GRIMM, Dieter. Condições da produção democrática do direito.

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Dieter Grimm. Condições da produção democrática do direito. (tradução para uso acadêmico) Original: GRIMM, Dieter. Bedingungen der demokratischen Rechtsetzung. In: GÜNTHER, Klaus & WINGERT, Lutz. Die Offentlichkeit der Vernunft und die Vernunft der Öffentlichkeit: Festschrfit für Jürgen Habermas. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p. 489-506, 2001. I. [p.489] Jürgen Habermas dedicou-se, desde cedo, ao problema da validade de normas jurídicas, assim como ao processo legislativo em sua relação com a legitimação do poder. Algo que, inclusive, voltou a fazer parte de suas obras posteriores. De acordo com dois de seus recentes trabalhos 1 , podemos dizer que, para ele, como todo poder exige uma certa forma jurídica, ele tem que se alimentar da pretensão de legitimidade do próprio direito. Isso seria duplamente verdadeiro no estado democrático constitucional: materialmente, graças à conformidade da legislação com os direitos fundamentais e, formalmente, graças à forma do processo legislativo no qual todos os possíveis implicados podem tomar parte discursivamente. Nenhuma dessas garantias é independente uma da outra, senão se apóiam reciprocamente. Os direitos fundamentais assegurariam entre outras coisas os pressupostos comunicativos da formação democrática da vontade, assim como, inversamente, os procedimentos democráticos aumentariam as chances de respeito às liberdades juridicamente fundadas. O modelo é, evidentemente, rico em pressupostos 2 . As condições elementares para a legitimidade da regulação jurídica consistem em uma igualdade de chances e direitos de acesso na produção do direito, por parte de todos os cidadãos. Como hoje tais condições são largamente enfraquecidas seja pelo número de implicados, seja pela complexidade dos objetos da regulação, seja pela quantidade de decisões necessárias, a decisão democrático-popular acerca do direito torna-se, em realidade, a exceção. Em regra, profissionais cada vez mais numerosos e distintos são encarregados dessa tarefa, discutindo e decidindo sobre o conteúdo das normas a serem 1 HABERMAS, Jürgen. Über den internen Zusamennhang von Rechtstaat und Demokratie. In: Die Einbeziehung des Anderen. Frankfurt am Main, 1996, p. 293; Idem, Zur Legitimation durch Menschenrechte. In: Die postraditionale Konstellation. Frankfurt am Main, 1998, p. 170. Ambos incluídos em: Idem, Faktizität und Geltung, Frakfurt am Main, 1992. 2 HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung (Cap. 1), sobretudo p. 208 ss; GRIMM, Dieter. Die politische Parteien. In: BENDA, Ernst et allí. (Orgs.) Handbuch des Verfassungsrechts, 1994, p. 599.

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Dieter Grimm.

Condições da produção democrática do direito.

(tradução para uso acadêmico)

Original: GRIMM, Dieter. Bedingungen der demokratischen Rechtsetzung.

In: GÜNTHER, Klaus & WINGERT, Lutz. Die Offentlichkeit der

Vernunft und die Vernunft der Öffentlichkeit: Festschrfit für Jürgen

Habermas. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p. 489-506, 2001.

I.

[p.489] Jürgen Habermas dedicou-se, desde cedo, ao problema da validade de normas

jurídicas, assim como ao processo legislativo em sua relação com a legitimação do poder. Algo

que, inclusive, voltou a fazer parte de suas obras posteriores. De acordo com dois de seus

recentes trabalhos1, podemos dizer que, para ele, como todo poder exige uma certa forma

jurídica, ele tem que se alimentar da pretensão de legitimidade do próprio direito. Isso seria

duplamente verdadeiro no estado democrático constitucional: materialmente, graças à

conformidade da legislação com os direitos fundamentais e, formalmente, graças à forma do

processo legislativo no qual todos os possíveis implicados podem tomar parte discursivamente.

Nenhuma dessas garantias é independente uma da outra, senão se apóiam reciprocamente. Os

direitos fundamentais assegurariam – entre outras coisas – os pressupostos comunicativos da

formação democrática da vontade, assim como, inversamente, os procedimentos democráticos

aumentariam as chances de respeito às liberdades juridicamente fundadas.

O modelo é, evidentemente, rico em pressupostos2. As condições elementares para a

legitimidade da regulação jurídica consistem em uma igualdade de chances e direitos de acesso

na produção do direito, por parte de todos os cidadãos. Como hoje tais condições são largamente

enfraquecidas seja pelo número de implicados, seja pela complexidade dos objetos da regulação,

seja pela quantidade de decisões necessárias, a decisão democrático-popular acerca do direito

torna-se, em realidade, a exceção. Em regra, profissionais cada vez mais numerosos e distintos

são encarregados dessa tarefa, discutindo e decidindo sobre o conteúdo das normas a serem

1 HABERMAS, Jürgen. Über den internen Zusamennhang von Rechtstaat und Demokratie. In: Die Einbeziehung

des Anderen. Frankfurt am Main, 1996, p. 293; Idem, Zur Legitimation durch Menschenrechte. In: Die

postraditionale Konstellation. Frankfurt am Main, 1998, p. 170. Ambos incluídos em: Idem, Faktizität und

Geltung, Frakfurt am Main, 1992. 2 HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung (Cap. 1), sobretudo p. 208 ss; GRIMM, Dieter. Die politische

Parteien. In: BENDA, Ernst et allí. (Orgs.) Handbuch des Verfassungsrechts, 1994, p. 599.

produzidas. O lugar que eles habitariam seria, senão, o parlamento, de onde o poder executivo

recebe a pauta legal para suas próprias ações. [490] Por seu turno, os parlamentares, em sua

atuação legislativa, são observados, estimulados e criticados por seus mandatários. Para tanto,

estes últimos necessitam, de sua parte, de observadores e intérpretes profissionais nos meios de

comunicação, sem os quais, por outro lado, seus representantes não poderiam ter uma idéia clara

acerca da ressonância de suas incumbências no público representado pelos eleitores.

