Grilagem sob medida

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Grilagem sob medida A MP 458 e a política fundiária na Amazônia Cândido Neto da Cunha Engenheiro Agrônomo [email protected] Maurício Torres Departamento de Geografia da USP [email protected] Natalia Ribas Guerrero Departamento de Geografia da USP [email protected] 1. INTRODUÇÃO A polêmica Medida Provisória 458/2009, “sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal”, sancionada na forma da Lei Ordinária11.952/2009, surge como legislação montada para, sob o discurso da promoção da regularização fundiária, concentrar milhões de hectares de terras públicas da Amazônia nas mãos de alguns poucos grileiros e, assim, ratificar a inclinação da legislação brasileira em favor do latifúndio. Em nome do consenso em torno da real necessidade de ordenamento fundiário na Amazônia, a MP 458 instituiu parâmetros para a alienação de terras públicas na Amazônia Legal, consagrando a sinistra tradição da legitimação do “fato consumado”: roubam-se terras públicas, com a mais absoluta tranqüilidade de que tudo será legalizado. Por meio dessa MP, permitiu-se “legalizar” o saque praticado por grileiros de terras públicas nos estados amazônicos. Sem pretensões analíticas, espera-se aqui um resgate da vereda percorrida por essa MP, bem como situá-la brevemente em um contexto histórico da grilagem de terras na Amazônia, em especial no papel que desempenha na conflituosa questão da destinação de terras públicas entre grileiros e posseiros, entre grandes e pequenos. Em diversos momentos deste texto, contraporemos o posseiro ao grileiro; o colono ao fazendeiro; o camponês ao latifundiário, o “pequeno” ao “grande”. Os primeiros, tomados de maneira mais ou menos sinonímica entre si, são enquadrados em termos de categoria analítica como “camponeses”. Não cabe aqui adentrar na definição conceitual do campesinato, mas importa ressaltar que, no contexto em que serão usadas, as expressões camponês e latifundiário adquirem o estatuto de “palavras políticas”, representam mais que um conjunto de pessoas, são tentativas de representar a unidade de “situações de classe” e, conseqüentemente, a unidade das lutas camponesas. Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 1

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Grilagem sob medidaA MP 458 e a política fundiária na Amazônia

Cândido Neto da CunhaEngenheiro Agrônomo

[email protected]

Maurício TorresDepartamento de Geografia da USP

[email protected]

Natalia Ribas GuerreroDepartamento de Geografia da USP

[email protected]

1. INTRODUÇÃOA polêmica Medida Provisória 458/2009, “sobre a regularização fundiária das ocupações

incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal”, sancionada na

forma da Lei Ordinária 11.952/2009, surge como legislação montada para, sob o discurso da

promoção da regularização fundiária, concentrar milhões de hectares de terras públicas da

Amazônia nas mãos de alguns poucos grileiros e, assim, ratificar a inclinação da legislação brasileira

em favor do latifúndio.

Em nome do consenso em torno da real necessidade de ordenamento fundiário na Amazônia,

a MP 458 instituiu parâmetros para a alienação de terras públicas na Amazônia Legal,

consagrando a sinistra tradição da legitimação do “fato consumado”: roubam-se terras públicas,

com a mais absoluta tranqüilidade de que tudo será legalizado. Por meio dessa MP, permitiu-se

“legalizar” o saque praticado por grileiros de terras públicas nos estados amazônicos.

Sem pretensões analíticas, espera-se aqui um resgate da vereda percorrida por essa MP, bem

como situá-la brevemente em um contexto histórico da grilagem de terras na Amazônia, em

especial no papel que desempenha na conflituosa questão da destinação de terras públicas entre

grileiros e posseiros, entre grandes e pequenos.

