GRITOS DE UM DOENTE INVETERADO A SUICIDADE DA SOCIEDADE: O insano, o esquizofrênico, o...
-
Upload
bill-ubuntu -
Category
Documents
-
view
238 -
download
20
description
Transcript of GRITOS DE UM DOENTE INVETERADO A SUICIDADE DA SOCIEDADE: O insano, o esquizofrênico, o...
-
UNIVERSIDADE DE BRASLIA
INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
GRITOS DE UM DOENTE INVETERADO A
SUICIDADE DA SOCIEDADE
O insano,
o esquizofrnico,
o revolucionrio,
o bobo,
o iluminado,
o absurdo,
o gnio,
o louco Antonin Artaud
Willian Pereira do Nascimento
Braslia
2012
-
2
Willian Pereira do Nascimento
GRITOS DE UM DOENTE INVETERADO A
SUICIDADE DA SOCIEDADE
O insano,
o esquizofrnico,
o revolucionrio,
o bobo,
o iluminado,
o absurdo,
o gnio,
o louco Antonin Artaud
Monografia apresentada ao Departamento de
Histria do Instituto de Cincias Humanas da
Universidade de Braslia para a obteno do grau
de bacharel em Histria.
Orientador: Prof. Dr. Daniel Barbosa de Faria Andrade
Braslia
2012
-
3
NASCIMENTO, Willian Pereira do. Gritos de um doente inveterado a suicidade da
sociedade: O insano, o esquizofrnico, o revolucionrio, o bobo, o iluminado, o absurdo, o
gnio, o louco Antonin Artaud. Monografia de Histria, Universidade de Braslia, Braslia,
2012.
RESUMO
Essa monografia tem por objeto de estudo parte da vida e obra de Antonin Artaud (1896-48).
Artaud foi um artista francs de grande expresso, principalmente para o teatro, onde escrevia
roteiros, dirigia e mesmo atuava. Artaud ficou famoso por reinventar a linguagem teatral, tido
hoje como o maior nome da arte surrealista francesa. Sua linguagem cida e impetuosa
chocou o pblico ao tomar como tema a crtica da sociedade burguesa, debochando do seu
conservadorismo e anarquizando seus valores. Alm disso, atraiu ateno para si pela postura
raivosa diante da psiquiatria. Atentar-se- para o fato de Artaud ter passado um longo perodo
internado em diversos manicmios. A monografia se concentra, em especial, nessa fase de sua
vida. A tese defendida pretender retratar a loucura de Artaud como um fenmeno cultural
que engloba tanto as interpretaes do senso comum como a nosografia desenvolvida pela
Psiquiatria. Assim, discutiremos os conceitos de doena mental, desvio social, normalidade e
anormalidade, culminando na relao de poder que deslegitima o discurso daquele que
apontado como louco. Nosso objetivo ltimo entender essa relao entre o louco e a
sociedade. Para tanto, exponho aqui algumas perguntas que nortearam a monografia: Por que
a sociedade isola o louco? A sociedade teme o louco? Seria todo louco potencialmente
violento ou seu isolamento justifica-se pelo tratamento? Existe cura para a loucura? Se
doena, quem est em risco? O louco ou os outros? Afinal, que tipo de perigo o louco
representa? Que implicaes sua condio suscita?
Palavras-chave: Antonin Artaud, loucura, doena mental, problema social.
-
4
Digo bem
O DEVER
do escritor, do poeta, no ir fechar-se
covardemente num texto, um livro, uma revista
dos quais jamais sair.
Seno ao contrrio sair rua
para sacudir
para atacar
o esprito pblico
se no
para que serve?
E para que nasceu?
A.A.
-
5
Sumrio
INTRODUO ............................................................................................................... 6
2 ARTAUD: DOENTE MENTAL OU SOCIEDADE DOENTIA? ............................ 9
2.1 DOENA MENTAL E DESVIO SOCIAL .................................................... 9
2.2 PSIQUIATRIA E ANTIPSIQUIATRIA ....................................................... 16
3 UM DOENTE INVETERADO ................................................................................. 23
3.1 INDISCRIES DE ANTONIN ARTAUD ................................................. 23
3.2 CRUELDADE PARA LIBERDADE ........................................................... 27
4 A SUICIDADE DA SOCIEDADE ............................................................................ 33
4.1 PERICULOSIDADE E INSANIDADE: PARA PR FIM AO JULGAMENTO
DE DEUS ........................................................................................................................ 34
REFERNCIAS ............................................................................................................ 40
AGRADECIMENTOS .................................................................................................. 42
-
6
INTRODUO
Na sociedade ocidental, o termo insano1 funciona como categoria aberta a qualquer tipo
rejeitvel socialmente, por isso, a conduta desviante tornou-se alvo de sanes sociais para
adaptar, reintegrar, regenerar, etc. Contudo, tal rejeio no expressa s negatividade,
uma vez que o sujeito insano tambm pode ser visto como um heri romntico. E sobre esse
paradoxo que nos debruamos, pois diante do insano no ficamos impassveis, nele rejeitamos
e reconhecemos o homem.
E o homem, em vez de ser colocado diante da grande diviso do Insano e na
dimenso que ele imagina, tornou-se no nvel de seu ser natural, isto e aquilo,
loucura e liberdade, recolhendo, pelo privilgio de sua essncia, o direito de ser
natureza da natureza e verdade da verdade. 2
A anlise histrica deste fenmeno esbarra em uma barreira crucial, pois a
singularidade assume na insanidade, doravante loucura3, dimenso radicalizada. Isto , o
louco escapa ao contexto porque o contexto escapa dele.4 E o que torna esses sujeitos um
interessante objeto de estudo para as cincias ditas humanas a dificuldade em compreend-
los atentando-se a essa fenomenologia paradoxal em que, analogamente a um quebra-cabea,
pode-se encaixar qualquer pea aos loucos e nenhuma pode ser deles encaixada: H algo
neles que fala da diferena e chama a diferenciao.5
O que distingue o louco dos demais ns sabemos6, mas por qu? A suposta facilidade
dessa questo rechaada quando nos confrontamos com os estados de parania dos cidados
contemporneos, principalmente em relao violncia. Se sociologicamente falando difcil
delimitar a linha que separa o louco daquele dito normal, no assim quanto Histria.
Existe uma infinidade de pessoas que foram documentadas como loucos por seus
contemporneos. E parte dessa monografia se debrua sobre eles. Especialmente sobre um
ilustre senhor de meia-idade, de calvcie pronunciada e pele macilenta.
1 Do latim in- (negat) + sanus so, de boa sade. Adj. 1. Louco, demente, maluco, doido; 2. Fig. rduo,
difcil, trabalhoso, fatigante. 2 FOUCAULT, Michel. Doena Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p. 69. 3 Para no conceituar previamente o louco como doente.
4 consideravelmente emprobecedor afirmar que Artaud foi surrealista, por exemplo. Mais correto estaria dizer
que o surrealismo foi Artaud. Com efeito, Artaud era figura estranha mesmo entre os amigos mais prximos do
movimento e dele saiu (ou foi expulso?) quando Breton anunciou o alinhamento dos surrealistas franceses com a
URSS de Stlin. 5 Idem, ibidem, p. 61.
6 Sabemos? Esta pergunta uma chave de leitura do ltimo item. Por enquanto, fiquemos com a frase de Santo
Agostinho sobre o tempo: Se ningum me perguntar, eu o sei, se o quiser explicar a quem me fez a pergunta, j no sei.
-
7
Descrevo-o desse modo, pois foi assim que encontrei Artaud. Um homem velho, cheio
de rugas e com um olhar inexpressivo. Sua figura no causou qualquer surpresa em mim, bem
sabia que Artaud tinha passado muitos anos de sua vida internado em diversos manicmios
em plena Segunda Guerra. Talvez minha apatia tenha tornado a figura cadavrica um smbolo
do que Artaud representa, pois hoje posso enxerg-lo com mais nitidez do que qualquer outra
pessoa que conhea. Daquela primeira impresso de um louco cansado, agora vejo Antonin
Artaud, um homem torcido pelas mos apticas, s vezes afveis, vezes cruis, de intenes
claras e motivos duvidosos. Agora vejo Artaud, um louco cansado e inveterado, e nada
poderia ser menos inexpressivo que isso.
Sem me ater a esses detalhes que constituem o cerne deste trabalho, surpreendi-me
com a variedade de elementos que faziam da histria de Artaud uma verdadeira odissia
francesa: h paixes perdidas, um gnio absoluto e incompreendido, drogas, sexo, castidade,
f, descrena, dor, misria, glria e queda. No necessariamente nesta ordem.
Diz Martin Esslin: Ele o verdadeiro heri existencial: o que fez, o que lhe
aconteceu, o que sofreu e o que foi so infinitamente mais importantes do que tudo quanto
tenha dito ou escrito.7 Pode parecer presuno afirmar que uma obra tida como referncia
obrigatria para as mais avanadas correntes de pensamento crtico e criao artstica seja
menor que a vida de seu autor, mas, parafraseando Teixeira Coelho, nos papis de Artaud est
apenas uma espcie de resduo, algumas partes somente, pois em Artaud que est a parte
mais relevante de sua obra.8
Tal afirmativa significativa quando confrontamos a
excepcionalidade dessas obras, to mltipla que possibilita uma variedade admirvel de
leituras. Artaud pode ser lido como lingista, ensasta surrealista, crtico de arte, testemunho
psiquitrico do sc. XX. Este ltimo, inclusive, foi inspirao decisiva no desenvolvimento
das idias de Robert Laing, expoente do movimento conhecido como antipsiquiatria, que
abordaremos no item 1.2.
Seu testemunho tambm comparece como referncia fundamental para a crtica de
Michel Foucault em Histria da Loucura. Para Foucault, Artaud virou pelo avesso, subverteu
completamente as noes tradicionalmente aceitas sobre a relao entre criao e loucura, ele
diz: no so mais as obras dos loucos e malditos que precisam justificar-se diante da
psicologia, mas sim a psicologia que agora deve tentar justificar-se diante de tais obras.9
7 ESSLIN, Martin. Artaud. So Paulo: Ed. Cultrix, 1978, p. 8.
8 COELHO, Jos Teixeira. Antonin Artaud. So Paulo: Ed. Brasiliense, 1982, p. 12.
9 FOUCAULT, Michel. A Histria da Loucura na Idade Clssica. So Paulo: Perspectiva, 1978, p. 583.
-
8
Foucault ser referncia constante ao longo desta monografia, desde as concepes histricas
da loucura anlise do discurso insano.
Precisamos lembrar antes de continuar, que a trajetria de Artaud, por maior que tenha
sido sua consagrao pstuma, continua se defrontando com as vaias de uma platia
predominantemente conservadora.10
Afinal, por mais que tenha contribudo para estimular o
surgimento de tendncias vanguardistas e libertrias, isso aconteceu dentro de um mundo e
uma sociedade que, grosso modo, continua discriminando aqueles que se recusam a partilhar
da normalidade.
