GTO - tomo 1

68

description

Catálogo da exposição "Um dia a árvore dos sonhos inopinados - acrobacias, totens, mandalas e oroporos do escultor Geraldo Teles de Oliveira", no Sesc Palladium em Belo Horizonte, MG, Brasil.

Transcript of GTO - tomo 1

Page 1: GTO - tomo 1
Page 2: GTO - tomo 1

Aquilo que Deus me falou para fazer, eu fiz, pelo sonho. E depois o sonho me largou um bocado e eu comecei pela criação, porque eu sou primitivo e criador.

— Geraldo Teles de Oliveira

Page 3: GTO - tomo 1

– acrobacias, totens, mandalas e oroborosdo escultor Geraldo Teles de Oliveira

Tomo 1

Page 4: GTO - tomo 1

G633d Goméz, Jorge Gabrera Um dia a árvore de sonhos inopinados: acrobacias, totens, mandalas e oroboros do escultor Geraldo Teles de Oliveira / Jorge Cabrera Gómez; Faber Clayton Barbosa; Rodrigo Vivas. – Belo Horizonte: SESC Minas, 2011. 112 p: il. color. Inclui índice cronológico. ISBN 978-85-64934-02-3. 1. Arte moderna – Escultura em madeira. 2. Geraldo Teles de Oliveira –

Exposição. 3. Catálogo. I. Barbosa, Faber Clayton II. Vivas, Rodrigo.

CDD 730.981

Page 5: GTO - tomo 1

– acrobacias, totens, mandalas e oroborosdo escultor Geraldo Teles de Oliveira

Belo HorizonteSESC Minas

2011

Jorge Cabrera GómezFaber Clayton Barbosa

Rodrigo Vivas

Page 6: GTO - tomo 1

Superintendência de Cultura e EducaçãoELIANE LACERDA

Gerente do SESC PalladiumFERNANDO PENIDO

Gerente de CulturaJORGE CABRERA GÓMEZ

EXPOSIÇÃO GTO

Direção de curadoriaJORGE CABRERA GÓMEZ

Produção GeralBEATRIZ MOMJORGE CABRERA GÓMEZMARCELA YOKO

Projeto ExpográficoBEATRIZ MOMJORGE CABRERA GÓMEZMARCELA YOKO

Projeto de ComunicaçãoROBÍNSON COSTA DO NASCIMENTOROSA MOTATAIANA FARIAS

Projeto DocumentárioALDINE MARAFABIO BELOTTE

Projeto Arte/EducativoJANAÍNA TÁBULALUCIANA FÉLIX MARCELA YOKO

Laudo técnico e preparação das obrasJOSIANE DE FIGUEREIDO NASCIMENTOEspecialista em conservação e restauração de bens culturais móveis e integrados

Projetos de pesquisaFABER CLAYTON BARBOSAJORGE CABRERARODRIGO VIVAS

SonorizaçãoPAULO AMADO

Parceiros do projetoPREFEITURA MUNICIPAL DE DIVINÓPOLIS SECRETARIA DE CULTURA DE DIVINÓPOLISINSTITUTO GTO

CATÁLOGO

Projeto GráficoANA CAROLINA SOARESCLÁUDIO DINIZ ALVES

DiagramaçãoCLÁUDIO DINIZ ALVES

Créditos das Fotos•ARQUIVO PÚBLICO DE DIVINÓPOLIS: 11, 14-15, 22, 26-27,

44-45 e 49•DÉA TOMICH: 25, 44-45, 49, 53-54•ERWIN OLIVEIRA: 36-37, 51•GALERIA CÅSVER (XUAN CHE): 48. Disponível em:

<http://www.flickr.com/photos/rosemania/4419055059>. Acesso em: 16 nov. 2011.

•GUIA INAH (1957, governo mexicano): 50

RevisãoIRENE A. GUIMARÃES DOS SANTOSJAQUELINE L. PRADOS(Arte do Texto)

ImpressãoRONA EDITORA

Page 7: GTO - tomo 1

ApresentaçãoLázaro Luiz Gonzaga

7Um artista que rondava obras: a trajetória de Geraldo Teles de Oliveira até o surgimento de GTO

Faber Clayton Barbosa

9Salões e bienais: da arte de vanguarda à arte contemporânea

Rodrigo Vivas

29Um dia a árvore dos sonhos inopinados desabou na cabeça do escultor GTO: o criador autodidata que construía mandalas de homens

Jorge Cabrera Gómez

47

Cronologia de vida de Geraldo Teles de Oliveira

Faber Clayton Barbosa

59

Page 8: GTO - tomo 1
Page 9: GTO - tomo 1

Lázaro Luiz GonzagaPresidente do Sistema FECOMÉRCIO, SESC e SENAC

A arte de Geraldo Teles de Oliveira – GTO – encanta pela estética. Há uma comunhão de ideias nesse sentido: artistas, espectadores, críticos... Suas esculturas são polifônicas. Revelam um conjunto

de vozes. Sons que inquietaram a imaginação do escultor ganharam contornos e modulagem poética na madeira entalhada. Muitas das vezes em forma de círculo, lembrando o contínuo sentido da vida.

Sonhos, religiosidade e o cotidiano do escultor estão ali representados em figuras sobrepostas carregadas de sentimentos. É inspirador.

Esta obra catálogo, escrita a três mãos, intitulada: Um dia a árvore dos sonhos inopinados – acrobacias, totens, mandalas e oroboros, iniciativa do Sesc, é dividida em tomo 1 – pesquisa e textos – e tomo 2 – fotografias.

A homenagem ao escultor vislumbra as comemorações do centenário de seu nascimento (1913). Este lançamento é marco inaugural da Galeria de Arte GTO, que também recebeu exposição de igual nome do livro, com uma peça do artista inacabada e as outras concluídas. É tributo que laureia o mais novo espaço cultural do Sesc Palladium, pelo que foi e representa o artista para o mundo das artes.

O Sesc sempre esteve ao lado das artes. Seja qual for a seara, a Entidade se apresenta mecenas – realizadora, promotora, apoiadora. Reconhece valores, abre portas aos novos talentos e também aos consagrados, reverenciados mundo afora. Geraldo Teles de Oliveira – GTO – é um deles.

Boa leitura.

Page 10: GTO - tomo 1
Page 11: GTO - tomo 1

GTO. Geraldo Teles de Oliveira. Durante sua vida, pre-senciou a “confusão do

mundo”1 tomar conta das terras brasileiras, especialmente, das terras do interior de Minas Gerais. A confusão, para GTO, se manifestava no mundo, fazendo com que as coisas mudassem rapidamente. Fazendo com que as pessoas en-trassem em confronto, promovessem a guerra, disseminassem a peste. Confusão que se parece muito com a chamada modernidade que está presente há considerável tempo na história e, quando vivenciada pelo homem, produz os mesmos resultados.

A modernidade ganhou muitos lugares. Chegou um pouco antes de Geraldo Teles de Oliveira, até mesmo ao interior de Minas Gerais, na cidade de Divinópolis. Pequeno lugarejo que se tornou município em 1912. Foi para lá que a família enviou Geraldo, meses depois do seu nascimento em janeiro de 1913. Em um periódico, ele expõe que

(...) Papai era de Itaúna e mamãe também. Eu nasci em Itapecerica, em 1913, só eu que sou de lá. Os irmãos todos nasceu em Conquista, Itaú-na. (...) Papai tinha fazenda grande, trabalhava com lavoura, comprava gado pra engordá e ven-dê no Rio de Janeiro. Todos morava na roça. Vim pra Divinópolis trabalhá, não quis ficá na roça.2

Neste sentido, faz lembrar um personagem citado por Marshall Berman como um dos

1 ARANTES, Maria do Carmo. GTO e a arte incomum. Jornal Ponta de Lança, Belo Horizonte, março 1982, n ° 02, p. 12-13. Confusão era a palavra que Geraldo Teles de Oliveira utilizava quando queria descrever a desorganização, a desordem, as catástrofes presentes no mundo atual. Como nesta entrevista a Maria do Carmo Arantes em que GTO descreve o mundo dizendo que “o povo hoje tá tudo sem ordem, sem ciência, tudo na confusão”.

2 ARANTES, Maria do Carmo. Op. cit. p. 12-13.

símbolos da modernidade. Trata-se do herói Saint-Preux do romance A Nova Heloísa, de Jean-Jacques Rousseau, que partiu do campo para a cidade, para viver naquilo que o autor denominou de turbilhão social, numa referência ao redemoinho, para descrever a vida na cidade, principalmente na capital Paris.3 Guardadas as proporções, Geraldo deve ter vivido o seu próprio turbilhão social em boa parte de sua existência num lugar que se desdobrava para se modernizar.

As questões da modernidade foram muito bem discutidas pelo escritor Marshall Berman em Tudo que é sólido se desmancha no ar, obra que se tornou referência sobre o assunto. Nesta obra, Berman destaca que a modernidade é uma experiência de vida em sociedade que ganhou o mundo e que tem a característica de prometer vantagens, mas que, a qualquer momento, pode tomá-las daqueles que a conquistaram. Para isto, a modernidade lança mão das pesquisas científicas, da transformação deste conhecimento em tecnologia com a industrialização e de usar esta tecnologia para construir e destruir, para gerar novas formas de disputas por poder e domínio social. No trajeto da história da modernidade, os diferentes processos sociais desenvolvidos por ela são classificados como modernização por Berman.

3 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar. Tradução de Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L. Ioratti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 17. O jovem representa, enquanto personagem, milhões de outros jovens que migram para a cidade. Lá ele tenta descrever à amada como era a nova vida no ambiente urbano, marcada por novas experiências de fantasias e apreensões.

A trajetória de Geraldo Teles de Oliveira até o surgimento de GTO

Faber Clayton BarbosaHistoriador da Secretaria de Cultura de Divinópolis e

do Instituto GTO

Page 12: GTO - tomo 1

12Durante o século XIX, a modernização se caracterizou pela criação das máquinas a vapor, pelo surgimento das ferrovias, dos grandes espaços industriais, das cidades que cresceram da noite para o dia sacrificando o ser humano, pelos movimentos sociais, pelo surgimento de um mercado mundial, entre outros fatos inusitados. No entanto, destaca Berman, como a modernidade se expandiria integralmente pelo mundo somente no século XX, o homem moderno do século XIX ainda tinha recordações de viver em um mundo que ainda não fora tomado pela modernidade.4 O fato de a modernização no Brasil ser atrasada e incompleta em relação a outros países deixou o brasileiro como o homem do século XIX. Geraldo Teles de Oliveira foi um homem que tinha muitas recordações de uma era anterior à nossa modernidade, as quais lhe seriam muito úteis no futuro, quando se tornaria artista.

O Brasil se dispôs a adquirir as vantagens da modernidade, buscando-as a todo custo, a partir do final do século XIX. Principalmente após a abolição da escravidão, nosso país lutou para obter todas as inovações da modernização daquela época como a máquina a vapor, a ferrovia, as indústrias e as reformas das cidades. No entanto, toda esta mobilização liderada pela burguesia brasileira não aconteceu simultaneamente à modernização europeia ou norte-americana. Ela se concretizou, mas com considerável atraso em relação aos outros países. E nem no próprio país a modernização ocorreu de forma igual, havendo diferença entre regiões, entre estados e cidades. O sociólogo Otávio Soares Dulci aponta que a estagnação e o atraso do desenvolvimento do Estado de Minas Gerais em relação ao de São Paulo, principalmente, eram as grandes preocupações dos dirigentes políticos mineiros na transição do século XIX

4 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar. Tradução de Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L. Ioratti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 15-35. Berman diz que a modernidade é um tipo de experiência de vida que começou a se gestar há uns cinco séculos antes dos tempos atuais, mas que passou a ser compartilhada por todo o mundo no século XX. Durante este tempo, a modernidade sofreu transformações e tem sido vista, por muitas pessoas, como um fenômeno que derrubou muitas tradições e segue sendo uma ameaça a toda forma de memória e história. A história da modernidade foi dividida pelo autor em três fases: XVI ao XVIII, século XIX e a última fase no século XX.

para o XX.5 Estes apostaram na diversificação da produção agrícola como forma de recuperação econômica e superação do atraso.

A família de Geraldo Teles de Oliveira sempre trabalhou na roça.6 Amilcar Vianna Martins Filho registra que a produção agrícola mineira caracterizou-se pelo predomínio das pequenas unidades produtivas dedicadas a uma variedade muito grande de produtos e conduzida por um número pequeno de trabalhadores rurais.7 Na década de 20 do século passado, Minas Gerais apresentava não só a maior população do Brasil como também o maior número de trabalhadores rurais. No entanto, a situação do trabalhador agrícola assalariado em Minas era precária, como destaca José Murilo de Carvalho:

Separando-se administradores, capatazes, arte-sãos, isto é, carpinteiros, pedreiros e ferreiros, que tinham salários um pouco melhores, o res-to dos trabalhadores agrícolas propriamente ditos vivia em condições que não se afastavam muito das do tempo da escravidão. Se as diárias a seco (sem alimentação) de um ferreiro valiam 5$500 em Minas Gerais em 1924, as de um tra-balhador agrícola tinha um piso de 2$500, as de um retireiro (tirador de leite) de 1$500.8

5 DULCI, Otávio Soares. Política e Recuperação Econômica em Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 38-39. Esta ideia decorria do passado de riqueza promovida pela mineração em Minas Gerais e que, durante o século XIX, a economia mineira entrou em decadência, se comparada a outras regiões e principalmente à economia paulista.

6 TELES, Mário Pereira. Entrevista concedida a Faber Clayton Barbosa em 29 de julho de 2011, p. 01. “Meu pai nasceu no dia 01 de janeiro de 1913 no município de Itapecerica. Aos 4 ou 6 meses de idade, o pai veio para Divinópolis, veio morar com minha tia que é a Maria Paiva, que é irmã mais velha.(...). A Tia Maria criou o pai até uma certa idade. Depois o pai foi pro Chaves, já criancinha, mais criada, na idade aí de uns 05, 06 anos, 07 anos, 08 anos, foi pro Chaves, foi morar com Quinca Pereira e a minha avó, que é a avó Sá Rosa, que é a segunda mulher de Joaquim Pereira, que é o Quinca Pereira,madrasta do pai, né.”