Em diversos momentos deste texto, contraporemos o posseiro ao grileiro; o colono ao

fazendeiro; o camponês ao latifundiário, o “pequeno” ao “grande”. Os primeiros, tomados de

maneira mais ou menos sinonímica entre si, são enquadrados em termos de categoria analítica

como “camponeses”. Não cabe aqui adentrar na definição conceitual do campesinato, mas importa

ressaltar que, no contexto em que serão usadas, as expressões camponês e latifundiário adquirem

o estatuto de “palavras políticas”, representam mais que um conjunto de pessoas, são tentativas de

representar a unidade de “situações de classe” e, conseqüentemente, a unidade das lutas

camponesas.

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Se a definição de campesinato é complexa e subjetiva, para seu sujeito antagônico, a grilagem,

usamos conceituação intencionalmente ampla e abrangente, formulada pelo próprio Ministério do

Desenvolvimento Agrário (MDA) e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

(Incra): “Genericamente, toda a ação que objetiva a transferência de terras públicas para o

patrimônio de terceiros constitui uma grilagem ou grilo, que tem seu início em escritórios e se

consolida em campo mediante a imissão na posse da terra” (MDA/INCRA, s.d.; 12s).

Apesar de a legislação em questão abranger toda a Amazônia Legal, nossa análise se

restringirá à região oeste do Pará, nos limites onde o Incra atua por meio da Superintendência

Regional nº 30 (SR30). Aí concentram-se nossos dados empíricos que embasam a crítica a seguir.

2. SIMPLIFICAR PARA SAQUEAR2.1 Caos fundiário no Oeste do Pará

No Oeste do Pará, a federalização de terras foi seguida das ações discriminatórias,

arrecadação e de registro de terras pela e para a União, nos termos da Lei n° 6.383/76. Por meio

desse instrumento legal, a figura do “ocupante de terras públicas” é reafirmada como aquele que

torna a terra produtiva com o seu trabalho e da sua família, que exerce morada permanente, a

cultura efetiva. Para essas situações, a Lei 6.383/76 determinou ao Incra a “legitimação de posse”,

assegurada a preferência para a aquisição da área até 100 ha.

Esse dispositivo legal não foi impedimento para que outros grupos buscassem se apropriar de

largas extensões de terras, almejando legitimação por meio de processos de “regularização

fundiária” instaurados junto ao Incra. O procedimento repetia a receita já usada no Mato Grosso

para a grilagem de terras: a apropriação (una) era fracionada em “n” processos de lotes não

maiores que 2.500 ha, o limite constitucional, e para cada um dos lotes abria-se um processo

independente no Incra, tendo cada um um “laranja” diferente como requerente. Esses vários “testas

de ferro”, na prática e muito proximamente, encobriam um só grande grileiro. Não raro, a falsidade

ideológica praticada era pouco ou nada encoberta, como, por exemplo, nos casos em que muitos

dos “laranjas” que figuravam como interessados em lotes contíguos tinham o mesmo procurador

(oliveira, 2005; moreno, 1993).

Tais processos, além de deflagrar uma corrida pela apropriação ilegal de vastas glebas,

criaram um mercado negro de venda ilegal por meio de protocolos de processos no Incra. A

situação foi percebida pelo Ministério Público Federal (Procuradoria da República em Santarém)

que impetrou uma Ação Civil Pública (ACP) com alegações que retratavam bem a situação dos

arredores de Santarém que, por sua vez, reproduziam o que acontecia em todo o Oeste do estado:O que salta gritante, aos olhos das comunidades, que pouco podem fazer ante o poder econômico e

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ameaçador de capangas de grupos armados, e mesmo aos olhos do poder público, quase estático, a áreaestá sendo literalmente loteada entre alguns latifundiários, que se utilizam de “laranjas” para regularizaremsuas pretensões, com grande degradação ambiental e em total às leis agrárias. Tal situação põe por terra apolítica agrária para a região. (mpf, 2004)À margem da lei, mas contando com a cumplicidade de muitos “homens da lei”, houve um

aquecimento do mercado imobiliário em toda a região da BR-163. O anúncio do asfaltamento da

rodovia e uma alta recorde nas commodities da soja alimentavam o aquecimento do mercado de

terras griladas e ecoavam em números nunca vistos do vertiginoso desmatamento da região.