Seria ento Antonin Artaud a pea desconexa desse quebra-cabea social? Caso seja,
uma pea curiosa, que no apresentava deformidade visvel. Estud-la, acredito, pode nos
levar a compreender melhor o restante das peas sociais. Ausente, claro, da pretenso de
encaix-las, pois um dos pressupostos desta monografia que todas as arestas so redondas,
sendo o louco a nica pea que se recusa a parecer quadrada.
10
ESSLIN, Martin. op. cit, p. 8.
-
9
2 ARTAUD, DOENTE MENTAL OU SOCIEDADE DOENTIA?
Antonin Marie-Joseph Artaud nasceu em Marselha no dia 4 de setembro de 1896. De famlia
parca em recursos financeiros, Artaud sempre teve dificuldade em tratar de suas dores de
cabea recorrentes, fato que marcaria sua vida adulta como viciado em ludano11
. Esta
dependncia da droga constituiria indcio da progressiva degenerao mental de Artaud? Seria
Artaud portador de uma doena anterior ao vicio, sendo o motivo por trs das dores de
cabea? Existiria tal doena? A primeira parte desta monografia inscreve-se nessa longa e
densa discusso sobre a existncia de uma doena mental, hibridamente ancorada na leitura de
autores que se debruaram sobre a questo e na voz de Artaud.
Faremos a anlise histrica dos conceitos de loucura e da instituio psiquitrica,
apoiados nas abordagens de Peter Pl Pelbart12
e Michel Foucault no exerccio da reviso
historiogrfica sobre a doena mental e o debate travado nos anos 60 quando da emergncia
da antipsiquiatria. Trata-se da opresso social acusada por Artaud: Os loucos so as vtimas
individuais por excelncia da ditadura social.13
2.1 DOENA MENTAL E DESVIO SOCIAL14
Foi numa poca relativamente recente que o Ocidente concedeu a loucura um status de
doena mental.15 Historicamente difcil precisar a relao entre sociedade e loucura, pois os
relatos so marginais, escassos e exguos. A loucura, parece-nos, est enredada num valor
instvel que varia com as pocas, pelo menos em suas dimenses visveis: ora permanece
implcita, ou, ao contrrio aparece, emerge largamente e integra-se sem dificuldade a toda a
paisagem cultural.16 Assim, se voltarmos nosso olhar para a Antiguidade, encontraremos na
Grcia, alguns vestgios em Plato do que poderia ter sido a loucura para os gregos.
Em Loucura e Desrazo, Pelbart analisa a passagem de Fedro, em que Plato
desenvolve um dilogo entre Lysias e Scrates sobre o amor:
A tese de Lysias simples: prefervel ceder s solicitaes de um amante que no
ama e tem a cabea no lugar a ceder ao amante que ama e que, por conseguinte, est tomado, pela loucura. Scrates discorda, e expe seu argumento
principal: se a loucura fosse um mal, teramos razo de falar assim; o fato, porm,
11
Substncia a base de pio. 12
Pelbart foi professor de Filosofia na PUC-SP. 13
ARTAUD, Antonin. Carta aos Mdicos-chefes dos Manicmios In: Escritos de um louco. Internet: p. 53. 14
Entende-se por desvio social quele ao qual se atribui a causa de um mal estar social devido a uma condio
que lhe inerente baseado numa mdia. 15
FOUCAULT, Michel. Doena... op. cit, p. 52. 16
Idem, ibidem, p. 53.
-
10
que "a loucura (mania) para ns a fonte dos maiores bens". No poderia haver
elogio mais categrico loucura. (grifo meu).17
Pelbart ressalva que tal elogio refere-se a um tipo especfico de loucura, uma loucura
atribuda interveno divina. O autor aponta a existncia de pelo menos duas formas de
manifestao da loucura para Scrates: uma natural e outra divina. A esta ltima, Pelbart
classifica-a em subcategorias segundo as divindades por elas representadas: a loucura
proftica (Apolo), a ritual (Dionsio), a potica (as Musas) e a ertica (Afrodite). Tal distino
afronta a historiografia tradicional que defende uma noo grega de unidade patolgica da
loucura. Pelbart vai mais longe e acusa esses historiadores de projetar nos gregos uma idia de
loucura contempornea, doena humana foi apenas uma, e com certeza no a mais
importante das modalidades da mania [loucura] presentes na cultura grega.18 Segundo
Pelbart, sugerir que Plato elogiasse a loucura por ser um crtico do senso comum pura
arbitrariedade de sentido se considerarmos, por exemplo, que Hegel falou dos loucos em
sintonia absoluta com seu tempo, com a psiquiatria de sua poca e com a concepo enraizada
em sua cultura.19 E conclui:
Se verdade que a Antiguidade grega manteve com o louco uma proximidade de
fato e uma distncia absoluta de direito, contrariamente poca moderna, em que a
identidade com ele de direito e a distncia de fato, atravs da recluso asilar, o
mnimo que podemos dizer, a respeito dessa inverso, que com ela alterou-se a
geografia da loucura. Se antes ela era impensvel por estar demasiado prxima e ao
mesmo tempo excessivamente distante, tanto do homem como da razo um pouco como o sagrado, e no sem relao com ele, como j observamos , a modernidade poder pensar a loucura porque, ao subordin-la antiteticamente
racionalidade, mdica ou filosfica, ter consumado, no mesmo gesto, sua
subjugao.20
A, passamos para Foucault:
A experincia clssica da loucura nasce. A grande ameaa surgida no horizonte do
sculo XV se atenua, os poderes inquietantes que habitavam a pintura de Bosch21
perderam sua violncia. Algumas formas subsistem, agora transparentes e dceis,
formando um cortejo, o inevitvel cortejo da razo. A loucura deixou de ser, nos
confins do mundo, do homem e da morte, uma figura escatolgica [...] Esse mundo
do comeo do sculo XVII estranhamente hospitaleiro para com a loucura.22
No inicio do perodo renascentista, a loucura teve a existncia extremamente
implicada com a razo, de tal modo que podia ser at uma forma da razo se manifestar, o que
17
PELBART, Peter Pl. Da clausura do fora ao fora da clausura: Loucura e desrazo. So Paulo: Editora
Brasiliense, 1989, p. 17. 18
Idem, ibidem, p. 42. 19
Idem, ibidem, p. 40. 20
Idem, ibidem, p. 43. 21
A pintura de Bosch uma stira sociedade medieval que fora tomada pela "loucura". 22
FOUCAULT, Michel. A Histria... op. cit, p. 48.
-
11
guarda uma relao muito prxima com aquela levantada por Pelbart na Antiguidade grega.
Para muitos renascentistas, a loucura era a fora viva e secreta da razo.23
A loucura no essencial experimentada em estado livre, ou seja, ela circula, faz
parte do cenrio e da linguagem comuns, para cada um uma experincia cotidiana
que se procura mais exaltar do que dominar.24
Ao leigo, a maneira como o Renascimento tratou a loucura pode causar surpresa pelo
contraste com o perodo seguinte, o qual acabou por conferir aos loucos o lugar de segregao
que durante a Idade Mdia fora reservado aos leprosos.
A loucura, cujas vozes a Renascena acaba de libertar, cuja violncia porm ela j
dominou, vai ser reduzida ao silncio pela era clssica atravs de um estranho golpe
de fora.25
Foucault chama a esse perodo de a Grande Internao do sculo XVII. Os espaos
fsicos, sociais e ideolgicos que anteriormente eram ocupados pelos leprosos foram
gradativamente preenchidos pelos mais variados tipos marginais, o abrigo era "uma mesma
ptria aos pobres, aos desempregados, aos correcionrios e aos insanos."26
O momento em que a loucura percebida no horizonte social da pobreza, da
incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo; o
momento em que comea a inserir-se no texto dos problemas da cidade.27
Assim, realizou-se uma verdadeira limpeza urbana. Na leitura de Foucault, os
hospitais gerais eram somente espaos legtimos de recluso, o internamento do louco ainda
que em instituies mdicas no possua qualquer relao com a crena de uma doena
mental. Para Foucault, no mera coincidncia que fosse a incapacidade produtiva categoria
comum que agrupa todos aqueles que residem nas casas de internamento, a incapacidade em
que se encontram de tomar parte na produo, na circulao ou no acmulo das riquezas (seja
por sua culpa ou acidentalmente).28
As novas significaes atribudas pobreza, a importncia dada obrigao do
trabalho e todos os valores ticos a ele ligados determinam a experincia que se faz
da loucura e modificam-lhe o sentido.29
Tambm a loucura foi apartada da razo quando Descartes provou que quem cogita
no pode estar louco, alocando a loucura ao lado do sonho e de todas as formas de erro. A
loucura passou ento a ser despojada de sua linguagem; e se se pde continuar a falar dela,
23
Idem, ibidem, p. 31. 24
Idem, ibidem, p. 54. 25
Idem, ibidem, p. 49. 26
Idem, ibidem, p. 50. 27
Idem, ibidem, p. 89. 28
Idem, ibidem, p. 55. 29
Idem, ibidem, p. 89.
-
12
ser-lhe- impossvel falar de si mesma.30 Esse silenciamento foi a primeira sano moderna
contra a loucura, que no passou inclume s mudanas estruturais provocadas pela
consolidao da nova classe social: Com isso a loucura arrancada a essa liberdade
imaginria que a fazia florescer ainda nos cus da Renascena.31
Desobedincia por fanatismo religioso, resistncia ao trabalho e roubo: as trs
grandes faltas contra a sociedade burguesa, os trs atentados maiores contra seus
valores essenciais no so desculpveis nem mesmo pela loucura.32
Nesse nterim, reservo-me o direito de observar uma ironia despretensiosa nas palavras
de Foucault. Ora, se a loucura no desculpa uma violao, tampouco a infrao depende do
infrator, isto , a sociedade burguesa precisa punir o ato independentemente do autor. Com
isso, Foucault insinua o impasse que a sociedade ocidental do sculo XIX enfrentar diante da
punio do louco: como julg-lo?
Ato contnuo, podemos remontar o entendimento sobre a origem da doena mental e
projetar seu parntese moral: Este espao de excluso que agrupava, com os loucos, os
portadores de doenas venreas, os libertinos e muitos criminosos maiores ou menores
provocou uma espcie de assimilao obscura.33
Assimilao obscura que far de um comportamento desviante justificativa para o
internamento sob o remissivo manto de um distrbio nervoso, chave para um futuro
precedente penal.34
Nos fins do sculo XVIII crescem os protestos e denncias contra as internaes
arbitrrias dos loucos. Questionam-se as prticas de confinamento indistinto dos loucos juntos
a outros marginalizados e as torturas que lhes eram infligidas. Comeava a construo de uma
nova abordagem inspirada em ideais iluministas e positivistas contrarias as significaes
religiosas e mgicas,35 em que a medicina vai desempenhar papel fundamental libertando os
loucos das correntes num primeiro ato de ruptura e renovao humanitria. Tratava-se da
chamada Primeira Revoluo Psiquitrica, liderada pelo mdico francs Philippe Pinel.