A separação entre a detenção e o exercício do poder estatal nos traz, evidentemente, o

problema vinculação dos representantes ao seu eleitorado. Se, na democracia representativa,

autores e destinatários das leis se separam, a própria idéia de democracia como autonomia dos

cidadãos exige, conceitualmente, que os destinatários das leis possam ser ao mesmo tempo

entendidos como seus autores3. A igualdade de direitos e chances deve ser, portanto, garantida

não só no que tange à atividade legislativa, mas, sob essas condições, também no que tange à

escolha dos representantes. Dessa forma, aquele imperativo normativo de igualdade valeria de

modo bem amplo, mas valeria, sobretudo, no que se refere à escolha daquele grupo proveniente

da população que disputa seu apoio eleitoral, pois restrições nesse plano teriam, eles mesmos, um

relevante efeito falsificador da vontade democrática.

A eleição precisa ser, portanto, amplamente livre. Isso pressupõe a formação livre de

alternativas elegíveis e veda restrições e diminuições da capacidade de concorrência que possam

ser impostas apenas a um único grupo. A liberdade de escolha proíbe ainda qualquer pressão

sobre os eleitores assim como qualquer constrangimento ou restrição relativa ao voto. A

liberdade também implica, porém, que seja possível uma discussão ilimitada sobre as pessoas e

programas envolvidas nas eleições. Se é esperado da minoria que esta se dobre à vontade da

maioria, ela tem de ter, por outro lado, ao menos a oportunidade de introduzir suas posições no

debate. Estreitamentos artificiais da discussão são incompatíveis com essa premissa. Daí se

conclui que os meios de comunicação devem manter, por seu turno, uma posição de distância

crítica em relação à política, informando amplamente os eleitores a partir dessa posição. [491]

Finalmente, os vencedores das eleições não podem usar a autorização para legislar adquirida para

excluir do processo político os perdedores ou para prejudicá-los na disputa que continua durante

o intervalo até as próximas eleições.

3 HABERMAS, Jürgen. Über den internen Zusamennhang von Rechtstaat und Demokratie. In: Die Einbezihung des

Anderen. Frankfurt am Main, 1996, p. 298.

Por sua vez, para que o direito produzido pelos representantes seja reconhecido como

legítimo, é fundamental que o processo discursivo que precede à decisão tenha efeitos sobre o seu

resultado. Num sistema de concorrência democrática, isso não significa que todas posições e

interesses tenham que ser atendidos. Ao final, a maioria tem sempre o direito de fazer valer sua

posição. Isso exige, no entanto, que ela entre abertamente na discussão, fazendo-o com respeito

aos diferentes pontos de vista. Mas só chegamos a esse ponto, por outro lado, se os deputados

tiverem mandatos livres, pois, de outro modo, a discussão parlamentar não teria qualquer

relevância decisória. As discussões e decisões que ali se passam tem ainda que se passar

publicamente, para que, assim, a discussão extraparlamentar possa com ela se relacionar

possibilitando que os eleitores estejam aptos a circunstancialmente corrigi-la numa próxima

eleição, de acordo com decisões de preferência fundamentadas.

Finalmente, os resultados dos processos decisórios devem ser aplicáveis a todos os

incluídos no grupo representado pelos autores da lei, pois, do contrário, o nexo de interesses entre

autores e destinatários estaria rompido. Para a lei, a generalidade é compreendida de modo

conceitualmente bastante estreito diferenciando-se completamente de qualquer idéia de uma

decisão isolada, particular, arbitrária. Essa diferenciação, contudo, não pode ser confundida com

a existência de decisões singulares e particulares que guardem, ainda assim, a forma legislativa.

A garantia tem de ser quanto à generalidade potencial de destinatários, se quisermos ver

assegurada a força racionalizante implícita que a lei contém por abstrair, nesse sentido

delimitado, quaisquer referências a conteúdos caracterizadores dos destinatários. Uma tal

proibição vale sobretudo para leis retroativas, porque o a regulação das relações a que elas visam

só pode se dar mediante o conhecimento prévio do público. A forma legislativa contém, nesse

sentido, uma preciosa vantagem: ela representa um controle de formas arbitrárias de dominação,

uma previsibilidade do exercício do poder estatal, uma conexão da administração incapaz de se

legitimar por ela mesma com o contexto legitimatório democrático e, por fim, uma possibilidade

de apreciação judicial do direito.

[492] Muitas dessas suposições são, no entanto, contraditórias em relação aos interesses

dos atores políticos que desejam a efetivação ilimitada de seus pontos de vista. Estes agentes

permanecem, então, em busca de autorização legislativa para fortalecer as suas próprias posições

ou para enfraquecer aquelas de seus adversários. Exatamente por isso aqueles pressupostos tem

que ser assegurados constitucionalmente. A constituição não pode, entretanto, garantir

imediatamente todos aqueles pressupostos normativos. Algumas das condições da própria

legislação democrática dependem muito mais da disponibilidade dos implicados que sempre

podem se esquivar de alguns desses preceitos. A constituição, nesses casos, limita-se a

estabelecer condições de possibilidade de existência normativa segundo estruturas e

procedimentos que favoreçam a consecução daqueles objetivos. Evidentemente, a posição da

constituição é muito mais precária que a de leis comuns, pois ela se impõe aos próprios

detentores do poder, não dispondo, portanto, de qualquer instância impositiva acima de si mesma.