7 MARTINS FILHO, Amilcar Vianna. O segredo do estilo mineiro de fazer política (1889-1930). Tradução: Vera Alice Cardoso Silva. Belo Horizonte: Crisálida/ ICAM, 2009, p. 63-68. Martins Filho descreve que a diversificação econômica sempre esteve presente na história econômica do Estado de Minas Gerais. Esta diversificação se intensificou com a expansão do café na década de 1890 e, daí por diante, continuaria a predominar na economia mineira. A diversificação econômica mineira também se manteria nas décadas iniciais do século XX. Através de dados levantados entre 1910-1913 e 1919 e 1923 e dados de 1927-1929, percebe-se durante a Primeira República a tendência a autossuficiência, a falta de especialização seja no estado inteiro, nos municípios e nas unidades produtivas e a fragmentação estrutural em pequenas unidades produtivas não exportadoras.

8 CARVALHO, José Murilo. Os três povos da Republica. Revista da USP, São Paulo, n ° 59, p. 96-115, setembro/ novembro 2003, p. 101.

Page 13: GTO - tomo 1

13

Page 14: GTO - tomo 1

14Diante de todo este contexto da economia rural em Minas, assegurar a sobrevivência somente com o salário do trabalho rural era uma tarefa difícil, sobretudo, para trabalhadores com família. Mas, mesmo nestas condições, para os trabalhadores rurais semialfabetizados, a migração para a cidade, muitas vezes, não era a melhor solução. Isto foi vivenciado por Geraldo Teles de Oliveira logo nos primeiros anos do século XX quando ele buscou a cidade. No final do século XIX, surgia uma cidade que deveria ser padrão de modernidade no Estado de Minas Gerais. Era Belo Horizonte, a nova capital do estado.

Dentre as medidas para combater o atraso mineiro, os dirigentes políticos resolveram transferir a capital de Ouro Preto para Belo Horizonte, centro urbano que foi construído no final do século XIX. A nova capital concentraria as ações desenvolvimentistas que serviriam de modelo para o estado. A historiadora Marcelina das Graças de Almeida lembra que a capital mineira foi a primeira cidade planejada do Brasil. E este planejamento se deu em função da necessidade de que ela se adequasse aos tempos republicanos. Quando era Arraial do Curral Del Rei, a população local era de aproximadamente 18 mil habitantes, na metade do século XIX. Almeida acredita que as características de arraial se mantiveram até a época da construção da capital, em 1897. Para que a nova capital fosse construída, o arraial teve de ser destruído. Destaca a autora que tudo se passou como se os construtores quisessem produzir outras memórias mais adequadas à nova cidade. Ela também chama a atenção para trabalhos de artistas que foram contratados pela comissão construtora da nova capital para retratar o arraial que desapareceria. O estilo vigente nesse período era o chamado academicismo, praticado principalmente por aqueles que tiveram acesso ao ensino das artes no Brasil Império na Academia Imperial de Belas Artes, posterior Escola Nacional de Belas Artes.9

9 ALMEIDA, Marcelina das Graças de. Belo Horizonte, arraial e metrópole: memória das artes plásticas na capital mineira, p. 72-107. In: RIBEIRO, Marília Andrés. SILVA, Fernando Pedro. (org.) Um século de história das artes plásticas em Belo Horizonte: C/Arte: Fundação João Pinheiro. Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1997.

Em Divinópolis, Geraldo Teles de Oliveira encontraria uma cidade que também lutava contra a imagem e a memória do velho Arraial do Divino Espírito Santo. O intuito dos dirigentes locais, a partir de 1912, era a edificação de uma cidade, processo que se baseou muito no da capital mineira para se concretizar. Aos moldes da capital, os dirigentes divinopolitanos também planejaram a nova cidade. Recorreram aos engenheiros da Estrada de Ferro Oeste de Minas10 para a confecção da planta da cidade.

Destacam os memorialistas que registraram a história da cidade que os moradores reclamaram do novo traçado da cidade cujos prédios públicos eram distantes do Largo da Matriz, sede do antigo arraial e centro da vida social. No entanto, os dirigentes políticos locais explicaram que “a cidade futura deveria crescer naquela direção e teria um traçado moderno e haveria de ser a maior cidade do Oeste”.11 É neste cenário que Geraldo Teles de Oliveira viveu sua infância e ingressou na vida adulta. GTO viveu sua na região do bairro Niterói em Divinópolis. Pedro X. Gontijo, memorialista local, registra que o bairro Niterói, em 1910, era um local de cerrado com árvores majestosas. No entanto, segundo o autor, o local começou a ser povoado com cafuas e mais casinhas num cenário de desordem e considerável tensão, sempre precisando de intervenção para a manutenção da segurança.12 Neste local, nesta confusão, Geraldo cresceu e começou um namoro com aquela que seria sua futura esposa, Maria Quirina.13

10 A importância da ferrovia na história de Divinópolis é incontestável. O pesquisador Lázaro Barreto registra em sua obra este fato que também é destacado por diversos outros autores da história local. Barreto destaca que a ferrovia chegou ao arraial do Divino Espírito Santo em 1890 e se tornou “o marco inicial propulsor das atividades econômicas, porque estabelece relações de agente distribuidor de bens importados e exportados a nível regional – e é daí que nasce também a mão de obra industrial.” BARRETO, Lázaro. Memorial de Divinópolis: História do Município, Divinópolis, Serfor, 1992, p. 56.

11 AZEVEDO, Francisco Gontijo; AZEVEDO, Antonio Gontijo de. Da história de Divinópolis. Belo Horizonte: Graphilivros, 1988, p. 111.

12 GONTIJO, Pedro X. História de Divinópolis. Divinópolis: Sidil, 1995, p. 50.

13 TELES, Mário Pereira. Entrevista concedida a Faber Clayton Barbosa em 29 de julho de 2011, p. 01. “Então depois passada uma certa idade, na mocidade do pai, o pai veio morar aqui em Divinópolis, no Niterói, na rua do Niquel, que é a Niquelina. O pai quando ficou conhecendo minha mãe numa certa idade, que foi até naquela mina, perto, lá no fundo, onde tinha no buraco que tinha,

Page 15: GTO - tomo 1

15Divinópolis, nas primeiras décadas do século XX, começava a se desenvolver e a receber al-guns estabelecimentos comerciais e umas pou-cas fábricas. Em 1914, em agosto, inaugurou-se o primeiro cinema e teatro local.14 Em 1916, um periódico local anunciava a construção de uma importante serraria que seria impulsionada pela força de 25 cavalos a vapor.15 Isto porque, so-mente em 1920, a cidade obteve o fornecimento de luz elétrica, que possibilitaria o funciona-mento de indústrias.16 Em 1923, Divinópolis dava seus primeiros passos no seu desenvolvimento comercial e um consequente investimento em pequenas indústrias. Um periódico local regis-tra, sobre a economia local, que

é relativamente pequena a sua produção; infe-lizmente seu comércio ainda importa cereais e artigos que podia exportar. (...) tem, infeliz-mente, a sua industria ainda em estado muito rudimentar; na sede, possue uma bôa serraria, uma excellente fábrica de banha; uma regular fábrica de sabão, trez fábricas de bebidas pouco desenvolvidas; uma regular fábrica de doces, cinco olarias de tijolos e uma de telha, varias sapatarias e alfaiatarias, algumas carpintarias pequenas; uma torrefação de café.”17

Martins Filho demonstra que a indústria mineira também era marcada pelas pequenas unidades fabris dedicadas, em sua maioria, à produção de bebidas e alimentos. Tão pequenas que mais da metade destas, em 1928, necessitavam de um único trabalhador para funcionar.18 Diante deste quadro, pode-se compreender a dificuldade enfrentada pelo jovem Geraldo Teles de Oliveira em encontrar emprego na cidade de Divinópolis, onde havia

que eles falavam, sabe. Nesta época, o pai ficou conhecendo minha mãe. Depois firmou com ela, minha mãe estava com 14 anos, meu pai com 17 ou 18 anos.”

14 GONTIJO, Pedro X. Op. cit. p. 32.

15 A INDÚSTRIA EM DIVINÓPOLIS. Divinópolis Jornal. Divinópolis, 03 de abril de 1916, ano I, p. 03.

16 AZEVEDO, Francisco Gontijo; AZEVEDO, Antonio Gontijo de. Da história de Divinópolis. Belo Horizonte: Graphilivros, 1988, p. 129-130.

17 MUNICÍPIO DE DIVINÓPOLIS. A Estrella do Oeste. Divinópolis, 22 de abril de 1923, ano I, n ° 15, p. 01.

18 MARTINS FILHO, Amilcar Vianna. Op. cit. Lembra Martins Filho que as pesquisas indicam que quaisquer estabelecimentos com menos de 50 trabalhadores devem se considerados pequenas indústrias. Dados de 1928 reforçam a grande fragmentação da produção industrial em pequenas unidades quando registra que 46,6% das 8.148 fábricas mineiras empregavam apenas uma pessoa e 92,7 por cento empregavam no máximo 6 trabalhadores. De acordo com dados de 1907 e 1919, o Estado de Minas figura como a região que menos investiu em indústrias em relação a outras regiões do país, possuindo, predominantemente, a menor média de trabalhadores entre as regiões.

somente unidades fabris muito pequenas, dificuldade esta registrada na memória de seus descendentes.19

Ao mesmo tempo em que esses fatos ocorriam, mudanças importantes aconteciam no ambiente artístico da capital mineira. A pesquisadora Ivone Vieira destaca que, nas décadas de 20 e 30, Belo Horizonte começaria a viver os primeiros embates entre a arte modernista e o domínio da arte acadêmica nas artes. A emergência modernista na capital é reflexo da Semana de Arte Moderna, de 1922, ocorrida em São Paulo. Este movimento foi marcado pela busca de uma “brasilidade” na arte e na política brasileiras e pela ruptura com o academicismo do século XIX.20 A arte modernista seria responsável pela busca de elementos na cultura brasileira que pudessem contribuir para o desenvolvimento de uma arte nacional. Nesta época, destacaram-se iniciativas pioneiras em divulgar a arte modernista. Uma delas foi a exposição da artista plástica Zina Aita, ocorrida em 1920. Esta exposição promoveu, pela primeira vez, um confronto significativo entre a tradição e a modernidade na cidade.21 Outro evento que se apresentou como marco do modernismo mineiro foi o chamado Salão do Bar Brasil, de 1936, que é apontado como primeiro evento coletivo de artistas modernistas, coordenado por Delpino Junior. O resultado não chamou a atenção somente do público, mas também da administração de Belo Horizonte. O prefeito Otacílio Negrão de Lima sancionou uma resolução instituindo uma exposição anual de arte na cidade. No entanto, este

19 TELES, Mário Pereira. Entrevista concedida a Faber Clayton Barbosa em 29 de julho de 2011, p. 01. Mário, filho de Geraldo Teles de Oliveira, descreve a dificuldade de encontrar trabalho enfrentada por seu pai, na década de 40, na infância de Mário, e lembra, reproduzindo palavras de seu pai: “aí o pai pegou ‘É Criola, [apelido de Maria, mãe de Mário] ta danado, porque eu nessa idade não tenho um serviço certo ainda, como é que nós vamos fazer?’ e a mãe disse ‘ não, Geraldo. Deus ajudando, mais lá na frente quem sabe aparece um serviço.’ Aí o pai tava com seus vinte e tantos anos, eu estava com cinco ou seis anos aproximadamente.”

20 VIEIRA, Ivone Luzia. Emergência do Modernismo, p. 116-165. In: RIBEIRO, Marília Andrés; SILVA, Fernando Pedro. (org.) Um século de história das artes plásticas em Belo Horizonte: C/Arte: Fundação João Pinheiro. Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1997.

21 VIEIRA, Ivone Luzia. Emergência do Modernismo, p. 116-165. In: RIBEIRO, Marília Andrés; SILVA, Fernando Pedro. (org.) Um século de história das artes plásticas em Belo Horizonte: C/Arte: Fundação João Pinheiro. Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1997.

Page 16: GTO - tomo 1

evento seria coordenado pelo mais eminente representante da arte acadêmica da época, Anibal Mattos, indicação que causou protestos no grupo de modernistas da cidade. Toda esta movimentação deu início à busca de superação do domínio do academicismo no cenário das artes em Minas, abrindo caminho para outras manifestações artísticas.

Nos anos 30, a cidade de Divinópolis apresentou sinais de maior desenvolvimento econômico. Em 1931, criou-se na cidade uma usina de álcool-motor que produziria combustível a partir da mandioca.22 Na transição da década de 30 para a de 40, Divinópolis abrigou indústrias de maior porte, que já manifestavam o desenvolvimento da produção metalúrgica no Estado de Minas Gerais. O pesquisador Lázaro Barreto destaca o surgimento de fundições na cidade e a produção de ferro-gusa e de artefatos de ferro que começavam a se projetar na economia local e no estado.23

Em 1938, Geraldo Teles de Oliveira casou-se em cerimônia religiosa com Maria Quirina, sua namorada da juventude. De acordo com o documento de registro, a união civil aconteceu em 1947 quando o casal já possuía dois filhos. Em 1944, Geraldo aparecia como funcionário público do Serviço Nacional da Malária num documento de compra e venda de imóvel. Certamente, ingressou neste serviço após o ano de 1941 quando esta instituição foi criada pelo governo federal.24 Trabalhando como funcioná-rio da Malária, GTO viveu uma grande revira-volta em sua vida, devido a questões políticas partidárias, por volta de 1947. Ele mesmo narra este fato, quando questionado por um periódi-co local sobre a razão de sua transferência para o Rio de Janeiro, e diz que

foi por causa da antiga UDN, que fez perseguição à turma que não quis votar que não quis votar no candidato que foi lá pedir voto. A nossa

22 AZEVEDO, Francisco Gontijo; AZEVEDO, Antonio Gontijo de. Da história de Divinópolis. Belo Horizonte: Graphilivros, 1988.