As coisas foram inteiramente diferentes. Pinel, Tuke, seus contemporneos e
sucessores no romperam com as antigas praticas do internamento: pelo contrrio,
eles as estreitaram em torno do louco.36
30
Idem, ibidem, p. 55. 31
Idem, ibidem, p. 89. 32
Idem, ibidem, p. 546. 33
Idem, ibidem, p. 546. 34
Sobre a periculosidade do louco, ver o item 4. 35
FOUCAULT, Michel. Doena... op. cit, p. 52. 36
Idem, ibidem, p. 57.
-
13
A despeito da instncia mdica das instituies e agora de seus responsveis, Foucault
defende que esse movimento no guardava relao com a idia de doena mental: O que
constitui a cura do louco, para Pinel, sua estabilizao num tipo social moralmente
reconhecido e aprovado.37 O desatino foi considerado por essa turma de clnicos38 um
antema da corrupo moral em que se perdia o horizonte socialmente estabelecido das
condutas pessoais.
A cura significar reinculcar-lhe os sentimentos de dependncia, humildade, culpa,
reconhecimento que so a armadura moral da vida familiar. Utilizar-se-o para
consegui-lo meios tais como as ameaas, castigos, privaes alimentares,
humilhaes, em resumo, tudo o que poder ao mesmo tempo infantilizar e
culpabilizar o louco.39
Por isso, seu tratamento era circunscrito a um universo coercitivo, centrado na censura
aos comportamentos indesejveis. Foucault chega a falar em uma mquina do sculo XVIII
onde se girava o louco at que se reencontrasse seus circuitos naturais, comenta ainda que
tal mquina foi aperfeioada no sculo posterior dando-lhe um carter estritamente
punitivo, girando o louco at desmai-lo caso negasse arrependimento pelos seus desvarios.
Foucault alega que ainda sob a argumentao de uma intencionalidade mdica, impossvel
negar a dimenso moral das aes tomadas no mbito da reforma psiquitrica empreendida na
Europa.
O essencial que o asilo fundado na poca de Pinel para o internamento no
representa a "medicalizao" de um espao social de excluso; mas a confuso no
interior de um regime moral nico cujas tcnicas tinham algumas um carter de
precauo social e outras um carter de estratgia mdica.40
Ao desenvolver seu argumento, tanto em Doena Mental e Psicologia quanto em
Histria da Loucura, Foucault no deixa de se referir ao louco de Pinel como doente, o que,
alis, consta das fontes por ele empregadas. A meu ver, isto no constitui uma contradio,
mas pelo contrrio, uma estratgia narrativa para demonstrar o paradoxo do doente que
antecede a doena. Diz: No novo mundo asilar, neste mundo da moral que castiga, a loucura
tornou-se um fato que concerne essencialmente a alma humana, sua culpa e liberdade; ela
inscreve-se doravante na dimenso da interioridade; e por isso, pela primeira vez, no mundo
ocidental, a loucura vai receber status, estrutura e significao psicolgicos.41 E em Histria
da Loucura situa essa transformao:
37
FOUCAULT, Michel. A Histria da... op. cit, p. 522. 38
Entre os mais lembrados, Philippe Pinel, na Frana, e Samuel Tuke, na Inglaterra. 39
.FOUCAULT, Michel. Doena... op cit, p. 57. 40
Idem, ibidem, p. 58. 41
Idem, ibidem, p. 58.
-
14
At aqui, s se encontravam no asilo as prprias estruturas do internamento, porm
defasadas e deformadas. Com o novo estatuto da personagem do mdico, o sentido
mais profundo do internamento que abolido: a doena mental, nas significaes
que ora lhe atribumos, torna-se ento possvel.42
Com a insero da figura do mdico no asilo, podemos acompanhar o vagaroso e,
ainda assim sbito, entrelaar de uma perspectiva psicolgica ante uma postura moralista,
embrio do diagnstico de uma doena mental. Foucault nos lembra que no foi a pretexto
cientifico que se deu essa interveno, ela histrica sobretudo.
Se a profisso mdica requisitada, como garantia jurdica e moral, e no sob o
ttulo da cincia.43
Foucault descreve como a medicina, ao ser convocada a reboque de uma legitimidade
religiosa com o nico objetivo de confirmar seus preceitos, construra seu direito de
interveno e que, ao largo desse espao outorgado, forjou um saber que lhe escapa
epistemologicamente, que sequer existiria sem o sadismo moralizador no qual a "filantropia"
do sculo XIX enclausurou-a [a loucura], sob os modos hipcritas de uma "liberao".44
para cada cem supostas patogenias nas quais se desencadeia a confuso da matria
e do esprito, para cada cem classificaes das quais as mais vagas ainda so as
mais aproveitveis, quantas so as tentativas nobres de chegar ao mundo cerebral
onde vivem tantos dos vossos prisioneiros? Quantos, por exemplo, acham que o
sonho do demente precoce, as imagens pelas quais ele possudo, so algo mais
que uma salada de palavras?45
Chegamos por fim a encruzilhada semeada no ttulo deste item: Seria Artaud um
doente mental ou o problema, e existe um problema independente da abordagem ideolgica,
est na sociedade?
A esse respeito, retomamos o fio deixado por Peter Pelbart quanto acepo moderna
de loucura:
Nada pode ser dito sobre a doena mental sem que antes ela seja devolvida ao seu
lugar de origem a histria. Pois a patologia mental no um dado da natureza, mas um produto histrico.
46
Pelbart concorda com Foucault quanto relao entre sociedade e desvio social. Para
ambos, a patologia e a prpria compreenso de desvio na verdade so projees de lgicas
internas da sociedade.
42
FOUCAULT, Michel. A Histria da... op. cit, p. 547. 43
Idem, ibidem, p. 548. 44
FOUCAULT, Michel. Doena... op. cit, p. 59. 45
ARTAUD, Antonin. op. cit, p. 52. 46
FOUCAULT, Michel. A Histria da... op. cit, p. 194.
-
15
A doena s tem realidade e valor de doena no interior de uma cultura que a
reconhece como tal.47
Sem outrora recorrer a uma explicao mdica da loucura, a sociedade no deixou de
criar suas instituies para tratar dos loucos e Foucault categrico ao afirmar que a doena
mental apenas produto dos aspectos culturais emergentes da sociedade ocidental que se
cientificiza e procura alicerar suas prticas no bojo dos valores constitudos.
A doena como realidade independente tende a desaparecer, e renunciou-se a faz-la
desempenhar o papel de uma espcie natural com relao aos sintomas, e, com
relao ao organismo, o de um corpo estranho. Privilegiam-se, pelo contrrio, as
reaes globais do indivduo; entre o processo mrbido e o funcionamento geral do
organismo, a doena no se interpe mais como uma realidade autnoma; no se a
concebe mais seno como um corte abstrato no devir do indivduo doente.48
Esse devir desprovido de sintomas orgnicos manifestar-se- em erros
comportamentais e distrbios de personalidade doravante auferidos pela Psiquiatria como
uma doena mental, revelando a concepo psicolgica moralista da loucura como
regresso a um estado primitivo, animalesco.
Na poca clssica, pelo contrrio, ela manifesta com singular brilho justamente o
fato de que o louco no um doente. (grifo meu). Com efeito, a animalidade
protege o louco contra tudo o que pode haver de frgil, de precrio, de doentio no
homem.49
No sculo XIX, o discurso psiquitrico esfora-se em descrever a doena mental sob a
luz cientifica, mas sem desfazer a imagem entre o doente, o primitivo e a criana, mito
atravs do qual se tranqiliza a conscincia escandalizada diante da doena mental, e
consolida-se a conscincia presa a seus preconceitos culturais.50
gnese da doena mental, Pelbart diz:
Ao tentar dar um substrato anatmico categoria recm-criada de doena mental,
aspirando ao reconhecimento da comunidade mdica e cientfica, tudo o que a
psiquiatria conseguiu, em suas circunvolues edificantes, foi mostrar, ao contrrio,
que o patolgico fruto da civilizao.51
E Pelbart completa: Ao buscar um corpo para a loucura, [a psiquiatria] encontrou a
histria.52
Histria na qual se inscreve Artaud, seja como doente, seja como desviante, ou louco
somente. Sua voz ecoar pela sociedade atravs das eras, questionando o poder de alguns
47
FOUCAULT, Michel. Doena... op. cit, p. 49. 48
Idem, ibidem, p. 9. 49
FOUCAULT, Michel. A Histria da... op. cit, p. 169. 50
FOUCAULT, Michel. Doena... op. cit, p. 23. 51
PELBART, Peter Pl. op. cit, p. 203. 52
Idem, ibidem, p. 203.
-
16
homens decidirem sobre o destino de outros sob quaisquer alegaes que incidam unicamente
naquilo que subjetivo ao homem.
No pretendemos discutir aqui o valor da vossa cincia nem a duvidosa existncia
das doenas mentais.53
o esprito afinal, doente ou no, que no pode ser privado de manifestar-se.
No nos surpreendemos com vosso despreparo diante de uma tarefa para a qual s
existem uns poucos predestinados. No entanto nos rebelamos contra o direito
concedido a homens - limitados ou no - de sacramentar com o encarceramento
perptuo suas investigaes no domnio do esprito.54
2.2 PSIQUIATRIA E ANTIPSIQUIATRIA
Embora a loucura no seja uma enfermidade degenerativa, quando Artaud vai para o asilo
psiquitrico de Rodez, depois de seis anos confinado, indo de um manicmio para outro ao
sabor da guerra que tomara a Frana, tal seu infortnio que poderamos desejar que assim o
fosse, pois, talvez, no tivesse suportado o peso da morte por tanto tempo. Ele, Artaud,
ressurge outro, quebrado, plido, todo pele e ossos, visivelmente debilitado, um fantasma
daquele Artaud portador da bengala de So Patrcio. Incentivado pelo doutor Fedire, Artaud
volta a escrever e pesar a mo ao reclamar55
esses seis anos de recluso, criticar duramente
a instituio psiquitrica e no poupar nem mesmo o doutor Fedire, ele tambm espectro
das aflies de Artaud: O hospcio de alienados, sob o manto da cincia e da justia,
comparvel caserna, priso, masmorra.56
Artaud personagem certo em qualquer comentrio sobre antipsiquiatria.
Esse termo, antipsiquiatria, foi documentado pela primeira vez por David Cooper em
1967 no livro Psiquiatria e Antipsiquiatria. De forma mais abrangente o movimento da
Antipsiquiatria pode ser definido como um movimento social que questionava no s o
privilgio de psiquiatras para prender e tratar indivduos insanos at mesmo de forma
compulsria, mas tambm criticava a crescente medicalizao dos pacientes, suas formas de
tratamento e at mesmo questionava existncia da doena mental.