A explosão da grilagem no Oeste do Pará tem, no assassinato de Dorothy Stang, um dos

exemplos da virulência da intensificação dessa prática, ao mesmo tempo em que coloca em

evidência a vista grossa do Estado, quando não sua conivência, diante desse processo.

2.2 Grilagem, desmatamento, violência e a encenação de uma reação

No fim dos anos 1990 e no início do novo milênio, o MDA e o Incra anunciam a grilagem de

terras como o principal problema fundiário da Amazônia (Incra/mda, s.d.). Tal constatação, ainda

que tema recorrente, foi fruto da pressão interna de movimentos socio-territoriais para obtenção de

terras para a reforma agrária, e, externamente, de organismos multilaterais e organizações

ambientalistas nacionais e internacionais por maior rigor no combate ao desmatamento na região

amazônica.

Medidas administrativas, legislativas e judiciais sinalizavam que o Estado adotaria uma política

para retornar ao patrimônio público suas terras griladas ou ilegalmente ocupadas.

Nessa toada, Incra e MDA publicam O Livro Branco da Grilagem de Terras, trazendo

casos emblemáticos de como se processam fraudes fundiárias. E, com base nesse levantamento, o

Incra solicitou às Corregedorias de Justiça Estaduais a fiscalização de 39 cartórios na Amazônia.

Nessa publicação, chama atenção o texto introdutório, no qual o Estado mostra-se atento à

detenção de terras públicas por particulares e dispõe-se a providências:O Incra está também revendo seus próprios trabalhos. Nos anos 70, por exemplo, a pretexto de promover aocupação da Amazônia, o governo militar licitou 2.753 lotes de 500 a três mil hectares cada. As empresasou pessoas físicas vencedoras da licitação receberam lotes mediante a assinatura de Contrato deAlienação de Terras Públicas que previa, como contraparte, uma série de compromissos (implantação deprojetos agropecuários, por exemplo) que, na maioria das vezes, não foram cumpridos. O que se observounos anos subseqüentes, foi a concentração das propriedades e a grilagem de terras públicas em áreasadjacentes às licitadas (mda/incra, 1999; 10s, grifos nossos).O cerco à grilagem continua sinalizando que – ainda que apenas no papel – vai se fechando.

Por recomendação do Tribunal de Contas da União, anunciou-se em 2001 a criação do Sistema

Público de Registro de Imóveis que deveria gerenciar o Cadastro Nacional de Imóveis Rurais

(CNIR). Ainda em 2001, a Lei 10.267 determina que todos os proprietários acima de quatro

módulos fiscais deveriam georreferenciar seus imóveis, devendo o mapa georreferenciado do

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imóvel ser apresentado nos recadastramentos promovidos pelo Incra.

Entre 1999 e 2001, houve esforço na investigação de registros de imóveis e títulos emitidos

em municípios onde foram registrados maiores indícios de fraudes. Áreas acima de 10 mil ha e

entre cinco e 10 mil ha deveriam ser recadastradas.

Em 2004, a Operação Faroeste, deflagrada pela Polícia Federal no Oeste paraense, revela

que o modo operante da grilagem não se restringia mais ao roteiro de falsificação de títulos ou de

registro nos cartórios. No Oeste do Pará e na Amazônia como um todo, grileiros se articulam com

imobiliárias, empresas de topografia, escritórios de advocacia e funcionários corruptos de órgãos

públicos para produzir uma sofisticada rede criminosa que usa de imagens de satélites,

levantamentos de solos, “laranjas” e procuradores para se apropriar de vastas extensões de terras

públicas para o mercado, produção de soja e extração madeireira. Para tanto, o verniz de

legalidade consistia em processos de “regularização fundiária” abertos no Incra e no Instituto de

Terras do Estado do Pará, na inserção de dados falsos no Cadastro de Imóveis do Incra e a

emissão de um documento chamado “Certidão de Posse”, que serviria para aprovação de Planos

de Manejo Florestal no Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis

(Ibama) e de empréstimos bancários junto ao Banco da Amazônia. Também era emitido pelo

Incra, sob demanda do interessado, certidão de que havia instaurado, para determinada área, um

processo demandando a alienação da área em favor desse interessado. Essa certidão, que provava

apenas a demanda, acabava por ser negociada como se título fosse.

