço que tem como foco principal a família e a

reconstrução de vínculos familiares. A equipe mínima preconizada pelo Ministério de Desenvolvimento

Social (MDS) é um psicólogo, um assistente social, e um advogado. Fonte: BRASIL. Centro de

Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). Disponível em:

>http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2011/10/centro-de-referencia-especializado-de-assistencia-

social-creas>. Acesso em: 29/03/2019.

48

Psicólogas haviam pedido exoneração do município. Assim, entrevistei dois

profissionais da Secretaria Municipal de Assistência Social, um do CREAS e outra da

Casa de Passagem. Tal, como anotei no meu Diário de Campo (07/12/2018), foram

“mais três baixas de entrevistados”.

Até então, portanto, tive dois entrevistados da Assistência Social, uma psicóloga

e um psicólogo, ambos colaboradores da Secretaria Municipal da Assistência Social.

Para entrevistar a psicóloga, visitei a Casa de Passagem do Município, percebi a

precariedade em termos de espaço físico, conversei com crianças que estavam curiosas

e também queriam ser entrevistadas.

O psicólogo foi entrevistado no escritório dele no CREAS. Foi a primeira vez

que eu o visitei na nova sede, bem localizada no município. Apresentou-me a estrutura

física do local, os equipamentos recém adquiridos pela prefeitura e os banners dos

trabalhos que já exibiu a respeito da Rede protetiva.

Por fim, apresento a descrição dos sujeitos da pesquisa mapeando os

profissionais da saúde que seriam entrevistados. Enquanto fazia meu levantamento notei

três profissionais que encaminharam pacientes com a queixa de Conflito Familiar, a

saber, um médico de Unidade Básica de Saúde (UBS) e duas fonoaudiólogas da

Atenção Especializada4. O médico (residente em Psiquiatria) no contato que tivemos

disse-me que escreveu conflito familiar no encaminhamento porque o documento na

Rede passa por várias pessoas, ressaltando as questões sigilosas, registros esses

realizados no diário de campo. As duas fonoaudiólogas participaram das entrevistas sem

nenhum contratempo ou observação feita. Como se tratava de duas profissionais muito

próximas a mim, ambas foram entrevistadas no nosso local de trabalho, nos consultórios

fonoaudiológicos, em momentos separados respeitando a privacidade, o que nos

proporcionou uma sensação de intimidade. Tanto que ao final dessas entrevistas as

profissionais relembraram casos atendidos em comum, no qual o conflito familiar está

evidente.

Assim, no total foram cinco profissionais participantes desse estudo, sendo:

4 A respeito da clínica especializada, no SUS trata-se do maior grau de complexidade em cuidados, sendo

por tanto a Referência. Quanto a Contrarreferência, Santos (2015) identifica como o menor grau de

complexidade, quando a necessidade da pessoa é mais simples, e ela pode ser atendida no seu próprio

território. Afirmar que o paciente foi contrarreferenciado, por tanto, denota que o mesmo pode ser

acompanhando na UBS mais próxima a sua residência, ou seja, no seu território, sem necessitar de

atendimento em clínica especializada.

49

✓ Entrevistada 1: Uma fonoaudióloga, Rede Saúde, Instituição NAN,

profissional de atendimento especializado e atenção básica, atua

com crianças;

✓ Entrevistada 2: Uma fonoaudióloga, Rede Saúde, Instituição NAM,

profissional de atendimento especializado, atua com crianças,

adolescentes e adultos;

✓ Entrevistada 3: Uma psicóloga, Rede Assistência Social, Instituição

Casa de Passagem, atua com crianças, adolescentes e famílias;

✓ Entrevistado 4: Um psicólogo, Rede Assistência Social, Instituição

CREAS, atua em alta complexidade com as famílias;

✓ Entrevistado 5: Um conselheiro tutelar, Rede Assistência Social,

Instituição Conselho Tutelar, atua com crianças, adolescentes e

famílias.

Enquanto pesquisadora pretendi, nesta discussão dos resultados, compreender

como os profissionais entrevistados acionam representações de sujeitos a partir dos

encaminhamentos realizados para a clínica psicológica tendo como justificativa a queixa

de conflito familiar. Para tanto, como percebido procurei mapear a Rede de Proteção à

Criança e Adolescente, bem como descrever os profissionais que encaminham os

clientes para a psicologia clínica infanto-juvenil. Além disso, intentei relacionar esses

processos de encaminhamento às tendências de medicalização da sociedade

contemporânea. Por fim, construí um material pedagógico para a formação continuada

dos profissionais da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente acerca dos

encaminhamentos que compõe o conflito familiar.

Para a apreciação dos dados empíricos nesta pesquisa utilizei análise cultural

alicerçada no Campo dos Estudos Culturais. Segundo Hall (2000) na análise cultural o

pesquisador deve buscar em termos substantivos e epistemológicos o sentido das coisas.

Para tanto, utilizei as categorias de representação e de identidade para dar respostas aos

objetivos almejados. Tais conceitos foram organizadores das categorias de análise na

medida em que a partir de suas compreensões é que se possibilitou manusear o material

empírico de modo específico, ou seja, os conceitos aqui elencados funcionaram como

mediadores e operacionalizadores das análises realizadas. Cabe salientar que estes

conceitos serão mais bem apresentados nas seções de análise que seguem, destacando

dois aspectos, a saber, sua definição conceitual, e em segundo lugar, os modos como

50

permitiram inferências e análises acerca do material empírico de pesquisa. Como ponto

de partida das possibilidades de análise pela ótica dos aspectos culturais ressalto que a

partir do tema medicalização dos conflitos familiares foi possível perceber sua inserção

em aspectos substantivos e epistemológicos da cultura. Hall (2000) define como aspecto

substantivo o lugar empírico de materialidades na cultura, como na organização das

atividades, instituições, relações na sociedade, em qualquer momento histórico

particular. Encontro no material empírico da pesquisa os aspectos substantivos no modo

em como o SUS se organiza no sistema de Referência e Contrarreferência, bem como

na organização da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente, representada nesse

estudo pelas Instituições Saúde e Assistência Social.

Por outro lado, em relação aos aspectos epistemológicos da cultura, segundo

Hall (2000), estes se referem às questões de conhecimento e conceitualização

envolvidas em determinados fenômenos, ou seja, como a cultura é utilizada na

compreensão, explicação e modelos teóricos. No caso do tema deste estudo, os aspectos

epistemológicos se referem ao campo do saber, à representação do conflito familiar e à

manutenção da identidade da família, dentro dos padrões de normalidade, visando sua

autorregulação e o governamento das mesmas.

No intento de discussão dessa problemática os pesquisadores guiaram-se para

compreensão dos fenômenos estudados pelo conceito de representação tal como

desenvolvido no campo dos Estudos Culturais. Para Woodward (2000, p.17) “a

representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos

quais os significados são produzidos, posicionando-se como sujeitos”. Desse modo,

questões norteadoras para a discussão do problema foram elaboradas, tais como: que

representações de sujeito são produzidas pela Rede de Proteção, que frente aos conflitos

familiares impõe uma intervenção na criança ou adolescente? Que representações de

sujeito são essas que em nome da garantia de Direitos ofertados pelo Estatuto da

Criança e do Adolescente (ECA) necessita de uma intervenção pela Rede de Proteção?

Em suma: que representação de sujeito é construída para que justifique a necessidade de

tais processos medicalizantes? Tais indagações orientam as discussões que seguem.

2.3.1.2 A representação do sujeito da Instituição Saúde caracterizado pelo atraso

do desenvolvimento

51

Daí quando eu identifico alguma situação, algum conflito familiar que

está interferindo no desenvolvimento do adolescente ou da criança,

geralmente eu faço um encaminhamento (Entrevistada 1).

O profissional de saúde entrevistado neste estudo e que atende crianças e

adolescentes encaminhados com queixas de conflito familiar se aproxima, em seu

trabalho, de uma perspectiva desenvolvimentista e comportamentalista do ser humano.

Não obstante, disciplinas de Psicologia do Desenvolvimento e Psicologia da

Aprendizagem compõem o repertório das formações acadêmicas e norteiam os olhares

da clínica especializada. Cada vez em que se avalia clinicamente uma criança ou

adolescente compara-se o indivíduo em questão aos demais de sua faixa etária e mesmo

sexo, analisando o que se espera em termos desenvolvimentistas em cada idade e sexo.

No campo da Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem, várias teorias

direcionam a perspectiva de construção do que é o desenvolvimento humano, tal como

corrobora Stubbe (2008, p. 19) ao descrever alguns autores e seus respectivos campos

teóricos inseridos nesse escopo. Para o referido autor, são eles: “os teóricos do

desenvolvimento primário, Sigmund Freud (estágios psicossexuais), Erick Erikson

(estágios psicossociais) e Jean Piaget e Vygotsky (estágios cognitivos)”.

Entendo que nos serviços de saúde, na prática da clínica especializada, o

encaminhamento por atraso no desenvolvimento infantil é comum, assim como relata a

Entrevistada 1 na epígrafe desta seção. Compreendo que pensar em termos de

desenvolvimento é medicalizante. Porém, quando uma criança ou adolescente é

encaminhado devido à queixa de conflito familiar, tem-se duas representações: a do

sujeito em pleno desenvolvimento e a do sujeito em atraso de desenvolvimento pela

família conflitante.

No sistema de representações, conforme Woodward (2000) há de se ter que

marcar as identidades pela diferença, pois a identidade é sempre relacional. Conforme a

autora, uma identidade depende da existência de outra. Trazendo para os sujeitos deste

estudo, infere-se que só pode ser percebido o sujeito cujo conflito familiar interfere no

seu desenvolvimento se este for marcado como diferente do ideal de sujeito em

desenvolvimento pleno, no qual sua família lhe proporciona possibilidades de

desenvolver-se normalmente. Esta problematização das representações dos sujeitos a

serem atendidos pela clínica especializada de Psicologia se manifesta também no

seguinte trecho de entrevista:

52

Quando o paciente chega, a gente sempre procura estar ouvindo os

pais, ver o que eles têm de acompanhamento em casa, para reconhecer

a rotina deles, e ali a gente consegue estar identificando, se é uma

família que tem uma rotina, se é uma família que estabelece algumas

regras, se é uma família que tenha os mesmos objetivos, enfim, que

anda em conjunto, né, se participa ou não, quanto participa, se começa

a atrapalhar já o desenvolvimento da criança e do adolescentes, nesse

momento, principalmente nesse estágio inicial de contato com o

paciente, de estar conhecendo, anamnese e tal, a gente consegue

identificar (Entrevistada 2).

Stubbe (2008) refere que pensar em termo desenvolvimentista é considerar as

áreas em que a criança apresenta bom desenvolvimento, e aquelas em que precisa de

intervenção. A autora compreende desenvolvimento como “uma interação complexa

entre o potencial genético, as capacidades biológicas, e o ambiente de criação” (p.17).

Ressalto que é justamente o ponto de vista ambiental que enfatiza a necessidade de

análise da dinâmica familiar, entendida por Azevedo (2001) pela “forma de

funcionamento de uma família, ou seja, suas regras, hierarquias, padrões de

comunicação” (p. 37). Culturalmente espera-se que as famílias tenham dinâmicas

comuns quanto à forma de funcionar e de exercer seu papel perante as crianças e aos

adolescentes, ou seja, espera-se um padrão de comportamento social que quando não é

atendido, quando há um desvio ou anormalidade, é preciso investir em sua regulação, e

neste caso, de forma medicalizante.

Zorzanelli, Ortega e Bezerra Junior (2014) explicam que uma das possibilidades

de compreensão da medicalização implica em determinar um comportamento social

como um problema médico, descrevendo um processo pelo qual problemas não médicos

são definidos em termos e doenças ou transtornos. Algo semelhante ocorre com as

famílias, e principalmente com as crianças e adolescentes, que por meio de um

encaminhamento para a clínica psicológica chegam à solicitação de que se realize um

diagnóstico que explique o que a criança apresenta.

Assim, nessa comparação entre um sujeito em pleno desenvolvimento e sujeito

outro com seu desenvolvimento comprometido, é possível inferir a partir de Woodward

(2000) que os significados produzidos pelas representações dão sentido a experiência e

aquilo que somos. De acordo com a autora, a representação, compreendida como um

processo cultural, estabelece identidades e os sistemas simbólicos se baseiam em

fornecer respostas sobre quem é o sujeito.

Em se tratando de crianças e de adolescentes, os significados aprendidos com os

conhecimentos e experiências na clínica especializada, exigem que, além dos infantes,

53

avaliem-se as famílias. Stubbe (2008) afirma que para uma boa avaliação do

desenvolvimento, bem como das psicopatologias, faz-se necessário uma avaliação

completa da criança, do adolescente e da família. Entendo que além da avaliação

cognitiva, emocional e de personalidade, cabe avaliar a família e a conduta dos seus

membros familiares. Tais pressupostos fazem-se presentes quando um entrevistado

explana os processos de encaminhamento e atenção que organizam sua prática:

“Daí a gente começa a atender a família, e se há necessidade de

acompanhamento psicológico e gente encaminha para o NAN, para o

psiquiatra” (Entrevistado 4).

Woodward (2000) aponta que a produção de significados e a produção de

identidades posicionadas nos sistemas de representação estão estreitamente vinculadas.