A medicina nasceu do mal, se que no nasceu da doena, e se no a provocou e
criou, pea por pea, para se atribuir uma razo de existir; mas a psiquiatria
nasceu da turba plebia de seres que quiseram conservar o mal na fonte da doena
e que, assim, extirparam de seu prprio nada uma espcie de guarda sua para
53
ARTAUD, Antonin. op. cit, p. 52. 54
Idem, ibidem, p. 52. 55
Optei pelo uso do verbo reclamar pela sua dupla funcionalidade; pode-se ao reclamar reivindicar algo ou protestar de algo. Artaud reclama seus 6 anos de recluso. E Artaud reclama dos seus 6 anos de recluso. Porm,
para a segunda funo, cabe aqui enunciar alguns verbos correlatos: injuriar, ofender, vituperar, profanar,
execrar, vilipendiar, vociferar, GRITAR. 56
Idem, ibidem, p. 52.
-
17
deter em seu nascedouro o impulso de rebelio reivindicador que est na origem de
cada gnio.57
Peo vnia para fazer um esboo esquemtico do que foram os anos 60, certamente
deixando de lado uma infinidade de fatos que poderiam at mesmo contribuir para a tese
defendida. Primeiramente, recordemos que a dcada anterior vivia os efeitos imediatos do fim
de uma longa e devastadora guerra, havia uma grande sensao de desiluso no progresso da
humanidade, pois todo o progresso tecnolgico que prometia um mundo melhor, quase o
destruiu. O conhecimento, mirade iluminista, no foi capaz de conter o mpeto xenfobo
nazista, nem impedir que o homem fizesse da inveno de Dumont armas de guerra. Quando
o governo dos Estados Unidos joga duas bombas atmicas sobre as cidades de Hiroshima e
Nagazaki no Japo, provou-se que bastava a ordem de alguns dirigentes para promover a
morte de milhes e milhes de pessoas. No por coincidncia, foi nos Estados Unidos que
jovens descontentes com o cenrio de destruio e desorientao espiritual buscaram conhecer
as fronteiras do seu pas, do corpo e do esprito. Mais tarde esse movimento daria origem a
expresso mxima do que ficou conhecido pela historiografia como contracultura: o
movimento Hippie.
Com seus ideais de paz e amor, os hippies representavam a sntese do pensamento
rebelde da poca: a busca por uma vida natural, longe das grandes cidades, o no
consumismo e a busca do prazer. A liberalizao sexual, a crtica aos valores da poca e
famlia tradicional monogmica expandia o conceito de famlia a uma vida em comunidade
em que tudo era aceito e era proibido proibir.
Um psiquiatra na dcada seguinte alude: Como se sabe, a Antipsiquiatria filha do
esquerdismo. 58
Sem dvida, os anos 60 foram propcios ao surgimento da Antipsiquiatria, embora no
possamos afirmar que tenham sido acolhedores. Somente 20 anos separavam Artaud do
movimento que reunia os psiquiatras David Cooper, Ronald Laing, Thomas Szasz, Franco
Basaglia e o j citado Michel Foucault, todos eles diligentes da contribuio de Artaud para a
crtica dos abusos psiquitricos.59
No constituam um grupo organizado e discordavam entre
si acerca das muitas formas de interveno psiquitrica, mas para alm da diversidade de
57
ARTAUD, Antonin. Van Gogh: O suicida da sociedade. 2 ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 2007, p. 53. 58
Jean-Paul Chartier, ex-interno do Hospital Psiquitrico de Vinatier (Lio) In: KOUPERNIK, Cyrille (org).
Antipsiquiatria: Censo ou Contrassenso? Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976, p. 49. 59
Laing afirmou que foi a partir da leitura que Artaud fez de Van Gogh que seus questionamentos a cerca da
psiquiatria comearam.
-
18
anlises e sistemas tericos, existe uma posio comum para todas as formas de
Antipsiquiatria, como muito bem colocou o psiquiatra Jean-Claude Arfouilloux:
a idia de que no existem doenas mentais na acepo mdica do termo. A
loucura no passa de uma resposta opresso que esmaga o individuo desde o seu
nascimento e que se exerce atravs das instituies a quem a sociedade confiou essa
funo: famlia, escola, capitalismo, medicina, etc. Por conseguinte, toda a
teraputica que envolve o processo mental arbitrariamente definido como
patolgico, puramente ilusria. Ela apenas alimenta um circulo vicioso, porquanto
s pode ser percebida como represso e suscita, em resposta, a violncia no
oprimido. A antipsiquiatria , fundamentalmente, a recusa de tratar. (grifo meu).60
No prefcio de Psiquiatria e Antipsiquiatria, David Cooper sintetiza alguma destas
posies:
O que tentei fazer nesta monografia foi dar uma olhada a pessoa rotulada como
esquizofrnica, no seu contexto humano real e pesquisar como tal rtulo lhe foi
colado, quem a colou e o que isto significa, seja para os rotuladores, seja para o
rotulado.61
Tambm no prefcio de O Mito da Doena Mental, Tomaz Stephen Szasz declara a
inteno da obra: A psiquiatria no um empreendimento mdico, mas um empreendimento
moral e poltico. Este livro uma tentativa de demonstrar a falha da primeira viso e a
validade da segunda. 62
J Ronald Donald Laing, na introduo de A Psiquiatria em Questo, indaga:
Que fazer? Ns que ainda estamos semi-vivos, que vivemos em pleno corao, por
vezes febril, de um capitalismo moribundo, poderemos fazer algo mais que refletir a
decadncia que nos cerca e que est em ns? Poderemos fazer mais que cantar as
tristes e amargas canes da nossa desiluso e do nosso fracasso?63
Enquanto Cooper dedica-se ao exame dos seus pacientes esquizofrnicos para
entender as implicaes do rtulo loucura em suas vidas, Szasz detm-se crtica ideolgica
da doena mental e Laing destaca-se pelo lirismo com que explora os horizontes filosficos
que a Antipsiquiatria suscitou depois de publicar um minucioso estudo em parceira com
Aaron Esterson sobre a influncia da famlia nos comportamentos esquizofrnicos.
Quando define esquizofrenia, embora reconhea-a como uma situao de crise,
Cooper destaca o aspecto arbitrrio de reconhec-la como doena. Para ele esquizofrenia
uma situao de crise microssocial na qual os atos e a experincia de determinada pessoa so
invalidados por outras, em virtude de certas razes inteligveis, culturais e microculturais (em
geral familiais), a tal ponto que essa pessoa eleita e identificada como sendo mentalmente
60
KOUPERNIK, Cyrille (org). Antipsiquiatria: Censo ou Contrassenso? Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976,
p. 24. 61
COOPER, David. Psiquiatria e Antipsiquiatria. Rio de Janeiro: Editora Perspectiva, 1982, p. 6. 62
SZASZ, Thomas Stephen. O Mito da Doena Mental. Circulo do Livro: So Paulo, 1974, p. 9. 63 LAING, Ronald Donald. A psiquiatria em questo. Editorial Presena: Portugal, 1979, p. 9.
-
19
doente de uma certa maneira e, a seguir, confirmada (por processos especficos, mas
altamente arbitrrios de rotulao) na identidade de paciente esquizofrnico pelos agentes
mdicos ou quase mdicos. 64
Quanto a funo da Psiquiatria, Cooper afirma:
Em nossa sociedade, existem numerosas tcnicas mediante as quais certas minorias
so, primeiro, assim designadas e, a seguir, tratadas ao longo de um continuum de
operaes que vo da depreciao insinuada, no aceitao em determinados clubes,
excluso de certas escolas e empregos e assim por diante, at a sua invalidao total
como pessoas, assassnio e extermnio em massa, no final mais remoto do
continuum.65
David Cooper junto com Ronald Laing criaram em 1965 a Philadelphia Association
que uniu indivduos com esta viso e buscou aplicar estes pressupostos em estratgias de
tratamento que permitiam que o paciente fizesse a metania: uma viagem atravs da
loucura, sem que isto fosse visto como uma doena e, portanto, sem necessidade de
tratamento tradicional com medicamentos e psiquiatras e suas abordagens psicoterpicas
usuais.
A proposta de Laing e Cooper constitua uma verdadeira afronta s teses defendidas
pela Psiquiatria tradicional. Chega a espantar a distncia entre as duas vises, enquanto o
modelo tradicional reprimia as idias delirantes por acreditar que s acentuava o estado
esquizofrnico, Laing e Cooper estimulavam o uso da imaginao como forma de libertar o
paciente da esquizofrenia.
A imaginao, tal qual a encontramos hoje em muitas pessoas, distinta do que a
pessoa considera ser a sua experincia racional de adulto, evoluda e s. No
consideramos, pois a imaginao na sua verdadeira funo, mas como um
desregramento infantil, perturbador e prejudicial.66
O tratamento dentro dessa abordagem consistia mais de uma experincia em
comunidade em que seus participantes eram companheiros de viagem e o terapeuta um
64 Interessante notar o parentesco da abordagem de Cooper daquela apresentada por Sartre na pea Entre Quatro Paredes, na qual trs pessoas so presas num quarto de hotel pela eternidade, sem poder dormir ou mesmo
fechar os olhos. Fadadas a discutir para sempre, um deles saca a frase: o inferno so os outros. Essa tese da esquizofrenia gerada pelo relacionamento humano, atrelada a definio de Jean-Claude Arfouilloux em que a sociedade esmaga o individuo, cria a perspectiva da sociedade como motor das contradies culturais e potencializador dos conflitos por meio de suas instituies. O mesmo entendimento poder ser depreendido dos
escritos de Artaud. Nesse sentido, esclarece a dvida levantada por Arfouilloux: no me sinto em condies de afirmar que sejam capazes, por si ss, [os fatores sociais, econmicos e polticos] de causar a loucura. Cf. KOUPERNIK, Cyrille (org). op. cit, p. 25. 65
COOPER, David. op. cit, p. 22. 66
LAING, Ronald Donald. op. cit, p. 30.
-
20
guia. Tal o grau de antipsiquiatria da proposta que reproduzo trecho do psiquiatra
Cyrille Koupernik em Antipsiquiatria: Censo ou Contrassenso?67
Parece-me impensvel, para no dizer criminoso, deixar evoluir os estados
psicticos sem interveno alguma e, diga-se de passagem, todas as experincias de
centros de acolhimento da loucura que chegaram ao meu conhecimento saldaram-se
por fracassos que no podem ser imputados m vontade das autoridades.68
Koupernik revela sua inteira contrariedade ao modelo empregado por Laing e Cooper
no tratamento da esquizofrenia. Para ele, essa interveno antipsiquitrica no resulta em
nenhum beneficio para o paciente, muito pelo contrrio.