E tal fraqueza do direito constitucional não pode ser, por sua vez, totalmente compensada por

meio da jurisdição constitucional, somente atenuada.

Os pressupostos do direito legítimo, portanto, são sempre apenas razoavelmente

cumpridos. O déficit mais relevante verificado no início do Estado de Direito consistiu em que os

representantes detinham poder limitado de decisão, localizando-se esses poderes decisórios,

sobretudo, no interior dos partidos políticos. Isso é veraz sobretudo no que se refere a grandes

democracias com eleições continuadas e inquebrantáveis necessidades decisórias. Somente com a

redução e simplificação dos processos de decisão podem esses Estados fazer tais escolhas terem

efeitos de imposição jurídica. A disputa partidária também funciona como um importante

mecanismo de retro-acoplamento entre encarregados e comitentes. São os partidos oriundos da

própria sociedade que superam o abismo entre estado e sociedade. Na instituição estatal eles

podem ocupar posições de mando mediante eleições, configurando, portanto, um Estado do Povo.

Por outro lado, são próprios partidos que produzem, sob as condições de uma política cada vez

mais profissionalizada, aquele que talvez seja o maior ponto fraco do sistema democrático.

Esse problema tem suas raízes no fato de que os partidos políticos, para poderem, sob o

quadro das permissões constitucionais, transformar seus programas em normas jurídicas

impositivas, não têm como prescindir de revesti-los com o poder estatal que as eleições oferecem.

[493] Desde seu ponto de vista, para que isso se torne possível, eles tratam como “racional”

apenas aquilo que interfere no acúmulo ou perda de poder. Os partidos operam, então, sob o

imperativo da obtenção e manutenção de poder. Eles se entendem nesse código e somente por

meio dele percebem os sinais provenientes de seu meio ambiente, medindo a partir dele o seu

sucesso ou fracasso. Na verdade, tal código pode ser interpretado de diferentes modos, podendo,

no entanto, ser ignorado apenas ao custo de fracassos. Com efeito, os profissionais se comportam

como quem se orienta apenas mediante esse código. Isso, aliás, não é uma especificidade da

política, senão uma condição sob a qual opera qualquer sistema em uma sociedade

funcionalmente diferenciada. Com efeito, é no sistema político de cujos partidos são a força

motriz onde podem ser mais facilmente reconhecidas as conseqüências prejudiciais do egoísmo

dos diferentes subsistemas; isso sem que se possa desobrigar o processo político em relação

àquelas condições acima mencionadas.

Isso evidentemente tem repercussões para a normatização jurídica. O controle das funções

políticas pelos partidos trouxe consigo a conseqüência de que hoje também os processos

deliberativos e as próprias decisões se separam. As discussões mais relevantes se deslocam do

parlamento para os partidos. Caso as decisões – graças a conjunturas políticas ou mesmo jurídico-

constitucionais – tenham de se dar de acordo com uma maioria supra-partidária, deslocam-se

então para o círculo das coalizões ou mesmo das discussões entre as lideranças da maioria e da

minoria. No parlamento, como lugar da deliberação, não há mais qualquer discussão deliberativa

com efeitos sobre o resultado. Certamente, só o parlamento pode emprestar validade jurídica à

decisão política. Porém, as discussões que precedem as votações não mais necessitam serem

levadas a cabo com qualquer intenção real de convencimento. Com efeito, os diferentes pontos de

vista são, nesse contexto, apenas “representados” para o público. Por isso, tais discussões podem

ser realizadas até mesmo para um parlamento vazio, e ainda quando da votação a presença se

torna cada vez mais irrelevante, já que apenas as decisões da maioria são realmente admitidas.

A realidade parlamentar se aproxima, sob tais circunstâncias, de um mandato imperativo

que não se vincula à noção de um livre mandato eleitoral, mas, na verdade, às decisões da

bancada parlamentar. As garantias constitucionais relativas ao mandato livre tem assim somente a

função, certamente não desprezível, de assegurar aos possíveis dissidentes uma posição

temporária de imunidade e, assim, realizar os pressupostos da pluralidade e da discussão intra-

partidárias. [494] Apesar das sessões plenárias do parlamento só tomarem lugar depois de já

terem sido formadas os convencimentos dos parlamentares, permitem-se os debates, em uma

forma reduzida, sempre, contudo, com atenção às posições partidárias. Isso porque as discussões,

onde quer que sejam realizadas, ajudam o público a formar seu próprio juízo. Onde o conteúdo da

lei não advém das negociações públicas entre confrontantes políticos, não se verifica essa

representação de pontos de vista opostos tão importante para a formação da opinião pública e,

portanto, as respectivas imposições de responsabilidades.

Entretanto, essas alterações, exaustivamente descritas pela teoria democrática, não fazem

com que os processos constitucionais previstos para a produção do direito percam de todo seu

sentido. Em verdade, o que se vê é que elas levam a desvios nos próprios objetivos da

democracia. A deliberação não se extingue ela mesma, mas é deslocada e fragmentada. Com

efeito, ela é nomeadamente levada a cabo no interior dos partidos. Porém, como seu resultado

tem de seguir o processo parlamentar para adquirir força de lei, as decisões têm ainda de se

referir às reuniões parlamentares. As discussões intra-partidárias podem ser conduzidas sem o

respeito às críticas da oposição e sem as reações da opinião pública. Mas, por outro lado, elas

devem certamente antecipá-las, fazendo com que os adversários e o público estejam virtualmente

presentes. No que segue, devemos tratar, diante de tais circunstâncias, de duas novas tendências

teóricas que tocam os pressupostos desse modelo e, no mínimo, ameaçam a racionalidade

democrática da produção do direito. Na primeira, trata-se da perda de significado da lei, na

segunda, trata-se de um novo modo de surgimento e, logo, um respectivo substituto para a lei.

