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  13 A CIÊNCIA DA RELIGIÃO NO BRASIL: TESES SOBRE SUA CONSTITUIÇÃO E SEUS DESAFIOS Eduardo Gross Doutor, professor, Universidade Federal de Juiz de Fora E-mail: [email protected] 1. Surgimento da ciência da religião no Brasil se deu a partir da teologia A ciência da religião, enquanto área de pesquisa que desenvolve centros de estudo e formação, é uma realidade recente no Brasil. Seus primórdios remontam aos anos de 1970. Antes disso, a cultura positivista, dominante na universidade brasileira, não deu ensejo a que o tema da religião fosse assunto de preocupação acadêmica. Religião até então era tema apenas para a formação clerical, que constituía uma área de estudos acadêmicos própria, com alguns exemplos de alto gabarito, mas sem uma relação orgânica com a intelectualidade universitária. Diferentemente da situação europeia, portanto, o espaço do estudo acadêmico da religião no Brasil não se deu a partir de uma inserção da teologia enquanto disciplina fundadora da universidade, e em que, na modernidade, eventualmente a ciência da religião atua de forma cooperativa, concorrente ou conflitante com a teologia. O estudo da religião, no Brasil, se desenvolveu no contexto de uma visão prévia disseminada na academia de que este estudo não é um saber qualificado. A questão fundamental, então, era como abrir espaço para este pretenso não saber no âmbito da academia. 1.1. Teologia da libertação foi fortemente influente neste  processo A abertura deste espaço se deu principalmente no contexto do surgimento da teologia da libertação. Esta teologia na verdade representa um movimento bastante multifacetado, que tem entre seus méritos o de recolocar a teologia, na América Latina em geral e no Brasil em particular, em discussão no âmbito público. Enquanto dominara uma visão que relegava o tema da religião ao âmbito eclesiástico e ao dos cultos populares, podia manter-se com naturalidade a perspectiva de que teologia era sinônimo de dogmatismo. A ênfase prática da teologia da libertação questionou  A CIÊNCIA DA RELIGI ÃO NO BRASIL: TESES SOBRE SUA CONSTITUIÇÃO E SEUS DESAFIOS Resumo: O início dos estudos acadêmicos da religião sob as denominações de ciência da religião ou ciências da religião, no Brasil, se deu numa relação simultaneamente próxima e ambígua com os estudos organizados na academia sob a denominação de teologia. Particularmente influente, neste sentido, foi o ambiente teológico marcado pela  presença da teologia d a libertação. O modelo dominante assumido por esta teologia pressupunha um tipo de readequação do tomismo, no qual as ciências sociais tomavam o lugar da filosofia enquanto forma racional de conhecimento no âmbito da religião. A influência deste modelo teológico na formação da ciência da religião brasileira, à parte de seus méritos, representa hoje um desafio. Há um esgotamento deste modelo em função de questões que ele deixou de contemplar. Destacam-se a desvalorização de temas teológicos tradicionais, o esvaziamento de seu sentido a  partir de uma pe rspectiva explicativa extrínseca à religião e a falta de aprofundamento na pesquisa dos elementos constitutivos das crenças, doutrinas e sistemas de pensamento religiosos.

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Ciência da Religião

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    A CINCIA DA RELIGIO NO BRASIL: TESES SOBRE SUA CONSTITUIO E SEUS DESAFIOS

    Eduardo Gross Doutor, professor, Universidade Federal de Juiz de Fora

    E-mail: [email protected]

    1. Surgimento da cincia da religio no Brasil se deu a partir da teologia

    A cincia da religio, enquanto rea de pesquisa que

    desenvolve centros de estudo e formao, uma realidade recente

    no Brasil. Seus primrdios remontam aos anos de 1970. Antes disso,

    a cultura positivista, dominante na universidade brasileira, no deu

    ensejo a que o tema da religio fosse assunto de preocupao

    acadmica. Religio at ento era tema apenas para a formao

    clerical, que constitua uma rea de estudos acadmicos prpria,

    com alguns exemplos de alto gabarito, mas sem uma relao

    orgnica com a intelectualidade universitria. Diferentemente da

    situao europeia, portanto, o espao do estudo acadmico da

    religio no Brasil no se deu a partir de uma insero da teologia

    enquanto disciplina fundadora da universidade, e em que, na

    modernidade, eventualmente a cincia da religio atua de forma

    cooperativa, concorrente ou conflitante com a teologia. O estudo da

    religio, no Brasil, se desenvolveu no contexto de uma viso prvia

    disseminada na academia de que este estudo no um saber

    qualificado. A questo fundamental, ento, era como abrir espao

    para este pretenso no saber no mbito da academia.

    1.1. Teologia da libertao foi fortemente influente neste

    processo

    A abertura deste espao se deu principalmente no contexto

    do surgimento da teologia da libertao. Esta teologia na verdade

    representa um movimento bastante multifacetado, que tem entre

    seus mritos o de recolocar a teologia, na Amrica Latina em geral e

    no Brasil em particular, em discusso no mbito pblico. Enquanto

    dominara uma viso que relegava o tema da religio ao mbito

    eclesistico e ao dos cultos populares, podia manter-se com

    naturalidade a perspectiva de que teologia era sinnimo de

    dogmatismo. A nfase prtica da teologia da libertao questionou

    A CINCIA DA RELIGIO NO BRASIL: TESES SOBRE SUA CONSTITUIO E SEUS DESAFIOS

    Resumo: O incio dos estudos acadmicos da religio sob as

    denominaes de cincia da

    religio ou cincias da religio,

    no Brasil, se deu numa relao

    simultaneamente prxima e

    ambgua com os estudos

    organizados na academia sob a

    denominao de teologia.