23 BARRETO, Lázaro. Memorial de Divinópolis: História do Município, Divinópolis, Serfor, 1992, p. 56.

24 BRASIL. DECRETO-LEI N. 3.171 – DE 2 DE ABRIL DE 1941. Reorganiza o Departamento Nacional de Saúde, do Ministério Educação e Saúde, e dá outras providências. Disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=818. Acesso em: 10 set. 2011.

Page 17: GTO - tomo 1

17

Page 18: GTO - tomo 1

18turma era do partido do Getúlio, o PTB. Então o candidato passou pedindo voto, e ia anotando o nome de cada um no papel. Quando ele chegou perto de mim eu lhe disse que iria votar é no PTB. Os meus colegas também falaram a mesma coisa. Daí a três meses fomos transferidos para o Rio. Sofremos muito lá. O serviço era longe e o dinheiro não dava. Cortaram até nossa diária.25

Este fato é reforçado por um panfleto intitulado Conversando com os Divinopolitanos, publicado por Pedro X. Gontijo, na época candidato a vereador pelo PTB. Neste periódico, Gontijo denuncia que “nos trabalhos eleitorais encarregados há que abusam dos seus cargos e querem forçar os trabalhadores a votar em A ou B”. Ele continua, acusando que militantes da UDN saíam “na jardineira da Malária, para intimidarem os pobres trabalhadores no seu serviço do Córrego do Barro”, e acrescenta que estes “ameaçaram os trabalhadores – são os mesmos que o afirmaram – de transferência para aqui, para ali, para acolá, como se esses senhores tivessem competência para fazê-lo”.26

Depois de trabalhar no Rio de Janeiro numa situação de precariedade como vimos acima, Geraldo Teles de Oliveira voltou a Divinópolis para começar nova busca por emprego. A partir da década de 40, o Estado de Minas Gerais assumiu o desenvolvimento industrial como prioridade. O setor siderúrgico seria o principal investimento do estado e ganharia, cada vez mais, espaço no valor total da produção econômica mineira.27 Divinópolis teria no setor siderúrgico um grande elemento para seu desenvolvimento industrial e econômico. A partir deste momento, o município contaria com indústrias de maior porte dedicadas às atividades siderúrgicas. Pesquisadores da história local indicam que a estrada de ferro, pelo menos inicialmente, seria a grande consumidora da produção das siderúrgicas e das fundições divinopolitanas. O pesquisador Lázaro Barreto cita algumas das indústrias

25 MORRE GTO. O globo em confusão. Correio do Centro Oeste, s/ local, 15 a 21 de julho de 1990, p. 05.

26 GONTIJO, X. Conversando com os divinopolitanos. Divinópolis, 15 de novembro de 1947, n ° 18.

27 DULCI, Otávio Soares. Política e Recuperação Econômica em Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 55-57. O setor siderúrgico apresentou crescimento inigualável atingindo 23,7% do total da economia mineira em 1939. O fato de não sediar a grande siderúrgica nacional, que fora feita em Volta Redonda, abalou, mas incentivou o governo mineiro a mudar suas prioridades e, da agricultura, direcionar seus investimentos para a indústria.

nessa área “que se multiplicavam no mosaico das nomeações: a Moreira, a Cometa, a J. Rabelo, a Perenne, a Irmãos Orsini, a Santa Cecilia, etc.”. Registra que “muitos ferroviários desligavam-se da Rede [ferroviária] e montavam sua pequena indústria (fundição, serralheria, oficina mecânica)”. Barreto afirma que “o surgimento das indústrias siderúrgicas na década de 50 expandiu e diversificou a economia local (e regional)”.28 Há muitos registros que apontam que Geraldo Teles de Oliveira trabalhou no setor siderúrgico da cidade na empresa do senhor Jovelino Rabelo.29

Na década de 40, a mobilização artística continuava em busca da mudança do cenário das artes na capital mineira. A pesquisadora Cristina Ávila destaca que, apesar das primeiras incursões do modernismo na capital mineira nas décadas anteriores, foi nos anos 40 que, tardiamente, as artes plásticas mineiras se transformaram. Nos anos 50, a diversidade artística se intensificou na capital em razão da ampliação de espaços destinados e instituições dedicadas às artes. Nesta época, aconteceram a transformação do Cassino da Pampulha no Museu de Arte da Pampulha, e a criação da Escola de Belas Artes da UFMG, em 1957. Ávila destaca que, nos anos 40 e 50, entre dificuldades e resistências, a produção modernista que existiu foi fundamental na busca pela liberdade artística na capital.30

28 BARRETO, Lázaro. Memorial de Divinópolis: História do Município, Divinópolis, Serfor, 1992, p. 85.

29 TELES, Mário Pereira. Entrevista concedida a Faber Clayton Barbosa em 29 de julho de 2011, p. 02. Mário destacou que seu pai “ficou lá [Rio de Janeiro], pouco tempo, eu acho que ele chegou a ficar um ano lá. Aí o pai pegou, ficou desempregado, para quebrar o galho para não ficar parado, porque antigamente quase não tinha serviço, aí eles pegaram arrumaram serviço pro pai na Mineira. O pai trabalhou na Mineira uns tempos. Chegava em casa muito cansado, tudo cheio de carvão, pó de minério, carregando forno, chegava aquele tanto de carreta de minério de carvão,o pai ajudava, aquele serviço braçal. Ai outros falou o senhor não ta muito bem, o senhor deve arrumar um serviço.”

30 ÁVILA, Cristina. Guignard, as gerações pós-guignard e a consolidação da modernidade, p. 170- 228. In: Marília Andrés. SILVA, Fernando Pedro. (org.) Um século de história das artes plásticas em Belo Horizonte: C/Arte: Fundação João Pinheiro. Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1997. Muito desta mudança é atribuída ao governo de Juscelino Kubitschek na prefeitura da capital. Em sua gestão, ocorreram a construção do conjunto arquitetônico da Pampulha projetada por Oscar Niemeyer, a Exposição de Arte Moderna e a criação da Escolinha do Parque, coordenada por Alberto da Veiga Guignard. Especificamente, em 1944, agitou Belo Horizonte a I Exposição de Arte Moderna em Minas da qual participaram artistas, críticos e escritores de renome vindos do Rio de Janeiro e de São Paulo. O resultado deste evento foi de impacto

Page 19: GTO - tomo 1

19Nos anos 50, Geraldo Teles de Oliveira, em sua permanente luta por trabalho, foi beneficiado pelo contexto político e econômico: os governos de Minas Gerais procuravam solucionar problemas decorrentes das décadas anteriores. O sociólogo Otávio Soares Dulci destaca que o governo de Minas Gerais se deparou com o baixo crescimento econômico mineiro associado ao problema migratório entre os anos 20 e 40.31 A solução encontrada pelo governo de Minas Gerais foi a criação dos chamados distritos industriais planejados, que deram origem à cidade industrial de Contagem, na metade da década de 40. Com a criação destes distritos industriais, novas frentes de trabalho surgiram. Geraldo Teles de Oliveira, favorecido por este cenário econômico mineiro, conseguiu trabalhar, entre as décadas de 1940 e 1950, como rondante na Cidade Industrial, na região metropolitana de Belo Horizonte.

Nos anos 50, de volta a Divinópolis, Geraldo Teles trabalhou na Companhia Agrícola do Estado de Minas Gerais (CAMIG), instalada no edifício que abrigou a usina de álcool-motor em Divinópolis, marco do desenvolvimento divinopolitano nos anos 30. A CAMIG foi instalada em Divinópolis no final da década de 50, como consequência do planejamento econômico do governo de Milton Campos e que teve continuidade no governo de Juscelino Kubitschek a partir de 1951. Este planejamento resultou em medidas que visavam a tornar mais eficientes diversos setores da economia mineira. A CAMIG foi criada para fabricar adubos, fertilizantes e outros produtos que aumentassem a eficiência do trabalho agrícola nas propriedades rurais mineiras.32 Geraldo

em relação à imprensa local.

31 DULCI, Otávio Soares. Política e Recuperação Econômica em Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 71-72. Minas apresentou um êxodo rural maior que o Nordeste brasileiro. Ao se depararem com a falta de emprego nos centros urbanos de Minas Gerais, os trabalhadores saiam do estado em busca de oportunidades de trabalho.

32 DULCI, Otávio Soares. Política e Recuperação Econômica em Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 84-85. A criação da companhia fazia parte do elenco de 17 indústrias que teriam investimento do governo mineiro e que tinham a missão de amenizar gastos com produtos que encareciam o custo de vida. Destacaram-se, entre estes, os investimentos em tecnologias de moagem e máquinas agrícolas, na produção de fertilizantes, produtos frigoríficos de carne e de pesca.

Teles de Oliveira trabalhou na Companhia Agrícola do Estado de Minas Gerais, na transição da década de 50 a 60, auxiliando na fabricação de produtos agrícolas para o aumento da produtividade no campo.33

Nos anos 60, Geraldo Teles ocupou o seu último posto de emprego como rondante e viveu seu último desemprego na vida. Nessa época, era rondante contratado na construção do Hospital São João de Deus. Esculpia durante as rondas como ele mesmo afirma:

Eu trabalhava de rondante no Hospital São João de Deus. Foi quando ele estava sendo constru-ído. Trabalhei lá uns dois anos. Saí de lá por volta de 1965. Antes de sair do emprego, eu já havia feito algumas peças. Durante a noite enquanto rondava eu ia fazendo algumas fi-guras de restos de madeira. Depois que saí do emprego fiquei sem trabalho. A minha mulher começou a pedir a Deus que indicasse um servi-ço para mim, porque eu estava passando muito trabalho. (...) Aí eu comecei a sonhar com umas figuras. (...) Eu voltei a sonhar por mais de um mês em seguida. Daí eu fui fazendo as minhas peças, e o povo gostou. O primeiro foi Heraldo Alvim. Depois foi o Dr. Aristides Salgado que me levou a Belo Horizonte e me apresentou ao Salvio de Oliveira. Ele achou que eu tinha cam-po e me ajudou muito.34

Para que Geraldo Teles de Oliveira se tornasse artista na capital mineira e fosse reconhecido no cenário artístico mineiro, fatores como a transformação do panorama das artes, a ampliação do mercado e dos espaços culturais e o incentivo a novos talentos contribuíram muito. Por força do destino, todos estes elementos se configuravam, simultaneamente, na capital mineira na década de 60. Marília Andrés Ribeiro atribui a participação da chamada neovanguarda artística nos eventos locais como um dos elementos responsáveis pela transformação das artes plásticas. Aponta ainda que a mudança na organização dos salões foi fundamental, especialmente

33 TELES, Mário Pereira. Entrevista concedida a Faber Clayton Barbosa em 29 de julho de 2011, p. 02. O pai trabalhou na [siderúrgica] Mineira uns tempos. Chegava em casa muito cansado, tudo cheio de carvão, pó de minério, carregando forno, chegava aquele tanto de carreta de minério de carvão,o pai ajudava, aquele serviço braçal. Ai outros falou o senhor não ta muito bem, o senhor deve arrumar um serviço. Surgiu um serviço lá na Usina Gravatá. (...) O pai trabalhou aproximadamente uns 09 anos. Fazia ração, fazia amido, aquele movimento. Depois foi fracassando, fracassando, as fazendas já não tavam plantando mais mandioca, tudo nesse mundo vai acabando.

34 MORRE GTO. O globo em confusão. Correio do Centro Oeste, s/ local, 15 a 21 de julho de 1990. s/ p.

Page 20: GTO - tomo 1

20as modificações que ocorreram nos salões municipais, originados nos anos 30, da capital.

Ribeiro destaca que a versão do XIX Salão Municipal de Belas Artes da Prefeitura Municipal foi um marco nas mudanças do evento e no panorama geral das artes. Neste evento, o júri composto por críticos reconhecidos como Clarival do Prado Valadares, José Geraldo Vieira, Mari’Stella Tristão, liderados por Mário de Andrade, recusou trabalhos de artistas de renome para premiar artistas com obras experimentais como Jarbas Juarez, reconhecendo novos talentos nas arte mineira. A crítica de arte feita por Frederico de Moraes reforçou a perspectiva do júri e registrou em artigos o surgimento de nova geração de artistas em Minas.

Ribeiro destaca também a atuação das galerias de arte no circuito comercial das artes, incentivando o trabalho de artistas jovens. Neste aspecto, destacaram-se galerias como Grupiara e Guignard. A primeira, inaugurada em 1963, representou a inserção das artes plásticas no circuito mercadológico das artes em Belo Horizonte e foi a primeira galeria comercial da capital. A Galeria Guignard, inaugurada em 1964 e dirigida por Sálvio de Oliveira, representou a ampliação do mercado das artes com autores brasileiros, mas também se tornou um centro de referência para artistas, críticos e colecionadores. Nela, alternavam-se os trabalhos de artistas consagrados com os de artistas neovanguardistas.35

A história de Geraldo Teles de Oliveira como artista começou na Galeria Guignard. Em 1967, Geraldo, que seria reconhecido como GTO, despontou como artista na capital mineira após ganhar reconhecimento e muitos incentivos na cidade de Divinópolis. Em 1967, fez sua primeira exposição em Belo Horizonte, na Galeria Guignard. Foi a primeira exposição individual do artista e teve o patrocínio do Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento de Minas Gerais. A crítica de arte destacou o título curioso das

35 RIBEIRO, Marília Andrés. Formação da Arte Contemporânea, p. 244-312 . In: Marília Andrés. SILVA, Fernando Pedro. (org.) Um século de história das artes plásticas em Belo Horizonte: C/Arte: Fundação João Pinheiro. Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1997.

obras de GTO.36 No folder de apresentação, são elencados 27 trabalhos do escultor que foram expostos na capital mineira. As obras eram Joãozinho Gualiberto Maiando Caixa com Dois Maio, Camponês em Dia de Festa, A Luta, Figuras de Pau de Sebo, Uma Roda com Meninos Artilosos, Beirada de Rio, Enterro de um Soldado, Henrique de Coimbra Imperador37, além de muitas outras. Os títulos, muito além de curiosidade, trazem muitas informações sobre o universo de criação e de inspiração do artista. Remetem ao mundo de onde GTO partiu mais de 50 anos antes, e demonstram como ele preservou a sabedoria deste mundo ao longo do tempo, para materializá-la naquele momento. E, num gesto de intensa criatividade, misturou seu universo de origem com as visões, as percepções que tinha do turbilhão social, da confusão do século XX. De forma semelhante ao herói de Rousseau, que descrevia como “turbilhão” ou “redemoinho” (aspas para não confundir sua colocação com as do autor) as experiências da modernidade, GTO utilizou muito o movimento em círculo, no interior de rodas, para retratar a “confusão” do mundo. Mas tornar-se artista reconhecido em todo o Brasil não dependeria somente de exposições em galerias de arte. Era preciso convencer a crítica especializada.