II.

A afirmação de que a lei “perde significado” parece difícil de ser aceita diante da já

conhecida queixa quanto a uma “maré legislativa” existente na Alemanha. Ela se volta no entanto

apenas a uma pequena parte dos intentos legislativos da política. E a afirmação tem, com efeito,

causas preponderantemente objetivas. [495] Entre elas sobressaem os custos externos originados

pelos diferentes subsistemas sociais na perseguição de seus objetivos em outros subsistemas.

Nesse ponto, originalmente, posicionam-se, num primeiro plano, os custos sociais da economia

de mercado. Isso ao mesmo tempo em que os riscos provenientes dos avanços técnico-científicos

e dos usos comerciais de seus resultados tornam-se a fonte fundamental de novas e crescentes

necessidades de regulação. Nessas áreas, a regulação jurídica é, em parte, até mesmo um

mandamento constitucional, graças aos imperativos associados ao Estado de Direito. Nesse

sentido, de acordo com a atual compreensão, os direitos fundamentais não só funcionam como

limites para o Estado, senão também o obrigam a proteger contra ameaças por parte de terceiros

as liberdades fundamentais dos cidadãos. Tais deveres de proteção são primariamente elaborados

em lei. Além disso, as cláusulas sociais impedem que o Estado conte apenas com o potencial

regulatório implicitamente contido no próprio mercado.

Tal circunstância também se mostra verdadeira em uma nova fonte de necessidades de

regulação legal: a privatização do que até então havia sido desempenhado pelo estado. Algo que

foi causado, em parte, pelo direito comunitário europeu, em parte, pelo avanço das idéias

neoliberais e, em parte, pelas necessidades financeiras dos Estados. As privatizações foram

justificadas graças ao suposto crescimento da eficiência administrativa, à diminuição dos preços e

a um incremento da disponibilização de serviços para os cidadãos em conseqüência da

concorrência. Elas têm também um outro lado. Enquanto o Estado, ao prestar serviços públicos,

encontra-se imediatamente submetido às imposições jurídicas materializadas na carta magna e

sobretudo nos direitos fundamentais e sociais, os agentes privado não se submetem da mesma

forma a tais dispositivos. Os direitos fundamentais lhes garantem, aliás, a livre disposição sobre

seus recursos. Igualmente, porém, devem ser garantidos padrões fundamentais de tratamento

igual, inclusão social e atenção aos interesses legítimos de terceiros. Algo que só pode ser feito

por lei. De fato, em lugar de diminuí-los, até hoje as privatizações aumentaram os imperativos

para a regulação.

A contradição entre o incremento legislativo e a perda de significado das leis se resolve se

nós fazemos uma diferenciação entre quantidade e efetividade. Assim, sabemos que, enquanto o

número de leis cresce, seu poder de regulação diminui4. Essa “fraqueza” disseminada não

significa, no entanto, que as leis simplesmente percam sua vigência, tampouco que tal

circunstância seja algo isento de problemas. [496] Déficits de implementação podem surgir

apenas onde as normas possuem um satisfatória vigência regulativa (regulative Kraft), mas lhes

faltam vontade ou meios para que possam se afirmar frente a destinatários refratários. A fraqueza

na implementação tem, portanto, suas causas fora da norma. Por outro lado, a perda desse poder

de regulação dos comportamentos, que independe do ramo jurídico de aplicação, relaciona-se

também com uma característica interna à própria norma. Isso se torna especialmente evidente no

direito administrativo – mas não somente – já que aí se deve controlar o comportamento de atores

privados assim como da administração estatal. As causas são freqüentemente buscadas em um

fracasso do legislador, mas, na realidade, elas se encontram num plano mais profundo.

Há algum tempo já é perceptível que, nesse ramo do direito, surge um novo tipo de

regulação que se afasta consideravelmente da forma clássica. Essa última é descrita,

tradicionalmente, como um programa condicional que segue o esquema “se, então”. A ação

4 Cf. GRIMM, Dieter. Wachsende Staataufgaben – sinkende Steurungsfähigkeit. Baden-Baden, 1990.

estatal contra os indivíduos é determinada integralmente por um pressuposto e pela previsão de

sua conseqüência de modo que a administração só pode executar um programa abstrato com

respeito a uma circunstância concreta legalmente tipificada. É comum a qualquer regulação

jurídica que possam surgir dúvidas, tornando necessárias, até mesmo, fórmulas em branco, as

quais permitiriam à administração uma reação adequada em casos difíceis ou de exceção não

contidos nas formulações abstratas da lei. Entretanto, no núcleo dessa definição, o

comportamento da administração está determinado antecipadamente, o que implica, ao mesmo

tempo, vantagens de previsibilidade e controle da ação estatal.

Esse tipo de regulação deve seu uso disseminado à ascensão do Liberalismo que rompe

com a finalidade estatal voltada para o bem-estar, reduzindo-a ao status de resultado de uma

ordem pressuposta na qual a justiça social é compreendida não como o produto de uma realização

política planejada, mas como conseqüência da atuação livre e individual. A lei serve ao

liberalismo, então, como reação a ameaças dessa estrutura social e para favorecer o necessário e

pronto restabelecimento da ordem contra transtornos, assim como para a limitação das próprias

ambições estatais de regulação da atuação individual. A atividade estatal que segue esse modelo

exibe três características. [497] Ela é reativa: antes que a ação seja executada, um perigo precisa

ameaçar concretamente ou um distúrbio precisa ser realmente verificado. Ela é pontual: a ação

estatal se esgota na reação contra a ameaça localizada ou no que seja necessário para o

restabelecimento da ordem. Ela é, finalmente, bipolar: a ação da lei se encerra numa relação entre

a coação estatal e o particular “subversivo”. Reduzida a essa forma, a intervenção estatal se deixa

compreender facilmente como um ato típico do esquema “se, então”. É justamente da redução

das finalidades estatais que resulta uma força determinante da lei relativamente aumentada.