Compreendo que neste ponto de vista a construção de saberes acerca dessa criança ou

adolescente e os conflitos vivenciados na família dela buscam definir quem ela é; assim

como, quando se deve encaminhar uma criança ou adolescente que não se desenvolve

como esperado para a sua idade e sexo por causa do conflito familiar. Assim, nesse

processo de construção de representações, identifica-se um tipo de sujeito caracterizado

pelo atraso de desenvolvimento causado pela família conflitante que, portanto, necessita

de tratamento psicológico.

Nesse ínterim Féres-Carneiro (2011) explica que na avaliação da família é

importante observar como os membros interagem, e principalmente, como

desempenham seus papéis familiares (pai, mãe, avó, avô). Esses pressupostos

manifestam nortear intervenções dos profissionais aqui investigados, tal como no

excerto abaixo:

O que é muito comum eu receber é conflito assim entre a educação

dos pais. Disputa entre os pais na educação dos filhos, na forma que

eles querem conduzir as coisas, é... Ou entre os avós. Tem os pais e

tem os avós. É muito comum aqui na nossa cultura, na nossa região,

morar, né, mora com o pai, com a mãe, com a avó paterna ou com a

avó materna. Então tem muito conflito assim. Às vezes quem traz para

o atendimento é a avó e aí ela já relata várias situações de conflito

familiar, conflito com a nora, conflito com o filho, então...

(Entrevistada 2).

Bee (1997), pesquisadora do desenvolvimento humano, estudando os papeis

familiares destaca que em todas e diferentes culturas há a exigência e expectativa de que

54

os adultos aprendam e executem um conjunto de papéis. Tratando das representações de

família, enfatizo que teorias psicológicas e psicossociais reforçam o quanto a definição

dos papéis familiares, bem como a manutenção da hierarquia, são fundamentais para um

desenvolvimento dito sadio. Marcelli (1998) aponta que para os psicanalistas o período

de conflito pode ser gerador de ansiedades e de angústia, comprometendo o

desenvolvimento da criança ou do adolescente. Ou seja, é comum no campo da

Psicologia orientado por tais perspectivas, modelar uma representação de família e

sujeitos e atuar sobre aquelas que não atendam ao esperado pela produção teórica da

área, muitas vezes não relativizando com as dinâmicas sociais, culturais, econômicas e

regionais que marcam a formação de diferentes formas materiais de família.

Compreendo que numa avaliação psicológica e familiar avalie-se a performance

da criança e do adolescente, e de sua família na resolução das situações conflitantes.

Woodward (2000) aponta que podem ser levantadas questões a respeito do poder de

uma representação. Para a autora, “todas as práticas de significação que produzem

significados envolvem relações de poder, incluindo o poder para definir quem é incluído

e quem é excluído” (p.18).

O profissional de saúde ao observar o desnivelamento desenvolvimental e os

conflitos familiares, faz esse movimento de decidir quem será incluído ou excluído da

clínica psicológica. A Entrevistada 2 recorda “de um adolescente que chegou a

fonoaudióloga com 12 anos, com a fala muito comprometida, porque a família

acreditava que Deus iria curar, e na ignorância levou tempo demais para procurar o

serviço devido ao conflito familiar em função da religião” (Diário de Campo,

26/11/2018). Neste caso, a entrevistada compreendeu que o conflito prejudicou o

desenvolvimento, encaminhando o adolescente para a psicoterapia.

Durante as entrevistas, perguntei aos profissionais da Rede quais as

características das crianças e dos adolescentes que vivem conflitos familiares. No

atendimento a este questionamento, obtive a seguinte resposta:

A gente percebe uma criança extremamente insegura, ou eu percebo as

vezes uma alteração grande no humor, ou eu vejo que é uma criança

muito apática, muito triste, ou é uma criança que resolve tudo de uma

forma sempre agressiva, independente do conflito, às vezes é um

probleminha simples, e a criança resolve da maneira mais agressiva

(Entrevistada 1).

55

Noto que o referencial para o encaminhamento à clínica especializada, segundo

a Entrevistada 1, refere-se à alteração no humor ou no comportamento. Percebo que se

trata de uma avaliação individual no qual os sintomas que a criança manifesta servem de

parâmetro para aquilo que se espera de uma criança tida como saudável ou normal, o

que refere, novamente, aos processos de formação de uma identidade relacional.

A respeito de uma série de práticas e intentos que buscam uma regulação dos

comportamentos sociais através de representações culturais de determinados sujeitos,

com efeitos de produção de indivíduos saudáveis, Rose (2013) afirma que faz algum

tempo que as práticas biomédicas desempenham um papel na modelação das

subjetividades. Menciona que o cuidado com o corpo se estendeu à mente, surgindo

novas ciências neurológicas, comportamentais e farmacêuticas, que prometem não

somente o combate ou a cura, “mas a correção e o incremento dos tipos de pessoas que

somos ou queremos ser” (p. 45). Tais esforços contemporâneos com base nos saberes

biomédicos constroem formas de subjetividades e representações de sujeito que se

ajustam às demandas aqui investigadas de medicalização de comportamentos.

Percebo que os próprios profissionais da saúde sofrem os efeitos da modelação

da subjetividade em suas condutas clínicas, e até mesmo na forma em que são moldados

como profissionais da Rede Protetiva. Rabinow e Rose (2006) referem-se aos modos de

subjetivação, através dos quais as pessoas são levadas a atuar sob certas formas de

autoridade, em relação aos discursos de verdade em nome da saúde. Os profissionais do

NAM aqui investigados, em nome das representações de sujeito em pleno

desenvolvimento e de sujeito adoecido pela família conflitante, subjetivados em nome

da saúde e da garantia de direitos, escolhem os melhores encaminhamentos a serem

tomados. Assim, o sujeito adoecido pela família conflitante precisa de uma avaliação

psicológica que confirme atrasos de desenvolvimento, e de um posterior

acompanhamento psicológico para reestabelecer o curso adequado. Ressalto que a

conduta medicalizante recai sobre o menor, pois não é sua família que foi encaminhada

para a clínica especializada, e sim somente o membro tido como sintomático.

2.3.1.3 O sujeito da Assistência Social encaminhado para garantir seus Direitos

Quanto aos sujeitos encaminhados pelos setores da Assistência Social com a

queixa de conflito familiar, ocorrem duas situações distintas, complementares. Quando

56

uma família é encaminhada ou assistida pelo CREAS5, na prática significa que os

vínculos familiares estão rompidos, e cabe aos profissionais trabalharem a reconstrução

dessas relações familiares e das situações envolvidas. Por isso que as pessoas atendidas

pelo CREAS necessariamente estão ou vivenciaram alguma situação de maus-tratos,

negligência, abandono, violência, discriminação, cumprimento de medidas

socioeducativas, em situação de rua... Já as crianças ou adolescentes encaminhados pelo

abrigo foram acolhidos e retirados de sua família, com vistas a assegurar a reintegração

familiar e a garantia de seus direitos e de proteção, como previstos no ECA. Sobre a

casa de passagem segue uma reflexão:

De todos os lugares o abrigo reflete os Conflitos Familiares, e

me lembra as tentativas não muito bem-sucedidas da família na

conduta com seus filhos. Na verdade, o abrigo caracteriza o

fracasso familiar, fracasso das relações em que deveriam

oferecer suporte emocional e material às crianças; fracasso do

pai, da mãe, do avô, da avó, da família extensa que falhou no

seu papel. Tenho esse pensamento reflexivo, por também

inserir-me na Rede, e ser efeito do discurso de cuidado e de

proteção (Diário de Campo, 27/11/2018).

De qualquer forma entendo que nesses setores citados, os sujeitos são

representados como aqueles que tiveram seus vínculos familiares rompidos, por isso,

tiveram uma privação de um dos direitos garantidos pelo ECA, devendo por tanto, ser

encaminhados para serviços de saúde, que como consta no documento oficial (BRASIL,

2005) deve oferecer um atendimento integral à criança e ao adolescente,

preferencialmente dentro de uma equipe multiprofissional, justificando o

encaminhamento dos profissionais da Assistência Social para a psicóloga clínica, como

consta no ECA, Capítulo I, que dispõe dos Direitos à Vida e a Saúde:

Art. 11 - Art. 11 - É assegurado atendimento integral à saúde da

criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único de Saúde,

garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para

promoção, proteção e recuperação da saúde. (Redação dada pela Lei

nº 11.185, de 2005) ECA.

5 O CREAS é um programa federal de Assistência Social, de alta complexidade, que oferece apoio e

assistência às famílias e sujeitos em situação de ameaça ou violação de direitos. Segundo informações do

site da Assistência Social do Governo Federal, há no país 2.155 CREAS, locais ou regionais, prestando

cerca de 65 mil atendimentos anuais, tendo como foco principal a família e a reconstrução de vínculos

familiares. Fonte: BRASIL. Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS).

Disponível em: >http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2011/10/centro-de-referencia-

especializado-de-assistencia-social-creas>. Acesso em: 29/03/2019.

57

Ressalto duas compreensões de sujeitos: o sujeito com vínculo familiar que

possui seus direitos garantidos; e o sujeito com vínculos familiares rompidos e privado

de seus direitos, portanto, em situação de risco. Azevedo (2001) aponta que a violação

de direitos é um atentado aos direitos das crianças e dos adolescentes estabelecidos no

ECA. Trata-se de “negligências por parte dos pais ou responsáveis; vivências nas ruas

ou em instituições de abrigo; violência física, psicológica ou sexual” (p.110). Cruz et al.

(2006) explicam que o ECA tem em sua instância garantir a integridade física e

psicológica de crianças e adolescentes em situação de risco. Marcelli (1998) corrobora

afirmando que é mais uma preocupação com o estado futuro da criança ou do

adolescente, do que o estado presente. Por isso, conforme o autor muitas vezes ordena-

se uma medida de consulta, isto é uma avaliação ou acompanhamento psicológico.

Conforme o autor essa medida profilática é muito comum...

“Tanto que muitas vezes as crianças ou adolescentes acolhidos na casa

de passagem são encaminhados pelo juiz para a avaliação psicológica,

sem apresentar sintomas, isso é, desenvolvendo-se plenamente dentro

dos padrões de normalidade esperados” (Diário de Campo,

27/11/2018).

Stubbe (2008) assinala que as crianças e adolescentes acolhidos são

encaminhados por apresentarem problemas legais. Ou seja, por serem assistidos por

instituições regulamentadoras de condutas, tais como a Vara da Infância e da Juventude

ou Ministério Público.

Hall (2000) explica que os significados são atribuídos aos objetos, pessoas e

eventos através da estrutura de interpretação. Para o autor, tem efeitos reais e regulam as

práticas sociais. Os profissionais da Assistência Social interpretam o rompimento de

vínculo como um motivo para encaminhar as crianças e os adolescentes. Para tanto,

utilizam o modelo ideal de família no qual todos os membros estão vinculados uns aos

outros como referencial. Hall (2000) pontua que possuímos um conjunto de

representações mentais a respeito das coisas. Enfatizo que a respeito da família, ainda

há um viés conservador e tradicionalista, e uma imagem de membros vinculados, tal

como a do comercial de margarina. Quando isso não ocorre, os profissionais da Rede

protetiva necessitam encaminhar os membros menores de 18 anos à clínica psicológica,

para resolver os conflitos, restaurando o equilíbrio. Assim, acaba por existir um outro

tipo específico de sujeito, o sujeito (a ser) medicalizado.

58

As famílias também estão sendo transformadas em famílias medicalizadas,

reguladas nessa cultura, e isso influencia na representação social das mesmas, como

afirma Hall (2000), afetando as identidades e as subjetividades das pessoas enquanto

atores sociais. Para contribuir com a discussão, apresenta-se uma das falas do

Entrevistado 5 quanto às subjetividades das mães:

“Antigamente as famílias chegavam no Conselho Tutelar com

duas ou três crianças para entregar porque as mães tinham que

ser felizes, viver a vida... Agora elas chegam com os

adolescentes, muitas querem ver seus filhos no abrigo. Lá eles

são cuidados” (Entrevistado 5).

Conforme o excerto do Entrevistado 5, a cultura de garantia de direitos e de

proteção aponta por exemplo, que o abrigo é um local seguro que garante o

desenvolvimento de uma criança ou adolescente, tanto que algumas mães querem

entregar as crianças. Neste caso, cabe ao Conselheiro reforçar aos responsáveis os seus

papeis perante o que exige o Estado. Rose (2013) explica que em nome da saúde há

diversos instrutores em modelação da forma de vida, tais como os conselheiros

(Conselheiros sexuais, conselheiros da família, conselheiros de relacionamentos,

conselheiros educacionais, conselheiros genéticos). Percebo que o psicólogo clínico

entra aqui como um deles, visando trabalhar o conflito familiar, porque como aponta

Féres-Carneiro (2011, p.28) “os conflitos são positivamente valorizados quando as

diferenças e as discordâncias entre os membros da família são vistas por eles, não como

ameaça, mas sobretudo, como algo que pode ser construtivo, na medida em que

estimule o crescimento familiar”. Assim, de uma forma medicalizante cabe ao psicólogo

trabalhar para que a família cresça, ou seja, volte à normalidade funcional. Então, em

nome da garantia de direitos de uma criança cujos vínculos foram rompidos,

encaminha-se para clínica especializada a fim de tratá-la, para que seu direito ao

cuidado seja restabelecido.