Sob a repercussão desse escândalo, o Incra e o MDA desferem mais um duro golpe na

grilagem de terras na Amazônia ao assinarem, no dia 1° de dezembro de 2004, a Portaria

Conjunta n° 10. Em toda a Amazônia Legal, o Incra promoveria o recadastramento de todos os

imóveis acima de 100 ha com a exigência de apresentação de planta e memorial descritivo dos

imóveis. Esse recadastramento concentra-se, portanto, nas áreas declaradas como “posse”, onde

operavam os novos esquemas de grilagem. Detectadas irregularidades, tais como inconsistência de

dados, sobreposição com terras públicas federais ou o não atendimento ao processo de

recadastramento, o Incra não deveria emitir o Comprovante do Cadastro do Imóvel Rural (CCIR),

inibir o código do imóvel do SNCR, notificar o interessado e a Procuradoria Regional e abrir

processos administrativos e judiciais de retomada de terras públicas.

A Portaria MDA/Incra nº 10 determinou ainda, no artigo 4º, que a partir daquela data “ficam

as Superintendências Regionais do Incra de que trata o art. 1º proibidas de expedir declarações de

posse ou instrumentos similares sobre áreas rurais acima de 100 ha, destinados a fazer prova de

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ocupação ou exploração agrícola, pecuária ou florestal, para fins de regularização fundiária, plano

de manejo, desmatamento e financiamento por instituições de crédito pública ou privada”.

A Corregedoria de Justiça do Estado do Pará também engrossava o coro de combate à

grilagem com o Provimento 13, de 21 de junho de 2006, em que determinava o bloqueio dos

registros de terras em cartórios em áreas cujo tamanho excedia o limite constitucional sem

autorização do Senado ou Congresso Nacional, conforme cada época.

Além de todo esse aparato normativo, a Procuradoria do Incra empenhava-se na instituição

de protocolos para a recuperação de terras públicas griladas. Isso motivou, em outubro de 2006, a

Procuradoria Federal Especializado no Incra e a Procuradoria da República a promoverem o “1º

Seminário de Procuradores da República e de Procuradores Federais do Incra, na Amazônia

Legal”, tendo como tema “Retomada e Destinação de Terra Pública”. No tópico “Justificativa” do

prospecto do evento, o texto firmava posição, afirmando que “posses irregulares são alvos a serem

perseguidos”, e sublinhando que “o foco principal, para o fórum proposto, é buscar instrumentos

capazes de retomar as áreas discriminadas e registradas em nome da União para o patrimônio

público e destiná-las à reforma agrária, destacando que o empreendimento deverá respeitar as

limitações do meio ambiente, além da recomposição do patrimônio natural”.

Quem esteve presente ao seminário pôde testemunhar como havia ali a mais autêntica

preocupação com a justificativa propagada. Difícil imaginar que, pouco tempo depois, as

detenções de terras focadas pela Procuradoria do Incra (ou ao menos por parte dela) como

“posses irregulares” e, portanto, “alvos a serem perseguidos” seriam alvo de legislação proposta

pelo próprio MDA voltada justamente à entrega dessas terras ao grande detentor. Pouco tempo

depois de a Procuradoria do Incra (ou ao menos parte dela) promover um seminário com o

objetivo de “buscar instrumentos capazes de retomar as áreas discriminadas e registradas em

nome da União para o patrimônio público e destiná-las à reforma agrária”, o próprio MDA/Incra

engendra a formulação de instrumentos para ação exatamente contrária.