[...] ingnuo e, em ltima instncia, deveras perigoso deix-lo [o esquizofrnico]
prosseguir nessa singular viagem a que Laing chamou metania.69
Koupernik no d pistas do que considera perigoso. Estaria se referindo ao
esquizofrnico ou aos outros? Em que baseia essa argumentao? Talvez receie que dificulte-
se a cura do paciente ou pior, recorde o trgico caso envolvendo um paciente de Basaglia
que autorizado a sair matou um parente.70
Deixemos essas questes para mais tarde, por ora, concentremo-nos na antipsiquiatria,
que Koupernik comenta: Talvez seja uma palavra infeliz. Com efeito parece existir na
Frana uma Antipsiquiatria, mas relativamente poucos antipsiquiatras.71
Alm de obviamente sugerir que h muitos crticos, mas poucas tentativas reais de
efetivao, Cyrille Koupernik fala da dificuldade que os antipsiquiatras encontraram para
implantar suas idias, todas as experincias de centros de acolhimento da loucura que
chegaram ao meu conhecimento saldaram-se por fracassos que no podem ser imputados m
vontade das autoridades.72
67
Livro organizado por Koupernik que reuniu sete psiquiatras para discutir a validade das criticas da
Antipsiquiatria. 68
KOUPERNIK, Cyrille (org). op. cit, p. 24. 69
Idem, ibidem, p 163. 70 Quanto primeira hiptese, possvel que Koupernik aflija-se pela situao do paciente e pela angstia de seus familiares, ainda que a rigor, perigoso implique precaues a serem tomadas. Por isso, mais, ou menos explicitamente, ambas hipteses sugerem a possibilidade do despertar de um ser violento, um louco que estaria
to distante desse mundo a ponto de deixar sua humanidade para trs, tornando-se um homem primitivo,
obediente cego de seus instintos, incontrolvel, imprevisvel.
Poderamos argumentar o teor absurdo de se imputar a todos os loucos o potencial acesso homicida quando
assassinato, longe de ser um caso isolado, ato corriqueiro da vida moderna, mas possivelmente Koupernik
protestaria contra a interpretao dada a sua colocao, acusando-a de mera ilao, mas o adjetivo est l. Se questionarmos os pressupostos da Psiquiatria tradicional, veremos os esqueletos morais legados pelo sculo XIX
na fala de Koupernik, e o que poderia ser receio transformasse em temor. Do qu? faz-se necessrio perguntar. Suicdio? Ou a idia de suicdio? Estaria a subentendido que o louco ao perder o valor pela sua vida poderia
perder pela vida dos outros tambm? 71
KOUPERNIK, Cyrille (org). Op. cit, p. 24. 72
Idem, ibidem, p. 15.
-
21
Mas se Koupernik procurava por resultados positivos dificilmente os encontraria,
uma vez que a proposta da antipsiquiatria no era curar, pois, saliento, no se pode curar o
que no est doente.
No livro O Mito da Doena Mental, Thomaz Szasz critica a confuso que a psiquiatria
tradicional faz entre comportamento e doena cerebral, o comportamento no uma doena,
no pode ser uma doena, apenas o corpo pode ter uma doena 73, ele argumenta que o termo
doena mental por principio incoerente ao combinar um conceito mdico e um conceito
psicolgico, mas que popular porque legitima o uso da fora psiquitrica para controlar e
punir desvios sociais.
No levantaremos aqui a questo das internaes arbitrrias, para vos poupar o
trabalho dos desmentidos fceis. Afirmamos que uma grande parte dos vossos
pensionistas, perfeitamente loucos segundo a definio oficial, esto, eles tambm,
arbitrariamente internados. No admitimos que se freie o livre desenvolvimento de
um delrio, to legtimo e lgico quanto qualquer outra seqncia de idias e atos
humanos.74
Diferentemente do que julga Koupernik, a proposta antipsiquitrica consiste
basicamente em acompanhar o louco sem subjug-lo.
em nome dessa individualidade intrnseca ao homem, exigimos que sejam soltos
esses encarcerados da sensibilidade, pois no est ao alcance das leis prender
todos os homens que pensam e agem.75
No entender de Laing: A pessoa catalogada a fora como doente e especificamente
como esquizofrnica despojada de todos os seus direitos legais e humanos, de tudo o que
possua e de toda a liberdade de ao independente.76 No se trata de cura, mas de
compreenso: Se conseguirmos comear a compreender a sade e a loucura numa tica
existencial e social, poderemos ver claramente at que ponto todos estamos em confronto com
os mesmos problemas e com os mesmos dilemas.77
Cumpre destacar aqui a contribuio do livro de Gilles Deleuze e Flix Guattari, o
Anti-dipo78
, que fez da esquizofrenia no uma perda simblica, uma falta no sentido clssico
freudiano, mas uma mquina desejante, que produz o desejo, moldando-o s condies
exigidas (no caso em relao ao capitalismo). O anti-dipo na figura do esquizofrnico,
desterritorializa o desejo, arrasta-o e o reproduz numa nova Terra.
73
Informao disponvel em http://www.abc.net.au/rn/allinthemind/stories/2009/2530830.htm#transcript.
Acessado em 09 de novembro de 2011. 74
ARTAUD, Antonin. Escritos... op. cit, p. 52. 75
Idem, ibidem. 76
LAING, Ronald Donald. op. cit, p. 113. 77
Idem, ibidem, p. 124. 78
Atente-se a provocao do ttulo, j que o mito de dipo o maior pilar terico de toda a psicanlise.
-
22
esta a nossa doena, a doena dos homens modernos.79
O psiquiatra Adam Phillips que formou-se psiquiatra nos fim dos anos 70, ressalta: O
que os psiquiatras e os antipsiquiatras dos anos 1960 e 1970 haviam reconhecido, de maneiras
muito diferentes, era que havia em nossa cultura um enorme medo da loucura.80
Talvez esse medo encontre eco na proposta anrquica de Basaglia, talvez seja a
revoluo espiritual defendida por Laing ou ainda simplesmente o terror diante do estranho.
A represso dos atos anti-sociais to ilusria quanto inaceitvel no seu
fundamento. Todos os atos individuais so anti-sociais. Os loucos so as vtimas
individuais por excelncia da ditadura social81
Acredito que Deleuze e Guattari iluminem um pouco essa questo quando referem-se
ao que Artaud significou para a instituio psiquitrica: Artaud a destruio da psiquiatria
precisamente por ser um esquizofrnico e no por no o ser.82
Se a psiquiatria brao do sistema normativo da sociedade, Artaud sua anttese, uma
espcie de parada incompreensvel e bem levantada no meio de tudo no esprito.83
79
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix. O Anti-dipo: Capitalismo e Esquizofrenia 1. Lisboa: Assrio &
Alvim, 2004, p. 136. 80
PHILLIPS, Adam. Louco para ser normal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008, p. 10. 81
ARTAUD, Antonin. Escritos op. cit, p. 53. 82
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix. Op. cit, p. 140. 83
Idem, ibidem, p. 140.
-
23
3 UM DOENTE INVETERADO
Martin Esslin84
em seu livro, Artaud, comenta que em 1937, aps a desastrosa viagem a
Bruxelas, onde desfez seu noivado, Artaud vai Irlanda.
Quem sou eu?/ De onde venho?/ Sou Antonin Artaud / e basta eu diz-lo/ como s
eu o sei dizer e imediatamente / vero meu corpo atual / voar em pedaos / e se
juntar / sob dez mil aspectos / notrios / um novo corpo / no qual nunca mais /
podero / me esquecer.85
L, ele espera por um evento cataclsmico. Acredita que na Irlanda estar protegido,
pois sua bengala, presente de seu amigo Ren Thomaz, foi aquela usada por So Patrcio para
banir as serpentes que invadiram o pas sculos atrs. Essa bengala era seu amuleto, seu
basto mgico. De acordo com os relatos, podemos imaginar sua figura inslita proferir um
discurso apocalptico e bradar a bengala l no alto, dizendo-se Jesus Cristo. Sem dvida,
Artaud louco.86
Artifcios como fim do mundo, objetos sagrados e messias, tudo isso
loucura. No perguntaremos o porqu de Artaud dizer-se Jesus Cristo, ele no e tudo mais
loucura. Mas vamos supor que Artaud, embora ainda acreditasse nesses absurdos, no tenha
mencionado nenhum cataclismo ou o poder de sua bengala ou sua divindade, se s
apresentasse um semblante contrado, mudo, e no se desgarrasse da bengala nem por um
instante. Provavelmente, Artaud seria tomado como uma pessoa excntrica somente.
Devemos nos perguntar: ser essa excentricidade sintoma de algo mais profundo, inerente a
sua pessoa, ou reflexo de um posicionamento poltico diante da normalidade? Esta pergunta
feita s pressas constitui a espinha dorsal deste segundo arranjo. Ento, antes de voltarmos
Artaud, precisamos esmiuar a pergunta: o que ser normal? E em seguida, problematizar a
normalidade sob a tica de Artaud: a crueldade.
2.1 INDISCRIES DE ANTONIN ARTAUD
No livro O que loucura, Joo Freyze-Pereira87
toma a etimologia da palavra normal no latim
norma, para expor seu significado como esquadro e normalidade, normalis, como
perpendicular, isto , para um sentido mais abstrato, falar em normalidade pressupor uma
lgica vertical, normativa, que enquadra, delimita um sujeito. Pereira argumenta um carter
discriminatrio da normalidade, tipificando-a por oposio ao seu horizonte no demarcado,
o sentido, a funo e o valor de uma norma nascem apenas do fato de existir algo, estranho a
84 Esslin capaz de, numa mesma frase, rasgar elogios a Artaud e conden-lo por seu fanatismo. No mais, seu trabalho um esforo cuidadoso para refazer os passos de Artaud. 85
ARTAUD, Antonin. Escritos... op. cit, p. 33. 86
A seguir, veremos que o louco faz oposio ao normal por sua indiscrio, da o ttulo deste item. 87
Pereira foi professor de Psicologia na Universidade de So Paulo.
-
24
ela, que no corresponde exigncia a que ela obedece.88 Nesta definio, normalidade e
anormalidade so condicionantes da existncia um do outro, ainda que essa relao no seja
horizontal. Mas tambm j podemos antever um segundo nvel em que essa relao acontece,
quando podemos inverter a tica do objeto para fazer da anormalidade base para a anlise da
sociedade, o que se tenciona fazer nos itens seguintes.89
Queremos crer que por havermos conhecido mal a natureza da loucura,
permanecendo cegos a seus signos positivos, que lhe foram aplicadas as formas mais
gerais e mais diversas de internamento.90
No livro Psiquiatria e Antipsiquiatria, David Cooper apresenta um intrigante
diagrama em que separa a loucura da normalidade de uma forma totalmente contra-sensual.