Atividades estatais dessa forma existem sobretudo no que diz respeito ao campo central

da ação policial. Aqui os programas condicionais têm lugar de modo radical. No entanto, há

tempos, a atividade estatal não mais se reduz a esse único tipo. A partir de um processo iniciado

já no século XIX, foram cada vez mais restringidos modelos de auto-regulação social incapazes

de satisfazer as próprias expectativas. Ao mesmo tempo, o Estado passou a se encarregar, cada

vez mais, de novas atividades estruturadoras da ordem e do bem-estar sociais. Essa compreensão

ampliada da atividade estatal se diferencia da concepção clássica pois, de acordo com ela, é a

ordem, na qual os agentes privados são deixados, e que, agora, é perseguida pelo Estado, a qual

passa a ser o centro das atenções. Ela se torna, em realidade, para o Estado, uma

responsabilidade. Em contraposição à ação meramente conservadora de uma ordem pré-existente,

essa atividade estruturadora não é nem reativa, nem pontual, nem bipolar. Ela é muito mais

prospectiva, planificadora e multipolar.

Para a regulação de um tal tipo de atuação os programas condicionais se mostraram

amplamente inadequados. Em seu lugar entram cada vez mais em cena novos tipos de norma que

podem ser delineados em associação com aquilo que Luhmann apontou como programas

teleológicos (Finalprogramm)5. Esses tipos de programa fixam fins determinados para a

administração, que ela deve respeitar em sua perseguição finalística, e impõem declarações

acerca dos meios e regras de procedimento que devem ser adotados para tanto. Esse tipo de

programa não pode ser perseguido como programas condicionais. Ele exige decisões que sejam

adequadas passo a passo às situações e que devido, a essa dependência situacional, sejam

normativamente determinadas apenas maneira relativa. [498] O programa normativo a que

responde a administração só será completado no próprio curso da aplicação normativa. A lei

contém nesse sentido apenas a direção e a moldura em cujo interior a administração estatal se

controla a si mesma. O conceito de poder executivo é o aquele que mais acertadamente o

descreve.

A lei é evidentemente o meio pelo qual se realizam tanto o Estado de Direito como a

própria democracia6. Se ela perde poder de determinação, perdem-se também algumas das

garantias racionais relativas à produção democrática do direito, as quais estavam referidas, então,

ao tipo clássico de regulação. As decisões acerca dos programas de ação da administração

seguem as decisões do legislador parlamentar apenas como degraus de determinação debilmente

determinados. A rigor, não são mais os representantes eleitos que conduzem as discussões e

chegam a uma decisão, mas sim os membros da administração estatal. Seu discurso se diferencia

do parlamentar pois, enquanto esse temde se apresentar, pelo menos em algum momento,

“publicamente”, a atividade administrativa pode se passar sem isso. Na realidade, uma certa

quantidade de leis – sobretudo aquelas que dizem respeito ao estabelecimento e ratificação de

instituições técnicas importantes – prevê uma participação pública dos implicados. Com efeito,

elas chegam a realizar, mesmo que precariamente, uma consulta ao público. Mas o fazem, na

5 Cf. LUHMANN, Niklas. Zweckbegriff und Systemrationalitat. Frankfurt am Main, 1977, p. 257 ss.

6 GRIMM, Dieter. Die Zukunft der Verfassung, 2. Frankfurt am Main, 1994, p. 159 ss.

verdade, somente a título de fundamentação, enquanto a decisão real é tomada, no entanto,

apenas pela própria administração.

Tanto menos a lei determina a atividade administrativa de modo exaustivo, tanto mais

perde importância o princípio da estrita legalidade da administração relacionado ao contexto

democrático de legitimação. Onde a lei não mais vincula, a administração decide desvinculada,

sem precisar responder democraticamente por suas decisões. As lacunas democráticas daí

provenientes não se deixam limitar pela diretivas políticas de um governo. Isso porque ordens

relativas a um exercício limitado das capacidades administrativas, sob tais condições, não podem

ser respeitadas pelos agentes públicos administrativos. Onde a administração não está vinculada,

ela decide livremente e, onde ela decide livremente, faltam aos tribunais os critérios de acordo

com os quais eles podem controlar a adequação da administração à lei. [499] Os tribunais

desistem do controle preciso da administração e, assim, aumentam o déficit jurídico-normativo.

Frente a isso, se eles tentam controlá-la, fechando tais lacunas jurídico-normativas, terminam

somente por abrir novas lacunas democráticas.

As estratégias com as quais a ciência do direito se tranqüiliza diante desse diagnóstico tão

alarmante tampouco nos levam adiante7. Aliás essas preocupações não diminuem graças à

suposição de que aquele déficit surge somente no campo das novas atividades estatais, enquanto

nos ramos clássicos o velho modelo funcionaria sem restrições. O giro “preventivo” da atividade

estatal abarca igualmente aqueles velhos campos do direito8. Mesmo o velho direito policial –

para o qual o modelo de regulação jurídico-estatal clássico foi formulado – vale como exemplo

desse fenômeno. Originalmente, onde o poder estatal se opunha a um indivíduo com maior

intensidade, a lei definia com a maior exatidão possível quando e como poderia se dar a

intervenção administrativa. Mas a onda intervencionista foi uma ameaça concreta a essa atuação

limitada do Estado. Antes era necessário que estivesse em curso um processo de causa e efeito

que ameaçasse um bem jurídico, senão mesmo já o tivesse atingido. No que tange a persecução

penal, esse limite constituía a suspeita criminal, assim como um indício concreto a favor de uma

pessoa tivesse praticado um delito.