Em agosto de 1967, o crítico de arte Márcio Sampaio escreveu um artigo no Suplemento Literário, intitulado Primitivo: Ser ou não Ser. Esse crítico afirmou que o fato de a Bienal de São Paulo reservar uma sala especial para artistas primitivos abria a discussão sobre a validade desta arte que possuía representantes importantes como Henry Rousseau, os brasileiros Heitor dos Prazeres, Luis Soares, Cardozo Jr. No entanto, Sampaio critica a grande quantidade de artistas ditos primitivos no cenário das artes brasileira e internacional e o apelo mercadológico de suas obras. Destaca que

ocorre no Brasil, atualmente, uma verdadeira invasão de artistas que se dizem primitivos ou ingênuos, muitos dos quais não passam de pri-mários. As galerias, museus e coleções particu-lares estão cada vez mais dando atenção a eles,

36 TRISTÃO, Mari’Stella. Artes. Diário de Minas, Belo Horizonte, 02 de junho de 1967, n ° 5.334, s/p.

37 Catálogo da exposição do escultor primitivo Geraldo Teles de Oliveira. Belo Horizonte: Galeria Guignard, 02 de junho de 1967.

Page 21: GTO - tomo 1

21reservando grande espaço para as suas obras. Sua cotação é superior à de qualquer outro ar-tista técnico, culturalmente superior. (...) A Gale-ria Guignard, a única galeria de Belo Horizonte que tem realizado um programa de exposição contínuo, tem dado uma crescente atenção aos primitivos o que comprova a preferência do pú-blico comprador para a arte primitiva.38

O artigo de Sampaio confirma que o mercado de artes estava interessado nas obras de artistas primitivos.39 Entretanto, ganhar o reconhecimento da crítica especializada era uma tarefa bem mais complexa. As obras de GTO, por sua vez, conquistaram rapidamente a crítica especializada.40 Isto possibilitou uma velocíssima ascensão do artista no cenário artístico nacional em uma infinidade de eventos e espaços culturais.

Em 1968, GTO volta ao Rio de Janeiro, mas agora na condição de artista. Nesta cidade, estreou sua primeira exposição fora de Minas Gerais. Esta exposição foi realizada numa parceria entre as galerias Guignard, de Belo Horizonte, e a Galeria do Copacabana Palace. Neste evento, ocorrido em 16 de junho de 1968 e intitulado “3 Artistas Populares”, suas obras foram apresentadas juntamente com as pinturas dos artistas Rodelnégio Gonçalves e Júlio José dos Santos. A jornalista Vera Pedrosa registra a exposição na Galeria do

38 SAMPAIO, Márcio. Primitivo: ser ou não ser. Suplemento Literário, Belo Horizonte, 05 de agosto de 1967, ano II, n ° 49, p. 06 e 07.

39 As denominações dadas às manifestações da arte popular são diversas e motivo de muitas divergências entre os pesquisadores. A denominação de arte primitiva atribuída à arte de GTO, por exemplo, já era questionada logo quando ele despontou como artista como podemos observar neste catálogo de exposição “Classificar artistas como primitivos ou não na era da aldeia global de MacLuhan, quando todos se informam, ou são informados à força sobre todas as coisas não faz sentido. Este rótulo – seja ele primitivo, ingênuo, ‘naive’ ou até nacionalista caipira – funciona hoje apenas como uma forma de catalogar apreender (e prender) ou limitar artistas dentro de uma faixa definida. As discussões ainda não esgotaram o tema, pois há uma cada vez mais crescente e atuante faixa de críticos, pesquisadores e meros consumidores de arte preocupada em estabelecer um critério unilateral e injusto – pois criado a partir da ótica do Sistema estabelecido e de sua classe dirigente – para classificar a obra de certos artistas que não pautam seus trabalhos pelos cânones estéticos tradicionalmente aceitos.” PEREIRA, Edgar. Fôlder da Exposição GTO e Rosina Becker na Galeria AMI, Belo Horizonte, 06 de abril de 1973.

40 A crítica de artes Mari’Stella Tristão destaca como GTO teve rápida ascensão como artista plástico com respaldo da crítica especializada de arte. Em artigo do jornal Estado de Minas, ela destaca que após a exposição no Copacabana Palace “o sucesso foi total e GTO apenas com esta mostra teve sete votos para figurar na ‘Exposição Resumo’ do JB.” TRISTÃO, Mari’Stella.GTO: Um mundo de sonhos escritos na madeira, Belo Horizonte, Estado de Minas, 10 de agosto de 1969, Espetáculos.

Copacabana Palace, com recurso ao texto do crítico de arte Harry Laus. A jornalista destaca que Laus chama a atenção para a necessidade de se conhecer melhor o trabalho do escultor e estudar de forma mais acurada o trabalho deste, pesquisando o folclore da região de Minas e do Brasil. Laus, que faz a apresentação dos artistas no folder da exposição, registra grande admiração pela obra de Geraldo Teles de Oliveira afirmando desconhecer alguém que tenha trabalhado a madeira como esse artista.41 A imprensa, que noticiou a exposição dos artistas no Copacabana Palace, destacou a originalidade artística desse escultor apontando-o como um artista promissor no cenário das artes no Brasil.42 E as coisas caminhavam para isto.

Em 1969, o trabalho de GTO apresenta um reconhecimento no cenário artístico mineiro e nacional. Tanto que o artista vai à X Bienal de São Paulo e ganha um espaço na chamada Sala de Arte Fantástica do evento.

No começo do ano de 1969, os salões da capital continuavam sua mutação. Os salões municipais foram reformulados e deram origem ao I Salão Nacional de Arte Contemporânea de Belo Horizonte, no Museu da Pampulha, sob a coordenação do crítico de artes Márcio Sampaio. GTO participou do I Salão. Nesse mesmo ano, o escultor ganharia um artigo dedicado somente às suas obras, escrito por Márcio Sampaio:

Daí somos obrigados a reconhecer que a arte de Geraldo Teles de Oliveira – um homem do povo – vai muito mais além do que a necessidade de expressão, necessidade esta que tem qualquer homem, como provam os psicólogos e, mesmo, a existência de tantos artistas primitivos. Os pintores primitivos ou naifs podem conseguir fazer uma “boa” pintura simplesmente como resposta a esta necessidade de expressão. Mas há alguns como Rousseau que conseguem ir além dos esquemas da representação ingênua para ingressar no círculo dos mestres. GTO é também uma exceção entre tantos artistas des-

41 PEDROSA, Vera. Escultor popular que vem de Minas. Diário de Minas, Rio de Janeiro, 14 de julho de 1968, Segundo Caderno, s/ p.

42 O jornalista José Roberto Teixeira Leite fala sobre os artistas em exposição no Copacabana Palace, dizendo que “quanto aos pintores, já são relativamente conhecidos em Minas (Júlio José dos Santos) e mesmo no Rio (Rodelnégio Gonçalves) de exposições anteriores. Mas a vedette da mostra, parece-nos ser, indiscutivelmente, o escultor GTO.” LEITE, José Roberto Teixeira. Mineiros à Beira-mar. O Globo, Rio de Janeiro, 15 de julho de 1968, p. 08.

Page 22: GTO - tomo 1

22cobertos entre o povo: êle na sua simplicidade e ingenuidade, pode colocar-se como um dos elei-tos, um dos que se deixaram possuir pelo fogo sagrado; intérprete da vontade dos deuses, êle transpõe para os planos terrestres a Sua vonta-de, fazendo dela sua mais alta expressão.” 43

No entanto, tal projeção não conseguiu, na época, tirar o artista da pobreza. Muito menos lhe permitiu dedicar-se, despreocupadamente, ao trabalho de esculpir. A crítica de arte Mari’Stella Tristão registra este fato no final dos anos 60, destacando a mobilização realizada pelos artistas, marchands e críticos mineiros para ajudar GTO que, nessa época, vivia com esposa, um filho e uma filha casada e quatro netos, todos na mesma casa simples, sem forro e assoalho.44

Em 1970, mesmo em meio às dificuldades de artista que se iniciava nas artes, GTO era, inquestionavelmente, artista de destaque no Brasil. Depois de conquistar muito rapidamente espaço nas galerias e na crítica especializada, GTO se apresentou como artista na cidade de Divinópolis. Integrou as atividades da II Semana de Arte da União Estudantil de Divinópolis – UED. Dentro da agenda do evento, de 22 de agosto a 07 de setembro de 1970, reservou-se espaço para visita às obras de GTO. As obras poderiam ser vistas na casa do artista, dos dias 30 de agosto a 01 de setembro e de 04 a 07 de setembro, no horário das 14 às 16 horas. Destacava o programa do evento que, fora desses dias e horários, estavam expressamente proibidas as visitas à residência do senhor Geraldo Teles de Oliveira (porque?).45 O ritmo de trabalho de GTO, escultor iniciante nas artes, mas que muito havia trilhado na vida, era intenso para satisfazer às demandas da casa cada vez mais pequena para uma família que crescia. Por isto, houve um intervalo em sua participação na Semana de Arte de sua cidade, Divinópolis, pois GTO trabalhava para outra exposição. Logo, a Galeria Guignard anunciou a participação de GTO, juntamente com outros artistas ditos

43 SAMPAIO, Márcio. Escultura de GTO. Agora, Divinópolis, março de 1969, n ° 10, s/p.

44 TRISTÃO, Mari’Stella.GTO: Um mundo de sonhos escritos na madeira, Belo Horizonte, Estado de Minas, 10 de agosto de 1969, Espetáculos, p. 02.

45 II Segunda Semana de Arte. Divinópolis, 28 agosto a 07 de setembro de 1970, s/p.

primitivos, em Araxá, de 31 de agosto a 04 de setembro. A produção artística de GTO se avolumava para atender às demandas das galerias e, principalmente, ao cotidiano de pai e avô. Para que GTO ganhasse a consagração como artista e, ao mesmo tempo, pudesse contornar as dificuldades econômicas, a participação em exposições internacionais foi muito determinante.

Acompanhando esta transição da pobreza para um conforto moderado, o crítico de artes Márcio Sampaio escreve um interessante texto. Publicado em 1972, este artigo registra algumas mudanças no cotidiano e na casa de GTO, quando o artista trabalhava para a exposição da Trienal de Bratislava, na antiga Tcheco-Eslováquia:

Divinópolis, MG. Uma casa simples, agora só-lida, as paredes pintadas de novo, crianças no alpendre brincando com toscos bonecos, e na janela uma moça clara olha o tempo, cismando. Numa parede cor-de-rosa, há incrustada uma escultura de madeira que logo a gente identifi-ca. Ali é a casa-oficina de GTO – Geraldo Teles de Oliveira – escultor popular, nome obrigatório na crônica da arte brasileira contemporânea. (...) Nestes sete anos em que ascendeu ao pos-to de maior escultor popular vivo, ele perdeu muito da antiga inocência, aprendeu a dizer o que devia dizer para impressionar eventuais compradores, jornalistas, críticos e turistas e agora não é mais fácil fazê-lo retornar à primi-tiva simplicidade, ao verdadeiro Geraldo Teles de Oliveira. Suas palavras são policiadas pela esposa ou pelo filho que reforçam os preços das peças, a dureza do trabalho, o talento e a glória do GTO (...). Mas aos poucos comentando um detalhe, a minimidade de um corte, ou desco-brindo a importância de uma figurinha quase oculta no rendilhado da madeira, surpreende o verdadeiro homem que faz de tudo aquilo – do trabalho, da invenção – não a glória, mas o ca-nal para ver a evasão de seus medos e alegrias, que entornam dos sonhos e das insônias.46

No ano de 1973, a projeção de GTO como artista se torna internacional. Outro país europeu, a Bélgica, conheceria os trabalhos do artista. Muitos registros da imprensa apresentam um GTO saído da miséria e conquistando relativo conforto com suas esculturas. O jornalista José Maurício, por exemplo, em um artigo, enumera as conquistas de GTO com seus trabalhos e, além disto, destaca que existem trabalhos do artista em museus brasileiros e estrangeiros,

46 SAMPAIO, Márcio. GTO – primeiras Estórias. Suplemento Literário, Belo Horizonte, 08 de abril de 1972, ano VII, n ° 293, p. 02-04.

Page 23: GTO - tomo 1

23muitas obras na Galeria Guignard e, em breve, na Galeria AMI.47 Nos anos 70, novas galerias e espaços comerciais surgiram na capital devido ao breve aquecimento do mercado de artes estimulado pelo aumento do poder econômico promovido pelo “milagre brasileiro”.

A esse respeito, Marília Andrés Ribeiro enfatiza que o mercado de artes apresentou um leve aquecimento, mas continuou limitado.48 Talvez, em virtude desta limitação, as galerias mineiras passaram a se rivalizar mais severamente. E, também por causa disto, a disputar a representação de artistas como GTO, o que ocorreu justamente no momento em que coincidiam o aquecimento do mercado e a projeção internacional do artista. Esta disputa entre as galerias Guignard e AMI foi noticiada pela imprensa da época 49 e, mais ainda, gerou um registro histórico realizado por Carlos Drummond de Andrade. Este artigo, escrito em 1973, intitulado GTO na Prisão, inicia com a fala do próprio GTO, “A gente cresce, fica conhecido e todo mundo quer ser dono da gente. Eu só queria ser livre...”, ao que Drummond responde:

Mas você está querendo demais Geraldo Teles de Oliveira. Livre era você em Divinópolis, an-tes de conhecer os admiradores, negociantes de arte, os críticos, os repórteres, as exposições, os noticiários especializados, e a cor do dinheiro.50

Diante de toda esta trajetória, vê-se que o homem simples que, em 1913, nasceu Geraldo Teles de Oliveira se projetou pelo mundo. Nasceu e cresceu, praticamente ao mesmo tempo em que a cidade de Divinópolis. Ele, de repente, se tornou artista na velocidade de um redemoinho e em meio a um turbilhão de acontecimentos. E como artista cresceu de tal forma que ficou mais conhecido que a própria cidade de Divinópolis, local de onde partiu para

47 O jornalista José Maurício diz, em 1973, que o escultor “hoje tem sua casa taqueada, com geladeira, jardim na frente e pomar no quintal, a casa é sua e tem até outro terreno.” O jornalista registra também um atelier que foi doado a GTO por Roberto Cohen e Renato Dourado. MAURÍCIO, José. GTO: por causa de um sonho. Arte também é turismo. 1973.