    Particularmente influente,

    neste sentido, foi o ambiente

    teolgico marcado pela

    presena da teologia da

    libertao. O modelo

    dominante assumido por esta

    teologia pressupunha um tipo

    de readequao do tomismo,

    no qual as cincias sociais

    tomavam o lugar da filosofia

    enquanto forma racional de

    conhecimento no mbito da

    religio. A influncia deste

    modelo teolgico na formao

    da cincia da religio

    brasileira, parte de seus

    mritos, representa hoje um

    desafio. H um esgotamento

    deste modelo em funo de

    questes que ele deixou de

    contemplar. Destacam-se a

    desvalorizao de temas

    teolgicos tradicionais, o

    esvaziamento de seu sentido a

    partir de uma perspectiva

    explicativa extrnseca

    religio e a falta de

    aprofundamento na pesquisa

    dos elementos constitutivos das

    crenas, doutrinas e sistemas

    de pensamento religiosos.

  • In: OLIVEIRA, Kathlen Luana de et al. (Orgs.). Religio, Poltica, Poder e Cultura na Amrica Latina

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    esta perspectiva, medida que conjugou interesses militantes com elaboraes teolgicas que

    transcendiam o que a intelectualidade mdia entendia por dogmatismo. Nesse sentido, ela conseguiu

    despertar interesse num segmento da academia que a percebeu seja como uma novidade no mundo

    religioso brasileiro, seja como aliada num projeto social emancipatrio, seja como uma renovao na

    atitude da religio em relao academia.

    1.1.1. Vinculao de temtica religiosa com defesa de emancipao ensejou aproximao da

    teologia com cincias sociais

    Uma das caractersticas marcantes da teologia da libertao foi o uso do que se chamou de

    mediao analtica. Na verdade herana do mtodo ver-julgar-agir que era empregado em pastorais

    populares da Igreja Catlica Apostlica Romana, na literatura corrente que difundia a teologia da

    libertao se mostravam dados, descries e representaes que apresentavam a situao social,

    poltica e econmica com o intuito de demonstrar sua injustia e de estabelecer o juzo moral diante

    desta a partir dos valores humanitrios do cristianismo. O prximo passo era a conclamao luta

    poltica com vistas superao concreta desta situao de injustia. Apesar da evidente simplificao

    feita aqui, especialmente a produo teolgica popular seguia este paradigma.

    A consequncia natural deste modelo foi uma aproximao entre a teologia e as cincias

    sociais, particularmente nos ambientes onde havia intelectuais de esquerda. Uma vez que a teologia

    da libertao partia de um ideal revolucionrio, a sua possibilidade de interao com a academia se

    restringia aos espaos afins a este ideal. Nesse sentido, inicialmente a simpatia principal ocorreu em

    relao s anlises sociolgicas marxistas. Naturalmente havia aqui grande variedade de

    interlocutores, desde acadmicos oriundos de comunidades religiosas at militantes partidrios cujo

    interesse era meramente a cooptao das massas presentes nas instituies religiosas. Muitas vezes,

    telogos se utilizaram de descries sociais ou econmicas emprestadas com a finalidade de

    demonstrar o seu conhecimento de uma realidade objetiva, visando elaborar uma teologia que

    respondesse a esta realidade concreta em lugar de especular sobre o sentido do religioso de modo

    abstrato.

    1.1.2. A preocupao libertria abriu espaos no mundo acadmico, frente anterior desconfiana

    em relao ao dogmatismo teolgico

    Mesmo que este modelo apresentasse desde sempre um certo grau de simplificao, este

    tipo de abordagem teolgica conquistou um interesse tambm no mbito acadmico, ao menos entre

    simpatizantes da perspectiva emancipatria que a movia. Especialmente diante do tradicional

    alinhamento da religio com a estrutura social e econmica dominante, o discurso da teologia da

    libertao representava uma brisa nova. Com isso no se desconhece que anteriormente tambm j

    ocorria, de forma espordica, o reconhecimento pela intelectualidade de figuras proeminentes do

    cenrio teolgico, mas isso se reduzia a casos particulares, no chegando a colocar a teologia

    enquanto tal como disciplina digna de interesse e capaz de aportar uma contribuio prpria para

    discusses acadmicas.

  • In: OLIVEIRA, Kathlen Luana de et al. (Orgs.). Religio, Poltica, Poder e Cultura na Amrica Latina

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    De fato, esta situao anterior espelhava os domnios de fato. A teologia catlica dominava a

    representao simblica do religioso na cultura brasileira. Grupos religiosos minoritrios desenvolviam

    suas prprias representaes alternativas, mas restritas a pequenos feudos denominacionais. O saber

    acadmico, por sua vez, dominava o ambiente universitrio. Neste quadro de diviso de tarefas e de

    saberes, no parecia haver razo para o imiscuir-se do teolgico na academia laica, nem se mostrava

    prudente que acadmicos gastassem energias no estudo de um ambiente religioso que poderia

    acarretar conflitos.

    Apesar de esse quadro representar a situao tpica do momento anterior constituio da

    cincia da religio no Brasil, ele no deixa de continuar sendo influente. Isso porque essa compreenso

    continua sendo a fonte para uma representao da teologia enquanto uma forma de saber que se

    reduziria auto-justificao de instituies religiosas, nas quais o dogmatismo acrtico se manteria

    como norma. Nesse sentido, necessrio reconhecer a possibilidade de inovao que foi aberta pelo

    surgimento da teologia da libertao. medida que se tratava de uma abordagem teolgica que fugia

    claramente dos padres dogmticos tradicionais, e que inclusive apontava publicamente para a

    necessidade de auto-crtica da tradio crist, ela despertou a possibilidade de se perceber a teologia

    como um campo de reflexo que transcendia a pura apologtica.