7 Cf. ROSSEN, Helge. Vollzug und Verhandlung: die Modernisierung des Verwaltungsvollzug. Tübingen, 1999.

Ver sobretudo seu debate com Riner Pitschas: Idem, Verwaltungverantwortung und Verwaltungsverfahren.

München, 1990. Cf. DREIER, Horst. Hierarchische Verwaltung um demokratischen Staat. Tübingen, 1991. 8 Cf. GRIMM, Dieter. Die Zukunft der Verfassung, p. 197.

Essas limitações há algum tempo não parecem valer do mesmo modo. O alargamento dos

riscos que o avanço técnico-científico traz consigo, a mudança de mentalidade social referente a

esses riscos, assim como a dimensão crescente de seus prejuízos potenciais levaram a uma

expansão das competências e atividades policiais. Trata-se não mais apenas de um esquema de

reação a ameaças à ordem e persecução penal, senão de uma minimização dos riscos mediante

providências profiláticas. Para isso podem ser levadas a cabo pretensões defensivas. Elas exigem

evidentemente a ampliação da atividade policial tanto no campo do controle dos riscos quanto no

que se refere à atividade punitiva. Com efeito, a missão da policia está já relacionada com as

próprias fontes do risco e com o comportamento que possa ser interpretado como passível de

punição. Ou seja, em lugar de relacionar-se com uma suspeita a ser investigada, sua atuação se

relaciona com a própria informação que levaria a tal suspeita. [500] A atividade policial se

amplia objetivamente, espacialmente, temporalmente e pessoalmente. O Estado “preventivo” tem

que ter uma tendência a ser onipresente e onisciente.

Aqui não tratamos da tão discutível eficiência da atividade preventiva, senão dos seus

efeitos sobre o direito. Tais efeitos consistem em que foram superados os limites tradicionais da

atividade estatal sem que tenham se tornado disponíveis os respectivos e fortes vínculos jurídicos

para essas novas funções. Os questionamentos acerca de certo fato consistir realmente num risco

ou acerca da possibilidade de que alguém venha a ser processado e punido é tratado somente a

partir de um campo de observação com contornos bastante vagos, no qual tudo ou qualquer um

pode se tornar relativamente relevante. Uma limitação jurídica dificilmente parece ser possível.

Isso repercute, por sua vez, no controle judicial, que, adicionalmente, sofre com o fato de que as

condições de sucesso do reconhecimento incipiente das condições de regulação preventiva são o

sigilo e segredo. O direito torna-se não muito mais que a fixação de garantias procedurais na qual

os riscos que dão motivo àquela atividade policial expandida são enumerados, e do qual são

excluídos determinados métodos de observação, sendo somente regulados os modos possíveis de

utilização informações obtidas para a finalidade regulatória.

III.

A expansão das atividades estatais não se limita, no entanto, somente a uma reforma do

direito, senão leva a uma mudança radical no instrumental estatal. Exatamente nas atividades de

estruturação da ordem e de seu asseguramento futuro encontram-se as fronteiras dos meios

estatais de comando e coação. Em parte, o emprego de meios imperativos é faticamente

impossível, porque os objetos desse tipo de disposições se esquivam da própria regulação.

Resultados de pesquisa, conjunturas de desenvolvimento, mudanças de mentalidade não se

deixam comandar. Em parte ainda, tal emprego é juridicamente inadmissível, porque os direitos

fundamentais asseguram a livre decisão dos atores sociais. Ordens de investimento, a instituição

estatal da obrigação de certa forma de utilização da força de trabalho, ordens ou proibições acerca

da perseguição de determinadas metas de pesquisa científica, nada disso seria admitido pela

constituição. [501] Por outra parte, no entanto, esse tipo de medidas se torna possível e mesmo

admissível, apesar de não oportuno, já que faltam ao Estado as informações exigíveis para a

formulação de programas de regulação efetivamente imperativos nesse grau. Com efeito, sabe-se

como são altos os custos de implementação de direito imperativo, o que faz, muitas vezes, com

que o Estado não possa ou mesmo não queira empregá-lo.

Nessas esferas, desde algum tempo, o Estado lança mão de meios de motivação com

efeitos indiretos: estímulos, intimidações, medidas que, no mais das vezes, são efetivadas

sobretudo mediante a manipulação de recursos financeiros, e que podem forçar os destinatários a

se adequar, de acordo com um cálculo de interesses livre, às exigências estatalmente assinaladas

relativas ao bem comum. Entretanto, o Estado abandona, com isso, a posição de domínio que

desempenhava em nome do interesse público, passando a negociar num mesmo patamar com os

atores privados. Nesse diapasão, a realização dos objetivos estatais depende da possibilidade de

sucesso dessas negociações. Isso proporciona aos atores privados uma posição de veto contra o

Estado que aumenta suas chances de afirmar seus próprios interesses contra aqueles referentes ao

interesse público. Além disso, essa posição é melhorada na medida em que, com a globalização,

enquanto seu campo de ação se expande, o do Estado encolhe. Em regra, porém, esse poder de

veto não se apresenta na forma de recusas, senão na forma de uma disponibilidade à cooperação,

que o Estado entretanto tem que honrar de boa vontade mediante seus programas de regulação.