48 RIBEIRO, Marília Andrés. Formação da Arte Contemporânea, p. 244-312. In: Marília Andrés. SILVA, Fernando Pedro. (org.) Um século de história das artes plásticas em Belo Horizonte: C/Arte: Fundação João Pinheiro. Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1997.

49 MAURICIO, José. Nos caminhos de Guignard. Suplemento Literário, Belo Horizonte, 06 de janeiro de 1973, ano VIII, n ° 332, p. 06.

50 ANDRADE, Carlos Drummond. GTO na prisão. Belo Horizonte, 23 de janeiro de 1973, s/ p.

ser mais um artista e para onde voltou como o maior artista daquela época. GTO ultrapassou a própria cidade em outro aspecto: em menos de uma década, se tornou reconhecido pelo que havia de mais moderno nas artes, enquanto, durante décadas, a cidade se desdobrava para ser vista como mais uma representante da modernidade em Minas Gerais.

Neste sentido, GTO foi intenso e ultrapassou, respaldado pela arte de vanguarda, as fronteiras do Brasil e ganhou o mundo das artes em vários países da Europa e da África, além dos Estados Unidos. No entanto, como alertava Marshall Berman, quem ingressa na modernidade pode obter suas vantagens, mas há que se preparar para o seu caráter ameaçador, que pode destruir tudo aquilo que o ser humano tem, sabe e é. Por mais que sintam que não, até aqueles que se apresentam consideravelmente livres, como os artistas e os pensadores, estão submissos a estas imposições. Sobre estes, comenta Berman que

eles só escreverão livros, pintarão quadros, descobrirão leis físicas ou históricas, salvarão vidas, se alguém munido de capital estiver dis-posto a remunerá-los. (...) Assim que o trabalho é executado, eles se vêem como qualquer outro trabalhador, separado do produto do seu esfor-ço. Seus bens e serviços são postos à venda (...)51

Geraldo Teles de Oliveira conhecia bem o mundo tolhido de liberdade onde se davam as relações entre patrões e trabalhadores. Ingressou em outra realidade trabalhando como artista, experimentou a liberdade e acreditou que esta lhe acompanharia dali em diante. Rapidamente, porém, teve de entender que o trabalhador e o artista faziam parte do mesmo mundo tomado pela modernidade capitalista como destacou Berman. Então, GTO, para assegurar aquilo que era e o que conhecia, teve de escolher um percurso para saber até onde poderia chegar com sua arte em liberdade. GTO optou pela trajetória mais familiar e seguiu até o ponto do qual sabia que poderia voltar facilmente para sua casa, seu quintal, sua família, para tudo aquilo que não lhe prometia “nada”, mas que lhe ofereceu “tudo” em forma de inspiração para esculpir.

51 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar. Tradução de Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L. Ioratti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 111-112.

Page 24: GTO - tomo 1

24

Page 25: GTO - tomo 1

25Inspiração para fazer uma arte que saía de seu quintal e circulava nos locais culturalmente mais agitados do mundo. Tão agitados que, às vezes, tumultuavam a calma vida do artista. Mas a paz voltava assim que as obras começavam novamente no quintal da casa de GTO. Para, em seguida, mais uma vez ganhar o mundo, descrevendo um perfeito círculo. Uma roda muito agitada de vida.

E assim GTO se situou no mundo das artes. Suas obras conheceram lugares e espaços culturais que o próprio artista não conheceu, em outros países. E GTO trabalhou como escultor atendendo às demandas de exposições nas décadas de 70 e 80, sempre tendo sua casa e sua família como referência e inspiração para o trabalho de esculpir.

Próximo de fazer 75 anos, GTO ainda seguia trabalhando em sua arte. Em um periódico, em 1987, concede uma entrevista juntamente com sua esposa e seu filho, os quais participavam ativamente de sua trajetória artística. A entrevistadora Ligia Jacques traz à tona outro dado que marcou a vida de GTO. Trata-se das enfermidades. A esposa de GTO, dona Maria Criola, destaca que os ganhos obtidos com a primeira exposição do artista em Belo Horizonte, vinte anos antes, foram utilizados para pagar uma dívida de um ano e oito meses com a Previdência Social, demonstrando a preocupação com a saúde do artista e o futuro da família:

Então peguei com Deus para que as peças leva-das fossem todas vendidas. E vendeu tudo, pa-gamos o fornecedor e o INPS atrasado e ainda sobrou um bocadinho de dinheiro para a gente comprar pão para os meninos.52

Passados quase três anos, em julho de 1990, GTO veio a falecer, vítima de embolia pulmonar. Neste momento da morte de GTO, é possível entender mais sobre o ser humano Geraldo Teles de Oliveira e seu universo de criação como artista. A obra de GTO sempre representou o homem, mais precisamente o homem vivendo em conjunto com outros homens. Qualquer um que tenha vivenciado a experiência da coletividade, quando se

52 OLIVEIRA, Geraldo Teles. Entrevista à Ligia Jacques, Divinópolis, Aqui para Nós, 11 a 17 de agosto de 1987.

apresentava diante de sua obra, sentia-se representado por algum dos elementos constantes em suas esculturas. E esta identificação ocorreu nos mais diferentes lugares do mundo, por onde seus trabalhos foram apresentados. Certamente, a maioria das pessoas que entrou em contato com sua arte não imaginava a simplicidade do contexto de criação desta. Não dimensionava que aquele trabalho, que representava o homem de diferentes culturas e regiões, saía das mãos de outro homem, de muitas experiências, mas de poucas exigências, que criava intensamente no quintal de sua residência, sempre ao lado de sua família.

Tudo na vida do artista GTO se relacionava a uma forma coletiva de viver. Acredita-se que principalmente esta característica garantiu a originalidade do seu trabalho ao longo do tempo. Permitiu que o artista fosse reconhecido por todos aqueles que se achavam presentes na sua obra. O momento de sua morte expressa este fato. Os jornais noticiam a morte do artista, registrando fatos da ordem do fantástico, que mais parecem ter saído das obras de GTO. No momento do falecimento de GTO, ocorre o primeiro fato surpreendente quando o periódico diz que

a morte de GTO acabou provocando outra morte. Foi de Moacir Pereira, conhecido Cici, residente a Rua do Estanho no bairro Niterói. Os dois eram muito amigos e quando se preparava para despedir do amigo, Cici, diante da emoção acabou tendo um enfarte e faleceu logo depois. 53

O mesmo periódico noticia ainda que apro-ximadamente 8 mil pessoas compareceram ao enterro de GTO. Tais fatos são importantes referências para se tentar dimensionar a im-portância desse artista para o povo. As notícias registram mais fatos relacionados à sua morte. Destacam-se, entre estes, os protestos ocorridos durante o sepultamento do artista:

Durante o velório vários admiradores do artista se revoltaram com a falta de organização. Um dos mais revoltados era o morador do bairro Niterói, Vanderlei Gontijo. Segundo ele, pelo trabalho que GTO prestou a Divinópolis, ele mereceria muito mais do que isso. Queixou-se da falta de um batedor policial para acompa-

53 Protesto no Sepultamento de GTO, Divinópolis, Jornal Agora, 07 de julho de 1990.

Page 26: GTO - tomo 1

26nhar o cortejo fúnebre, que muitas vezes foi interrompido por ônibus coletivos. Queixou-se também da ausência de uma viatura do Corpo de Bombeiros, pois para ele GTO mereceria ser conduzido desta forma. Disse ainda que as fal-tas das bandeiras do Brasil, de Minas e do Mu-nicípio foi uma falha imperdoável. (...)54

A partir destes fatos, torna-se incontestável concluir que o povo conhecia e se reconhecia na arte de GTO. E ninguém melhor, para saber a importância de um artista, do que os principais personagens de suas obras. Estes, ainda que não fossem especialistas, críticos ou negociadores de arte, viam em GTO, além de um artista mais que legítimo, um dos mais habilidosos escultores para expressar as manifestações próprias do homem comum do povo brasileiro e de muitos outros povos. Mas não era por ter nascido homem simples e por se apresentar assim durante sua vida, mesmo após a fama de grande artista, que GTO não merecesse as honrarias que os grandes artistas obtiveram. Era isto que os mais próximos e o povo que o acompanhava desejavam no ato de seu enterro.

A morte de GTO encerrou sua trajetória, retirando o artista do círculo do mundo em confusão para levá-lo ao mundo dos sonhos. De onde tudo começou. E, por mais que o povo e outros admiradores temessem, a morte do artista não apagou a memória nem interrompeu o movimento da roda de sua arte. Felizmente, a arte de GTO se inspirava na continuidade da vida e seus trabalhos sempre contaram com as mãos de seus descendentes para virarem realidade. Por isto, a arte de GTO ainda se materializa e ainda segue seu círculo. Ela parte do silêncio da casa e do antigo quintal da família do artista para os mais variados lugares e espaços em que a arte se realize. Depois, retorna ao mesmo lugar onde a arte sempre renasce, desde os tempos em que Geraldo Teles de Oliveira se apresentou ao mundo como GTO.

54 Idem.

REFERÊNCIASALMEIDA, Marcelina das Graças de. Belo Horizonte, arraial e metrópole: memória das artes plásticas na capital mineira, pg. 72-107 In: RIBEIRO, Marília Andrés; SILVA, Fernando Pedro. (org.) Um século de história das artes plásticas em Belo Horizonte: C/Arte: Fundação João Pinheiro. Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1997.

ÁVILA, Cristina. Guignard, as gerações pós-guignard e a consolidação da modernidade, pg. 170- 228. In: Marília Andrés; SILVA, Fernando Pedro. (org.) Um século de história das artes plásticas em Belo Horizonte: C/Arte: Fundação João Pinheiro. Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1997.

AZEVEDO, Francisco Gontijo; AZEVEDO, Antonio Gontijo de. Da história de Divinópolis. Belo Horizonte: Graphilivros, 1988.

BARRETO, Lázaro. Memorial de Divinópolis: História do Município, Divinópolis, Serfor, 1992.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar. Tradução de Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L. Ioratti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 15-35.

BRASIL.DECRETO-LEI N. 3.171 – DE 2 DE ABRIL DE 1941. Reorganiza o Departamento Nacional de Saude, do Ministério Educação e Saude, e da outras providências. Disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=818. Acesso em: 10 set. 2011.

CARVALHO, José Murilo. Os três povos da Republica. Revista da USP, São Paulo, n ° 59, p. 96-115, setembro/ novembro 2003.

DULCI, Otávio Soares. Política e Recuperação Econômica em Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

GONTIJO, Pedro X. História de Divinópolis. Divinópolis: Sidil, 1995.

MARTINS FILHO, Amilcar Vianna. O segredo do estilo mineiro de fazer política (1889-1930). Tradução: Vera Alice Cardoso Silva. Belo Horizonte: Crisálida/ ICAM, 2009.

RIBEIRO, Marília Andrés. Formação da Arte Contemporânea, pg. 244-312. In: Marília Andrés. SILVA, Fernando Pedro. (org.) Um século de história das artes plásticas em Belo Horizonte: C/Arte: Fundação João Pinheiro. Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1997.

VIEIRA, Ivone Luzia. Emergência do Modernismo, pg. 116-165. In: RIBEIRO, Marília Andrés. SILVA, Fernando Pedro. (org.) Um século de história das artes plásticas em Belo Horizonte: C/Arte: Fundação João Pinheiro. Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1997.

ENTREVISTATELES, Mário Pereira. Entrevista concedida a Faber Clayton Barbosa em 29 de julho de 2011.

Page 27: GTO - tomo 1

27CATÁLOGOSCatálogo da exposição do escultor primitivo Geraldo Teles de Oliveira. Belo Horizonte: Galeria Guinard, 02 de junho de 1967.

PEREIRA, Edgar. Folder da exposição GTO e Rosina Becker na Galeria AMI, Belo Horizonte, 06 de abril de 1973.

PERIÓDICOSII Segunda Semana de Arte. Divinópolis, 28 agosto a 07 de setembro de 1970.

ANDRADE, Carlos Drummond. GTO na prisão. Belo Horizonte, 23 de janeiro de 1973.

ARANTES, Maria do Carmo. GTO e a arte incomum. Jornal Ponta de Lança, Belo Horizonte, março 1982, n ° 02,

A INDÚSTRIA EM DIVINÓPOLIS. Divinópolis Jornal. Divinópolis, 03 de abril de 1916, ano I.

LEITE, José Roberto Teixeira. Mineiros à Beira-mar. O Globo, Rio de Janeiro, 15 de julho de 1968.

MAURICIO, José. Nos caminhos de Guignard. Suplemento Literário, Belo Horizonte, 06 de janeiro de 1973, ano VIII, n ° 332.

MAURÍCIO, José. GTO: por causa de um sonho. Arte também é turismo. 1973.

MORRE GTO. O globo em confusão. Correio do Centro Oeste, s/ local, 15 a 21 de julho de 1990.

MUNICÍPIO DE DIVINÓPOLIS. A Estrella do Oeste. Divinópolis, 22 de abril de 1923, ano I, n ° 15.

GONTIJO, X. Conversando com os divinopolitanos. Divinópolis, 15 de novembro de 1947, n ° 18.

OLIVEIRA, Geraldo Teles. Entrevista à Ligia Jacques. Divinópolis, Aqui para Nós, 11 a 17 agosto de 1987.