Por outro lado, Ribeiro (2017) aborda em uma reportagem sobre a medicalização

na infância trazendo um questionamento: “garantia de direitos ou controle social?”

(p.01). Nessa discussão cita que muitos abrigos no Estado de São Paulo tinham a cultura

de medicar as crianças em situação de rua ou vulnerabilidade social. Menciona que

durante 10 anos esses menores de idade foram medicados nessa estrutura de doença. A

autora aponta uma reflexão na qual o sujeito criança e o sujeito adolescente estão sendo

controlados pelo Estado. Tal discussão será abordada a seguir.

59

2.3.1.4 O governamento das famílias e dos profissionais da rede por meio da

medicalização dos conflitos familiares

No caso deste usuário, conforme nosso combinado,

devo previamente informar ao Ministério Público e

ao CREAS sobre as datas das consultas, bem como,

sobre a frequência às mesmas. Tal conduta foi

tomada visto se tratar de um adolescente de 11 anos,

em situação de vulnerabilidade social, com histórico

de fracasso escolar (reprovou cinco vezes no terceiro

ano), que transita de bicicleta de Penha para

Navegantes (cidade vizinha), cujo pai e mãe não

conseguem exercer seus papeis, segundo o poder

público, nem possuem autoridade sobre ele. A

promotora reforçou que se esse jovem não se

submeter a uma avaliação psicológica, será acolhido

pela equipe da Casa de Passagem, e sua família

perderá o poder familiar6. O pai, pescador,

semianalfabeto, não compreende a necessidade de

trazer seu filho ao psicólogo por causa disso,

justamente porque seu filho mais velho passou pelas

mesmas dificuldades. Após a avaliação do paciente

(termo utilizado pelo SUS) citado a pedido do MP

devo encaminhar o laudo psicológico para um

médico neurologista avaliá-lo (Diário de Campo,

29/01/2019).

O caso relatado nesta discussão de abertura enquadra-se em várias formas de

governamento e sobre diferentes tipos de sujeito, como do adolescente, da família e dos

profissionais da Rede das Instituições de Saúde e da Assistência Social que se tornam

responsáveis pelos atendimentos da rede. Conforme exposto, os comportamentos tidos

como desviantes referem-se à evasão escolar, a dificuldade de leitura e de escrita, e não

adesão aos tratamentos medicalizantes por parte do adolescente e de seus familiares.

Como a família não está cooperando com a determinação da promotoria, infere-se sobre

seus membros um modo coercitivo de controlá-los e de governá-los para que prossigam

com a avaliação psicológica.

Brzozowiski e Caponi (2013) pontuam que quando uma criança é avaliada por

um profissional de saúde a responsabilidade pelo comportamento desviante é

6 Conforme o site Jus.com.br o poder familiar é utilizado para designar o complexo de direitos e deveres

que compete aos pais em relação aos filhos menores de 18 anos. Fonte:

<https://jus.com.br/artigos/35295/patrio-poder-x-poder-familiar>. Acesso em: 16/05/2019.

60

compartilhada com ele. Segundo as autoras, o controle social é uma forma pela qual a

sociedade minimiza ou normaliza o comportamento desviante, ou seja, qualquer

conduta indesejável socialmente. Para elas, os grupos sociais definem as regras de

conduta, bem como a existência de desvios. Explicam que o profissional de saúde é um

agente oficial de controle social, com o objetivo de mudar o comportamento inaceitável.

Veiga-Neto (2002, p.29) assinala o termo governabilidade, referindo-se “a qualidade

daquilo ou daquele que é governável, que se deixa governar, que é dócil”. O autor

reflete sobre o governamento dos corpos, por volta do século XVIII, com o

desenvolvimento de técnicas de disciplinamento e docilidade. Além disso, refere-se a

modos em que o Estado foi se tornando governamental. No caso anteriormente

apresentado, a família não se deixou facilmente governar, tanto que questionou e

ofereceu resistência à conduta medicalizante, mas como há uma relação hierárquica já

que envolve os profissionais da Rede e o MP, e uma possível punição caso não

compareça, frequenta as sessões sem cumprir com o enquadre espaço-temporal da

clínica psicológica, em outras palavras, leva o adolescente para as consultas somente

quando estão dispostos.

Veiga-Neto (2002) fazendo uma retrospectiva sobre os estudos foucaultianos

aponta que governar não se restringe somente a gestão política e estatal, e sim à maneira

de dirigir as condutas das pessoas. Foucault (1995, p.244) exemplifica várias formas de

governo “das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos doentes”.

Todavia, ainda segundo Foucault (1995, p.240), o Estado coloca em jogo as relações

entre os indivíduos, como parceiros, no qual “as ações se induzem e se respondem umas

às outras”.

Trazendo o governamento e as relações de poder para o presente estudo,

compreendo que quando uma criança ou adolescente com a queixa de conflito familiar é

encaminhado para a clínica especializada de Psicologia, o profissional de Saúde ou

Assistência Social interpreta a necessidade do encaminhamento observando a ausência

de normalidade na família, na qual faz parte o governamento para que a família volte a

funcionar, exercendo sobre ela uma relação de poder no sentido do lugar que se

encontra enquanto profissional da Rede, como percebido no excerto apresentado:

A família não consegue, não sabe como ajudar, não consegue ver o

quanto está interferindo a negligência, ou a ausência [...] se a família

não está funcionando bem, alguma coisa a criança vai estar

61

sinalizando em alguma área. Daí é preciso encaminhar. (Entrevistada

2).

No caso das famílias assistidas pela Casa de Passagem ou pelo CREAS, os

profissionais da Assistência Social atuam no monitoramento das condutas familiares,

como já visto nas discussões anteriores, apontando aos membros familiares

direcionamentos que incluem o acompanhamento psicológico e psiquiátrico, por

exemplo, além da procura de emprego, capacitação para o mercado de trabalho, dentre

outros. Conforme Conrad (2007) esse controle ocorre por meio da medicalização, uma

forma cultural de controle social, que cria expectativas sobre o corpo, comportamento,

no qual as expectativas médicas estabelecem os limites do comportamento e do bem-

estar. Essa forma de controle pela medicalização se assenta, de forma atualizada ao

contexto biotecnológico que hoje temos, naquilo que Foucault (1995, p. 242) analisou

sobre as relações de poder e a obediência na sociedade europeia do século XIX, e que

chamou de disciplinarização da sociedade, na qual “os indivíduos que dela fazem parte

se tornam cada vez mais obedientes”.

Como menciona Mitjavila (2015) para que ocorra a medicalização é preciso que

se deflagrem algum processo de problematização social caracterizado por certo nível de

risco, tal como elencado na fala do conselheiro tutelar que exerce poder sobre as

famílias:

Um adolescente que convive com a família ou que pelo menos poderia

viver com a família, mas que não frequenta a escola, que a mãe de

repente com as saídas dele, com o círculo de amigos dele, ele começa

a se distanciar dessa família, e começam a ocorrer alguns problemas

(Entrevistado 5).

Nesse ínterim é possível trazer à baila a definição de Foucault (1995) em relação

às relações de poder e de governo, quando o autor pontua que uma relação de poder é

definida pelo modo em que uma ação age sobre o campo possível de outra, e não apenas

direta e imediatamente sobre os outros. Isso ocorre porque o outro coloca-se como um

sujeito de ação. Para o filósofo (1995, p. 235):

“Há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo

controle e dependência, e preso a sua própria identidade por uma

consciência ou autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de

poder que subjuga e torna sujeito a”.

62

Assim, no exercício do poder há o governamento do Estado, através de suas

diferentes ações e instituições, no campo de ação do sujeito. Além disso, conforme

Foucault (1995) é preciso haver liberdade para que o poder se exerça. Compreendo que

quando as famílias se recusam a submeter seus filhos e filhas, e acabam lutando para

permanecerem em liberdade, o Estado numa relação de poder utilizando-se dos

documentos oficiais como o ECA e das prerrogativas das leis e sanções, atua com o

dispositivo medicalizante como um modo de governamento.

Por outra via, a maneira das famílias se comportarem, recusando-se em assinar

os termos de compromisso de atendimento individual, não comparecendo semanalmente

às sessões avaliativas, chegando atrasadas às consultas (sabendo que o tempo de

atendimento torna-se reduzido), agindo à beira da ilegalidade, tanto que podem sofrer

algum tipo de punição pelo MP, evidenciam também resistência à medicalização

coercitiva de suas vidas. Veiga-Neto (2008) afirma que é sempre possível exercer uma

resistência, nesse caso compreendida como uma reação ou uma ação contra o poder.

Porém, “resistir a uma ação de poder significa problematizar tal ação, valendo-se para

isso, também do poder” (VEIGA-NETO, 2008, p.22).

A partir do momento em que o MP ameace acolher as crianças e os adolescentes

das famílias que não se submetem a avaliação psicológica e aos tratamentos médicos;

ou observando a circunstância de atuação em que os profissionais da Rede se

encontram, que também podem ser punidos caso não obedeçam as determinações

judiciárias, caso não agendem os pacientes encaminhados no prazo solicitado, há um

deslocamento entre as relações de poder e as relações de violência. Consoante Veiga-

Neto (2008) as relações de poder se dão sempre como estratégias de luta. Para o autor,

não há relações de poder sem resistências, “que são tão mais reais e eficazes quanto

mais se formem ali mesmo onde se exercem as relações de poder, a resistência ao poder

não tem de vir de fora para ser real” (VEIGA-NETO, 2008, p. 22).

Desta forma, trava-se uma luta ou um jogo de relações saber-poder, afinal as

famílias apresentando-se resistentes aos modos de subjetivação, tornam-se também

pontos de exercício do poder, pois segundo Veiga-Neto (2008) só há poder se houver

alguma chance de fuga, por parte daqueles que sofrem as ações. Como percebido na

discussão, as famílias encontram formas alternativas de manterem-se lutando. Sob o

meu ponto de vista, algumas famílias lutam até o fim, colocando-se em oposição e

mantendo-se de modo a não acatar o que delas se tenta extrair. Todavia, algumas

63

tornam-se suscetíveis, principalmente, quando deparam-se com as relações de violência,

e acabam permitindo serem medicalizadas.

Kamers (2013) autentica afirmando que a medicalização atua como um

dispositivo de controle e de vigilância que as instâncias superiores dispõem sobre as

famílias. Assim, os profissionais de saúde e assistência social, conforme Kamers (2013)

agem como reformadores especialistas encarregados de dizer sobre como se deve

educar uma criança. O exemplo do Entrevistado 5 corrobora com essa argumentação,

pois trata-se de um adolescente percebido como em vulnerabilidade social, ou seja, que

ocorre riscos de evadir-se da escola, de tornar-se um menor infrator, e que precisa ser

encaminhado à clínica especializada para acompanhamento psicológico. A questão da

evasão escolar é especialmente valorizada, como um dispositivo de controle social e

governamento. Howe (1992) enfatiza que o paradigma da proteção consolidou em

vigiar, investigar e controlar de forma sistemática e punitiva as famílias. Danzelot

(1986) aponta a polícia das famílias que são os dispositivos de controle e normalidade

social. Por isso, o conselheiro tutelar se recorda de um programa governamental...

A gente se pauta muito pelas referências ou a falta delas. O Apoia que

é um Programa do Governo Estadual com relação as escolas, evasão

escolar, às vezes, ele também está indiretamente implicando no

conflito familiar (Entrevistado 5).

Kamers (2013) explica que a educação e a escolarização são modos de garantia

da ordem pública. O Programa Bolsa Família é um excelente exemplo de controle

familiar, pois as famílias só recebem o valor mensal se as crianças e adolescentes

tiverem presença na escola, monitoradas pelo Programa Apoia, como cita o conselheiro.

Uma criança ou adolescente que não frequenta a escola é tido como em situação de

risco. Contudo, no limite, poderíamos inferir que a evasão escolar pode ser uma forma

de resistência ao governamento, como no caso discutido na abertura deste capítulo, em

que o jovem pelas suas dificuldades de leitura e de escrita é um candidato a abandonar a

escola após os anos de estudos obrigatórios, por não se adequar ou subjetivar ao sistema

imposto. Obviamente é necessário aqui uma ressalva: a evasão escolar não opera

somente numa lógica de resistência e é, sim, um grave problema social que precisa ser

amplamente investigado. O que motivou a discussão aqui é que tal exercício pode ser

compreendido à luz dos jogos de poder e de subjetivação em crianças e adolescentes

tidos como parte de processos de conflito familiar, ou em risco, em função desses.

64

Mitjavila (2015) explica que fatores de risco estão relacionados com a

probabilidade de ocorrência em um futuro determinado, de algum dano indesejado do

ponto de vista da normalidade. Trazendo para a realidade do presente estudo estas

discussões, sabemos que é uma das obrigações das escolas, independentes de serem

públicas ou privadas, informarem ao Conselho Tutelar a respeito do número de faltas

das crianças, e que tais conselheiros devem investigar os motivos pelos quais há faltas,

acionando o MP que cobrará a responsabilidade das famílias.