    1.1.3. Telogos desencantados com a justificao religiosa tradicional do status quo buscaram no

    desenvolvimento da cincia da religio um espao alternativo para o desenvolvimento de sua

    competncia intelectual

    No se pode deixar de considerar a importncia da motivao subjetiva que levou telogos

    de formao a se empenharem na constituio da cincia da religio como um espao de reflexo

    acadmica no Brasil. O estudo da teologia necessariamente fonte de conflitos interiores para quem o

    empreende. A vivncia religiosa imediata muitas vezes permite que se passe por alto tenses ou

    contradies internas a uma tradio religiosa. Quem se dedica com alguma profundidade ao estudo

    da teologia no pode se permitir tal superficialidade. O conhecimento da forma como se constituram

    as noes tomadas como expresso atual da f em certa tradio religiosa, o estudo dos conflitos

    ocorridos no decorrer da histria desta tradio, o desafio re-interpretativo que o contexto atual

    necessariamente coloca para a vivncia da f, a destruio da ingenuidade com que autoridades,

    instituies e smbolos religiosos so percebidos na vivncia popular da religio fazem com que

    telogos sejam, ao menos em certa medida, necessariamente crticos prpria religio sobre a qual

    refletem.

    Isto se torna ainda mais agudo no momento em que uma abordagem teolgica como a da

    teologia da libertao se prope a aceitar como verdadeiras, por princpio, abordagens tomadas das

    cincias - no caso em questo, das anlises da sociedade. Nesse ambiente, se desenvolve um tipo de

    desencantamento com o espao possvel para o prprio exerccio da reflexo teolgica, que na

    situao dada o mbito eclesistico. Esse desconforto subjetivo ainda no chegou a ser discutido

    com profundidade em relao aos efeitos da teologia da libertao. A abordagem mais comum a da

    crtica ortodoxia das instituies, apresentada como causa do afastamento do espao institucional.

  • In: OLIVEIRA, Kathlen Luana de et al. (Orgs.). Religio, Poltica, Poder e Cultura na Amrica Latina

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    Evidentemente que esta uma crtica legtima e necessria. Entretanto, a abordagem da situao

    simplesmente por este vis impede que se perceba que o desconforto subjetivo uma causa

    importante da auto-excluso de telogos do ambiente eclesistico, simplesmente porque este no

    parece mais como um lugar em que o sujeito se sinta em casa. A resposta pessoal a este desconforto

    pode variar muito, desde uma resignao at um conflito aberto com a instituio, passando pelo

    abandono annimo e despercebido. Para a presente reflexo, no entanto, importante notar que

    uma das alternativas encontradas no Brasil foi a constituio de espaos de pesquisa da religio que

    pudessem abrigar pessoas com formao teolgica que buscavam uma alternativa ao ambiente

    eclesistico das instituies teolgicas.

    Estas consideraes so importantes porque elas ajudam a compreender certas atitudes de

    negao da teologia que se encontram em alguns ambientes de pesquisa da religio. O desconforto

    subjetivo do passado continua em ao, apesar da desvinculao institucional. Tal situao tem um

    contorno lamentvel, medida que, por outras vias, reproduz a situao anterior de excluso mtua

    entre uma reflexo acadmica eclesistica pretensamente dogmatizante e uma reflexo acadmica

    pretensamente cientfica. E como se trata de uma motivao subjetiva, ela se apresenta disfarada de

    argumentos objetivos que mascaram a real origem da contraposio.

    1.2. O modelo dominante de teologia da libertao no Brasil foi acrtico em relao aos

    pressupostos das cincias sociais

    No af de fugir de uma perspectiva teolgica baseada no dogmatismo, o recurso s cincias

    sociais se fundamentou na perspectiva de uma abordagem que desse conta do que de fato real. Esta

    realidade foi identificada com a forma expressa pelas cincias sociais, particularmente pelas anlises

    da sociedade influenciadas pelo vis marxista. Embora houvesse nuances diversas na apropriao

    destas anlises, perceptvel que um olhar crtico em relao a esta identificao imediata da

    realidade concreta com as anlises das cincias sociais foi raro. Ao operar desta forma, telogos

    assumiram uma concepo positiva das cincias sociais que reproduziu o velho paradigma de diviso

    de trabalho entre a academia cientfica e reflexo teolgica emotiva. O antigo esquema de

    complementao entre natureza e graa, tomado de um tomismo simplificado, foi aplicado a uma

    nova complementao entre cincia social e teologia. Pressups-se que as cincias sociais eram

    objetivamente verdadeiras, imunes a valores prvios.

    1.2.1. As cincias no so instrumentos neutros, mas assumem valores em sua prpria estruturao

    O curioso que esta apropriao de anlises cientficas s vezes nem se preocupou em

    fundamentar a escolha da abordagem em funo de uma convergncia dos valores intrnsecos a ela.