FIGURA 1
Copper comenta que desde o instante do nascimento, a maioria das pessoas progride
atravs de situaes de aprendizado social na famlia e na escola at atingir a normalidade
social. A maioria das pessoas ficam desenvolvimentalmente paradas neste estado de
normalidade. Algumas sucumbem durante este progresso e regridem ao que chamamos de
loucura no diagrama. Outras, pouqussimas, conseguem deslizar atravs do ponto de inrcia
[...] para a sanidade (). Cabe notar que a normalidade est distante, em plo oposto
88
PEREIRA, Joo Augusto Freyze. O que Loucura. So Paulo: Ed. Brasiliense, 1984, p. 21. 89 Foucault questiona essa lgica em que o louco analisado pela sociedade, subvertendo seu sentido, propondo uma anlise alm do olhar clnico. [...] nossa sociedade no quer reconhecer-se no doente que ela persegue ou que encerra; no instante mesmo em que ela diagnostica a doena, exclui o doente. Cf. FOUCAULT, Michel. Doena... op. cit, p. 51. 90
FOUCAULT, Michel. A Histria da... op. cit, p. 124.
Nascimento
Sanidade Loucura
Ruptura
psictica
Normalidade: esttica
-
25
loucura, mas tambm sanidade mental.91 Assim, de acordo com Cooper, a normalidade
um encaixamento92
da subjetividade s normas sociais e o sujeito so aquele que consegue
preservar sua subjetividade em meio opresso normativa. Mais adiante, Cooper fala tambm
de Artaud:
Houve longos dilogos entre Artaud e seus psiquiatras, nos quais Artaud defendeu
sua crena de que era vtima de invocaes vodu e seu direito de se isolar das outras
pessoas. Em oposio a isso, o psiquiatra invocaria, com insistncia, a necessidade,
para Artaud, de se conformar com a sociedade. Mas, no momento crtico final do
dilogo, vinha sempre a advertncia: Se falar de novo em enfeitiamento, Sr. Artaud, levar 65 eletrochoques. H um sentido em que as afirmaes delirantes de Artaud reproduziam uma profunda realidade da vida.
93
E logo em seguida, comenta: No excessivamente absurdo afirmar que com muita
freqncia, quando as pessoas comeam a ficar mentalmente sadias que elas entram em um
hospital de doenas mentais.94
Podemos entender o ser normal como a demarcao de um espao comum no s de
padres comportamentais, mas tambm dos signos a que esto sujeitos, tornando tudo aquilo
que eles tem de seu, como nosso. Se encararmos o homem como sujeito singular que se
comunica e pensa em uma esfera de signos normalizados, o homem normal aquele que
reproduz inconscientemente a condio de ser unidimensional.95
Robert Donald Laing em A Psiquiatria em Questo atribui parte do interesse por
Freud justamente por ter compreendido e em larga medida demonstrado que a pessoa vulgar,
normal no mais que um fragmento amachucado e endurecido do que uma pessoa poder
ser.96 E constata:
A alienao a condio do homem normal.97
Ser normal encaixar-se ao padro mesmo que este no o suporte, danar a msica
conforme a banda toca. O paradoxo do sujeito so no modelo do Dr. Cooper que ele
fingiria danar conforme o restante, mas em verdade estaria danando outra msica.
91
COOPER, David. op. cit, p. 33. 92 A idia de encaixamento denota um plano de cerceamento da liberdade, grosso modo, simplesmente normalidade. 93
Idem, ibidem, p. 51. 94
Idem, ibidem, p. 51. 95
Mais no subitem seguinte. Por enquanto, basta dizer que esse ser unidimensional naturaliza os condicionantes
da sua existncia como normalidade. 96
LAING, Ronald Donald. op. cit, p. 24. 97 Confira um pouco da ironia refinada de Laing: A sociedade tem o homem normal em grande estima. Ensina as crianas a perderem-se, a tornarem-se absurdas, isto , a serem normais (para a sociedade). De h cinqenta
anos a esta parte, os homens normais mataram cerca de cem milhes dos seus semelhantes, igualmente normais. Cf. Idem, ibidem, p. 26.
-
26
Ao final do primeiro capitulo, David Cooper aconselha:
Por enquanto, se algum tiver de ficar louco, a ttica de aprender em nossa
sociedade a da discrio.98
Peter Pl Pelbart fez um belssimo trabalho em Razo e Desrazo, discutindo as
teorias dos mais diferentes estudiosos para erguer um mosaico explicativo sobre a questo
desse paradoxo estruturante entre normalidade e anormalidade. Comentando a polmica que
cercou o artigo da antroploga Ruth Bendedict, diz: A normalidade tem por nico critrio os
traos dominantes da cultura em questo. Ruth Benedict complementa esse relativismo
cultural com a hiptese da loucura como desvio em relao a essa norma.99 Tendo como
referncia o estudo de Georges Devereux, Essais d'etnopsyquiatrie gnerale, que prope uma
anlise etnopsiquitrica de culturas primitivas com relao a suas manifestaes (indivduos)
anormais, Duvereux, da mesma forma que Cooper elege uma sanidade certa, tambm ele
define uma insanidade correta. A tese de Devereux pode ser resumida numa frmula
simples: h maneiras corretas de ser louco, e de ser reconhecido como tal.100 Pelbart
apropria-se de trs conceitos apresentados por Devereux em que essas maneiras corretas
acontecem, classificadas por desordens de natureza convencional (tnica e sagrada) e no
convencional (idiossincrtica).
A desordem tnica se utiliza de traos culturais para estruturar uma sintomatologia,
a desordem sagrada uma sndrome restitucional convencional referente a uma
experincia sobrenatural originada num incidente psictico, enquanto a desordem
idiossincrtica provm de um traumatismo no necessariamente recorrente na
sociedade em questo, e portanto atpica, tanto na sua etiologia quanto na sua forma
e evoluo. Essa desordem inslita estranha psicopatologia da cultura em que
aparece de modo que o louco, neste caso, v-se obrigado a inventar seus sintomas,
improvisando-os de acordo com suas necessidades. No raro que essa
improvisao se d a partir da deformao de certos itens culturais, ou at de uma
deculturao, atravs da qual o indivduo se exclui da cadeia de significaes de sua
cultura, privatizando sua existncia a ponto de torn-la ininteligvel para si e seu
grupo. s vezes a desordem idiossincrtica pode tomar emprestados elementos do
"modelo de inconduta", ou at mesmo confundir-se com ele. (grifos do autor)101
Agora imagine elaborar uma pea de teatro baseada em um assassinato premeditado.
Pouca ateno se d aos dilogos, a pea basicamente feita a gritos histricos, vesturios
extravagantes, msica instrumental esquisita, pretensiosamente feia, atores contorcidos em
um frenesi alucinante, quase bestial. indecente, indecoroso, absurdamente insano. Mais
da metade da platia deixa o espetculo, dos poucos que permaneceram, a maioria vaia.
Alguns talvez at estivessem incertos quanto ao que acabaram de presenciar, mas na dvida,
98
COOPER, David. op. cit, p. 52. 99
PELBART, Peter Pl. op. cit, p. 181. 100
Idem, ibidem, p. 173. 101
Idem, ibidem, p. 177.
-
27
ficaram calados, quando no fizeram coro s vaias. Se ali, algum aplaudiu, suas palmas
foram abafadas pela maioria ofendida. Esta pea chamada Les Cenci foi escrita e dirigida por
Artaud e de acordo com Esslin foi um retumbante fracasso: Na verdade, era o fim da luta de
Artaud, iniciada ainda no comeo da dcada de 20, para obter uma base normal de existncia
no quadro da sociedade constituda.102
Artaud surge, na leitura que Pelbart faz de Devereux, como um louco idiossincrtico,
empurrado pela sociedade loucura das sociedades modernas, ditas de solidariedade
mecnica, que produzem a loucura de tipo esquizofrnico103. Um sujeito que valorizado
por nossa sociedade na medida em que se constitui um smbolo dos contravalores burgueses.
A arte de Artaud inglria, incompreendida, corajosa e honesta. Ela valorizada pela sua
desvalorizao. o homem moderno esquizide fora dos muros manicomiais, e
esquizofrnico no interior deles. O modelo de comportamento esquizide valorizado pelo
social, e constitui a base estrutural da atitude esquizofrnica. O esquizofrnico intensifica e
concentra traos de comportamento tpicos da civilizao que o rodeia.104
Dois anos depois do espetculo Les Cenci sair de cartaz, voltamos com Artaud para
Irlanda, em Dublin. Ele sai noite e envolve-se numa confuso at hoje mal esclarecida.
Ningum sabe ao certo o que aconteceu, s se sabe que Artaud foi deportado naquele mesmo
dia para a Frana e que l chegou em uma camisa-de-fora.
Da bengala de So Patrcio nunca mais teve noticias.
2.2 CRUELDADE PARA LIBERDADE
Em Ideologia da Sociedade Industrial, Herbert Marcuse aponta a irracionalidade da
sociedade, acusando o capitalismo de ser um sistema destruidor do livre desenvolvimento
das necessidades e faculdades humanas105, ele acredita que o irracional aumento da
produtividade e da destruio e a subservincia e/ou apatia s decises superiores provocaram
uma forma de perpetuar as relaes sociais, uma manifestao do pensamento e dos padres
de comportamento dominantes levando ao que chama de sociedade unidimensional, em
que a dinmica da vida moderna se d pela impotncia do individuo.
Na realidade, nem a utilizao dos controles polticos em vez dos controles fsicos,
nem a mudana no carter do trabalho pesado, nem a assimilao das classes
102
ESSLIN, Martin. op. cit, p. 42. 103
PELBART, Peter Pl. op.cit, p. 178. 104
Idem, ibidem, p. 179. 105
MARCUSE, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial: O Homem Unidimensional. 4. ed. Rio de
Janeiro: Zahar, 1999, p. 14.
-
28
ocupacionais, nem a igualao na esfera do consumo compensam o fato de as
decises sobre a vida e a morte, sobre a segurana pessoal e nacional, serem
tomadas em lugares sobre os quais os indivduos no tem controle algum. Os
escravos da civilizao industrial desenvolvida so escravos sublimados, mas so
escravos porquanto a escravido determinada no pela obedincia ou pela dureza
do trabalho, mas pela condio de ser um mero instrumento e pela reduo do
homem condio de coisa.106
Pelbart comenta que por isso, para Devereux, a esquizofrenia praticamente
incurvel, pois a sociedade ocidental a fonte constante de alimentao dos sintomas
esquizofrnicos, uma vez que a [...] penalizao da autonomia do homem, com o sentimento
de se estar cada vez mais possudo, manipulado, dependente de foras que escapam ao
nosso controle e legitimao exclusiva dos antconformismos estandartizados, que no
passam de um conformismo a mais.107
Se retomarmos o conceito de David Cooper sobre normalidade, quando ser normal
implica em ser uma coisa, podemos compreender o surto psictico como uma
tentativa desesperada de libertao ou ainda de descoisificao.