Para Ribeiro (2017) a medicalização é uma forma de prescrever o modo correto

de se criar filhos, são dispositivos para tentativas de normatização. Castel (1981) chama

tal prática de tecnologias políticas de gestão de riscos sociais, e por sua vez, Mitjavila

(2015) explica que mapeiam-se os riscos, aplicando penalidades e modalidades de

tratamento, como elencando na fala da psicóloga do abrigo municipal:

A gente vai elencando as metas, o que a família precisa fazer, para

atingir, conseguir aquela guarda da criança. A gente faz um plano de

ação com a família. A família tem que cumprir com aquele plano

(Entrevistada 3).

Consoante o excerto acima, percebo que é dada uma série de tarefas e um tempo

hábil para que a família possa se reestabelecer. Como uma criança não pode ser

acolhida por mais do que dois anos num abrigo municipal, quando a família não

consegue voltar à sua normalidade, corre o risco de perder o poder familiar, e ter seu

filho ou filha encaminhado à adoção. Por isso, faz parte da conduta dos profissionais

monitorar, avaliar, dedurar ao MP qualquer movimento considerado desviante.

Conforme Danzelot (1986) o saber médico vem neutralizar a desadaptação da

criança, mediante toda uma estrutura de prevenção. Ainda, Brzozowiski e Caponi

(2013) pontuam que as medidas corretivas ou de adaptação visam à cura. Ou seja, a

normalidade familiar, como citada na fala do psicólogo do CREAS:

Todo o nosso trabalho aqui é envolvendo o empoderamento da família

[...] todo o nosso trabalho é voltado para que a família tenha a

resolutibilidade do seu problema (Entrevistado 4).

Contudo, quando uma criança ou adolescente são encaminhados com suas

famílias para a clínica especializada de Psicologia, para a realização de uma avaliação

psicológica, que busca encontrar um transtorno que justifique o comportamento

65

desviante, pelos profissionais da Rede de Proteção, é possível inferir, a partir de

Foucault (2004), que trata-se do Estado atuando na contenção, no controle e no registro

das doenças. Porém, segundo o autor, é como se o cuidado com o corpo assegurasse o

status de cidadão, como pode ser percebido na fala da psicóloga do abrigo:

O conflito familiar se ele é bem remanejado, ele é até saudável. Aqui

nós temos várias famílias que tiveram conflitos. Isso tem o lado bom.

Para manter o equilíbrio da família (Entrevistada 3).

Gaudenzi e Ortega (2012) complementam afirmando que algumas famílias e

pacientes reivindicam o estatuto da doença, pensando na garantia dos direitos sociais.

Ortega (2009) salienta, ainda, que essa reivindicação é um reflexo da biossociabilidade,

no qual os indivíduos partilham a mesma identidade de acordo com critérios de saúde e

biológicos que podem ser manipulados.

Rose (2013) pontua que estamos experimentando uma medicalização dos

problemas sociais, via condições biotecnológicas tais como as apropriações da vida

pelas tecnologias gênicas, que ampliam o imperialismo dos saberes biomédicos. Para o

autor, antigamente utilizavam-se as intervenções da medicina para curar patologias, para

promover estratégias biopolíticas por meio das modificações do estilo de vida. No

entanto, atualmente isso não apenas incide sobre processos de cura e correção como,

principalmente, pela formação de desejos nas pessoas, tal como uma cultura de mercado

e de consumo. Rose (2013) refere-se ao papel da medicina na subjetivação e, Rabinow

(1996), aponta a respeito de um grupo de pessoas que busca um diagnóstico, um

tratamento médico, e identificam-se nos novos tipos de identidade grupal e individual.

Rose (2013) nos recorda de projetos de cidadania organizados em nome da saúde, em

determinados regimes governamentais. Realizando uma analogia ao presente estudo,

tratam-se mais uma vez de formas de governamento que constituem modos de

subjetivação nos sujeitos envolvidos. Pensando assim, sujeitos que vivenciam conflitos

familiares, em nome da saúde e da cidadania, podem buscar ou serem encaminhados

para avaliação e diagnóstico das suas dificuldades sociais, culturais e relacionais.

A psicóloga do abrigo se recorda de crianças que foram ameaçadas pelos seus

responsáveis da seguinte maneira: “se não se comportar, volta para o abrigo” (Diário de

Campo, 27/11/2019). Compreendo que essa fala seja comum porque no abrigo as

crianças e adolescentes são instituídos de normas e regras sociais, frequentam a escola

com regularidade, são acompanhadas por equipes multiprofissionais da saúde e da

66

assistência social, ou seja, saem de uma situação de risco, para uma situação de controle

social e governamento. Além disso, há as autoridades do promotor e do juiz, que

procuram em nome do Estado regular as famílias através destas intervenções.

De qualquer modo, o Estado controla as famílias e os profissionais de saúde e da

assistência social. Eu mesma já fui ameaçada de prisão por não atender a um pedido do

judiciário, e como percebido devo prestar esclarecimentos frequentes ao MP, de casos

como o citado no início deste subcapítulo. Foucault (1995, p.247) refere que há as

relações estratégicas, como um “conjunto de procedimentos utilizados num confronto

para privar o adversário dos seus meios de combate e reduzi-lo a renunciar à luta”. São

essas relações estratégicas que fazem as famílias se submeterem muitas vezes às

condutas medicalizantes, e que nos fazem cumprir com as estratégias de poder do

Estado.

Assinalo que a Tecnologia Social apresentada e a proposta de trabalho anunciada

no subcapítulo a seguir podem, também, serem formas até mesmo mais sutis de

governamento, talvez como menos efeitos iatrogênicos do que o governamento em

forma de avaliação e acompanhamento psicológico solicitadas pelas instituições do

Estado. Porém, a representação do sujeito criança e adolescente pelo Governo, que

necessita de atendimento, molda o olhar de quem trabalha com a infância e a juventude.

E se a representação do sujeito fosse outra? Para tanto, Moyses e Collares (2013, p. 02)

traz uma importante reflexão:

As crianças que sofrem violência, são atendidas pelo sistema de saúde

e medicadas. O que eu digo é que tudo o que não se espera dessas

crianças é que sejam normais. Aí seria estranho. A medicalização

pode estar destruindo Direitos.

Costa (1999) afirma que as terapêuticas educativas atuais são ativistas da

medicalização. A autora não nega que a desestruturação familiar seja um fato social,

porém, do modo que está insistem em reeducar terapeuticamente as famílias de modo

medicalizante. Essa reflexão é um instrumento importante para a proposta de uma

Tecnologia Social para compartilhar com os profissionais da Rede de Proteção à

Criança e ao Adolescente, pois a minha preocupação é que as crianças e os adolescentes

continuarão sendo encaminhados para a clínica especializada. Porém, eu gostaria muito

de trabalhar com essa demanda, sem associar a um transtorno ou padrão de

67

normalidade, sem precisar avaliar e emitir um documento psicológico. Minha sugestão

encontrar-se-á a seguir.

2.3.1.5 A educação permanente dos profissionais da rede de proteção à criança e ao

adolescente como tecnologia social

Barreto e Piazzalunga (2012, p. 04) afirmam que a partir do ano de 2005 no

Brasil adotou-se chamar de Tecnologia Social "produtos, técnicas e/ou metodologias

reaplicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que representem efetivas

soluções de transformação social". Conforme os autores, a tecnologia social propicia a

comunidade uma parte ativa, deixando de ser só o pesquisador e a pesquisa como os

beneficiários. Para eles a Tecnologia Social é vital para o sucesso da pesquisa em si.

Por se tratar de um Mestrado Profissional, como Tecnologia Social respondendo

a um dos objetivos específicos deste estudo, trago como proposta a construção de um

material pedagógico para a educação permanente dos profissionais da rede protetiva de

crianças e de adolescentes, que realizaram os encaminhamentos para a clínica

psicológica, com a queixa de conflito familiar.

Como psicóloga inserida num serviço de saúde do Sistema Único de Saúde

(SUS), da Prefeitura Municipal de Penha (SC), intento com essa Tecnologia Social

realinhar o fluxo das pessoas encaminhadas, reduzir os encaminhamentos individuais

para a psicologia clínica, ampliar o trabalho com as famílias (e não somente com as

crianças e os adolescentes, que nesse caso são os bodes expiatórios dos conflitos

familiares aos quais me refiro), e o mais importante, contribuir com a educação

permanente dos profissionais que encaminham.

Nietsche, Teixeira e Medeiros (2014, p.95) pontuam que uma tecnologia “serve

para gerar conhecimentos a serem aplicados e socializados”. Merhy e Onocko (2002)

explicam que as tecnologias na área da saúde recebem categorizações. Compreendo que

o material pedagógico encontra-se na categoria Tecnologia Leve-Dura, que se tratam de

saberes estruturados que atuam nas disciplinas na área da saúde; bem como, na

Tecnologia Leve, que de acordo com Merhy e Onocko (2002) referem-se aos processos

de comunicação, das relações, dentre outros exemplos.

O material pedagógico encontra-se também na categoria de uma Tecnologia

Educacional. Nietzsche (2000) menciona que Tecnologias da Educação são aquelas que

agrupam formas de auxiliar na consciência para uma vida saudável. Além disso,

68

Nietzsche et al (2005, p. 346) explicam que as Tecnologias Educacionais são

consideradas um “conjunto sistemático de conhecimentos científicos que tornam

possível o planejamento, a execução, o controle e o acompanhamento, envolvendo todo

o processo educacional formal e informal”.

Consoante Silva e Medeiros (2016) uma Tecnologia Social de Saúde possui uma

dimensão pedagógica. Conforme as autoras, refere-se à educação coletiva e remete ao

campo da formação. De acordo com as professoras, tal dimensão emancipa os atores

sociais, enfoca no campo de intervenção, envolvendo as partes interessadas. Para elas,

colabora e potencializa a troca de saberes, favorece o aprendizado mútuo.

A proposta da presente Tecnologia Social é realizar com os profissionais da

Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente uma educação permanente, cujo objetivo é

de promover uma reflexão sobre a prática profissional e sobre os encaminhamentos

realizados para a clínica psicológica do município. Visto que o mapeamento da rede,

bem como a descrição dos profissionais e instituições que encaminharam as crianças e

os adolescentes com a queixa de conflito familiar já foi concluído, a próxima etapa é

iniciar a educação permanente no início de setembro do presente ano no município de

Penha. Porém, já fui convidada pelo NASF de Balneário Piçarras a realizar uma Oficina

Pedagógica sobre a Medicalização dos conflitos familiares agendada para outubro. O

modelo do Termo de Aceite encontra-se anexo.

Conforme Zen (2011) num plano é necessário incluir tanto os desejos do

profissional, quanto as necessidades dos envolvidos. Pensando nisso, considerando a

pesquisa realizada e o fato de que a Rede continuará encaminhando as crianças e

adolescentes ditos em situação de conflito familiar para a clínica especializada, a

intenção é sair da metodologia tradicional, ou seja, não realizar aulas expositivas com

saberes transmitidos. Fazendo uma crítica à formação desses profissionais, essa

formação bancária ocorre frequentemente, seja pelos seminários e cursos que os

mesmos participam, seja pelas orientações técnicas dos documentos oficiais. O desejo é

de construir saberes com os profissionais da Rede, e por isso, um trabalho em grupo

será válido, em primeiro lugar, como possibilidade de encontro dos profissionais

comigo enquanto pesquisadora e profissional de saúde. O encontro entre nós é muito

raro de ocorrer, e quando ocorre, como mencionado no subcapítulo anterior, vem em

forma de governamento da minha conduta ou da conduta dos sujeitos atendidos na

clínica. Em segundo lugar pela possibilidade de trocas de saberes e de construção de

uma nova forma de se trabalhar com as famílias envolvidas nos conflitos familiares.

69

Assim, por meio de uma oficina pedagógica cujo roteiro encontra-se anexo,

enfatizaria como conteúdos: a diversidade familiar, o conflito familiar, a medicalização

do conflito familiar, e por fim, uma forma de atuar com as famílias, principalmente,

com as crianças e adolescentes, sem medicalizá-las. Como a pesquisa já categorizou a

representação dos sujeitos que são encaminhados para a clínica psicológica, bem como

a concepção de conflito familiar, e utilizando esses conhecimentos prévios, como

metodologia ativa planejo trabalhar com situações simuladas, dramatizações (role play)

e estudo de casos (reais ou fictícios), visando as seguintes etapas e finalidades:

1. Compreender as histórias das famílias que são recebidas pela Rede com

questionamentos: De que lugar vieram? Por que escolheram Penha? Como

viviam na cidade que residiam anteriormente? Como se organizavam lá com

suas crianças e adolescentes? Como foi a “Educação, Criação” dessas pessoas?

Que práticas eram comuns?

2. Identificar a representação do conflito familiar nos estudos de casos, fazendo

uma reflexão sobre a ausência de definição e a generalização do termo conflito

familiar.

3. Abordar a criança como alvo das condutas medicalizantes e os efeitos disso (os

rótulos e a medicação precoce, por exemplo).

4. Construir uma nova forma da rede trabalhar com as famílias em conflito, sem

encaminhar as crianças e os adolescentes para avaliação psicológica, de forma

direta e imediata como ocorre atualmente.