    No caso da sociologia marxista, por exemplo, se poderia argumentar a respeito de tal convergncia em

    funo do ideal emancipatrio que estaria na raiz desta perspectiva, e que este ideal era

    compartilhado pela teologia da libertao. Por mais evidente que isto fosse, o vis da argumentao

    tendia a ser mais na direo de que as anlises sociais eram um mero instrumento, uma apropriao

    puramente cientfica. Isso visava contornar problemas epistemolgicos que demandariam uma

  • In: OLIVEIRA, Kathlen Luana de et al. (Orgs.). Religio, Poltica, Poder e Cultura na Amrica Latina

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    reflexo detida sobre o conhecimento da realidade e, em ltima instncia, a tematizao explcita do

    que a realidade. Ou seja, a teologia da libertao no podia perder tempo com metafsica. Seria uma

    volta atrs do avano que representava o preocupar-se com a realidade concreta.

    Entretanto, como na tarefa da reflexo impossvel saltar etapas, a falta da tematizao

    explcita da ontologia cobra seu preo com o tempo. A nfase na concreticidade histrica implica que

    uma leve mudana nessa situao histrica tambm exija uma mudana completa da reflexo toda,

    medida que a realidade a cada momento outra. Os limites que o instrumental analtico adotado foi

    mostrando so o primeiro indcio de que j a reflexo epistemolgica carecia de aprofundamento.

    Mas, de fato, o simples acrscimo de outros instrumentais, ou mesmo sua substituio radical, no

    solucionava os problemas, porque na raiz estava o pressuposto de que o instrumental cientfico das

    cincias sociais era suficiente para se conhecer a realidade verdadeira.

    1.2.2. Aps o privilgio inicial, na Teologia da Libertao, para a anlise sociolgica e econmica

    marxista, num segundo momento, foi privilegiada a anlise antropolgica relativista.

    Na busca por superar um modelo inicial que pretendia dar conta da realidade concreta a

    partir de um paradigma que privilegiava a anlise sociolgica marxista como instrumento, o crescente

    reconhecimento de que a realidade inclua inmeros aspectos de que esta anlise no podia dar conta

    levou adoo crescente da antropologia cultural como perspectiva. Isto foi possvel porque a

    hipostasiao das cincias sociais enquanto forma de acesso privilegiada realidade j estava feita. A

    partir da, era possvel uma passagem menos traumtica para a redescoberta de elementos simblicos

    que tinham sido desconsiderados anteriormente. Ao mesmo tempo, com esse acrscimo instrumental

    era possvel dar espao para o reconhecimento da diversidade que constitui a realidade social. O ideal

    emancipatrio precisava, afinal, incluir uma srie de demandas que no se reduziam situao poltica

    ou econmica. Nesse sentido, se abria ento espao para o reconhecimento de que uma srie de

    opresses concretas ocorrem nas relaes vividas no cotidiano em diversas esferas, como entre sub-

    grupos populacionais constitudos por origem tnica ou na convivncia em funo de gnero, por

    exemplo. Tal movimento possibilitou uma enormidade de abordagens muito interessantes, que

    tendem ao infinito. Por outro lado, ele tambm acarretou necessariamente a fragmentao da prpria

    teologia da libertao. Cada vez mais, ela se transformava em teologias da libertao de algum grupo

    especfico. Quase paradoxalmente, essa nova perspectiva tambm permitiu que a teologia da

    libertao se desse conta da importncia da religio como uma esfera constitutiva da prpria

    realidade. Afinal, a antropologia cultural tem uma tradio de estudo das peculiaridades de ritos e

    mitos. Entretanto, cabe observar que, nesse processo, a abordagem teolgica inicialmente abriu mo

    do seu aporte prprio para o estudo da religio, vindo a assumir um aporte alheio. Por mais que este

    processo representasse ganhos, no eram ganhos sem perdas, ao menos quando tais apropriaes se

    deram de forma pouco crtica.

  • In: OLIVEIRA, Kathlen Luana de et al. (Orgs.). Religio, Poltica, Poder e Cultura na Amrica Latina

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    1.2.3. A psicologia no recebeu relevo enquanto cincia auxiliar teologia da libertao

    Dentre as cincias sociais que foram empregadas como auxiliares no processo de construo

    da teologia da libertao, a psicologia no mereceu destaque. A nfase na busca pela compreenso da

    realidade objetiva possivelmente tornava a psicologia uma cincia menos interessante para os

    propsitos emancipatrios que ela visava. Afinal de contas, a histria da teologia, ao menos na

    modernidade, j tinha estado por demais centrada no carter subjetivo da religio. A abordagem a

    partir das estruturas sociais e dos grupos constitudos representava uma possibilidade de

    compreenso que recolocava a teologia no debate pblico e possibilitava a influncia poltica da

    religio. Importava ir alm da vivncia pessoal, que tinha sido o nico espao em que a religio tinha

    mantido um refgio na poca moderna.

    O contraponto disto que a teologia da libertao perdeu algo da sua possibilidade de

    compreenso da relao entre a dinmica emocional e as experincias sociais. nesse contexto que o

    surgimento de expresses massivas de formas marcadamente emocionais da religio, justamente

    durante o perodo de maturao da teologia da libertao, comeam a revelar dificuldades para a

    interpretao diante do privilgio dado s cincias sociais enquanto instrumental analtico. Ao invs de

    instrumento para a compreenso desses fenmenos, a teologia se torna ento novamente um espao

    de denncia da alienao social promovida por movimentos religiosos intimistas, tpicos da classe

    mdia urbana, como os grupos esotricos, por exemplo. Ou ento se torna um espao de denncia da

    dominao paternalista exercida por lideranas religiosas interesseiras, como no caso de certos lderes

    carismticos de origem popular. Na defensiva por no ter previsto, com seus instrumentais de anlise,

    a necessidade da expresso emocional da religio, a teologia se volta imprecao proftica e

    defesa de valores.