Em 2007, outro instrumento jurídico veio ainda em favor do reconhecimento do direito à terra

das diversas formas de campesinato florestal. Trata-se do Decreto 6.040, que instituía o Plano

Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais. Não havia aí

uma ação direta contra o roubo de terras públicas, mas indiretamente, ao legitimar a terra aos

povos da floresta e tirá-la do mercado, batia de frente com os interesses da grilagem.

2.3 O “liberou geral” como novo rumo da política fundiária

Sim, houve empenhos em contrário, porém, aparentemente ajudada pelas dificuldades

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evidentes do trabalho, a banda da instituição que agia sob os interesses da grilagem levou a melhor.

Dos processos de recadastramentos promovidos em 1999, 2001 e 2005, poucos foram

encerrados até hoje. Na maior parte dos casos, a ação resumiu-se a inibição ou bloqueio do

código de imóveis no Cadastro Rural, permanecendo os pedidos de cancelamento de registros

junto aos cartórios na esfera judicial, onde as decisões costumam ser mais lentas ainda.

Sob impacto da Portaria Conjunta n° 10/2004, 66 mil “posses” tiveram seus códigos no

SNCR inibidos e o impedimento de emissão de CCIR. Contudo, centenas de processos de

“regularização fundiária” continuavam abertos e, ainda que sem nenhuma condição legal de

prosseguimento, continuavam sem definição administrativa. Por outro lado, os processos de

retomada de terras públicas na esfera judicial mais uma vez enfrentaram uma paralisação e demora

no efetivo retorno dessas glebas ao poder público.

Recente auditoria do TCU aponta que, em total descumprimento da Lei 10.267/2001, apenas

0,2% dos imóveis rurais do país teve seus limites e domínio confirmados. O relatório do tribunal

apontou que no Incra há baixa execução orçamentária para as ações de ordenamento territorial, e,

nos poucos imóveis com processos georrefereciados, ocorrem grandes diferenças entre a área

registrada e área certificada pelos pretensos proprietários (último segundo, 2010).

Passada quase uma década da promessa de um Sistema Público de Registro de Imóveis, a

adoção de um cadastro único dos imóveis rurais, interligando órgãos públicos com atuação

fundiária, cartórios e poder Judiciário, ainda não foi efetivada.

Contudo, a lentidão na efetivação de medidas concretas de combate à grilagem e de

destinação de terras públicas aos legítimos posseiros e à população tradicional da Amazônia é

inversamente proporcional à pressão exercida por grileiros, madeireiras e fazendeiros para a

legalização de grandes extensões de terras, adotando o discurso da “regularização fundiária”:

A esse serviço, veio, em novembro de 2005, uma sugestiva “MP do Bem”, que alterou a Lei

de Licitações (Lei 8.666/93) e passou a permitir a concessão e alienação de terras da União até o

limite de 500 ha com dispensa do processo licitatório. No Incra, essa MP foi administrativamente

convertida nas Instruções Normativas (IN) n° 31 e 32 de 2005, que ainda procuraram fazer uma

diferenciação entre “legitimação de posse” e “regularização fundiária”. No primeiro caso, referia-se

a ocupações legítimas constitucionalmente e de até 100 ha, e no segundo especificamente a

ocupações na Amazônia Legal nos limites entre 100 a 500 ha.

No Oeste do Pará, essa flexibilização na legislação não trouxe maiores vantagens para os

grupos interessados em grandes extensões de terras. Não se conhece nenhum imóvel na região que

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tenha sido alienado nesse processo, nem mesmo em áreas de “regularização fundiária” (até 500

ha). As legitimações de posse (até 100 ha) continuaram paralisadas. Os reais posseiros da região,

apesar de amparados historicamente pela lei, continuariam objetos das pressões de interesses

demandantes por áreas cada vez maiores para “regularização fundiária”.