Minha proposta consiste em fazer um trabalho com esses profissionais, para que

futuramente eu possa atuar de uma maneira diferente com as famílias que forem

encaminhadas para a clínica de Psicologia. Entendo que enquanto psicóloga clínica

numa instituição de saúde há algumas expectativas quanto ao meu papel e ao lugar

ocupado por mim. Do mesmo modo, não nego que muitas famílias estão desestruturadas

(como no caso de uma família que passa pelos impactos de uma situação de separação

ou divórcio, por exemplo), passando por dificuldades, ou em situação de sofrimento

psicológico. No entanto, eu gostaria de atuar com as famílias encaminhadas escutando

sobre suas histórias, compreendendo as diferenças culturais na subjetivação desses

sujeitos, resgatando a autoestima dos seus membros e organizando uma forma de atuar

sem que suas crianças e adolescentes sejam submetidas às avaliações psicológicas, que

70

geram pareceres e laudos a respeito das performances dos seus membros, enquadrando

em diagnósticos clínicos.

Compreendo que minha proposta também se trata de uma forma de

governamento porque geralmente essas famílias não escolheram por vontade própria

estarem ali, sendo encaminhadas pelas demais instituições da Rede de Proteção,

apresentando resistências quanto ao atendimento clínico na maioria das vezes. No

entanto, ao apresentar uma proposta alternativa, seja possível o desenvolvimento de

uma prática com menos ênfase nas psicopatologias e menos coercitiva (e ameaçadora),

e com mais participação dos familiares, mais envolvimento e diálogo, favorecendo que

as famílias encontrem algum sentido nessa vivência, de modo que não se insira apenas

em práticas de patologização calcadas em saberes biomédicos, incitando que participem

desses encontros na clínica psicológica.

Como avaliação ressalto que o feedback dos envolvidos na atividade, bem

como as modificações no processo de trabalho cotidiano serão registrados no diário de

campo, gerando uma outra prática da Psicologia no SUS, para posteriormente publicar o

relato desta experiência e, quiçá utilizá-la como uma referência de trabalho clínico.

71

3 CONCLUSÃO

A frequente demanda de crianças e de adolescentes encaminhados com a queixa

de conflito familiar pelos profissionais da Rede de Proteção à clínica especializada do

SUS, para avaliação e posterior acompanhamento psicológico, levou-me a procurar

compreender como os profissionais da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente do

município de Penha/SC constroem representações de sujeitos a partir dos

encaminhamentos que foram realizados para a clínica psicológica do município tendo

como justificativa a queixa de conflito familiar.

O presente estudo quanto aos objetivos específicos previu: mapear a Rede de

Proteção à Criança e ao Adolescente; descrever os profissionais e as instituições que

realizam os encaminhamentos; identificar a concepção de conflito familiar pelos

profissionais que encaminham; relacionar os processos de encaminhamento às

tendências de medicalização da sociedade contemporânea; e construir material

pedagógico para a formação continuada de profissionais que fazem parte da Rede de

Proteção à Criança e ao Adolescente acerca dos encaminhamentos que compõe o

conflito familiar.

Os percalços da coleta de dados iniciaram com a demora para a aprovação no

CEP, devido algumas inconsistências nas assinaturas dos Termos de Aceite. Mapeando

a Rede, e descrevendo os profissionais e as instituições, constatei que deveria entrevistar

ao todo 11 sujeitos. No entanto, com as exonerações e novas contratações, alguns dos

profissionais previstos foram excluídos, não compondo a gama de entrevistados. Apesar

de parecer algo comum, essa foi a primeira experiência frustrando-me enquanto

pesquisadora, mas muito significante, pois se refere ao ideal da pesquisa, contrapondo

com o que a realidade me apresentou.

Outro ponto de importante significado foi à questão da Rede de Proteção ter se

reduzido às instituições Saúde e Assistência Social no mapeamento realizado. Causou-

me um impacto a percepção que as famílias e seus conflitos não foram mencionados em

nenhum dos encaminhamentos que recebi no período de abril de 2017 a abril de 2018

pela instituição Educação. Compreendi que isso ocorre pelo modo como os profissionais

da educação, que foram moldados a enxergar o desempenho e o comportamento dos

seus alunos exclusivamente pelas dificuldades escolares de aprendizagem e conduta,

sem olhar para as relações familiares.

72

Quanto aos profissionais de saúde, as referências de normalidade, estando as

crianças e os adolescentes dentro ou fora do esperado no seu curso de desenvolvimento,

sendo os conflitos familiares responsáveis por esse dito atraso no desenvolvimento,

moldaram as representações de sujeitos encaminhados por essa instituição. Como

apresentado na discussão, os profissionais de saúde são subjetivados pelos saberes

médicos, que focam em noções de normalidade, nas comparações entre o ideal, o

normal e o adequado, conhecimentos esses utilizados por quem encontra-se na clínica

especializada.

Já os profissionais da assistência social, esses se pautaram no rompimento de

vínculos, na garantia de Direitos, na potencialidade do risco social, sendo os conflitos

familiares motivos para que as crianças, os adolescentes e suas famílias fossem

submetidos ao processo medicalizante. Pelo que foi apresentado no estudo, ressalto que

é muito mais uma preocupação com o futuro dessa criança ou adolescente do que com

seu estado atual, pois mesmo aqueles que não apresentam sintomas clínicos são

encaminhados para uma avaliação que ateste que os mesmos seguem em curso normal

de desenvolvimento, não apresentando sintomatologias fora do padrão de normalidade.

Pensando a respeito das concepções desses profissionais de saúde e da

assistência social no que se refere ao conflito familiar, ressalto que o modelo ideal de

família, isento de conflitos, em que todos os membros exercem seus papéis

determinados pelos padrões sociais, seguem regras de condutas ditadas socialmente, por

exemplo, mantendo o vínculo com seus membros, conseguindo exercer autoridade com

suas crianças, mantendo seus filhos dentro de suas casas, exigindo que os menores

frequentem a escola, mesmo passando pelas ditas dificuldades de aprendizagem,

refletem na concepção de conflito. Todavia, o parâmetro da normalidade da família

torna-se um motivo para encaminhar as crianças e os adolescentes, a fim de que os

menores se sujeitem a uma avaliação psicológica clínica.

Na revisão de literatura realizada, bem como no material empírico, não foi

encontrada uma definição do que é conflito familiar. E mesmo que tivesse encontrado

algum sujeito ou literatura que a definisse, nenhum dicionário, teórico ou profissional,

conseguiria dar um significado para algo que é muito peculiar às famílias, respeitando

as dinâmicas familiares, a cultura em que os membros estão inseridos, os problemas

sociais que essas famílias encontram. Então, socialmente, parece-me mais pertinente

julgar a família e encontrar no conflito familiar um motivo de desordem, enquadrar seus

membros num atendimento clínico que encontre uma psicopatologia, elaborar um

73

diagnóstico, prescrever uma terapêutica e responsabilizar os menores pelos conflitos

que suas famílias enfrentam.

Como psicóloga clínica e pesquisadora, durante a escrita dessa dissertação,

muitas vezes senti um medo de desqualificar os sentimentos e o sofrimento dessas

famílias, pois intento que frequentemente estou enfatizando que os conflitos familiares

não são motivos para que as crianças e os adolescentes se submetam a uma avaliação

psicológica. Tenho clareza que não nego que essas famílias possam realmente estar

passando por algum tipo de problema e estejam sofrendo. No entanto, não me sinto

confortável em ter que submeter uma criança ou um adolescente ao rigor de uma

avaliação psicológica, que é um processo bastante longo (pelo menos oito sessões

avaliativas), aplicar uma série de instrumentos e testes psicológicos, encontrar um

diagnóstico baseado no DSM 5 para enquadrá-la numa psicopatologia.

Contudo, tendo uma melhor compreensão das relações de poder, de resistência e

de violência, discutidas no subcapítulo a respeito do governamento das vidas das

crianças, dos adolescentes e das famílias, e bem como de nós (incluo-me) profissionais

que atuamos na Rede de Proteção, e que somos governamentados pelos documentos

oficiais, dentre eles o ECA, socialmente temos a “obrigação” (aspas minhas) pelo lugar

que ocupamos em acolher essa criança ou adolescente em situação de vulnerabilidade,

de risco social, ou em conduta desviante, causado pelos conflitos familiares. Considero

interessante que os documentos oficiais preveem uma forma punitiva para quem não

cumpre com suas obrigações. As famílias são ameaçadas por não estarem ofertando aos

menores a garantia de direitos; os profissionais da Rede em nome da perda do direito, a

fim de restaurar, precisam submeter as pessoas aos tratamentos medicalizantes, e se não

o fizerem, há punições também previstas. Nesse ínterim ocorre um jogo entre as

autoridades envolvidas (Conselho Tutelar, MP, Judiciário) e os profissionais da saúde e

da assistência social, que numa dinâmica entre fazer o trabalho e oferecer resistência,

vão ganhando prazos. Do mesmo modo, ocorre com as famílias que precisam se

submeter a essa prática clínica. Vão oferecendo resistência, comparecendo e faltando,

até desistirem completamente de serem medicalizadas.

Recordo-me de uma frase que vi numa rede social em que dizia que o Direito

pelo Direito é opressor. Não sei quem é o autor. Essa frase registrada no meu Diário de

Campo em 05/12/2018 na fase de coleta de dados ganhou um significado nessa

dissertação. Atender as crianças e os adolescentes encaminhados para a clínica

psicológica com a queixa de conflito familiar, pensando na necessidade de normatizá-

74

los, em nome da garantia de direitos à saúde, no qual o ECA prevê atendimento

intersetorial, é exercer uma violência. Na clínica psicológica é papel do psicólogo

compreender de quem é o pedido para o atendimento. No caso dessas famílias ditas em

conflito familiar, raramente o pedido vem delas, é sempre do profissional da Rede que

intenta reabilitar, proteger, garantir o direito das crianças e dos adolescentes, a fim de

restaurar o curso de desenvolvimento ou de regular a família. Então, no meu ponto de

vista, é fundamental que as famílias resistam ao governamento.

Como psicóloga clínica não consigo conceber que as crianças, os adolescentes e

as famílias possam se desenvolver exercendo-se sobre os mesmos uma violência.

Assumo uma posição de trabalhar com essas pessoas envolvidas num modo mais sutil

de governamento, se possível evitando a avaliação psicológica e a emissão de laudo ou

parecer técnico que imprima a performance da família e do membro avaliado num

documento. Para tanto, a Tecnologia Social que pretendo aplicar, para mim tem um

valor especial, principalmente, por se tratar de um mestrado profissional. Sinto que a

aplicabilidade da educação permanente com os profissionais da Rede de Proteção não

esteja relatada na dissertação, pois não houve tempo hábil para tal. Mas a possibilidade

dessa formação e do papel social em que eu ocupo como psicóloga clínica da Rede, faz-

me refletir sobre o meu intento de também agir com governamento sobre os

profissionais, por mais dialógica que seja a minha proposta de oficina pedagógica.

Assim, com a nova proposta de trabalho que procurarei realizar com as famílias, intento

que esteja mais aberta ao diálogo, à compreensão da história familiar, a exploração das

diferenças culturais na subjetivação desses sujeitos, na escuta dos problemas sociais que

enfrentam. Ainda, trata-se de um modo mais sutil de governamento, porém não tão

violento, se assim posso esclarecer.

Comprometo-me em registrar e relatar no Diário de Campo o desenvolvimento

das oficinas pedagógicas previstas com os profissionais da Rede. Quanto ao registro do

trabalho com as famílias, esse estudo não prevê que tal procedimento seja realizado,

além do que seria um conflito de interesse, pois se tratam dos meus pacientes, das

famílias que eu atendo na clínica de Psicologia. Não seria ético, nem prudente, utilizá-

los para dar continuidade ao estudo. Por outro lado, abre um precedente para um estudo

futuro.

Assim, fica como sugestão de estudos futuros, que algum profissional do

mestrado interdisciplinar possa pesquisar essas famílias que passarão por um novo

processo medicalizante. Mesmo que a proposta seja outra, ainda se trata de uma forma

75

terapêutica de atuação com as famílias, uma outra forma de governamento e de

medicalização dos conflitos familiares. Um novo estudo pode ser realizado a respeito

disso.

76

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85

APÊNDICE – Artigo na integra submetido a Revista Interface.

MEDICALIZAÇÃO DO CONFLITO FAMILIAR E CONSTRUÇÃO DE REPRESENTAÇÕES DE SUJEITOS EM UMA CLÍNICA DE PSICOLOGIA DO

SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

MEDICALIZATION OF FAMILY CONFLICT AND CONSTRUCTION OF

REPRESENTATIONS OF SUBJECTS IN A PSYCHOLOGY CLINIC OF THE

UNIFIED HEALTH SYSTEM

MEDICALIZACIÓN DEL CONFLICTO FAMILIAR Y CONSTRUCCIÓN DE

REPRESENTACIONES DE SUJETOS EN UNA CLÍNICA DE PSICOLOGÍA DEL SISTEMA ÚNICO DE SALUD

RESUMO Objetivou-se nesta pesquisa compreender como os profissionais da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente de um município de pequeno porte em Santa Catarina (SC) constroem representações de sujeitos a partir dos encaminhamentos realizados para a clínica psicológica do Sistema Único de Saúde (SUS) tendo como justificativa a queixa de conflito familiar. Realizaram-se entrevistas com cinco profissionais da Rede, e por meio de análise cultural amparada no campo dos Estudos Culturais, duas categorias de representação de sujeito foram elencadas: o sujeito caracterizado em atraso de desenvolvimento pela família conflitante; e o sujeito da garantia de Direitos. São esses dois sujeitos representados que se tornam alvos de condutas medicalizantes encaminhados para a clínica especializada a fim de reestabelecer o equilíbrio familiar. Palavras-chave: Estudos Culturais. Representação. Conflito Familiar. Rede de proteção à criança e ao adolescente. Medicalização.