Importante frisar que essa ruptura no voluntria, mas forada, acontece de fora para
dentro, um universo de terror contnuo e cumulativo, tal qual um copo que se enche at a
borda e no transborda. O corpo deixa de ser copo para explodir em milhares de fragmentos
desconexos que se organizam numa violenta tentativa de interrupo, paradoxalmente, da
liberdade alheia: [...] precisamos entend-lo [o termo violncia] como a ao corrosiva da
liberdade de uma pessoa sobre a outra.108
Na pea Les Cenci, Artaud expe uma sociedade claustrofbica, palco dos mais
absurdos atos de violncia, em que seus cidados: amigos, pais, filhos e irmos, so pessoas
angustiadas e terrveis, mas normais, bizarramente normais. com essa viso da sociedade
que Artaud ir propor uma nova e subversiva forma de fazer teatro: a crueldade.
O teatro a guilhotina, a forca, as trincheiras, o forno crematrio ou o hospital
psiquitrico. A crueldade: os corpos massacrados.109
Para Artaud, havia um teatro refm da normalidade, comportando-se como uma
marionete da sociedade, onde dramas e comdias eram farsas cnicas que, por vezes,
denunciavam algum sintoma, mas nunca desciam as profundezas do homem. [...] pode-se
dizer que, neste momento, h dois tipos diferentes de teatro: um esprio, fcil e falso,
freqentado por burgueses, militares, gente de boa renda, lojistas, comerciantes de vinhos,
106
MARCUSE, Herbert. op. cit, p. 49. 107
PELBART, Peter Pl. op. cit, p. 215. 108
COOPER, David. op. cit, p. 36. 109
ARTAUD, Antonin. Escritos op. cit, p. 35.
-
29
professores de aquarela, aventureiros, prostitutas e ganhadores do Prix de Rome, que acontece
na sala de Sacha Guitry, nos boulevares e na Comdie Franaise; outro, que encontra abrigo
em qualquer lugar, mas que concebido como a realizao das mais puras aspiraes da
humanidade110. O teatro era mais que personagens ou histrias, pardias da realidade. O
teatro tinha um duplo. Era preciso desse teatro para revelar a crueldade da sociedade em seu
mago, o prprio ser humano, expor seu esprito, os corpos massacrados, e reinventar a vida.
No a mente ou aos sentidos da platia que nos dirigimos, mas a sua existncia
inteira. dele e nossa.111
Artaud acreditava que a vida crueldade112
, mas tambm, que nossa incapacidade
total de reagir e mesmo de viver como a conscincia super-aguda da crueldade da existncia
faz de ns um gado totalmente pronto para guerra e o massacre. Ou seja, Artaud acusa a
hipocrisia da sociedade burguesa113
, por isso sua proposta na forma de uma arte que, segundo
Jos Teixeira Coelho114, desperte todos os conflitos possveis dentro do homem, os conflitos
que o homem comum, normal, ignora115
Crueldade significa extirpar pelo sangue e atravs do sangue a deus, o acidente
bestial da anormalidade humana inconsciente, onde quer que se encontre116
Em seu Artaud, Coelho dedica um captulo inteiro para discutir a relao entre arte e
sociedade, onde afirma que o Teatro da Crueldade uma carnificina, uma onda destruidora
mas se nesse processo se desencadeiam foras negras, essas foras no so as do teatro, mas
as da vida, duplo do teatro. [...] um teatro perigoso, sem dvida. que o homem nessa vida
sufocada pela cultura, castrado pela cultura, perdeu o sentido do perigo da existncia, quer
dizer, passou a ter medo de correr o risco de enfrentar-se o tempo todo para descobrir-se e
afirmar-se117. Assim tambm o para David Cooper e seu conceito de encaixamento, ele diz
que vivemos trocando de caixas ao longo da vida at chegarmos ltima delas, o caixo.118
110
ARTAUD, Antonin apud ESSLIN, Martin. op. cit, p. 72. 111
ARTAUD, Antonin. Escritos... op. cit, p. 63. 112 A crueldade no acrescentada a meu pensamento. Ela sempre viveu nele, mas me faltava tomar conscincia. Eu emprego o nome de crueldade no sentido csmico de rigor, de necessidade implacvel, no
sentido gnstico de turbilho de vida que devora as trevas, no sentido dessa dor de necessidade implacvel fora
da qual a vida no saberia se exercitar. O bem desejado, ele resultado de um ato, o mal permanente. ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. So Paulo: Ed. Perspectiva, p. 103. 113 Da seu conceito de alienao autentica para designar aqueles tidos como loucos a exemplo de Van Gogh. 114
Coelho foi professor na Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo. 115
COELHO, Jos Teixeira. op. cit, p. 83. 116
ARTAUD, Antonin. Para pr fim ao julgamento de Deus In: Escritos... op. cit, p. 41. 117
COELHO, Jos Teixeira. op. cit, p 84. 118 Desde o ventre de que nascemos caixa da famlia, da qual progredimos para dentro da caixa da escola. Quando samos da caixa da escola, j nos tornamos to condicionados a viver numa caixa, que, da em diante,
erigimos nossa prpria caixa, uma priso, um receptculo em nossa volta... at que, finalmente, com alvio,
somos introduzidos no caixo ou no forno crematrio. Cf. COOPER, David. Op.cit, p. 35.
-
30
Pela crueldade, pelo sangue, era assim que Artaud planejava arrancar das suas caixas
os homens massacrados, pois a sociedade a verdadeira anomalia, o acidente bestial da
anormalidade. Crueldade para liberdade, liberdade para refazer a vida, refazer o homem: O
homem enfermo porque mal construdo. Temos que nos decidir a desnud-lo para raspar
esse animalculo que o corri mortalmente.119
E para tanto, somente mergulhando na linguagem corporal e simblica, entre signo e
significado para se chegar fonte da crueldade e reclamar os corpos massacrados pela
sociedade oca, unidimensional: Quando tiverem conseguido um corpo sem rgos, ento o
tero libertado dos seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade.120
Um corpo sem rgos. Sem grilhes. Sem texto. Do palco para a realidade, onde ator e
autor se confundem. Esse o Teatro da Crueldade, a prpria vida de Artaud: Nada jamais
conseguir igualar meus gritos de homem ocupado com refazer sua vida.121
O teatro artaudiano o lugar para soltar esse grito pela vida. Porm, as pretenses de
Artaud no se realizam da maneira esperada. Talvez o pblico no estivesse preparado para
presenciar os gritos de Artaud, ou ainda, Artaud no estivesse preparado para d-los. Seja
como for, a pea Les Cenci foi, na bilheteria, um fracasso, o que segundo Esslin, teria
prejudicado sensivelmente sua carreira de diretor. Ningum jamais estaria novamente
disposto a permitir-lhe realizar o que era tido como suas idias extravagantes e nada
prticas.122
Da em diante, Artaud ser arremessado em uma espiral de depresso123
, drogas124
e
falta de dinheiro125
. Solitrio e desiludido consumia mais drogas, e sem dinheiro para as
drogas, afundava-se mais e mais na solido. Na verdade, era o fim da luta de Artaud, iniciada
ainda no comeo da dcada de 20, para obter uma base normal de existncia no quadro da
sociedade constituda126. nesse momento que Artaud escreve a Jean-Louis Barrault e diz:
A tragdia do palco no me basta mais, vou transport-la para minha vida.127
119
ARTAUD, Antonin. Para pr fim ao julgamento de Deus In: Escritos... op. cit, p. 42. 120
Idem, ibidem. 121
Idem, ibidem. 122
ESSLIN, Martin. op. cit, p. 42. 123 Depresso no como patologia, mas como um sentimento de solido profunda. 124 Artaud foi aconselhado a usar algumas drogas para aliviar as freqentes dores de cabea que sentia. Cocana e pio, majoritariamente. 125 importante ressaltar suas dificuldades financeiras. Em uma sociedade movida pela troca do dinheiro, no possu-lo, , por exemplo, ser privado de freqentar a Champs-Elyssez. 126
ESSLIN, Martin. op. cit, p. 42. 127
Idem, ibidem, p. 42.
-
31
Coelho escreve que Artaud conseguiu seu intento [fez] a vida ser penetrada pela arte,
soldar a arte to fisiologicamente vida, de modo a ser quimrico pretender isolar uma da
outra.128 Artaud ento decide encarnar o seu teatro, teatro como duplo da prpria vida, viver
a crueldade para alcanar a liberdade. Mas que liberdade essa? Quando Marcuse fala em
sociedade unidimensional, ele critica o discurso de liberdade do capitalismo.
[...] temos que liberdade econmica passou a ser liberdade de economia de ser controlado pelas foras e relaes econmicas; liberdade de luta cotidiana pela
existncia, de ganhar a vida. Liberdade poltica significaria libertao do individuo
da poltica sobre a qual ele no tem controle eficaz algum.129
Nunca se discute liberdade de ser, entende-se a vida como a existncia unidimensional
e no como escolha de existncia. em protesto a essa sociedade homogeneizante da
experincia humana, asfixiante da singularidade, escravocrata do pensar e do agir, normal,
que Artaud, aps o infeliz tropeo de Les Cenci, decide cruzar o Atlntico: Eu vim para o
Mxico fugido da civilizao europia, produto de sete ou oito sculos de cultura burguesa.
Movido pelo dio contra essa civilizao e essa cultura.130
Por fim, retomamos a pergunta feita l no incio desse item: Ser a loucura de Artaud
sintoma de algo mais profundo, inerente a sua pessoa, ou reflexo de um posicionamento
poltico diante da normalidade?
Pense na bengala que se perdeu.131
Essa bengala era mais que um pedao de madeira
bem trabalhado, sua funcionalidade ambivalente e simblica. Tal qual a hstia simboliza o
corpo de Cristo e permitido, necessrio, com-lo, assim tambm podemos ver na bengala o
corpo de So Patrcio, uma perna; ao mesmo tempo, que uma extenso de Artaud como um
brao; e um Artaud inteiramente diferente; simboliza a luta contra o Mal quando sua
existncia evoca as serpentes, serpentes corruptoras do homem, do homem-serpente;
simboliza a paixo de Artaud quanto ao seu destino trgico e sagrado132
; naturaliza o mito ao
passo que mistifica o real. Talvez tenham visto um louco e na bengala uma arma nas mos de
um louco, e no posso dizer que estivessem errados, mas da teramos que destruir todas as
bengalas desse mundo.
Muito provavelmente, a bengala no pertenceu a So Patrcio, embora, Artaud
acreditasse que sim, para alm do sentido de propriedade. Acreditasse que com ela espantaria
128
COELHO, Jos Teixeira. op. cit, p. 83. 129
MARCUSE, Herbert. op. cit, p. 26. 130
ARTAUD, Antonin. Escritos... op. cit, p. 71. 131
Perdida, suicidada. 132
Como Antonin Nalpas (sobrenome da me) apontou mais tarde, esse Artaud Cristo.