O Estado reagiu a essa nova situação com a criação de um sistema de negociações no qual

atores públicos e privados se encontram para chegar a um acordo quanto aos programas de

regulação. Essas negociações não são novas no plano administrativo. Elas têm lugar onde quer

que o direito dê margem à avaliação ou a organização a serem preenchidos em acordo com os

destinatários. Elas são difundidas também na administração estritamente vinculada pelo direito.

Podemos encontrá-las, até mesmo, no direito tributário, onde a instituição da exação se dá

freqüentemente deste modo, fazendo com que a administração tributária prefira chegar a um

acordo com o contribuinte mediante negociação. A negociação encontra lugar inclusive no campo

da persecução penal. Não raramente, seguindo-se o modelo americano do plea bargaining, o

Estado se abstém de processar ou punir alguns delitos se, em troca, o acusado entrega outros

implicados, reduzindo, assim, os custos da investigação.

[502] Negociações, porém, difundem-se igualmente no campo legislativo9. À formação da

vontade acerca das exigências do interesse público associa-se, às vezes, uma negociação com os

causadores de problemas. Tais negociações se dirigem àquilo que pode ser passível de acordo

entre as partes, com atenção ao interesse público, sem que seja necessário um custo excessivo

tanto financeiro quanto em relação às opiniões públicas. Às vezes, o Estado se limita a definir o

problema a ser solucionado, deixando, porém, a própria solução para o resultado de acordos

negociados. Isso leva a um compromisso quanto ao conteúdo da lei entre os atores públicos e

privados ou a uma recusa do Estado à regulação e, por seu turno, a uma promessa de bom

comportamento da parte do agente privado. O direito estatal legislado funciona, assim, apenas

como meio de ameaça com o qual se pode aumentar a disponibilidade do setor privado para fazer

concessões. Isso, aliás, representa vantagens para ambos os lados: o lado privado aufere uma

moderação das obrigações e o lado estatal obtém as informações de que dependem uma regulação

legal eficiente ou mesmo a economia nos custos de implementação que podem existir no direito

promulgado unilateralmente.

Apesar de acordos desse tipo ficarem no campo da informalidade, eles só podem ter os

efeitos pretendidos se ambos os lados se sentirem vinculados. Graças, aliás, a essa vinculação,

não se pode mais compreender o fenômeno da negociação a partir da categoria da influência, mas

apenas a partir da categoria da participação. Com isso, podem-se encontrar nesse modelo algumas

disposições de racionalidade que contribuem para a legitimidade do direito de acordo com o

modelo de tradicional de regulação. De um lado há o privado que não mais se limita ao status

geral de cidadão estatal que permitia a participação nas eleições, a participação no discurso

público e a substituição de seus interesses frente ao Estado. Em lugar disso, o privado toma parte

na formação da vontade estatal sem que precise estar incluído nos contextos de responsabilidade

9 Cf. BENZ, Arthur & SEIBEL, Wolfgang (Orgs.). Zwischen cooperation und Korruption. Baden-Baden, 1992;

BENZ, Arthur. Kooperative Verwaltung. Baden-Baden, 1994; HELBERG, Andreas. Normabwendende

Selbstverpflichtungen als Instrumente des Umweltrechts. Sinzheim, 1999.

e de legitimação democráticos que valiam para todos aqueles que estivessem submetidos ao

poder público. De outro lado, são desvalorizados, na mesma medida, as instâncias de decisão e os

procedimentos constitucionalmente previstos, já que o Estado se compromete desde já com

determinados tipos de comportamento.

[503] Os efeitos desse fenômeno atingem sobretudo a instância central de fixação do

direito: o parlamento. Ele não toma parte em tais “negociações”. Do lado estatal, elas são sempre

conduzidas pelo executivo. Exsurge das negociações um modelo legal que, na verdade, só

poderia obter validade mediante uma resolução parlamentar. Mas o parlamento não se encontra aí

em nenhuma posição de ratificação parecida com aquela que detém no caso das resoluções sobre

direito comum. Ele pode apenas aceitar ou negar os resultados das negociações, mas jamais

alterá-los. Na nova sociedade, no que tange à sua atividade de fixação de normas jurídicas gerais,

seu campo de ação é apenas faticamente limitado, mas não juridicamente. A limitação, aí, não

opera, porém, de modo menos efetivo, pois toda violação do processo legislativo, mesmo que

seja apenas no plano fático, coloca em jogo todo o resultado. Por outro lado, no que tange ao

modelo da negociação, logo que se torne possível uma renúncia à regulação, o parlamento não

mais é colocado em jogo. Todavia, uma renúncia do executivo à regulação não evita que o

parlamento tome para si a iniciativa legislativa. Porém, a maioria parlamentar de que todo

governo é dotado tem, em realidade, que se desarvorar daquilo com que raramente tem que

contar.

Com a redução do papel do parlamento e com a possibilidade de uma renúncia negociável

à regulação, caem também as qualidades contidas na fase parlamentar do processo legislativo.

Quer dizer, perde sua força sobretudo o debate público em que a necessidade, os objetivos e os

meios a serem utilizados por uma medida legislativa são justificados e no qual a crítica pode ser

publicamente exposta. Com isto, o público é retirado de uma posição desde a qual pode

influenciar no processo. Essa possibilidade era, antes, de especial importância para aqueles que

não estivessem num ponto em que sua opinião tivesse de ser obrigatoriamente ouvida.

Em contraste, de acordo com o novo modelo legislativo, ao lado dos debates

parlamentares, que ainda podem ser realizados de modo apenas “simulado”, há um processo de

negociações verdadeiramente decisivo. A questão é que falta a esse processo a força para ligar o

discurso da sociedade ao discurso estatal. Assim, como o que estabelece a regulação é o resultado

da negociação, não se abre mais nenhum fórum que permita ao público fazer valer suas próprias

compreensões ou mesmo a inclusão de seus possíveis interesses desprezados.