ABSTRACT The objective of this research was to understand how the professionals of the Child and Adolescent Protection Network of a small municipality in Santa Catarina (SC) construct representations of subjects from the referrals made to the psychological clinic of the Unified Health System (SUS) ), as justification for the family conflict complaint. Interviews were conducted with five professionals of the Network, and through cultural analysis supported in the field of Cultural Studies, two categories of subject representation were listed: the subject characterized by a delayed development by the conflicting family; and the subject of the guarantee of Rights. It is these two represented subjects who become targets of medical procedures, referred to the specialized clinic in order to reestablish the family balance. Keywords: Cultural Studies. Representation. Family Conflict. Child and adolescent protection network. Medicalization.

RESUMEN

En esta investigación se compró cómo los profesionales de la Red de Protección al Niño y al Adolescente de un municipio de pequeño porte en Santa

86

Catarina (SC) construyen representaciones de sujetos a partir de los encaminamientos realizados a la clínica psicológica del Sistema Único de Salud (SUS) teniendo como justificación la queja de conflicto familiar. Se realizaron entrevistas con cinco profesionales de la Red, y por medio de análisis cultural amparado en el campo de los Estudios Culturales, dos categorías de representación de sujeto fueron enumeradas: el sujeto caracterizado en atraso de desarrollo por la familia conflictiva; y el sujeto de la garantía de derechos. Son estos dos sujetos representados que se convierten en blancos de conductas medicalizantes encaminados a la clínica especializada para restablecer el equilibrio familiar. Palabras clave: Estudios Culturales. Representación. Conflicto Familiar. Red de protección al niño y al adolescente. Medicalización.

1 Introdução

Encaminhar é muito mais do que passar o paciente para que outro

profissional atenda. O endosso a esse argumento está presente em documento

oficial elaborado pelo Ministério da Saúde (MS), intitulado “Caminhos para uma

Política de Saúde Mental Infanto-Juvenil”1, e indica que no processo de

encaminhamento de casos clínicos e de usuários no Sistema único de Saúde

(SUS) três autores devem ser incluídos, quais sejam:

O sujeito/caso a ser encaminhado, o profissional/ serviço que encaminha e o profissional/serviço a quem se encaminha, mediatizados pela gestão, por outros serviços, pela família, pela comunidade ou por outros agentes1 (p. 53).

Geralmente os profissionais da Rede de Proteção à Criança e ao

Adolescente que encaminham casos, situações ou usuários para clínicas de

psicologia inseridas no SUS objetivam o retorno de informações da avaliação

ou tratamento psicológico. Corrobora Noal2 afirmando que a pessoa que realiza

o encaminhamento e a forma como o faz revelam ser aspectos fundamentais

para a busca de uma compreensão do que se espera de uma avaliação

psicológica. Wainstein3 autentica tal assertiva assegurando que o profissional

que realiza o encaminhamento almeja uma avaliação cognitiva, da

personalidade e do emocional de um sujeito.

Todavia, o encaminhamento para uma avaliação gera a expectativa da

devolução por meio de um material impresso, o laudo psicológico. Wainstein3

salienta que o encaminhamento busca auxiliar não só a criança e ao

adolescente, como também, colaborar com a fonte que os encaminhou.

87

Entende-se que com o retorno desses dados em forma de documento

psicológico o encaminhador pauta-se nos resultados analíticos da devolutiva,

podendo traçar com mais propriedade seu plano terapêutico perante a criança

ou ao adolescente encaminhado.

Dentre os inúmeros motivos e intenções de encaminhamentos oriundos

de diferentes profissionais das instituições da Rede de Proteção à Criança e ao

Adolescente, a queixa de conflito familiar é a mais abundante. Segundo a

Cartilha de Violação de Direitos de Brasília4 compõem a Rede de Proteção

todos os serviços que prestam atendimento à criança ou o adolescente, dentre

eles, as instituições de acolhimento (abrigos, casas de passagem, repúblicas),

creches, conselhos tutelares, escolas, delegacias, hospitais, centros de saúde,

órgãos do Judiciário, Ministério Público e serviços que atendam a clientela

infanto-juvenil. Desta forma, a Rede deve atuar de forma integrada e

interssetorial, envolvendo todas as instituições que atuam na atenção à criança

e ao adolescente5.

Nos encaminhamentos realizados pela Rede de Proteção deste estudo

observam-se que os conflitos familiares, mesmo na falta de uma denominação

clara, coesa e explicativa do que ocorre com os membros da família, são

motivos importantes para que a criança e o adolescente se consultem com o

psicólogo clínico. De fato, em nenhum documento consultado há uma definição

clara, coesa e objetiva do que se define por conflito familiar, e caso houvesse,

seria uma tentativa de fixar sentidos e significados para dinâmicas culturais tão

diversas e díspares tais como a que temos conhecimento.

Lacerda et al.6 em um estudo a respeito dos encaminhamentos de

crianças para acompanhamento psicológico enfatizam que o surgimento de

distúrbios psicológicos em crianças é precedido pelo pressuposto de conflito

familiar, o que corrobora para o encaminhamento maciço das mesmas. Na

mesma direção, Alberto et al.7 definem que a atuação do psicólogo que recebe

sujeitos tidos em conflito familiar deve ser de diagnosticar a situação, planejar

ações de enfrentamento, e ainda, mobilizar os profissionais da Rede tendo em

vista à prevenção e o tratamento. No caso dos encaminhamentos do Ministério

Público ou Judiciário, por intermédio de Instituições da Assistência Social como

ocorre no município pesquisado,

88

o psicólogo prestador de serviço para as Varas de Família, da Infância e Juventude tem trabalhado bastante na mediação familiar, visando à resolução de conflitos, como também, proporcionando aos envolvidos a responsabilidade acerca de seus problemas8.

Santos et al.9 numa perspectiva interdisciplinar reconhecem que

enquanto a Psicologia busca conhecer a dinâmica familiar com um paradigma

compreensivo, o Direito aplica a normatividade às questões familiares visando

regular o comportamento de seus membros. Consoante Foucault10 na

modernidade a família se tornou o agente mais constante da medicalização.

Segundo o autor a partir do século XVIII a família foi alvo da cultura médica, e a

política médica passou a se organizar em função da família e dos seus

membros, focando na medicalização do indivíduo10.

Compreende-se que em algumas situações, como por exemplo, no caso

de uma violência familiar perpetuada pelo pai ou pela mãe ao filho, entende-se

necessário o acompanhamento psicológico dependendo da capacidade de

resiliência do infante. Todavia, questiona-se a banalidade dos

encaminhamentos frente às queixas de conflito familiar, no qual não são todos

os membros familiares encaminhados para processos psicoterapêuticos, e sim

somente os menores de 18 anos, voltando ao que Foucault10 se refere à

medicalização do indivíduo e, nesse caso, da criança. Por isso, na legitimidade

do direito, encaminham-se para a clínica especializada do SUS.

Esse adoecimento do sujeito pelas peculiaridades familiares, e o número

de encaminhamentos para a clínica psicológica do SUS exclusivamente com a

queixa de conflito familiar, despertou o interesse em compreender como os

profissionais da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente de um

município de pequeno porte em Santa Catarina (SC) constroem

representações de sujeitos a partir dos encaminhamentos realizados para a

clínica psicológica do Sistema Único de Saúde (SUS) tendo como justificativa a

queixa de conflito familiar.

No intento de discussão dessa problemática os pesquisadores guiam-se

para compreensão dos fenômenos estudados pelo conceito de representação

tal como desenvolvido no campo dos Estudos Culturais. Para Woodward12

(p.17) “a representação inclui as práticas de significação e os sistemas

simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-se

como sujeitos”. Desse modo, questões norteadoras para a discussão do

89

problema foram elaboradas, tais como: que representações de sujeito são

produzidas pela Rede de Proteção que, frente aos conflitos familiares, impõe

uma intervenção na criança ou adolescente? Que representações de sujeito

são essas que em nome da garantia de Direitos ofertados pelo Estatuto da

Criança e do Adolescente (ECA) necessita de uma intervenção pela Rede de

Proteção? Em suma: que representação de sujeito é construída para que

justifique a necessidade de tais processos? Tais indagações orientam as

discussões que seguem.

2 Método

Realizou-se a presente pesquisa em duas instituições da Rede de

Proteção à Criança e ao Adolescente de um pequeno município em Santa

Catarina (SC), especificamente nos setores de Atenção Especializada das

Secretarias Municipais de Saúde e de Assistência Social. Pesquisaram-se na

instituição de saúde no Núcleo de Atenção à Mulher e à Criança (NAM); na

instituição de Assistência Social, no Centro de Referência Especializado de

Assistência Social (CREAS), no Conselho Tutelar, e na Instituição de

Acolhimento (abrigo municipal).

Ressalta-se que a Secretaria de Educação e setores adjacentes não

participaram da pesquisa por não atenderem aos critérios de seleção, que

incluíam somente os profissionais da Rede que encaminharam crianças ou

adolescentes com queixas de conflito familiar para a clínica psicológica do

SUS. Na medida em que os encaminhamentos oriundos da Educação não

registravam a queixa de conflito familiar, não foram inclusos no processo de

pesquisa, pois não atendiam ao critério de inclusão previamente elaborado.

Outro critério de seleção de entrevistados era que fossem profissionais que

trabalhassem há mais de dois anos em suas funções, para que pudessem

contribuir com suas experiências.

Por meio de um levantamento dos encaminhamentos recebidos entre

abril de 2017 a abril de 2018 mapearam-se as instituições e os profissionais

que comporiam o estudo. Estimavam-se entrevistar 11 profissionais, porém

com a eleição de novos conselheiros tutelares e exoneração de alguns

colaboradores da Rede, após contato telefônico e apresentação da pesquisa,

90

elencaram-se cinco profissionais para serem sujeitos da pesquisa, sendo: duas

fonoaudiólogas do NAN; um psicólogo do CREAS; uma psicóloga do abrigo; e

um conselheiro tutelar. Depois de assinarem os Termos de Consentimento

Livre e Esclarecido (TCLE), os mesmos foram entrevistados em seus locais de

trabalho, no período de dezembro de 2018 a janeiro de 2019. As entrevistas

foram guiadas por um roteiro no qual perguntava-se o que os profissionais

entendiam sobre conflito familiar; se poderiam citar exemplos; quando

identificavam que a família estava numa situação conflitante; quais as

características que tais crianças e adolescentes que vivenciam esses conflitos

apresentavam; quais etapas para encaminha-los à clínica especializada, e

ainda, quais os papeis da família e das instituições da Rede na situação

conflitante em questão. Além das entrevistas, utilizou-se registros em diários de

campo a respeito das notas, reflexões e impressões dos pesquisadores.

Após a realização das entrevistas e transição do material empírico,

utilizou-se o conceito de representação tal como proposto no campo dos

Estudos Culturais12 como operador analítico. Tomando, então, a compreensão

de que os processos de atribuição de significados por meio da linguagem se

dão através de mecanismos de representação sobre algo, compondo sentidos

vinculados ao mundo em que estamos inseridos, procurou-se atentar para as

formas pelas quais determinados significados compunham o que viriam a ser

considerados sujeitos com queixas de conflito familiar, de modo que estas

significações constroem representações de sujeito. Nesse ínterim, o conceito

de representação foi organizador das categorias de análise, na medida em que

a partir de sua compreensão encontrou-se dois tipos de usuários a serem

considerados como necessários de atendimento, a saber, o sujeito

caracterizado em atraso de desenvolvimento pela família conflitante; e o sujeito

da garantia de Direitos.

Destaca-se que os conceitos elegidos para a discussão não apenas

permitiram a organização do material empírico e suas problematizações, mas

também, potencializaram a perspectiva sobre o objeto de estudo do modo

como aqui se apresenta. Tais conceitos serão mais bem apresentados no

decorrer da discussão na medida em que estes fazem sentido em seus usos

consoante a problematização dos dados de pesquisa. Esta pesquisa foi

91

submetida e aprovada no Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Universidade

em que foi desenvolvida, tendo sido aprovado sob parecer número 3.024.446.

3 Análise e Discussão dos Resultados

Neste estudo, no levantamento dos profissionais da Rede de Proteção à

Criança e ao Adolescente que comporiam os entrevistados, notou-se que os

encaminhamentos para a clínica psicológica do SUS não ocorriam por meio de

um documento padronizado. A saber, cada instituição que compõe a Rede

Protetiva encaminha a seu modo. A Saúde encaminha por meio de uma ficha

de Referência, que constam os motivos da consulta, histórico pregresso,

sintomas identificados, conduta do profissional que encaminha, solicitação do

procedimento, e por fim, recomendações.

A Assistência Social encaminha por meio de uma ficha, explicando a

demanda e os motivos pelos quais está acompanhando a família, solicitando

avaliação e acompanhamento psicológico. O Dicionário de Termos Técnicos da

Assistência Social13 define encaminhamento como um procedimento de

articulação da necessidade do usuário com a oferta de serviço, e percebeu-se

que isso orienta as ações advindas dessa instituição.