PEDROSA, Vera. Escultor popular que vem de Minas. Diário de Minas, Rio de Janeiro, 14 de julho de 1968, Segundo Caderno.

Protesto no Sepultamento de GTO, Divinópolis, Jornal Agora, 07 de julho de 1990.

SAMPAIO, Márcio. Primitivo: ser ou não ser. Suplemento Literário, Belo Horizonte, 05 de agosto de 1967, ano II, n ° 49.

SAMPAIO, Márcio. GTO – primeiras Estórias. Suplemento Literário, Belo Horizonte, 08 de abril de 1972, ano VII, n ° 293.

TRISTÃO, Mari’Stella. Artes. Diário de Minas, Belo Horizonte, 02 de junho de 1967, n ° 5.334.

TRISTÃO, Mari’Stella.GTO: Um mundo de sonhos escritos na madeira, Belo Horizonte, Estado de Minas, 10 de agosto de 1969, Espetáculos.

Page 28: GTO - tomo 1

28

Page 29: GTO - tomo 1

29

Page 30: GTO - tomo 1
Page 31: GTO - tomo 1

Da arte de vanguarda à arte contemporânea

Rodrigo VivasDoutor em História da Arte (Unicamp), professor

de História da Arte da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Os salões de arte cumpriram uma impor-tante função no processo de divulga-ção, discussão e formação de público e

de artistas. Nas palavras de Ângela Ancora da Luz: “A história dos salões se confunde com a história da arte”. (LUZ, 2005, p. 19).

Os salões tinham a capacidade de concentrar “a produção artística de um período, emoldurar valores que se materializam em obras”, além de levar os artistas à consagração, “com a mesma naturalidade com que condena[vam] ao ostra-cismo artistas renomados”. (LUZ, 2005, p. 19).

Especificamente no Brasil, o salão ainda possibilitava ao artista a complementação da sua formação por meio do Prêmio de Viagem ao Estrangeiro, o qual “concedia ao artista nacional a realização do sonho de conhecer a Europa de Van Gogh e Munch, de Mondrian e Matisse, no contato direto com a produção exposta nos museus, diametralmente oposto à reprodução conhecida”. (LUZ, 2005, p. 19). Apesar da relevância do tema, poucos estudos foram realizados sobre os salões. No Brasil, o estudo inaugural sobre o assunto foi realizado por Ângela Ancora Luz. (LUZ, 2005, p. 20). O estudo dos salões de arte é um caminho profícuo e capaz de relacionar os mais variados componentes da produção artística, sejam eles: institucionais (o museu, a crítica de arte e o público); artísticos (as obras artísticas consideradas nos seus aspectos técnicos e estéticos) e sociais (o significado das premiações, a valorização dos artistas).

Historicamente, os salões de arte estiveram associados à academia, e as primeiras

reivindicações modernas foram sentidas na década de 1930. Nesse ano, Lucio Costa é nomeado diretor da Escola Nacional de Belas Artes (Enba) por Francisco Campos, ministro da Educação e Saúde do governo Getúlio Vargas. Apesar de os antigos professores acadêmicos serem mantidos, contratam-se artistas de tendências renovadoras como Gregori Warchavchik, Leo Putz e Celso Antônio. Lucio Costa supervisiona a comissão de organização da 38ª Exposição Geral de Belas Artes, em 1931, composta por Manuel Bandeira, Anita Malfatti, Portinari e Celso Antônio. Costa aceita todas as obras inscritas e provoca a desistência dos acadêmicos de renome.

O Salão Revolucionário, como se torna conhecido, reúne 506 trabalhos de 106 pintores; 129 de 41 escultores; e 35 projetos de 10 arquitetos, formando, em alguns casos, verdadeiras mostras individuais. Pela primeira vez, no Brasil, os artistas modernos têm presença significativa em uma exposição oficial. Pressionado pelos artistas acadêmicos que dominam a Enba, e sem ter respaldo político, Lucio Costa se demite enquanto ainda se realizava o polêmico salão, retornando a escola à sua estrutura tradicional. (LUZ, 1989).

Na década de 1930, em São Paulo, os artistas modernos reivindicam a superação da arte acadêmica. Articulado por Quirino da Silva e Geraldo Ferraz, entre outros, o Salão de Maio é criado para exibir a produção dos artistas modernos que não tinham, então, um espaço próprio de exposição. Flávio de Carvalho colabora para a realização das duas primeiras mostras e responsabiliza-se pela terceira. No

Page 32: GTO - tomo 1

32primeiro salão, são apresentadas obras de artistas brasileiros ou residentes no país e, de acordo com Frederico Morais, seguindo a mostra, são “realizadas várias conferências como a de Flávio de Carvalho”, denominada O aspecto mórbido e psicológico da arte moderna.

No segundo salão, destaca-se a produção de artistas ingleses surrealistas e abstratos como Ceri Richards, Ben Nicholson e Penrose. Do terceiro e último, também participam estrangeiros como Magnelli, Calder e Albers com obras predominantemente abstratas. Dentre os artistas nacionais presentes nesses salões, destacam-se jovens artistas paulistas, embora também compareçam artistas radicados no Rio de Janeiro. É grande o contraste entre a arte nacional, ainda figurativa, e as tendências já consagradas no exterior, colocando em evidência a necessidade de intercâmbio para renovar a produção artística e a crítica.

No caso da capital mineira, a repercussão favorável da Exposição Bar Brasil, em 1936, fez-se notar quando foi firmada a Resolução nº 6 da Câmara Municipal, que “instituiu uma exposição anual de arte”, mais tarde regulamentada pelo Decreto nº 130, de 23 de agosto de 1937, que oficializava os Salões de Belas Artes de Belo Horizonte, assinado pelo então prefeito Otacílio Negrão de Lima. Naquele momento, as mostras deveriam acontecer no mês setembro de cada ano, não se vinculando às comemorações do aniversário da cidade – o que viria a ocorrer a partir de 1952.

No Brasil, especificamente no Rio de Janeiro, ainda no século XIX, já é possível perceber os embates entre conservadores e progressistas ocupando os salões de artes plásticas. Em Belo Horizonte, essas disputas iniciam-se a partir de 1944, mas os primeiros salões, que teoricamente teriam surgido para representar a arte moderna, não possuem esse caráter.

Em 1937, inaugura-se o Primeiro Salão de Belas Artes, em certa parte obedecendo aos pedidos dos participantes do Salão Bar Brasil, realizado no ano anterior. Aquele salão conta com 139 trabalhos enviados.

Destaca-se, com relação aos eventos supracitados, a presença de participantes das Exposições Gerais de Belas Artes como Délio Delpino, Ângelo Biggi e o próprio Aníbal Mattos, que participa como pintor e como jurado. “Além dele, participaram do júri o Sr. Ministro Mário Mattos, o professor Gil de Lemos, Jeane Milde, Rafael Berti, Ângelo Biggi e Floriano de Paula”. (FOLHA DE MINAS, 1937).

As modificações dos salões de Belo Horizonte ocorrem, de fato, a partir da década de 1960, fundamentalmente após a realização do XV Salão Municipal de Arte, que contou com a participação de artistas reconhecidos nacio-nalmente, fazendo com que se redefinissem os conceitos até então utilizados para caracterizar as artes plásticas da capital mineira.

O regulamento do Salão Municipal de Arte da Prefeitura (SMAP), aberto no dia 12 de dezembro, consta de 16 artigos. Compreende as seções de pintura, escultura, desenho e gravura. Na divulgação do XV Salão Municipal de Arte da Prefeitura de Belo Horizonte, a única exigência para inscrição é a nacionalidade brasileira, sendo permitido que estrangeiros residentes no Brasil por mais de dois anos também concorram às premiações. Uma importante iniciativa é a concessão do prêmio de aquisição, o que possibilita a constituição do acervo do Museu de Arte da Pampulha. Para corresponder às expectativas do novo formato do salão, são convidados os seguintes jurados: Jacques do Prado Brandão, Sílvio Vasconcelos, José Joaquim Carneiro de Mendonça e Sanson Flexor. É importante notar que Flexor é responsável pela criação do Atelier Abstração, que busca ensinar a interpretar as formas essenciais da natureza em estruturas geométricas, contando com a participação de artistas como Izar do Amaral Berlinck, Zilda Andrews, Emílio Mallet e Nelson Leiner. Este último artista é convidado a participar do júri do SMAP no ano de 1961.

As mudanças na estrutura do salão não são aceitas sem críticas, pois os artistas mineiros passam a sentir-se ameaçados pela concorrência de artistas reconhecidos de outros estados. As contestações são centralizadas em uma série de artigos

Page 33: GTO - tomo 1

33publicados no jornal Diário da Tarde, sendo que o primeiro é intitulado “XV Salão de Belas Artes violou a lei: admitiu artistas de fora”. (DIÁRIO DA TARDE, 1960).

Salientam-se duas importantes modificações no cenário artístico de Belo Horizonte: a participação de artistas de outros estados e o início da discussão pública das artes plásticas. Com relação à primeira, a discussão é iniciada pelo historiador Augusto de Lima Júnior, que vai a público denunciar a violação das normas do salão. Para Lima Júnior, o salão municipal não passa de “marmelada”, e ele não entende como um bacharel em direito e “jurista experimentado” aceita ser envolvido em um verdadeiro “conto do vigário”.

O historiador passou a reivindicar a anulação dos prêmios concedidos no salão, alegando que a lei permitia apenas a participação de minei-ros, ou de artistas nascidos em outros estados que residissem em Belo Horizonte há, pelo menos, cinco anos. Não seria apropriado, então, que os contribuintes ajudassem o desenvol-vimento das artes plásticas de outros estados como Rio de Janeiro, São Paulo ou Rio Grande do Sul. Apesar das polêmicas, o XV Salão Mu-nicipal de Arte da Prefeitura de Belo Horizonte é realizado com a participação de artistas de outros estados, a saber: Ado Malagoli, Anatol Wladyslaw, Antonio Tomaz Assunção, Anto-nio Mesquista Nunes, Arcanjo Ianelli, Nelson Leiner, dentre outros. É notória a presença de vários artistas da Escola Guignard como Ildeu Moreira, Letícia Renault, Marília Gianetti e Ma-ria Helena Andrés. Há de se notar que nenhum mineiro é premiado no XV SMAP. Os premiados da seção pintura são: 1º prêmio, Ado Malago-li, Abstração com ponto vermelho; 2º prêmio, Takashi Fukushima, Abstração em branco; 3º prêmio, Anatol Wladyslaw, Pintura n. 1.

São enviados 400 trabalhos, dos quais cerca de 50% são rejeitados pelo júri. Da distribuição por categorias dos 180 trabalhos aceitos, constam 80 pinturas, 50 gravuras, 30 desenhos e apenas 6 esculturas. Na perspectiva da crítica da década de 1960, infelizmente, outras modalidades como gravura, escultura e desenho são consideradas menos expressivas.

Dos artistas premiados no XV Salão, Abstra-ção com Ponto Vermelho, de Ado Malagoli, faz parte do acervo do Museu de Arte da Pampu-lha. Nascido em Araraquara, em 1906, Malagoli falece em Porto Alegre, em 1994. No período de 1922 a 1928, estuda no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, tendo sido aluno de Enrico Vio. Malagoli trabalha com Francisco Rebolo, Alfre-do Volpi e Mario Zanini. Anos depois, estuda na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, e, no ano de 1928, faz parte do Núcleo Bernadelli. Afirmou-se, anteriormente, que a vinda de artistas de outros estados foi um fato extremamente importante para se iniciar a discussão sobre arte local, nacional e inter-nacional. Simbolicamente, o fato de Malagoli ter participado desse grupo foi ainda mais importante, pois, como se sabe, este núcleo foi responsável por lutar contra a hegemonia de artistas acadêmicos na Escola Nacional de Be-las Artes. Malagoli já havia sido contemplado com o prêmio de viagem ao exterior concedido pelo Salão Nacional de Belas Artes, residindo três anos nos Estados Unidos.

A premiação de Malagoli é importante por modificar o cenário artístico de Belo Horizonte, deslocando as discussões entre conservadores e modernos para arte abstrata e figurativa. Nessa época, o circuito de Belo Horizonte passa a conviver com o debate iniciado na Europa por Wassili Kandinsky, que busca na experimentação das cores e das formas a sua definição de “necessidade interna”.

Para Kandinsky, uma mancha redonda poderia assumir a mesma expressividade que uma figura humana, ilustrando que “o impacto do ângulo agudo de um triângulo sobre um círculo produz efeito não menos forte do que o dedo de Deus tocando o dedo de Adão em Michelangelo”. (READ, 1980, p.189).

Atribuir o início da abstração a Kandinsky é passível de debates, tendo em vista que é possível reconhecer a preocupação com o abstracionismo em trabalhos como os de estilo Jugendstil, com a distorção das formas vegetais e humanas dispostas em arranjo “geométrico da composição tipográfica, na angularidade das novas formas da mobília e na ênfase linear da arquitetura”. (READ, 1980, p.190).

Page 34: GTO - tomo 1

34Na perspectiva de Kandinsky, seu primeiro quadro abstrato é resultado de um acaso ocorrido quando, voltando de uma aula de esboços, ao abrir a porta do seu ateliê, deparou-se com uma obra de “um encanto indescritível e incandescente”. O pintor percebeu que, naquele momento, não identificava o tema e, ao mesmo tempo, não conseguia reconhecer nenhum dos objetos nela retratados, sendo estes compostos apenas por manchas coloridas. Ao aproximar-se, acabou por visualizar seu próprio quadro apoiado de lado no cavalete. Após esta experiência, concluiu que o objetivismo e a retratação de objetos eram nocivos para sua pintura. (READ, 1980, p.190).

Juntamente com seus compatriotas Alexei Von Jawlensky e Marianne Von Werefkin, e com os alemães Alfred Kubin, Gabriele Münter, Alexander Kanoldt e Adolf Erbslöh, Kandinsky forma uma associação de novos artistas. O ponto em comum para tal reunião não são as tendências não figurativas, mas “elas constituíam um ponto de convergência para os experimentalistas”. (READ, 1980, p.190).