[504] Essas fraquezas continuam no que diz respeito ao conteúdo das leis ou a seu

substrato informal: a promessa de comportamento dos atores privados. Aí não se adquire aquele

potencial de reconhecimento geral que funcionava como um fundamento de legitimidade das

normas produzidas. As negociações não incluem todos os implicados, mas apenas aqueles que

detêm uma posição de veto. E os interesses que têm mais chance de serem respeitados não são os

que se fundam apenas no poder extra-estatal acumulado, senão os que detêm poder no interior

dos próprios processos disponibilizados pelo Estado. Isso premia, então, as posições de poder

social que buscam neutralizar a força dos procedimentos jurídico-constitucionais relativos à

produção do direito. Nessa situação, onde vale o princípio constitucional da igualdade estrita,

formam-se, na verdade, privilégios. E, na mesma medida, é enfraquecido o significado das

eleições, pois elas não mais distribuem sozinhas o peso político no processo de produção do

direito. Se se quer, apesar disso, cobrar democracia dos sistemas de negociação, exclui-se todo

contato com a instituição da eleição política, como bem acentuou Luhmann contra Willke10

.

Essas reflexões ocasionaram recentemente, no ministério federal alemão para economia e

tecnologia, uma consulta a experts que advertiu o órgão acerca da difusão do modelo de

negociação. Para a consultoria, estavam em primeiro plano os efeitos sobre a economia de

mercado, tendo também, contudo, encontrado a devida atenção os custos democráticos desse

modelo. Frente a isso, ela não considerava totalmente o lado jurídico-estatal da legislação

racional. Com efeito, para a adequação do acordo jurídico compromissório tornava-se importante

o crescente controle normativo judicial. Em face daquele mencionado déficit da democracia

partidária, tal controle contribuiria essencialmente para a legitimação do direito. O direito

negociado era, nesses termos, consideravelmente valorizado. Porém, as normas negociadas

permaneciam na esfera da informalidade, não restando qualquer objeto ao controle judicial. Para

a observação dos compromissos não haveria, então, sanções jurídicas, mas apenas sanções

políticas. Se o conteúdo do acordo não é conhecido, a verificação do seu cumprimento por parte

ator privado seria, até mesmo, dificultada.

10

LUHMANN, Niklas. Die Politik der Gesellschaft. Frankfurt am Main, 2000, p. 137.

[505] O próprio Habermas reconheceu que ocorrem negociações paralelamente às

discussões do processo político de produção normativa11

. Ele tinha como objeto a diferença entre

ambos os modelos. Na discussão, os participantes procuram convencer com argumentos e chegar

cooperativamente a uma solução que fosse aceitável por todos. Na negociação, eles aspiram a um

compromisso entre seus diferentes interesses. Entretanto, em Habermas, o conceito de

negociação mostra-se muito menos discutido que o de discussão. Ele dá a entender, é verdade,

sob quais pressupostos tal modelo de produção normativa pode ser tratado de modo racional. Ele

vê a possibilidade de que, se existem interesses conciliáveis e os parceiros estão

aproximadamente na mesma condição, as negociações poderiam ter efeitos, ao menos limitados

aos diretamente implicados. Neste ponto, ele sustenta que seria suficiente que as negociações

decorressem sob garantias de fairness estatais, que, por sua vez, precisariam novamente de uma

institucionalização jurídica. Caso contrário, o Estado teria que deixar seu papel moderador,

determinando unilateralmente o conteúdo das normas.

Na maioria das rodadas de negociação público-privadas em que o conteúdo das leis ou a

medida do comportamento legalmente delimitado é definida por acordo, verificam-se claramente

esses pressupostos. Todavia, isso se mostraria menos auspicioso se se limitassem

constitucionalmente as negociações, pois que elas têm motivos estruturais para existirem que são

consideravelmente imunes às proibições constitucionais. Por outro lado, o modelo de negociação

provoca profundas rachaduras nas disposições racionais do direito constitucional relativas à

produção do direito. Se as pretensões jurídicas e democráticas devem ser mantidas, as novas

formas de atuação têm então de ser constitucionalizadas. É, então, assunto para a constituição

determinar o campo de utilização das soluções negociadas, regulando seus pressupostos a partir

do ponto de vista dos implicados em lugar ao invés de fazê-lo desde o ponto de vista do poder,

conduzindo, ao mesmo tempo, com publicidade as negociações na medida em que elas são

informalmente realizadas e, finalmente, disponibilizando os adequados mecanismos de controle

sobre os seus resultados.

[506] Habermas comparou, em 1973, em seu livro sobre a crise de legitimação no

capitalismo avançado, teorias democráticas pretensiosas com teorias democráticas reducionistas.

A realidade parece confirmar, no entanto, as teorias de segundo tipo. O que dá peso a essa

afirmação é a circunstância de que sua causa está menos na carência de uma disponibilidade para

11

HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung, p. 173 ss, 204 ss.

a democracia do que em crescentes obstáculos estruturais a modelos democráticos pretensiosos.

As tendências aqui debatidas, no sentido de uma redução da quantidade de direito legítimo são

exemplos a favor dessa tese. Uma posição de resignação quanto a esse quadro de desvalorização

da constituição e do direito seria, contudo, uma falsa conseqüência desse fenômeno. Na realidade,

temos de nos acostumar com o fato de que a constituição não pode mais regular a produção de

decisões coletivas vinculantes sob as mesmas circunstâncias como era possível sob as condições

de um Estado reduzido à mera garantia da ordem. Com efeito, não é supérfluo, porém, conservar

o Estado de Direito dessa ressaca reducionista, adaptando-o à nova situação em uma medida que

seja exeqüível.