O que identifica-se em comum nesses diferentes encaminhamentos

refere-se a queixa de conflito familiar. Por meio de análise cultural, focando no

conceito de representação, entende-se que cada uma dessas instituições

apresenta uma representação de sujeito que vivencia os conflitos familiares,

elencadas a seguir:

3.1 A Representação dos Sujeitos das Instituições de Saúde e de

Assistência Social

Daí quando eu identifico alguma situação, algum conflito familiar que está interferindo no desenvolvimento do adolescente ou da criança, geralmente eu faço um encaminhamento (Entrevistada 1).

O profissional de saúde entrevistado neste estudo e que atende crianças

e adolescentes encaminhados com queixas de conflito familiar se aproxima, em

seu trabalho, de uma perspectiva desenvolvimentista e comportamentalista do

92

ser humano. Não obstante, disciplinas de Psicologia do Desenvolvimento e

Psicologia da Aprendizagem compõe o repertório das formações acadêmicas e

norteiam os olhares da clínica especializada. Cada vez em que se avalia

clinicamente uma criança ou adolescente compara-se o indivíduo em questão

aos demais de sua faixa etária e mesmo sexo, analisando o que se espera em

termos desenvolvimentistas em cada idade e sexo.

No campo da Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem várias

teorias direcionam a perspectiva de construção do que é o desenvolvimento

humano, tal como corrobora Stubbe14 (p. 19), ao descrever alguns autores e

seus respectivos campos teóricos inseridos nesse escopo. Para o referido

autor, são eles: “os teóricos do desenvolvimento primário, Sigmund Freud

(estágios psicossexuais), Erick Erikson (estágios psicossociais) e Jean Piaget e

Vygotsky (estágios cognitivos)”.

Entende-se que nos serviços de saúde, na prática da clínica

especializada, o encaminhamento por atraso no desenvolvimento infantil são

comuns, assim como relata a Entrevistada 1 na epígrafe desta seção. Porém,

quando uma criança ou adolescente são encaminhados devido à queixa de

conflito familiar, tem-se duas representações: a do sujeito em pleno

desenvolvimento e a do sujeito em atraso de desenvolvimento pela família

conflitante.

No sistema de representações, consoante Woodward12 há de se ter que

marcar as identidades pela diferença, pois a identidade é sempre relacional.

Conforme a autora, uma identidade depende da existência de outra. Assim,

infere-se que só pode ser percebido o sujeito cujo conflito familiar interfere no

seu desenvolvimento se este for marcado como diferente do ideal de sujeito em

desenvolvimento pleno. Esta problematização das representações dos sujeitos

a serem atendidos pela clínica especializada de Psicologia se manifesta

também no seguinte trecho de entrevista:

Quando o paciente chega, a gente sempre procura estar ouvindo os pais, ver o que eles têm de acompanhamento em casa, para reconhecer a rotina deles, e ali a gente consegue estar identificando, se é uma família que tem uma rotina, se é uma família que estabelece algumas regras, se é uma família que tenha os mesmos objetivos, enfim, que anda em conjunto, né, se participa ou não, quanto participa, se começa a atrapalhar já o desenvolvimento da criança e do adolescentes, nesse momento, principalmente nesse estágio inicial de contato com o paciente, de estar conhecendo, anamnese e tal, a gente consegue identificar (Entrevistada 2).

93

Stubbe14 refere que pensar em termo desenvolvimentista é considerar as

áreas em que a criança apresenta bom desenvolvimento, e aquelas em que

precisa de intervenção. A autora compreende desenvolvimento como “uma

interação complexa entre o potencial genético, as capacidades biológicas, e o

ambiente de criação” (p.17). Pontua-se que é justamente o ponto de vista

ambiental que enfatiza a necessidade de análise da dinâmica familiar,

entendida por Azevedo15 pela “forma de funcionamento de uma família, ou

seja, suas regras, hierarquias, padrões de comunicação” (p. 37). Culturalmente

espera-se que as famílias tenham dinâmicas comuns quanto à forma de

funcionar e de exercer seu papel perante as crianças e aos adolescentes, ou

seja, espera-se um padrão de comportamento social que quando não é

atendido, quando há um desvio ou anormalidade, é preciso investir em sua

regulação, e neste caso, de forma medicalizante.

Zorzanelli et al.16 explicam que uma das possibilidades de compreensão

da medicalização implica em determinar um comportamento social como um

problema médico, descrevendo um processo pelo qual problemas não médicos

são definidos em termos e doenças ou transtornos. Algo semelhante ocorre

com as famílias, e principalmente com as crianças e adolescentes, que por

meio de um encaminhamento para a clínica psicológica chegam à solicitação

de que se realize um diagnóstico nosológico e psicopatológico, explicando as

relações familiares conflitantes por meio de uma doença psicopatológica.

Assim, nessa comparação entre um sujeito em pleno desenvolvimento e

sujeito outro com seu desenvolvimento comprometido, é possível inferir a partir

de Woodward12 que os significados produzidos pelas representações dão

sentido a experiência e aquilo que somos. De acordo com a autora, a

representação, compreendida como um processo cultural, estabelece

identidades e os sistemas simbólicos se baseiam em fornecer respostas sobre

quem é o sujeito.

Em se tratando de crianças e de adolescentes, os significados

aprendidos com os conhecimentos e experiências na clínica especializada

exigem que além dos infantes, avaliem-se as famílias. Stubbe14 afirma que

para uma boa avaliação do desenvolvimento, bem como das psicopatologias,

faz-se necessário uma avaliação completa da criança, do adolescente e da

94

família. Entende-se que além da avaliação cognitiva, emocional e de

personalidade, cabe avaliar a família e a conduta dos seus membros familiares.

Tais pressupostos fazem-se presentes quando um entrevistado explana os

processos de encaminhamento e atenção que organizam sua prática:

“Daí a gente começa a atender a família, e se há necessidade de acompanhamento psicológico e gente encaminha para o NAN, para o psiquiatra” (Entrevistado 4).

Woodward12 aponta que a produção de significados e a produção de

identidades posicionadas nos sistemas de representação estão estreitamente

vinculadas. Compreende-se que neste ponto de vista a construção de saberes

acerca dessa criança ou adolescente e os conflitos vivenciados na família dela

buscam definir quem ela é; assim como, quando se deve encaminhar uma

criança ou adolescente que não se desenvolve como esperado para a sua

idade e sexo por causa do conflito familiar. Assim, nesse processo de

construção de representações, identifica-se um tipo de sujeito caracterizado

pelo atraso de desenvolvimento causado pela família conflitante que, portanto,

necessita de tratamento psicológico.

Nesse ínterim Féres-Carneiro17 explica que na avaliação da família é

importante observar como os membros interagem, e principalmente, como

desempenham seus papeis familiares (pai, mãe, avó, avô). Esses pressupostos

manifestam nortear intervenções dos profissionais aqui investigados, tal como

no excerto abaixo:

O que é muito comum eu receber é conflito assim entre a educação dos pais. Disputa entre os pais na educação dos filhos, na forma que eles querem conduzir as coisas, é... Ou entre os avós. Tem os pais e tem os avós. É muito comum aqui na nossa cultura, na nossa região, morar, né, mora com o pai, com a mãe, com a avó paterna ou com a avó materna. Então tem muito conflito assim. Às vezes quem traz para o atendimento é a avó e aí ela já relata várias situações de conflito familiar, conflito com a nora, conflito com o filho, então... (Entrevistada 2).

Bee18 estudando os papeis familiares destaca que em todas e diferentes

culturas há a exigência e expectativa de que os adultos aprendam e executem

um conjunto de papeis. Tratando em representações de família, enfatiza-se

que teorias psicológicas e psicossociais reforçam o quanto a definição dos

papeis familiares, bem como a manutenção da hierarquia, são fundamentais

95

para um desenvolvimento sadio. Marcelli19 aponta que para os psicanalistas o

período de conflito pode ser gerador de ansiedades e de angústia,

comprometendo o desenvolvimento da criança ou do adolescente. Ou seja, é

comum no campo da Psicologia orientado por tais perspectivas modelar uma

representação de família e sujeitos e atuar sobre aquelas que não atendam ao

esperado pela produção teórica da área, muitas vezes não relativizando com

as dinâmicas sociais, culturais, econômicas e regionais que marcam a

formação de diferentes formas materiais de família.

O profissional de saúde ao observar o desnivelamento desenvolvimental

e os conflitos familiares, faz esse movimento de decidir quem será incluído ou

excluído da clínica psicológica. Durante as entrevistas, perguntou-se aos

profissionais da Rede quais as características das crianças e dos adolescentes

que vivem conflitos familiares. No atendimento a este questionamento, obteve-

se a seguinte resposta:

A gente percebe uma criança extremamente insegura, ou eu percebo as vezes uma alteração grande no humor, ou eu vejo que é uma criança muito apática, muito triste, ou é uma criança que resolve tudo de uma forma sempre agressiva, independente do conflito, às vezes é um probleminha simples, e a criança resolve da maneira mais agressiva (Entrevistada 1).

Nota-se que o referencial para o encaminhamento à clínica

especializada, segundo a Entrevistada 1, refere-se a alteração no humor ou no

comportamento. Percebe-se que se trata de uma avaliação individual no qual

os sintomas que a criança manifesta servem de parâmetro para aquilo que se

espera de uma criança tida como saudável ou normal, o que refere,

novamente, aos processos de formação de uma identidade relacional.

A respeito de uma série de práticas e intentos que buscam uma

regulação dos comportamentos sociais através de representações culturais de

determinados sujeitos, com efeitos de produção de indivíduos saudáveis,

Rose20 afirma que faz algum tempo que as práticas biomédicas desempenham

um papel na modelação das subjetividades. Menciona que o cuidado com o

corpo se estendeu a mente, surgindo novas ciências neurológicas,

comportamentais e farmacêuticas, que prometem não somente o combate ou a

cura, “mas a correção e o incremento dos tipos de pessoas que somos ou

queremos ser” (p. 45). Tais esforços contemporâneos com base nos saberes

96

biomédicos constroem formas de subjetividades e representações de sujeito

que se ajustam as demandas aqui investigadas de medicalização de

comportamentos.

Percebe-se que os próprios profissionais da saúde sofrem os efeitos da

modelação da subjetividade em suas condutas clínicas, e até mesmo na forma

em que são moldados como profissionais da Rede Protetiva. Rose et al.22

referem-se aos modos de subjetivação, através dos quais as pessoas são

levadas a atuar sob certas formas de autoridade, em relação aos discursos de

verdade em nome da saúde. Os profissionais do NAM aqui investigados, em

nome das representações de sujeito em pleno desenvolvimento e de sujeito

adoecido pela família conflitante, subjetivados em nome da saúde e da garantia

de direitos, escolhem os melhores encaminhamentos a serem tomados. Assim,

o sujeito adoecido pela família conflitante precisa de uma avaliação psicológica

que confirme atrasos de desenvolvimento, e de um posterior acompanhamento

psicológico para reestabelecer o curso adequado. Ressalta-se que a conduta

medicalizante recai sobre o menor, pois não é sua família que foi encaminhada

para a clínica especializada, e sim somente o membro tido como sintomático.

Quanto aos sujeitos encaminhados pelos setores da Assistência Social

com a queixa de conflito familiar, ocorrem duas situações distintas,

complementares. Quando uma família é encaminhada ou assistida pelo

CREAS, na prática significa que os vínculos familiares estão rompidos, e cabe

aos profissionais trabalharem a reconstrução dessas relações familiares e das

situações envolvidas. Por isso que as pessoas atendidas pelo CREAS

necessariamente estão ou vivenciaram alguma situação de maus-tratos,

negligência, abandono, violência, discriminação, cumprimento de medidas

socioeducativas, em situação de rua... Já as crianças ou adolescentes

encaminhados pelo abrigo foram acolhidos e retirados de sua família, com

vistas a assegurar a reintegração familiar e a garantia de seus direitos e de

proteção, como previstos no ECA. Sobre a casa de passagem segue uma

reflexão:

De todos os lugares o abrigo reflete os Conflitos Familiares, e me lembra as tentativas não muito bem sucedidas da família na conduta com seus filhos. Na verdade, o abrigo caracteriza o fracasso familiar, fracasso das relações em que deveriam oferecer suporte emocional e material às crianças; fracasso do pai, da mãe, do avô, da avó, da família extensa que falhou no seu papel.

97

Tenho esse pensamento reflexivo, por também inserir-me na Rede, e ser efeito do discurso de cuidado e de proteção (Diário de Campo, 27/11/2018).

De qualquer forma entende-se que nesses setores citados, os sujeitos

são representados como aqueles que tiveram seus vínculos familiares

rompidos, por isso, tiveram uma privação de um dos direitos garantidos pelo

ECA, devendo por tanto, ser encaminhados para serviços de saúde, que como

consta no documento oficial1 deve oferecer um atendimento integral à criança e

ao adolescente, preferencialmente dentro de uma equipe multiprofissional,

justificando o encaminhamento dos profissionais da Assistência Social para a

psicóloga clínica, como consta no ECA, Capítulo I, que dispõe dos Direitos à

Vida e a Saúde:

Art. 11 - Art. 11 - É assegurado atendimento integral à saúde da criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único de Saúde, garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde. (Redação dada pela Lei nº 11.185, de 2005) ECA.