    O simples acrscimo de abordagens psicolgicas no teria sido suficiente, entretanto, para

    fazer frente ao enorme desafio de compreender a complexa situao religiosa que surgiu no Brasil da

    virada do sculo. Ela seria apenas uma cincia a mais, um complemento para uma compreenso um

    pouco mais rica da assim chamada realidade concreta. Afinal, mesmo tratando da subjetividade,

    a psicologia tambm uma cincia social. Entretanto, a meno ao fato se coloca aqui em funo de

    que ele exemplifica bem como uma certa inocncia a respeito do que se considera como realidade

    tem consequncias. Alm disso, particularmente se acentua aqui o fato de que a dimenso da

    subjetividade no pode ser desconsiderada para uma compreenso profunda da religio.

    1.2.4. A filosofia, tradicional auxiliar da teologia, tendeu a ser descartada dessa funo em

    detrimento das cincias sociais.

    Todo o desenvolvimento aqui apresentado mostrou um processo de substituio ocorrido na

    Teologia da Libertao. Em lugar da filosofia, tradicional auxiliar da teologia, surgiram as cincias

    enquanto auxiliares privilegiadas, particularmente as cincias sociais. Tal processo teve mritos e

    possibilitou novas abordagens, mas tambm teve seu preo. O preo mais elevado foi uma absoro

    acrtica de pressupostos intrnsecos s cincias positivas. A filosofia, apesar de seu carter abstrato e

    pretensamente distante da realidade concreta, se caracteriza por ser uma reflexo aberta

  • In: OLIVEIRA, Kathlen Luana de et al. (Orgs.). Religio, Poltica, Poder e Cultura na Amrica Latina

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    necessidade infinita de crtica de seus prprios pressupostos. A variedade de perspectivas filosficas

    sintoma desta necessidade constante de justificao. As cincias positivas tm uma finalidade concreta

    em vista. Sua capacidade de auto-crtica necessariamente limitada, medida que precisam assumir

    determinados pressupostos para que possam realizar sua tarefa especfica. Mas ao assumir como

    ferramentas estas cincias, sem recurso meta-reflexo possibilitada pela filosofia, a teologia assume

    como verdade no s os resultados das anlises que estas cincias possibilitam, mas tambm os

    pressupostos que lhes so intrnsecos.

    Por outro lado, o eclipsamento da filosofia tambm possibilitou uma iluso teologia. A

    iluso de que a crtica filosfica da teologia no tinha mais importncia. Especialmente a crtica da

    religio que se desenvolveu na modernidade parecia assumida e superada com o recurso s cincias

    positivas como instrumental prtico. Eis uma atitude apressada, tpica de quem tem uma tarefa

    concreta urgente pela frente e no pode se dar ao trabalho de perder tempo com especulaes: as

    sobras foram varridas para baixo do tapete.

    2. Diversos desafios precisam ser enfrentados no desenvolvimento da cincia da religio no

    Brasil

    Toda esta sntese anterior foi elaborada tendo em vista uma perspectiva a respeito das

    consequncias que este processo teve para a o surgimento e a situao atual da cincia da religio no

    Brasil. Ela no quer ser uma crtica Teologia da Libertao. Pelo contrrio, ela quer mesmo ressaltar a

    contribuio desta corrente teolgica para a constituio da cincia da religio no Brasil. Nesse

    sentido, a presente exposio parte da perspectiva de que a compreenso de uma situao s se d

    percebendo esta situao a partir da histria traditiva em que ela se forma. A cincia da religio

    enquanto rea prpria de estudo no Brasil no foi um objetivo da teologia da libertao, mas uma

    consequncia colateral dela, medida que os fatores anteriormente elencados contriburam para o

    surgimento desta nova rea de pesquisa no Brasil. importante que fique claro que no objetivo

    desta exposio reduzir o surgimento da cincia da religio no Brasil teologia da libertao,

    evidentemente outros interesses contriburam para tal. Entretanto, seria ingnuo no reconhecer uma

    relao bastante prxima de uma com a outra. A partir disso, as consideraes aqui presentes so

    teis tanto para uma reflexo sobre a situao da teologia, quanto sobre a cincia da religio no Brasil,

    e, consequentemente, para se pensar as possibilidades de sua inter-relao. Alm disso, tal

    compreenso importante para o enfrentamento dos desafios que ainda se colocam para o

    aprimoramento da cincia da religio como ambiente de pesquisa.

    2.1. A cincia da religio que surgiu no Brasil tem um componente de militncia social

    A primeira consequncia da forma de sua constituio que no Brasil a cincia da religio

    no nasceu como uma rea de estudos com uma pretenso de neutralidade. H em sua gnese um

    componente militante, componente que a marca at hoje, o que de fcil constatao atravs da

    simples leitura dos ttulos de teses defendidos nos seus programas de ps-graduao. At hoje a

  • In: OLIVEIRA, Kathlen Luana de et al. (Orgs.). Religio, Poltica, Poder e Cultura na Amrica Latina

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    influncia do iderio emancipatrio que caracteriza a teologia da libertao est presente em boa

    parte da produo acadmica desta rea de estudos.

    Isto no afirmado aqui no sentido de emitir um juzo de valor a respeito. H pontos

    positivos e negativos nessa situao. Mas necessrio que se compreenda esta situao a partir de

    sua gnese. A cincia da religio no Brasil no nasceu, como na Europa, com o propsito de constituir

    uma rea de pesquisa sobre a religio independente da religio, nem se props a ser um contraponto

    "cientfico" abordagem teolgica. Propor hoje um tal modelo tem sua legitimidade e isto deve ser

    debatido. Entretanto, seria enganoso avaliar a situao atual abstraindo-se do modo de sua

    constituio.