-
32
as serpentes mais uma vez. Mas se houve uma poca em que homens como Artaud tinham o
privilgio da dvida, na sociedade que emerge do sculo XIX s se pode, quando muito,
duvidar. Jamais ser a dvida: O Poeta admissvel desde que no acredite no que faz,
desde que seja diferente do que diz ser. (grifo do autor)133
Revisitemos a pea Les Cencis. A encenao de uma vendetta134
entre pai e filho.
Quem poder julgar o parricdio?135
Quem pode entender a dor de uma infncia rompida?
Quem pode condenar um assassino que cresceu alimentado pelo dio de uma violncia sem
fim? Artaud deixa a pergunta pairando sobre a platia: Como podemos julgar quando somos
ns que condenamos?
Tragdias como a dos Cencis acontecem a todo instante. Est nas esquinas, nos becos
escuros, nos copos quase vazios, nas pginas dos jornais, na lngua musculosa das beatas, nos
olhos curiosos de uma criana, na mo que afaga manchada de sangue. Artaud exaspera-se
com o comodismo burgus, hipcrita e complacente. Seu teatro luta contra essa conformidade
que recai confortavelmente sobre os ombros de todos os homens. Ora, quem mais poderia
representar esse teatro se no o prprio Artaud? A loucura seu ensaio da crueldade:
Abandonai as cavernas do ser. Vinde o esprito se revigora fora do esprito.136 Quando
Artaud suprime as barreiras entre o palco e a vida, ele est propondo uma nova forma
sociedade, uma sociedade sem mentiras.
Basta de jogos de palavras, de artifcios da sintaxe, de malabarismos formais;
precisamos encontrar - agora - a grande Lei do corao, a Lei que no seja uma lei,
uma priso, seno um guia para o esprito perdido em seu prprio labirinto.137
A normalidade, essa priso, cruel por encaixar o homem, ceifar inconscientemente
parte dessa condio trgica que viver.138
Artaud ento grita, no por socorro, mas por
liberdade, liberdade para mostrar a crueldade daquele homem que ousa olhar para dentro de si
e espiar sua existncia de um plano vertical. Se acusam esse pensamento de doena, ento,
doente sim, um doente inveterado. Pena que Desgraadamente para a doena, a medicina
existe.139
133
COELHO, Jos Teixeira. op. cit, p. 30. 134 Valho-me da palavra italiana por sua complexidade. Grosseiramente falando, vingar-se um estado de viglia eterna. 135
Que est alm da tipificao penal. 136
ARTAUD, Antonin. Carta aos poderes. Porto Alegre: Editorial Villa Martha, p. 9. 137
Idem, ibidem, p. 21. 138 Artaud acusa o homem normal de fundamentalismo. Esse homem no aceita ter sua condio desafiada. Foi assim com Scrates, depois Jesus, So Francisco, Coprnico, Galileu, Hordelin, Baudelaire, Edgar Poe, Grard
de Nerval, Van Gogh, Artaud, entre outros. 139
ARTAUD, Antonin. Segurana Pblica In: Escritos... op. cit, p. 48.
-
33
4 A SUICIDADE DA SOCIEDADE
Depois de ler um artigo em que um psiquiatra afirmava ser Van Gogh um
esquizofrnico do tipo degenerado, Artaud visitou a mostra de Van Gogh no museu de
lOrangerie e de l voltou para escrever esse Van Gogh.140 E antes de mais nada: No, Van
Gogh no era louco.141
Para Artaud, loucura a sociedade encarar Van Gogh assim.
num mundo onde se come todos os dias vagina cozida la sauce vert ou sexo de
recm-nascido espancado e colrico, / tal como colhido do sexo materno. / E isto
no uma imagem, mas um fato abundante e cotidianamente repetido e observado
em toda a terra.142
Quem pode julgar Van Gogh quando s no delrio consegue encontrar uma sada para
as coeres que a vida lhe preparou?143 A tragdia que acomete o louco seu gnio
incompreendido, esse interdito anti-social, que lhe proporciona um lugar desprivilegiado no
mundo e que, paradoxalmente, tambm sua afirmao existencial.
porque Van Gogh era uma dessas naturezas dotadas de lucidez superior, que lhes
permite, em todas as circunstncia, enxergar mais longe infinita e perigosamente
mais longe que o real imediato e aparente dos fatos.144
Em verdade, um autntico alienado.
E o que um autntico alienado? / um homem que preferiu tornar-se louco, no
sentido em que isso socialmente entendido, a compuscar uma certa idia superior
da honra humana.145
A defesa dessa ideia superior mencionada por Artaud surge da reivindicao de uma
condio singular. O que a histria da loucura nos revela, pondo em questo toda a cultura
ocidental moderna, que o louco excludo porque insiste no direito singularidade e.
portanto, interioridade.146 Quando reivindicada, essa condio pode romper com os padres
lgicos da linguagem, no limitar-se ao circunstante, no aceitar a realidade dada.
Mas a psiquiatria nasceu da turba plebia de seres que quiseram conservar o mal
na fonte da doena e que, assim, extirparam de seu prprio nada uma espcie de
guarda sua para deter em seu nascedouro o impulso de rebelio reivindicador que
est na origem de todo gnio.147
140
Publicado em setembro de 1947, Van Gogh, le suicit de la societ recebeu o um importante prmio literrio
francs apenas alguns meses antes de Artaud ser encontrado morto em seu quarto agarrado a um sapato. 141
ARTAUD, Antonin. Van Gogh... op. cit, p. 29. 142
Idem, ibidem, p. 27. 143
Idem, ibidem, p. 53. 144
Idem, ibidem, p. 55. 145
Idem, ibidem, p. 32. 146
PEREIRA, Joo Augusto Freyze. op. cit, p. 102. 147
ARTAUD, Antonin. Van Gogh op. cit. p. 53.
-
34
At que ponto a normalizao das sociedades capaz de cercear o pensar? Ser que a
similaridade dos comportamentos, das rotinas humanas, dos conhecimentos partilhados, pode
banalizar a realidade a ponto de engessar o pensamento, de desqualificar o eu humano?
Van Gogh no morreu de um estado de delrio prprio, / e sim por ter servido
corporalmente de campo a um problema em torno do qual, desde suas origens, se
debate o esprito inquo desta humanidade, / que o da predominncia da carne
sobre o esprito, ou do corpo sobre a carne, ou do esprito sobre um e outro. / E
onde fica nesse delrio o lugar do eu humano?148
Quando acusa-se de loucura Van Gogh ou Artaud ou Grard de Nerval, a coletividade
taxa pejorativamente, ridiculariza, deslegitima-se um discurso, silencia-o. A imposio do
rtulo loucura escarnece a voz do outro de sentido, isolando-o, negando sua humanidade.
No foi para este mundo, / no foi nunca para esta terra que ns todos sempre
trabalhamos, / lutamos, / gritamos de horror, de fome, de misria, de dio,
de escndalo e de nojo, / que fomos todos envenenados, / ainda que tenhamos sido
todos por ela enfeitiados, / e que nos tenhamos enfim suicidado, / uma vez que no
somos todos, como o pobre Van Gogh, suicidas da sociedade!149
4.1 PERICULOSIDADE E INSANIDADE: PARA PR FIM AO JULGAMENTO DE
DEUS
S h uma razo para atacar o pio. Aquela do perigo que seu uso acarreta ao
conjunto da sociedade. / Acontece que este perigo falso.150
Artaud critica a poltica das drogas, mas podemos nos apropriar dessas palavras para
problematizar tambm a questo do perigo que se imputa ao sujeito insano.
Em Leviat, Thomas Hobbes, na procura de um significado para a existncia das
sociedades, elaborou o conceito de 'contrato social'. Nesse contrato, o cidado aceita obedecer
s regras da sociedade e, em contrapartida, o Estado se compromete a zelar pela ordem. Uma
vez que a relao baseia-se no cumprimento das normas sociais, a normalidade como forma
de interao social passa a ser garantia da manuteno da ordem. Assim, se inserirmos um
sujeito que no compartilha dessas prerrogativas naturalizadas, ento a, teremos um perigo
para a sociedade.
Em suma, numa sociedade que tem horror ao diferente, que reprime a diversidade do
real uniformidade da ordem racional-cientfica, que funciona pelo princpio da
equivalncia abstrata entre seres que no tm denominador comum, a loucura um
ameaa sempre presente151
Enquanto um crime a infrao direta da ordem (em sua esfera institucional), a
loucura, por seu potencial subversivo da normalidade, corrompe o princpio de ordem.
148
ARTAUD, Antonin. Van Gogh... op. cit, p. 39. 149
Idem, ibidem, p. 74-75. 150
ARTAUD, Antonin. Segurana Pblica In: Escritos... op. cit, p. 47. 151
PEREIRA, Joo Augusto Freyze. op. cit, p. 102.
-
35
Heliogbalo um anarquista nato, carregando com dificuldade sua coroa; os atos
reais so atos de um anarquista nato, inimigo pblico da ordem, inimigo da ordem
pblica.152
Este Heliogbalo, o anarquista coroado, que no era romano, mas srio153
e que
tentou derrubar os deuses, a religio e a ideologia da metrpole, implantando as crenas e
signos da sua terra natal. Heliogbalo que tornou homem e mulher um. Um corpo sem rgos,
gritou Artaud.
luz de sua ingenuidade, a psicanlise viu acertadamente que toda loucura se
enraza em alguma sexualidade perturbada; mas isto s tem sentido na medida em
que nossa cultura, por uma escolha que caracteriza seu Classicismo, colocou a
sexualidade na linha divisria do desatino. Em todos os tempos, e provavelmente em
todas as culturas, a sexualidade foi integrada num sistema de coaes; mas apenas
no nosso, e em data relativamente recente, que ela foi dividida de um modo to
rigoroso entre a Razo e o Desatino, e logo, por via de conseqncia e degradao,
entre a sade e a doena, o normal e o anormal.154
E esse tipo de perigo que a loucura representa. Leia bem. Pois a literatura histrica
tem se furtado a explorar a questo.
ANARQUIA.
Numa vida cuja cronologia impossvel, mas na qual os historiadores que narram
detalhadamente suas crueldades, que no tm data, vem um monstro, vejo uma
natureza de uma plasticidade prodigiosa, que sente a anarquia dos fatos e se
insurge contra os fatos.155
Imagine Heliogbalo renascido em Marselha no ano de 1896 da Era Crist. Imagine
sua reencarnao, um anarquista sem coroa. Este Heliogbalo na tentativa de entender o
mundo, admira-se com a enorme distncia entre ele e a lngua, invariavelmente, via-se como
um bobo ao tentar articular essa distnci