Nesse sentido, chama atenção o papel desempenhado por algumas organizações

não-governamentais ambientalistas em apontar ideologicamente a “regularização fundiária” como

principal saída para o problema fundiário na Amazônia. Da mesma forma, a “regularização

fundiária” é pautada pelo Banco Mundial, que vê na titulação de terras públicas a saída para a

criação de um mercado de terras. (resende & mendonça, 2004: 10s).

A mesma argumentação e personagens desempenharam papel importantíssimo na legitimação,

por meio da Lei de Gestão de Florestas Públicas (Lei 11.284/2006), de concessão de florestas

públicas para a exploração privada de recursos madeireiros e serviços florestais.

Em março de 2008, a “Lei de Licitações” sofreria nova alteração por meio da Medida

Provisória n° 422. Se anteriormente a legislação resguardava as ocupações de áreas contínuas de

até 500 ha para alienações ou concessões públicas, com a nova MP passou-se a permitir a

“regularização fundiária” de imóveis de até 1.500 ha na Amazônia Legal. No Incra, as IN 31 e 32

são substituídas pelas 45 e 46, ambas de maio de 2008. Um pouco antes, a IN 41, de junho de

2007, estabelecia que as áreas entre 500 a 1.500 ha deveriam ser alienadas por concorrência

pública.

Com esse marco, o Incra promove um “projeto-piloto” denominado “Incra em ação na

BR-163” que, embora realize uma criteriosa varredura em glebas da União nos municípios de

Altamira, Novo Progresso e Itaituba no Oeste do Pará, não consegue titular mais do que três

centenas de imóveis, dado que, mesmo com a total flexibilização da legislação, a maior parte da

terra continuava ilegalmente ocupada, mas sem ações de retomada encaminhadas.

Assim, a pauta de combate a grilagem vai sendo substituída pela pauta da “regularização

fundiária”. E tudo se dá praticamente num contexto de silêncio da maior parte dos movimentos

sociais de luta pela terra e de outros setores ligados historicamente ao processo de defesa da

reforma agrária e da Amazônia. Talvez – e queremos crer que sim – esse silêncio tenha sido mais

um elemento a encorajar mais mudanças, essas mais radicais, que ainda estavam por vir.

Em um documento da SAE intitulado “Regularização e Legitimação de Terras Devolutas”, há

um item denominado “O problema”. O problema seria o Artigo 29 da Lei 6.383/76. O texto critica

a lei que trata apenas da legitimação de posse de pequenas propriedades e não menciona

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explicitamente nenhum mecanismo para regularização de áreas superiores a 100 ha (jornal de

brasília, 2008). Como se percebe, não são vistos como “problema” a ausência de legitimação de

posses até 100 ha (apesar da lei histórica e constitucionalmente determinar) ou os amplos

mecanismos usados para usurpar terras à margem da lei – problema é a ausência de uma lei que

ampare essa usura. A idéia é saudada pelo governo e divergências surgem entre Incra e MDA pela

execução da ação.

Em 10 de fevereiro de 2009, a MP 458 surge como novo marco regulatório para toda a

Amazônia Legal para alienação e concessões individuais de terras públicas. Convertida na Lei

11.952 e alterando o texto de outras quatro leis, a MP 458 instituiu: a regularização fundiária de

todos os imóveis de até 15 módulos fiscais ou 1.500 ha em terras da União na Amazônia Legal

com ocupações anteriores a 1º de dezembro de 2004; a dispensa da exigência de vistorias em

áreas declaradas de até quatro módulos fiscais; a possibilidade de regularização de ocupações

realizadas por servidores públicos, à exceção de servidores de ministérios, autarquias e órgãos

ligados à questão fundiária; possibilidade de venda da terra regularizada a partir do terceiro ano

após a sua alienação, em imóveis acima de quatro módulos fiscais; redução significativa no valor a

ser cobrado pela terra, com gratuidade para áreas de até 100 ha e a possibilidade de regularização

de imóveis com ocupação indireta. De acordo com o MDA, aproximadamente 67 milhões de

hectares serão passíveis de “regularização”.