    Curiosamente, esta gnese militante da cincia da religio se contrape quela compreenso

    neutra, quase cientificista, que em alguns segmentos influenciados pela teologia da libertao se

    defendia a respeito das cincias sociais. Toda esta situao mostra a inevitabilidade de uma reflexo

    epistemolgica profunda, que possibilite a exposio aberta dos pressupostos que animam uma

    empreitada acadmica. Nesse sentido, a relao entre cincia da religio e teologia, no Brasil,

    demonstra como na maioria dos casos h um comprometimento subjetivo manifesto por parte dos

    pesquisadores. A discusso, ento, deve ser sobre a inevitabilidade, o grau e os limites do

    comprometimento subjetivo em relao pesquisa sobre a religio. A presente exposio pressupe a

    impossibilidade de um objetivismo puro, o que significaria a pretenso de uma volta a um cientificismo

    ingnuo tpico do sculo XIX. Mesmo assim, a discusso quanto a limites para o subjetivismo

    imprescindvel para o reconhecimento do carter acadmico de uma rea de pesquisa.

    2.2 As cincias sociais mantm uma preponderncia na constituio da cincia da religio

    brasileira

    Consequncia desta histria, as cincias sociais mantm uma importncia grande nos

    programas brasileiros de cincia da religio. Talvez representem a linha de pesquisa mais

    universalmente presente no conjunto destes programas. Alm da forma de constituio histrica

    destes programas aqui sintetizada, cabe acrescentar que isto se deve tambm ao fato de que tais

    cincias possuem uma tradio de estudo da religio, mesmo que no contexto do ambiente positivista

    brasileiro isto tivesse ficado um tanto obscurecido. Talvez o surgimento da cincia da religio

    enquanto rea prpria de pesquisa tenha inclusive contribudo para a disseminao deste tipo de

    pesquisa que tinha uma demanda reprimida.

    Evidentemente as cincias sociais so imprescindveis para o bom desenvolvimento da rea

    da cincia da religio, e no cabe qualquer questionamento quanto a isto. Por outro lado, herdou-se

    da histria do surgimento da cincia da religio uma certa mistificao em relao s cincias sociais.

    Mesmo que atualmente o enriquecimento das perspectivas seja substancial, em relao a uma

    preponderncia das anlises de vis marxista na teologia da libertao dos primrdios, manteve-se um

    certo sentimento de inferioridade entre pesquisadores no versados em cincias sociais. Por vezes

    aflora um certo desejo de que todos fossem to cientficos quanto os cientistas sociais. Tal

    situao no faz juz nem reflexo epistemolgica prpria das cincias sociais, nem longa tradio

  • In: OLIVEIRA, Kathlen Luana de et al. (Orgs.). Religio, Poltica, Poder e Cultura na Amrica Latina

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    de reflexo sobre a religio que caracteriza a teologia. Nesse sentido, para a prpria reflexo profunda

    sobre a cincia da religio no Brasil ainda necessria a superao de alguns traumas devidos a seu

    nascimento.

    2.3. A relao da cincia da religio com a teologia precisa superar a fase de negao, de modo a

    assumir a prpria histria da constituio da disciplina

    Enquanto tais traumas no forem reconhecidos, se permanecer numa situao tpica de

    negao em relao prpria situao. notria a presena de pesquisas com caractersticas

    teolgicas nos programas de cincia da religio no Brasil. Mais ainda notria a influncia de

    motivaes teolgicas para pesquisas nestes programas. Que problema isto representa? Nenhum,

    desde que isso seja assumido conscientemente.

    Um dos aspectos mais curiosos deste tipo de negao que a tradio crist s vezes

    estudada somente com destaque para a capacidade do pesquisador se mostrar como um crtico desta

    tradio. Evidentemente a capacidade de assumir tal postura fundamental. Evidentemente,

    tambm, a se mostra uma das virtudes desta tradio, capaz de despertar pesquisadores dentro de

    sua prpria tradio que se contrape a si mesma. Entretanto, a postura de negao em relao

    origem teolgica de parte de pesquisadores em cincia da religio s vezes impede o reconhecimento

    disto e coloca em questo o carter suficientemente isento da pesquisa, contra as intenes

    manifestamente crticas do pesquisador.

    O reconhecimento da necessidade de se superar este tipo de negao, entretanto, no

    significa de modo algum a defesa aqui de qualquer postura apologtica tradicional. Trata-se da

    necessidade da exposio honesta dos pressupostos que guiam a pesquisa, o que permite uma

    avaliao mais equilibrada dos resultados da mesma por parte de seus receptores. Dentro de limites

    razoveis, nesse sentido, posturas teolgicas e posturas socialmente engajadas gozam de aceitao.

    No momento em que tais posturas so negadas, entretanto, h interferncia nos resultados das

    pesquisas, e seu reconhecimento diminui. Esta uma situao que diz respeito a pesquisas nas mais

    variadas reas do conhecimento. Quando h negao, entretanto, e quando ela se manifesta de modo

    disseminado, a credibilidade da prpria rea de pesquisa se coloca em jogo.

    2.4. A clarificao do objeto de estudo necessita de uma discusso serena a respeito da

    contribuio possvel por parte da fenomenologia

    Na discusso sobre a cincia da religio no Brasil hoje, a questo da posio da

    fenomenologia da religio um tema controverso. Por que isso assim, se esta no parece ter sido

    uma questo fundamental quando do surgimento dos programas brasileiros de cincia da religio?