No momento em que Franz Marc filia-se à as-sociação, Kandinsky percebe que havia encon-trado um artista que compartilha suas orienta-ções. A amizade dos dois artistas contribui para a fundação, junto com os artistas Münter e Kubin, do grupo Der Blaue Reiter. (READ, 1980).

Para Kandinsky, existe uma clara distinção entre a deformação lenta que implica uma emancipação progressiva da arte em relação a qualquer necessidade externa, como repre-sentar ou copiar a natureza, e o uso de formas plásticas como sistema de simbolização, cuja função é dar expressão externa a uma necessi-dade interna. Assim, esse pintor postula que a linguagem simbólica deva ser precisa, ou me-lhor, claramente articulada. Read (1980) perce-be que a estruturação harmônica de quadro se deve à sua formação jurídica e à sensibilidade musical capaz de produzir um sistema exato de notação. As cores devem ser dispostas no qua-dro assim como as notas em uma orquestra.

Neste sentido, o conhecimento de Kandinsky é inverso à concepção de uma arte arbitrária e, talvez, a metáfora musical seja importante

para explicar como se estrutura a arte abstrata. Embora a música clássica não possuísse letra, excetuando-se alguns estilos como as músicas medievais de Guillaume de Machaut, Francesco Landini, Johannes Ciconia ou compositores de ópera, não se chega a atribuir-lhe um significado secundário por esse fato. Assim como a arte abstrata, propostas como o free jazz foram colocadas em dúvida justamente por romperem certos limites entre invenção e arbitrariedade. Com suas experimentações, Kandinsky passa a buscar os efeitos da cor sobre a emoção e a desencadear reações no espectador. Acredita-se, assim, não mais ser possível exigir um conceito tradicional de “conteúdo”, pois os elementos concretos da forma e da cor tornam-se expressivos a ponto de realizar efeitos estéticos tão expressivos como os veiculados na arte figurativa.

A título de informação, cabe assinalar que também Mondrian forneceu uma importante contribuição para a arte abstrata. Nascido em Amersfoort, Holanda, em 1872, começou a pintar muito cedo. Possuía formação acadêmica e passou por vários movimentos artísticos como o impressionismo e o fauvismo, chegando ao cubismo. Em 1917, associa-se a Theo van Doesburg (1883-1931) e Bart van der Leck (1876-1958), e, juntos, fundam a revista De Stijl, nome “que passou a ser o do movimento, embora o próprio Mondrian sempre tivesse preferido Nieuve Beelding (neoplasticismo) por achá-lo mais significativo”. (READ, 1980, p.196).

No Brasil, a abstração informal é influenciada pela passagem do pintor francês Georges Ma-thieu, que obtém o primeiro prêmio de pintura nacional na V Bienal de São Paulo, em 1959. Após este ano, o tachismo torna-se referência obrigatória para os artistas brasileiros.

A introdução da arte abstrata informal não é recebida de forma pacífica. A crítica brasileira discute, nesse momento, a possibilidade de uma arte com características nacionais. O concretismo e o neoconcretismo, segundo alguns críticos, representam os anseios de uma arte genuinamente brasileira, ao passo que a abstração lírica compreende uma expressão internacional que descaracteriza as propostas utópicas de uma arte brasileira.

Page 35: GTO - tomo 1

35

Page 36: GTO - tomo 1

36Mário Pedrosa e Ferreira Gullar são os críticos brasileiros que debatem a possibilidade de se constituir uma arte nacional e acreditam na possibilidade de a arte construtiva forjar um conceito unificador para a sociedade brasileira. A arte informal, no entanto, “exprimia uma atitude de desilusão e de desespero em face da complexidade do mundo”. (GULLAR apud COCCHIARALE, GEIGER, 1987, p.241).

Conforme Ferreira Gullar, a arte abstrata informal, ao negar qualquer forma definida e a relação com o mundo exterior, passa a investir nos impulsos “desordenados da subjetividade e da ação”. A noção de uma arte caracterizada pelos impulsos inconscientes é utilizada para se criticar negativamente o movimento tachista.

Gullar afirma, por exemplo, que o tachismo teria de ser, para cada pintor, uma experiência efêmera no campo da expressão, a fim de preservar sua autenticidade, pois estaria condenando-o “a descer para o vértice de sua negação e se apagar nele ou a romper o automatismo em busca da forma e da estrutura”. (GULLAR apud COCCHIARALE, GEIGER, 1987, p.241).

Cabe a Jackson Pollock, na década de 1950, as primeiras experiências da arte “informal” com o desenvolvimento da pintura-ação. Na Europa, entretanto, suas propostas alcançam uma definição diferente.

Assim, apesar de haver aproximações da obra de Pollock com a de europeus, como Schneider ou Védova, algumas diferenças de natureza técnica merecem destaque. Os europeus mantêm-se fiéis à técnica tradicional da pintura, enquanto Pollock valoriza o “gesto”, ao deslocar a pintura do cavalete para o chão.

A arte tachista brasileira, considerando as definições de Gullar, aproxima-se mais do desenvolvimento europeu do que propriamente das propostas do americano. Não constata, por exemplo, o abandono dos instrumentos e técnicas tradicionais da pintura por artistas como Ado Malagoli. Para Gullar, muitos artistas realizam uma pintura abstrata por meios tradicionais, manipulando os mesmos instrumentos o que não se diferencia,

quanto aos meios técnicos utilizados, da pintura figurativa e, “assim, continua a referir-se a ela”. (GULLAR, apud COCCHIARALE, GEIGER, 1987, p.241). Segundo o crítico, apesar da reivindicação dos pintores tachistas de não mais pintarem “objetos”, são mantidos os mesmos processos criativos, materiais e instrumentos, não havendo rompimento com as propostas da pintura figurativa.

Gullar demonstra ainda que, no momento em que os tachistas europeus e brasileiros não buscaram em outras matérias sua forma de expressão, eles não romperam inteiramente com a figura, pois realizavam “uma arte figurativa que afirmavam não ser figura, por continuar a se referir a ela”. (GULLAR apud COCCHIARALE, GEIGER, 1987, p.241).

É neste cenário da introdução da arte abstrata no Brasil que se insere a obra de Malagoli: Abstração com Ponto Vermelho, produzida em óleo sobre tela com a sobreposição de várias tonalidades e com presença de empastes. Distingue-se nesta uma policromia de tons: verde, azul, marrom, preto, amarelo, ocre e vermelho. As variações tonais presentes nessa tela produzem um movimento espiralado em cuja constituição o vermelho é fundamental.

Como pensar uma sociedade que fica rubori-zada com o trabalho de Portinari na Exposição Moderna de 1944 e agora tem contato com uma obra abstrata como a de Ado Malagoli? Pen-sando-se em uma metáfora explicativa para tal obra, poder-se-ia fazer referência à música, mais especificamente, ao jazz. Uma possibili-dade comparativa pauta-se na experimenta-ção, a fim de entender o processo constitutivo de variações formais.

O uso de inúmeras cores produz uma coerên-cia interna à obra, talvez correspondendo à definição de “necessidade interna” de Kan-dinsky. Neste sentido, o tom ocre na obra de Malagoli equivaleria ao tema das composições jazzísticas. O tema norteia a atuação dos outros músicos que oferecem a base harmônica para o processo de experimentação. No entanto, como conceber o vermelho que se destaca de todas as outras tonalidades? O vermelho representaria a quebra da rotina, caracterizada pelo tema

Page 37: GTO - tomo 1

37jazzístico. Caberia, pois, uma comparação com experimentações limites de Thelonius Monk, Miles Davies, Louis Armstrong, John Coltrane, para citar alguns. Assim como é característico nas artes plásticas, o jazz também coleciona momentos memoráveis como o ocorrido com Louis Armstrong. O jazzista foi gravar uma composição em um estúdio, mas a letra caiu no chão. Como a gravação não podia ser interrom-pida, Armstrong abandonou a letra, passando a vocalizar e acompanhar os instrumentos pro-duzindo a hoje tão conhecida “Heebie Jeebies”.

A pintura, para Malagoli, dependeria dos aspectos expressivos da forma, cor, composição e matéria, elementos tradicionais em todas as épocas da pintura.

Pode-se dizer que Abstração com Ponto Vermelho dialoga com um conjunto de obras expostas nas Bienais de São Paulo. Nota-se o embate entre figuração e abstração que já havia sido fomentado em mostras como Do figurativismo ao abstracionismo, em 1949, na inauguração do Museu de Arte Moderna de São Paulo. É efetivamente a partir das Bienais que a arte abstrata parece ter-se consolidado no Brasil, a exemplo das obras de Ivan Serpa, Formas, e de Willi Baumeister, Gesto Cósmico, expostas na primeira produção do evento.

Embora as obras supracitadas sejam representativas para o desenvolvimento da arte abstrata no Brasil, talvez aquela que mais tenha influenciado Ado Malagoli tenha sido a de Yolanda Mohalyi, Composição I. Vale lembrar que Malagoli, antes da premiação do SMAP, concorreu na I Bienal de São Paulo, mas não fora premiado.

Após o XV Salão Municipal de Arte da Prefeitu-ra, a capital mineira transforma-se no palco de reivindicações de arte de vanguarda. É possível perceber que os acontecimentos culturais do ano de 1963, em Belo Horizonte, como a Sema-na de Poesia de Vanguarda, o surgimento de galerias de arte e as primeiras modificações nos Salões Municipais de Arte da Prefeitura apenas anunciam as drásticas alterações do próximo salão. O clima de hostilidade, criado após o corte dos artistas mineiros, assume novo significado com a exclusão de artistas

reconhecidos nacionalmente. Quebra-se, nesse salão, a ideia de que o júri teria preferência por artistas do eixo Rio-São Paulo, como acredita-vam os críticos e artistas de Minas Gerais.

Mário Pedrosa, José Geraldo Vieira, Clarival do Prado Valladares, José Joaquim Carneiro Mendonça e Maristella Tristão são os jurados participantes do XIX SMBA e os seguintes artistas concorrem: Arcângelo Ianelli, Antonio Maia, Wega Nery, Luiz Canabrava, Ismênia Coaracy, Maria Guilhermina, Doroty Bastos, Miriam Chiaverini, Marília Rodrigues, Farnese de Andrade, dentre outros. Participam os mineiros: Yara Tupinambá, Jarbas Juarez, Ieda Pimentel, Sara Ávila, Celso Renato, Beatriz Magalhães, Lótus Lobo e Paulo Laender. Sobre os cortes das obras: 437 trabalhos são enviados, mas apenas 81 são aceitos. Dentre as 210 pinturas concorrentes, 34 são aceitas; das 25 esculturas, apenas 5; das 94 gravuras, 29; e dos 108 desenhos, 13. De forma sintética, pode-se dizer que as principais modificações na estrutura do SMBA são o elevado número de artistas cortados, a premiação de jovens artistas em detrimento dos famosos e a publicação do manifesto de Jarbas Juarez contra o estilo mineiro de pintar.

Juarez ganha o primeiro prêmio de pintu-ra com uma obra que destoa do modelo de representações paisagísticas que caracteriza a produção dos artistas de Belo Horizonte antes e, sobretudo, após Guignard. Escreveu: “Guig-nard está morto, descubramos nossos próprios caminhos!”. Para Juarez, seria necessário

romper, definitivamente, as amarras com o chamado “estilo mineiro de pintura” lamen-tando o peso da herança de Guignard e tudo o que se lida a obra do mestre: as paisagens de Ouro Preto, o desenho feito a lápis duro, os re-tratos.” (JUAREZ apud BENTO, Cortes drásticos no Salão Mineiro, Diário Carioca, Rio de Janeiro, dez. 1964).

O desejo de Jarbas Juarez seria destruir os milhares de quadros e desenhos feitos à sombra do estilo de Guignard sobre Ouro Preto e a paisagem mineira, julgando “medíocre toda essa produção, que não passa de pura manifestação acadêmica”. (BENTO, Cortes drásticos no Salão Mineiro, Diário Carioca, Rio de Janeiro, dez.1964).

Page 38: GTO - tomo 1

38A polêmica do manifesto é potencializada quando surgem rumores de que Pedrosa premiou Juarez após ler o seu manifesto. Tristão nega, em um artigo, essas alegações, considerando-as absurdas e falsas. Segundo ela,

não procedem as informações de que Mário Pedrosa concordava com o júri, como são absolutamente falsas aquelas em que dizem que após a leitura de uma entrevista de Jarbas Juarez, as intenções da comissão foram mudadas. (TRISTÃO, Inaugurado ontem o Salão Mineiro, Estado de Minas, dez. 1964).

É necessário analisar alguns pressupostos ad-vindos dos acontecimentos. O primeiro é que, contrariamente à reclamação dos mineiros, um artista de Belo Horizonte é premiado no salão. Neste sentido, percebe-se que o problema não reside apenas na seleção ou na exclusão de artistas fora do eixo, mas no desgaste do estilo mineiro de pintar como proposto por Juarez.

Para Ribeiro (1997), o gesto de Juarez simboliza-ria o início de um movimento neovanguardista em Belo Horizonte. Discorda-se, entretanto, do juízo elaborado por Ribeiro sobre a ruptura proposta por Juarez. Percebe-se na pintura do artista mineiro uma composição ainda tra-dicional se comparada às modificações exis-tentes no estatuto da arte contemporânea. Tal argumentação será desenvolvida no momento da análise da pintura do artista.

Nota-se que, a partir de 1964, é possível perce-ber os embates entre artistas conservadores da geração Guignard com novos artistas que não necessariamente residem em Belo Horizonte.

Com o resultado das premiações, Tristão vai a público esclarecer as fofocas que circulam em Belo Horizonte. Ela não relata o teor das informações divulgadas, mas afirma não poder ausentar-se do debate. A primeira iniciativa da crítica mineira é tentar amenizar o sentido do antiguignarismo:

Há ainda um outro aspecto bastante delicado. A forma de se discutir o anti-guignarismo. Não se pode admitir uma sanha tão violenta contra aquele que tudo fez por Minas, o qual abriu, com Aníbal Mattos, os caminhos de uma arte pura e limpa em nossa terra. Merece e carece do nosso respeito, o mestre falecido. E se a sua influência deixou marcas, é ela ainda que im-pulsiona, enobrece e eleva o nosso padrão artís-tico, marcado por épocas, como o fora também

Page 39: GTO - tomo 1

39o Aleijadinho, que nos legou tanta tradição. Ambos serão eternamente lembrados. E se o es-pírito de uma outra fase se inicia, não será por isso que havemos de “matar” também o que de bom deixou o mestre morto. (TRISTÃO, Inaugu-rado ontem o Salão Mineiro, Estado de Minas, dez.1964).