Para operar a nova realidade jurídica é criada no âmbito do MDA a Secretaria Executiva

Extraordinária de Regularização Fundiária na Amazônia Legal e, no âmbito do Incra, a

Superintendência Nacional de Regularização Fundiária na Amazônia Legal. Ambas as estruturas

passaram a funcionar com a designação insuspeita de “Terra Legal”, simbolicamente demonstrando

que as terras antes em situação ilegal agora estariam amparadas juridicamente e com uma estrutura

administrativa a seu serviço.

Para oliveira (2010), a MP 458 simboliza que “o ano de 2009 entrará para história da origem

da propriedade privada capitalista da terra no Brasil, como entrou a Lei de Terras de 1850”.

3. A REGRA PARA SER FRAUDADA E A FLORESTA INDO PARA O MERCADO DETERRAS

Embora não tenha havido nenhuma emissão de título de domínio pelo programa Terra Legal,

aparato montado para efetivar a Lei 11.925/09, já se promove uma corrida no mercado imobiliário

na região. Nada inédito, a injeção de milhões de hectares em mercadoria e sua inserção no

mercado de terras foram um dos pontos mais criticados da medida provisória que ensejou a Lei,

inclusive com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pela Procuradoria da República.

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Com a flexibilização da legislação agrária, criando facilidades, a Lei passou a permitir a venda

da área titulada após três anos da alienação, para imóveis acima de quatro módulos, e prazo

mínimo de dez anos para áreas menores, numa clara diferenciação que privilegia a venda de

imóveis maiores. Mesmo esses prazos em nada inibem a comercialização de “protocolos”, ou seja,

de áreas que ainda não foram tituladas, mas que já têm os trâmites para isso protocolados junto ao

órgão que o providenciará. Qualquer pessoa poderá verificar na internet o crescimento de imóveis

à venda na região, em situações no mínimo suspeitas e com flagrantes casos de grilagem e de

venda do patrimônio ambiental da região. Na internet, há inúmeros sítios com pessoas vendendo

terras na Amazônia brasileira. A maior parte dos ofertantes do aquecido mercado imobiliário

informa para contato telefones de outros estados que não o Pará, evidenciando não se tratar do

camponês, que explora sua posse a partir do trabalho familiar. Alguns imóveis chamam atenção

pela localização, como os exemplos a seguir:

Vende-se 10 lotes de 1.000 alq juntos, 07 lotes de R$ 100 Alq. e 03 R$ 150,00 [sic] fora de área de risco(parque ou reserva indígena) protocolo interpa, pedido de titulação já complementadas,georeferenciamento, subsolo requerido no DNPM, 70% plana, queda D'água, frente com rio Curua, seminavegável, boa de madeira, estrada regular, a 130 km de Novo Progresso PA, campo de pouso próximo,Aceita automóvel ou máquinas pesadas em parte do negocio. Tratar: Antonio [...] - telefone: 0 663552-XXXX / 0xx 66 9639-XXXX - Guarantã do Norte/MT.Vende-se 3 áreas de 1.000 alq. Cada, em mata alta, as áreas são juntas, vende-se também separadas, a 25 kmde Morais de Almeida - PA, a 7 km da BR-163, estrada boa até dentro da área, boa de água, energiapróxima, 80% plana, escrituradas, impostos em dia, valor R$ 800,00 alq. recebe-se maquinas pesadas,veículos leve e pesado, imóvel dependendo a localização. Tratar: Antonio [...] - telefone: 0 66 3552-XXXX /0xx 66 9639-XXXX - Guarantã do Norte/MT.Os dois casos – se fora de terras indígenas ou unidades de conservação, como anunciado –

estão em área de atuação do programa Terra Legal. Como se percebe, a área única e contígua foi

desmembrada para efeitos de enquadrar-se nos tamanhos tituláveis segundo a legislação.