    Talvez justamente por isso. Talvez tenha sido uma questo importante que foi "saltada" em funo de

    outros interesses mais imediatos, e que agora cobra o seu espao.

    Inicialmente, necessrio clarificar nessa discusso o que se quer dizer ao falar de

    fenomenologia. Evidentemente, a primeira coisa que vem mente ao relacionar fenomenologia e

  • In: OLIVEIRA, Kathlen Luana de et al. (Orgs.). Religio, Poltica, Poder e Cultura na Amrica Latina

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    cincia da religio que a fenomenologia da religio foi uma disciplina fundamental para dar

    consistncia aos cursos de cincia da religio pelo mundo afora. S isso j levanta duas questes

    perturbadoras: a) Como pode tal disciplina, mesmo em face do questionamento de que objeto em

    outros contextos, ter uma penetrao real to pequena na cincia da religio do Brasil, considerando

    sua importncia histrica global? No mnimo para se compreender a histria da cincia da religio no

    mundo necessrio ter conhecimento da fenomenologia da religio, assim como tambm para critic-

    la enquanto modelo. A resposta mais imediata que a histria da cincia da religio no Brasil se

    distingue, em sua gnese, da histria da cincia da religio em outros contextos. Uma segunda

    resposta que a cincia da religio no Brasil ainda no se defrontou profundamente com a questo do

    objeto que seu tema. Parece que no Brasil a superao relativista um pressuposto possvel mesmo

    sem um momento anterior de definio clara. b) Alguns dos autores clssicos da cincia da religio no

    mundo partiram da fenomenologia da religio para elaborar suas pesquisas. No Brasil, alguns desses

    autores esto entre os amplamente lidos, mas muitas vezes no so estudados em profundidade. Cria-

    se, assim, uma situao paradoxal em que estes autores so utilizados, e at criticados, mas no

    analisados em profundidade no ambiente acadmico da cincia da religio. So clssicos, mas a cincia

    da religio do Brasil no lida com clssicos, os salta em favor do que mais atual ou urgente.

    A segunda questo importante neste contexto diz respeito ao que se considera

    fenomenologia. A variedade de propostas de fenomenologias, at mesmo no mbito da filosofia, onde

    este mtodo surgiu, impede que se responda questo sobre o lugar da fenomenologia na cincia da

    religio de modo ligeiro. Mesmo no mbito restrito da cincia da religio, cabe perguntar se

    realmente simples colocar sob um mesmo nome propostas distintas como as de Otto, van der Leew,

    Eliade, Heiler e Wach, para dar alguns exemplos. Alm disso, cabe perguntar se a forma de

    constituio da cincia da religio no Brasil contribuiu para um no entendimento do que se diz

    quando se faz referncia fenomenologia. Isto porque nas vrias cincias positivas se desenvolveram

    escolas fenomenolgicas. Como nos programas de cincia da religio se congregam pesquisadores

    oriundos de diferentes reas de formao, no esdrxulo pensar que ao ouvir falar em

    fenomenologia cada um pense na forma que se desenvolveu na sua rea prpria de formao.

    2.5. A diluio do objeto religio a partir dos paradigmas explicativos das diversas cincias

    implica a necessidade de um real intercmbio entre estas cincias.

    Esta apresentao, longe de pretender apresentar uma apologia da fenomenologia enquanto

    mtodo imprescindvel, entende que inevitvel que se estabelea uma discusso sobre ela em

    funo da necessidade de clarificao do objeto prprio da cincia da religio. O que tem ocorrido de

    fato na cincia da religio no Brasil que se utilizam definies operacionais de religio. Desta forma,

    cada pesquisa particular pode estabelecer o seu objeto. Aqui parte-se do princpio de que tal

    procedimento no inconcebvel quando se opera no nvel de uma pesquisa singular. Entretanto,

    quando se pensa em toda uma rea de pesquisa este procedimento coloca em questo a prpria

    identidade e, at, a pretenso de cientificidade desta rea. Principalmente porque notrio que a

    cincia da religio tem extrema dificuldade de se constituir enquanto rea de saber a partir de um

    mtodo unitrio - de novo, se este no for o mtodo de uma fenomenologia da religio -, ento

  • In: OLIVEIRA, Kathlen Luana de et al. (Orgs.). Religio, Poltica, Poder e Cultura na Amrica Latina

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    necessrio que a peculiaridade da rea de pesquisa se defina a partir de seu objeto. Neste caso, a

    contribuio fenomenolgica fundamental, medida que trata do objeto ideal que se visa ao

    estudar os casos concretos.

    Infelizmente, muita confuso reina nesta discusso. Quando se coloca a necessidade de que

    um objeto de estudo transcenda uma concreticidade imediata, surge imediatamente a acusao de

    "essencialismo", a heresia da moda. O problema que, afora a estreiteza de tal concepo, com isso

    se continua numa situao em que conceitos so algo meramente operacional, e esta

    operacionalidade parece no ter uma relao necessria com a "realidade concreta". Ou seja, cada

    pesquisa em si precisa se justificar a cada vez, enquanto que a rea de pesquisa como um todo

    permanece sem razo plausvel. Desta forma, muito melhor a situao acadmica da teologia do que

    a da cincia da religio. Ao menos a teologia tem o benefcio da antiguidade. Alm disso, tem um

    objeto, que Deus, ou sua manifestao, ou sua recepo - algo obscuro e, assim, pouco moderno,

    mas, de alguma forma, circunscrito. A nova cincia, a da religio, alm de sua juventude e de sua

    dependncia das cincias positivas, carece tanto de um mtodo prprio quanto de uma reflexo

    profunda sobre seu objeto especfico. Como conseguir se manter enquanto cincia desta forma?