Entende-se duas compreensões de sujeitos: o sujeito com vínculo

familiar que possui seus direitos garantidos; e o sujeito com vínculos familiares

rompidos e privado de seus direitos, por tanto, em situação de risco. Azevedo11

aponta que a violação de direitos é um atendado aos direitos das criança e dos

adolescentes estabelecidos no ECA. Tratam-se de “negligências por parte dos

pais ou responsáveis; vivências nas ruas ou em instituições de abrigo; violência

física, psicológica ou sexual” (p.110). Cruz8 explicam que o ECA tem em sua

instância garantir a integridade física e psicológica de crianças e adolescentes

em situação de risco. Marcelli19 corrobora afirmando que é mais uma

preocupação com o estado futuro da criança ou do adolescente, do que o

estado presente. Por isso, conforme o autor muitas vezes ordena-se uma

medida de consulta, isto é uma avaliação ou acompanhamento psicológico.

Conforme o autor essa medida profilática é muito comum...

“Tanto que muitas vezes as crianças ou adolescentes acolhidos na casa de passagem são encaminhados pelo juiz para a avaliação psicológica, sem apresentar sintomas, isso é, desenvolvendo-se plenamente dentro dos padrões de normalidade esperados” (Diário de Campo, 27/11/2018).

Stubbe14 assinala que as crianças e adolescentes acolhidos são

encaminhados por apresentarem problemas legais. Ou seja, por serem

98

assistidos por instituições regulamentadoras de condutas, tais como a Vara da

Infância e da Juventude ou Ministério Público.

Hall22 explica que os significados são atribuídos aos objetos, pessoas e

eventos através da estrutura de interpretação. Para o autor, tem efeitos reais e

regulam as práticas sociais. Os profissionais da Assistência Social interpretam

o rompimento de vínculo como um motivo para encaminhar as crianças e os

adolescentes. Para tanto, utilizam o modelo ideal de família no qual todos os

membros estão vinculados uns aos outros como referencial. Hall 23 pontua que

possuímos um conjunto de representações mentais a respeito das coisas.

Enfatiza-se que a respeito da família, ainda há um viés conservador e

tradicionalista, e uma imagem de membros vinculados, tal como a do comercial

de margarina. Quando isso não ocorre, necessita-se encaminhar os membros

menores de 18 anos à clínica psicológica, para resolver os conflitos,

restaurando o equilíbrio. Assim, acaba por existir um outro tipo específico de

sujeito, o sujeito (a ser) medicalizado.

As famílias também estão sendo transformadas em famílias

medicalizadas, reguladas nessa cultura, e isso influencia na representação

social das mesmas, como afirma Hall23, afetando as identidades e as

subjetividades das pessoas enquanto atores sociais. Para contribuir com a

discussão, apresenta-se uma das falas do Entrevistado 5 quanto às

subjetividades das mães:

“Antigamente as famílias chegavam no Conselho Tutelar com duas ou três crianças para entregar porque as mães tinham que ser felizes, viver a vida... Agora elas chegam com os adolescentes, muitas querem ver seus filhos no abrigo. Lá eles são cuidados” (Entrevistado 5).

Conforme o excerto do Entrevistado 5, a cultura de garantia de direitos e

de proteção aponta por exemplo, que o abrigo é um local seguro que garante o

desenvolvimento de uma criança ou adolescente, tanto que algumas mães

querem entregar as crianças. Neste caso, cabe ao Conselheiro reforçar aos

responsáveis os seus papeis perante ao que exige o Estado. Rose21 explica

que em nome da saúde há diversos instrutores em modelação da forma de

vida, tais como os conselheiros (Conselheiros sexuais, conselheiros da família,

conselheiros de relacionamentos, conselheiros educacionais, conselheiros

99

genéticos)... Percebe-se que o psicólogo clínico entra aqui como um deles,

visando trabalhar o conflito familiar, porque como aponta Féres-Carneiro17 “os

conflitos são positivamente valorizados quando as diferenças e as

discordâncias entre os membros da família são vistas por eles, não como

ameaça, mas sobretudo, como algo que pode ser construtivo, na medida em

que estimule o crescimento familiar”. Assim, de uma forma medicalizante cabe

ao psicólogo trabalhar para que a família cresça, ou seja, volte à normalidade

funcional. Então, em nome da garantia de direitos de uma criança cujos

vínculos foram rompidos, encaminha-se para clínica especializada a fim de

trata-la, para que seu direito ao cuidado seja restabelecido.

4 Considerações Finais

Dentre os inúmeros motivos e intenções de encaminhamentos oriundos

de diferentes profissionais das instituições da Rede de Proteção à Criança e ao

Adolescente, a queixa de conflito familiar é a mais abundante. Observaram-se

que os conflitos familiares, são motivos importantes para que a criança e o

adolescente se consultem com o profissional de Psicologia da clínica

especializada. Por isso, por meio desta pesquisa buscou-se compreender

como os profissionais da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente, de um

município de pequeno porte em Santa Catarina (SC), constroem

representações de sujeitos a partir dos encaminhamentos realizados para a

clínica psicológica do Sistema Único de Saúde (SUS) tendo como justificativa a

queixa de conflito familiar.

Compreende-se que os profissionais de Saúde constroem

representações baseando-se nos sujeitos que possuem um curso normal de

desenvolvimento, e naqueles caracterizados em atraso de desenvolvimento

pelo conflito familiar. No campo da clínica especializada trabalha-se com a

perspectiva desenvolvimental, que modela a representação de família e

sujeitos, atuando sobre àquelas que não atendem ao esperado pela produção

teórica da área, muitas vezes não relativizando com as dinâmicas sociais,

culturais, econômicas, regionais que marcam a formação de diferentes formas

materiais de família.

100

Os profissionais da Assistência Social constroem representações de

sujeitos baseados na garantia de direitos. Compreende-se que o campo da

Assistência Social atua em prol da manutenção dos direitos, por isso, quando

um direito é violado, entende-se a necessidade de realizar os

encaminhamentos para a clínica psicológica. Pensando em que as

representações são relacionais, compreende-se que no modelo ideal de família

há a manutenção de vínculos, e que quando o rompimento ocorre, um direito

da criança e do adolescente é violado, o que justifica encaminhar para a clínica

psicológica a fim de resolver os conflitos, restaurar o equilíbrio,

reestabelecendo por tanto, o direito.

Todavia, nessa busca para desenvolver as crianças e adolescentes em

atraso, restaurar o direito violado, por meio da clínica especializada nasce um

novo tipo de sujeito, o sujeito medicalizado. Entende-se que as famílias

possuem dinâmicas variadas que não são compreendidas, levadas em

consideração na ânsia de avaliá-las dentro do que se espera por normal ou

não. É preciso pensar nos efeitos iatrogênicos de avaliações psicológicas e

familiares, utilizadas para decisões importantes a respeito dos membros

envolvidos, tais como, permanecer ou retirar uma criança de sua família;

porque a palavra do psicólogo enquanto um conselheiro, pode interferir na

decisão de uma instância superior, e ser utilizada num caráter de punição e de

regulação da vida familiar.

5 Referências

1. BRASIL. Caminhos para uma política de saúde mental infanto juvenil. In Fórum de Saúde Mental

Infanto Juvenil; 2005; Brasília. p.75.

2. Noal L. Com a palavra os pais: uma análise sobre o encaminhamento psicológico do filho. Dissertação

de Mestrado, Curitiba: UFPR, Psicologia; 2009.

3. Wainstein EAZ. Um estudo sobre as formas de encaminhamento, descrição e esclarecimento do

processo psicodiagnóstico de crianças e de adolescentes. Porto Alegre: URGS, Psicologia, 2015.

4. Brasília. Violação dos direitos da criança e do adolescente. Brasília (DF): Sugra; 2013.

101

5. Rizzini I, Rizzini I. A institucionalização de crianças no Brasil: Percurso histórico e desafios do presente.

Rio de Janeiro: PUC do Rio de Janeiro; 2014.

6. Lacerda CR, Junior GAF. Encaminhamento de crianças para atendimento psicológico e diagnóstico

psiquiátrico dos pais. Estudos e Pesquisas em Psicologia. 2013; Brasília. p. 08.

7. Alberto MdFPea. O papel dos psicólogos e das entidades junto a crianças e adolescentes em situação

de risco. Psicologia: Ciência e Profissão. 2008 Setembro; 28 (3).

8. Cruz RM, Costa FDN, Campos ICM. Resenha: a atuação do psicólogo no campo jurídico. Psicologia:

Teoria e Pesquisa. 2006 Abril; p. 123-124.

9. Santos MRRd, Costa LF. O tempo na trajetória das famílias que buscam a justiça. Revista do

Departamento de Psicologia da UFF. 2007; 19 (1).

10. Foucault M. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes; 1979.

11. Azevedo MC, Guerra VNdA. A infância e a violência doméstica no Brasil – Século XX. São Paulo:

LACRI/ IPUSP; 2001.

12. Woodward K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In Silva TTd, Hall S,

Woodwark K. Identidade e diferença na perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Editora Vozes;

2000. p. 133.

13. Dicionário de Termos Técnicos da Assistência Social. Belo Horizonte: AsCOM; 2007.

14. Stubbe D. Psiquiatria da Infância e Adolescência. Porto Alegre: Artmed; 2008.

15. Azevedo MA. Pesquisa qualitativa e violência doméstica contra crianças e adolescentes: por que,

como e para que investigar o testemunho dos sobreviventes. Instituto de Psicologia: USP; 2001.

16. Zorzanelli RT, Ortega F, Junior Bezerra B. Um panorama em torno do conceito de medicalização entre

1950-2010. Ciência e Saúde Coletiva. 2014.

17. Féres-Carneiro T. Entrevista estruturada: um método clínico de avaliação das relações familiares. São

Paulo: Casa do Psicólogo; 2001.

18. Bee H. O ciclo vital. Porto Alegre: Artmed; 1997.

19. Marcelli D. Manual de Psicopatologia da Infância de Ajuriaguerra. 5. ed. Porto Alegre: Artmed; 19998.

20. Rose N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo:

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21. Rose N, Rabinow P. O conceito de biopoder hoje. Revista de Ciências Sociais. 2016 Abril.

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22. Hall S. Representation. Cultural representation and cultural signifying practices. London: Open

University; 1997.

23. Hall S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais no nosso tempo. 2. ed. Porto

Alegre: URGS; 2000.

103

6 ANEXOS

TERMO DE ACEITE

Este documento formaliza o aceite para a Formação Continuada dos

Profissionais da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente, pela psicóloga do

Município - Grazielle Rocha França, previsto para o mês de agosto, dando continuidade

a execução da Tecnologia Social desenvolvida com a pesquisa realizada nas Instituições

de Saúde e de Assistência Social.

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Secretaria Municipal de Assistência Social

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Secretaria Municipal de Saúde

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Grazielle Rocha França – Psicóloga – CRP-12/03947

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ROTEIRO DA OFICINA PEDAGÓGICA

a) Nome da Oficina: A medicalização do conflito familiar

b) Coordenadora: Grazielle Rocha França – Psicóloga

c) Objetivos da oficina: Promover uma reflexão sobre a prática profissional e

sobre os encaminhamentos realizados para a clínica psicológica do município.

d) Dinâmica da oficina:

Assuntos: A diversidade familiar; o conflito familiar; a medicalização do conflito

familiar; atuação com menos medicalização.

Tempo estimado: de 40 a 60 minutos.

Materiais: Revistas diversas, folhas A4, canetinhas, canetas, colas branca e tesouras.

Aquecimento: Solicitar que os participantes procurem em revistas os diversos tipos de

famílias. Para tal, colocar os nomes dos tipos e as definições em uma caixinha para

fazer um sorteio. Orientar que pensem num conflito para a família sorteada, bem como,

elenquem os motivos do encaminhamento da criança ou do adolescente para a clínica

psicológica do SUS. A seguir, os participantes devem compartilhar suas produções

gráficas.

Desenvolvimento: Trabalhar o conceito de medicalização por meio de brainstorm.

Realizar um estudo de caso. Dos casos acima apresentados, os participantes devem

escolher um deles. Por meio de uma dramatização, devem encenar a família no local de

atendimento (NAM, CREAS, CRAS, abrigo, Conselho Tutelar) e os profissionais

encaminhando as crianças ou os adolescentes que vivenciam os conflitos familiares.

Todavia, devem pensar a conduta de um modo menos medicalizante. Assim, os

participantes devem conduzir uma entrevista procurando compreender:

✓ De qual lugar vieram?

✓ Por que escolheram Penha para residir?

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✓ Como viviam na cidade anterior?

✓ Como se organizavam com as crianças e os adolescentes?

✓ Como foi a educação ou criação dos demais filhos ou filhas?

✓ Que conflitos familiares essas pessoas carregam?

Finalização: Contrapor com o ideal de família. Abordar a criança ou o adolescente

como alvo da conduta medicalizante. Refletir sobre os efeitos da medicalização no

contexto clínico. Construir uma nova forma da rede trabalhar com as famílias em

conflito, sem encaminhar a criança ou o adolescente para uma avaliação psicológica, e

sim, encaminhar a família.