4. UM CENÁRIO DE SOMBRAS E RESISTÊNCIAAo mesmo tempo em que se criam facilidades para a apropriação privada das terras públicas

pelo capital, o cenário político nacional põe-se contrário às reivindicações e, mesmo, aos direitos

das diferentes formas de campesinato. O estaqueamento da reforma agrária e o “engavetamento”

dos processos de criação de reservas extrativistas (Resex) sinalizam a quem se direcionam os

empenhos do Estado. Outro preocupante exemplo é o ataque, por meio de Ações Diretas de

Inconstitucionalidade, à normativa nº 49, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que

regulamenta a titulação das terras de quilombos.

Incra e MDA insistem na afirmativa de que a nova legislação de regularização fundiária e o

programa Terra Legal que a efetivará são um ganho ao campesinato. A MP 458, por si, em nada

favorece ao camponês, na condição de posseiro de terras públicas na Amazônia, para que tenha

sua situação regularizada. Como dito, a legislação existente já garantia esse direito. Porém, não

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queremos negar aqui a possibilidade de as ações do que o governo chama de “regularização

fundiária”, e que vêm a reboque da MP 458, venham a atender interesses de camponeses. Porém,

nem isso é algo a se comemorar, como explicou José de Souza Martins ao falar dos homens livres

na ordem escravocrata, e de seu importante papel em garantir direitos dos latifundiários, pois “os

direitos dos camponeses que viviam como agregados só eram reconhecidos como extensão dos

direitos do fazendeiro, como concessão deste, como questão privada e não como questão pública”

(martins, 1981: p. 35).

As perspectivas de resistência dentro desse quadro funesto afiguram-se difíceis, mas não

impossíveis, como algumas iniciativas podem demonstrar. Por um lado, é bem verdade, todas as

políticas que culminam com a aprovação da MP 458, agravadas por outros grandes projetos do

governo para a Amazônia, sugerem uma facilitação à ofensiva do capital sobre os territórios

tradicionalmente ocupados e demais tipos de apropriação camponesa da terra. No entanto, temos

aí um movimento dialético que, ao mesmo tempo em que nega essas apropriações, eventualmente

termina por recriá-las, delas lançando mão para o processo de acumulação do capital.

Nesse sentido, talvez estejamos diante de um processo no interior do qual a intensificação

das práticas de dominação desse capital, expressas, dentre outros modos, na abertura dos

caminhos à grilagem, possa ser entendida pelos diversos e pontuais movimentos de resistência

como o avanço de um inimigo comum, ensejando, quiçá, alguma unidade entre esses próprios

movimentos de resistência.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASANDRADE, Manuel Correia de. 2004. A questão do território no Brasil. 2. ed., São Paulo, Hucitec.BARRETO, P. et al. 2008. Quem é o dono da Amazônia? Belém: Instituto Imazon.CARVALHO SANTOS, J. M. de. 1964. Código civil brasileiro interpretado. 6ª. ed., Freitas Bastos.CHAYANOV, A.V. 1966. The Theory of Peasant Economy. Illinois, American Economic Association. _____. 1974. La Organizacion de la Unidade Econômica Campesina. Buenos Aires: Nueva Vision. IPAM. 2006. A grilagem de terras públicas na Amazônia brasileira. Brasília: MMA (Série Estudos. V.8).JORNAL DE BRASILÍA. 2008. Agência impõe ordem. Brasília, 05 de dezembro.MPF (Ministério Público Federal). 2004. Ação Civil Pública 2004.39.02.000285-8, Subseção Judiciária de Santarém.MARQUES, M. 2004. “Lugar do modo de vida tradicional na modernidade”. In: OLIVEIRA, A.; MARQUES, M. (org.). O

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