    2.6. As disciplinas tradicionais da teologia, da filosofia e da fenomenologia so essenciais para o

    aprofundamento da discusso com vistas a se evitar a diluio do objeto de estudo e a perda de

    identidade da prpria cincia da religio

    Toda a descrio anterior relativa ao desenvolvimento da cincia da religio no Brasil implica

    a necessidade de uma incorporao consciente das disciplinas da teologia, da filosofia e da

    fenomenologia no mbito da cincia da religio. Certamente a perspectiva com que isso feito em

    cada uma destas disciplinas precisa ser clarificada, e isto num nvel tal que no possvel ser feito nos

    limites da presente exposio.

    Quanto disciplina da teologia, cabe destacar que aqui se refere primeiramente teologia

    filosfica. Particularmente na tradio ocidental, mas no s, se colocaram questes filosficas a

    respeito do mbito do divino que no podem ser desconhecidas por parte de pesquisadores da

    religio. Do contrrio, o cientista da religio permanece um aprendiz diante do telogo confessional,

    por mais obtuso que este possa ser, e isto no deve ser assim. Infelizmente, a conscincia da

    necessidade do conhecimento das questes teolgicas fundamentais colocadas no mbito da

    discusso filosfica tradicional ainda no faz parte de todos os currculos dos programas de cincia da

    religio. Por no querer lidar com questes metafsicas, estas so tratadas como se no fossem

    questes. Nesse sentido, no necessria aqui uma distino ntida entre teologia e filosofia da

    religio. Esta ltima se desenvolveu, ao menos no ocidente, particularmente no mbito da discusso

    teolgica. Assim como a crtica da religio por parte da filosofia se expressou como filosofia crtica da

    tradio teolgica. De modo que difcil separar de modo estrito onde inicia a filosofia da religio e

    onde comea a teologia. Evidentemente que fica claro que nesta exposio no se identifica teologia

    simplesmente com confessionalidade. A relao entre ambas demandaria uma outra discusso que

    transcende o escopo desta apresentao.

  • In: OLIVEIRA, Kathlen Luana de et al. (Orgs.). Religio, Poltica, Poder e Cultura na Amrica Latina

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    Mas, alm da discusso propriamente teolgica que est inserida na tradio filosfica,

    tambm um conhecimento da discusso epistemolgica necessrio. Especialmente numa rea de

    pesquisa que est em processo de constituio, imprescindvel um conhecimento mnimo dos

    problemas que abarcam a rea de pesquisa em questo. Isto impossvel sem uma tematizao

    filosfica. No basta um discurso sobre a relativizao das cincias no contexto atual. Tal discurso pode

    ter um certo apelo, mas no encaminha um reconhecimento enquanto rea de pesquisa. Assim,

    necessrio superar uma argumentao simplesmente apologtica - por estranho que parea - no

    mbito da cincia da religio. No se trata simplesmente de defender esta rea de pesquisa, mas de

    demonstrar que ela opera com seriedade acadmica e com critrios claros. Para isso, a relao da

    cincia da religio com as demais cincias, particularmente com as cincias humanas, precisa ser

    clarificada, assim como sua relao com a teologia e a filosofia. Assim, tendo em vista a precariedade

    da condio de cientificidade da cincia da religio, tanto mais necessria a conscincia da situao

    acadmica em que o pesquisador da rea se insere. Questes filosficas sobre a cientificidade da fsica

    ou da qumica podem ser relegadas a especialistas em filosofia da cincia, mas questes relativas

    cientificidade da cincia da religio so de conhecimento necessrio para cada pesquisador individual,

    em virtude do no reconhecimento tcito de sua rea de pesquisa.

    Por fim, o conjunto das disciplinas de teologia, filosofia e fenomenologia imprescindvel

    para a discusso relativa ao objeto da cincia da religio. Algumas cincias, centradas no mtodo,

    talvez possam adiar uma discusso minuciosa quanto ao seu objeto. No assim com a cincia da

    religio. Conceitos puramente operacionais da religio ameaam estender o campo das pesquisas para

    muito alm do aceitvel. Mesmo que em pesquisa individuais isso possa ser aceito, surge um

    problema notrio para a rea de pesquisa quando seu objeto no est suficientemente circunscrito.

    Dada a problematicidade do tema, a amplitude em que ele tem sido discutido e a variedade de

    perspectivas, recolher as contribuies j feitas no mbito da teologia, da filosofia e da fenomenologia

    da religio se coloca como necessrio.

    Alm disso, cabe destacar que o uso de definies puramente operacionais acarreta a

    diluio do objeto, o que implica a destruio da prpria rea de estudo. Estudos sociolgicos

    apresentam a religio enquanto uma funo da sociedade, estudos psicolgicos enquanto funo da

    psique, estudos histricos enquanto funo do contexto. Mas qual o sentido, ento, de se estudar a

    religio enquanto tal? Na verdade, volta-se situao antiga, em que as cincias positivas analisam o

    seu objeto especfico, que ocasionalmente pode envolver a questo religiosa. A religio se dilui em

    suas vrias facetas. O que no um problema para um pesquisador de reas de estudo particulares.

    Mas se torna um problema para a constituio de uma rea prpria de pesquisa, que deixa de ter uma

    finalidade se seu objeto no for especfico.