Como é possível perceber, Tristão assume uma proposta mediadora e posiciona-se apenas em momentos de conflito, mas raramente toman-do posições excludentes. Frederico Morais, por outro lado, passa a radicalizar suas proposições críticas, defendendo uma arte desvinculada do passado. Já Olívio Tavares de Araújo, apesar de defender artistas experimentais, ainda é consi-derado moderado em comparação a Morais.

Nota-se que a quebra de um isolamento da arte mineira é reafirmada com a exposição do Grupo Phases, em Belo Horizonte. O fator principal que uniria esse grupo não seria propriamente estético, sendo possível encontrar no grupo artistas com produções diferentes como Goetz, Schumacher, Markowski e Wesley Duke Lee.

EXPOSIÇÃO VANGUARDA BRASILEIRA – 1966

A exposição Vanguarda Brasileira é apoiada por Celma Alvim, pelo reitor da Universidade Federal de Minas Gerais, Aluísio Pimenta, e conta com a participação de artistas como Hélio Oiticica, Antônio Dias, Rubens Gerchman, Pedro Escosteguy, Ângelo de Aquino, Dileny Campos e Maria do Carmo Secco. Esses artistas mostram diversos trabalhos experimentais: Rubens Gerchman apresenta a série Caixas de Morar, focalizando elevadores com figuras recortadas no interior; Dileny Campos expõe um políptico, no qual desenvolve uma sequência cinematográfica denominada O Sorriso; Maria do Carmo Secco apresenta vários closes simultâneos de Roberto Carlos, líder da jovem Guarda; Oiticica envia seus Bólides, caixas com materiais elementares da terra (pigmentos coloridos, pedras, carvão), abertas à participação do espectador; Ângelo de Aquino focaliza figuras do super-herói Batman e Antônio Dias exibe relevos pautados pelas recordações de infância de seu Diário Íntimo.

Page 40: GTO - tomo 1

40Na inauguração da mostra, os artistas organi-zam um happening que culmina numa guerra de ovos a partir do material que estava dentro de um Bólide de Oiticica, provocando a indig-nação das autoridades presentes no evento. Ainda na exposição, é apresentado um catálo-go-cartaz com depoimentos de artistas e novos apontamentos de Morais para uma crítica de vanguarda.

Harry Laus, crítico do Jornal do Brasil, que já se mostrava atuante no apoio a iniciativas de vanguarda na cidade de Belo Horizonte, elogia a atitude do reitor Aluísio Pimenta ao aceitar as propostas artísticas de uma arte de vanguarda. Para Laus, a exposição Vanguarda Brasileira seria o primeiro momento de quebra do isolamento cultural de Minas.

Morais, em recente depoimento, relata a importância da exposição Vanguarda Brasileira

A exposição da vanguarda na Reitoria da UFMG mexeu muito comigo, porque nós tivemos que executar a proposta do Hélio Oiticica, que par-ticipou conceitualmente da exposição, mas não veio a Belo Horizonte. Fomos ao mercado, compramos uma cesta de ovos, arrumamos um carrinho de pedreiro com britas e montamos o trabalho a partir da idéia de apropriação que tínhamos aprendido através da obra de Du-champ. Eu, Gerchman e Antônio Dias estáva-mos juntos nessa exposição e foi daí que surgiu a idéia do crítico como co-criador da obra. Nesse momento, comecei a vislumbrar uma nova crí-tica criativa e engajada. (Depoimento de Frede-rico Morais à Marília Andrés Ribeiro. Belo Hori-zonte, 26 jul. 1991 apud RIBEIRO, 1997, p.165).

A exposição Vanguarda Brasileira, em 1966, é apenas um anúncio das propostas feitas pelos artistas de vanguarda e coordenadas por Frederico Morais na exposição Objeto e Participação e Do corpo à Terra em 1970. No período de realização da exposição Vanguarda Brasileira, Morais se muda para o Rio de Janeiro para dirigir a coluna de arte do Diário de Notícias, sendo extinto o Suplemento Dominical do Estado de Minas.

Arte Internacional Mineira e a X Bienal de São Paulo: Geraldo Teles de Oliveira.

A década de 1960 desempenha, como demonstra Michael Archer (2001), uma mudança vertiginosa no sistema artístico internacional. O fim do duopólio pintura-

escultura demarca a ruptura com séculos de representação artística. Observa-se que, ainda no início da década de 1960, é possível dividir a produção artística em escultura e pintura. Mas, como afirma Archer, o duopólio passa a ser questionado após o advento das colagens cubistas e da performance futurista, além dos eventos dadaístas.

Recentemente, no Brasil, um conjunto de pesquisadores tem reunido esforços para rever o significado das artes plásticas na década de 1960. Uma das estratégias tem sido encontrar caminhos alternativos, como o estudo dos salões de arte, para tentar revelar a complexidade do fenômeno artístico na época.

Mas como os movimentos – Grupo Phases, Opinião 65, Grupo Rex e Nova Objetividade – podem ter dialogado com os Salões Municipais de Arte da Prefeitura de Belo Horizonte? Como mencionado anteriormente, existe um trânsito constante entre artistas paulistas, cariocas e mineiros na exposição Vanguarda Brasileira, em Objeto e Participação e em Do Corpo à Terra. Neste sentido, além de os artistas do eixo Rio-São Paulo estarem presentes nos salões desde o início da década de 1960, ainda participam diretamente de movimentos realizados na capital mineira. Tais movimentos tornam-se fundamentais para o entendimento da História da Arte Brasileira.

O conceito de vanguarda transforma-se em uma disputa entre artistas mineiros – com a inauguração do Salão de Arte Contemporânea e as propostas do movimento Objeto e Participação e Do corpo à Terra, ocorridos em 1970. No final da década de 1960, o circuito artístico mineiro configura-se em pelo menos duas linhas de atuação: a primeira, dos artistas e críticos mineiros (Morgan Motta e Márcio Sampaio) que exigem critérios específicos constituídos em Minas para a premiação dos artistas; e a segunda, formada por Frederico Morais que exige um conceito de vanguarda universal. Com a retirada de Morais das decisões dos salões, o crítico passa a propor ações fora da instituição como nas “mostras”: Vanguarda Brasileira, Do corpo à Terra e Objeto e Participação. Para os artistas, essas disputas e convenções entre o conceito

Page 41: GTO - tomo 1

41de vanguarda do eixo Rio-São Paulo e Minas Gerais não impedem o diálogo entre eles. Nota-se, por exemplo, que os artistas José Ronaldo Lima, Diton Araújo, Lótus Lobo e Dileny Campos participam tanto do Salão de Arte Contemporânea quanto das propostas coordenadas por Morais.

Os artistas mineiros, que se aproximam de Morais, buscam romper com uma pintura isolada do público e alheia às preocupações políticas. O momento histórico exige um posicionamento político dos artistas, podendo ser observado nos Centros Populares de Cultura (CPCs), que objetivam promover espetáculos revolucionários nas ruas, nos sindicatos e em todos os espaços que possibilitam levar à prática revolucionária.

Nesse período, sendo reconhecido como representante da vanguarda carioca, Frederico Morais deixa de ser convidado a participar dos júris dos salões, o que o estimula a realizar uma série de proposições artísticas na cidade de Belo Horizonte, tais como Objeto e participação, Vanguarda Brasileira e Do Corpo à Terra, que unem artistas mineiros e de outros estados.

As “mostras” Objeto e Participação e Do Corpo à Terra ocorrem paralelamente e fazem parte do mesmo projeto coordenado por Frederico Morais. A primeira é realizada na parte interna do Palácio das Artes, e Do Corpo à Terra ocupa toda a extensão do Parque Municipal. A emer-gência dessas mostras refere-se a um conjunto de mudanças nas artes plásticas da década de 1960, que dialoga com questões levantadas anteriormente por Hélio Oiticica e Frederico Morais. O primeiro, principalmente, por intro-duzir o conceito de “nova objetividade”, rom-pendo com definições artísticas tradicionais. Como é demonstrado, Morais teve um papel importante para Minas Gerais porque foi um fundamental articulador das artes plásticas em um circuito ainda incipiente.

As propostas de Oiticica e de Morais podem re-lacionar-se a exposições como: Vanguarda Bra-sileira, na reitoria da UFMG, em Belo Horizonte, e Coletiva de Oito Artistas, na Galeria Atrium, em São Paulo, ambas em agosto de 1966. Ainda nesse ano, são realizadas as palestras Situa-

ção da Vanguarda no Brasil e Conceituação da Arte nas Condições Históricas Atuais do Brasil. Nota-se que um dos principais objetivos destes encontros é redefinir as propostas artísticas que busquem relacionar proposições estéticas, com-promisso social, além de aproximar arte e vida.

Após a exposição Proposta 66, é publicado o documento Declaração dos Princípios Básicos da Vanguarda, que visa à ampla divulgação do movimento nos jornais do Rio de Janeiro e São Paulo. O conteúdo político da exposição Nova Objetividade Brasileira pode ser observado em obras como Caixa N.5, em 1966, de Avatar Moraes; Visão Total, de Carlos Zílio; e Pátria Amada, de Marcelo Nitsche. Essas obras nascem sob o impulso do que Oiticica chama de “necessidade de fundamentar a vontade construtiva no campo político-ético-social”.

Objeto e Participação consiste em uma mostra coletiva, realizada no saguão do Palácio das Artes, com trabalhos de Franz Weissmann, Tereza Simões, José Ronaldo Lima, Humberto Costa Barros, Guilherme Vaz, Carlos Vergara, Ione Saldanha, Odila Ferraz, Cláudio Paiva, George Helt, Orlando Castano, Manoel Serpa, Manfredo de Souzanneto, Teresinha Soares, Yvone Etrusco, Nelson Leirner e Marcelo Nistche.

Segundo Paulo Roberto de Oliveira Reis, as reivindicações de Morais para as exposições Do corpo à Terra e Objeto e Participação são sistematizadas no texto Contra a arte afluente – o corpo é o motor da obra, publicado dois meses antes das exposições de Belo Horizonte. A análise de Reis parece correta, mas o programa crítico de Morais já se desenha desde a exposição Vanguarda Brasileira, em 1966.

Para Morais, o artista deveria ser um guer-rilheiro como a resistência dos vietcongs, na Guerra do Vietnã, que “derrubavam a flexadas (sic) os aviões F-111 (norte-americanos)”. (MO-RAIS, 1975, p. 49). A arte brasileira seria pobre por representar a situação de precariedade, mas por essa razão produziria maior integrida-de e força. Neste sentido, o corpo é pensando como agenciador de possibilidades, como lugar privilegiado das manifestações, da política, assim como marcado pelo estado opressor.

Page 42: GTO - tomo 1

42Um aspecto importante discutido nas exposi-ções Objeto e Participação e Do corpo à Terra é a quebra de uma proposta expositiva restrita ao museu ou galeria. Se anteriormente é possível pensar a organização de um espaço curatorial, nesse momento, o artista coloca-se apenas como um agenciador de práticas, não podendo controlar as variáveis expositivas como lumi-nosidade, barulho e disposição das obras. No contexto internacional, um exemplo emble-mático pode ser encontrado no livro de Lucy Lippard Six years. The desmaterialization of the art object (1973). A autora não propõe analisar as propostas desenvolvidas no período, ela ape-nas reúne um conjunto de recortes de jornais, manifestos e outras informações disponíveis sobre os artistas do período.

Fried, em 1967, escreve sobre os perigos da arte “se degenerar em teatro”. Nesse período, o processo já está em pleno desenvolvimento. Nas palavras de Archer, “o alvo de Fried era o Minimalismo, mas Thomas Hess tinha feito comentários simila-res a respeito do Pop em 1963”. (ARCHER, 2001, p.61). Mas como tentar produzir uma análise ou narrativa dos movimentos em meados da década de 1960 até 1970? Arte Conceitual, Arte Povera, Processo, Antiforma, Land, Ambiental, Body, Performance, Política são algumas denominações assumidas pela arte no período.

Como é possível perceber, Archer elabora um conjunto de questões fundamentais que atormentam o circuito artístico e a crítica de arte na segunda metade da década de 1960. Considerando a recente fundação dos museus brasileiros, essas instituições devem ter ficado fragilizadas com tais modificações. Nota-se que o Museu de Arte de São Paulo (MASP) foi fundado apenas em 1947 por iniciativa de Assis Chateaubriand, diretor dos “Diários Associados”. O objetivo inicial dessa instituição é expor obras de artistas brasileiros, “perfazendo um roteiro da modernidade nacional em diversas abordagens”. (REIS, 2005, p.66).

Como informa Reis, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro “foi inaugurado em 20 de janeiro de 1949, no último andar do Banco Boa Vista, com a modesta (32 obras), mas significativa exposição ‘Pintura Européia Contemporânea”. (REIS, 2005, p.66).

O MASP instala-se na rua “7 de abril, na sede dos Diários Associados”. (REIS, 2005, p.67). O museu é oficialmente aberto em 1947 com a exposição Do figurativismo ao abstracionismo, organizada por Leon Dégand.

Nota-se que a cultura museológica brasileira ainda é incipiente quando começam a surgir os movimentos questionadores dessa instituição. Internacionalmente, Brian O’Doherty demonstra que, apesar das críticas dos movimentos de vanguarda, os museus ainda se estruturam de forma neutra e rígida e, por vezes, aproximam-se de igrejas medievais.

Esse tipo de proposta de modificação do espaço encontra-se em artistas como Carlos Vergara, com a obra Empilhamentos, apresentada anteriormente na Petite Galerie (Rio de Janeiro, 1969). Frederico Morais, na exposição Vanguarda Brasileira escreve no cartaz sobre o artista:

Para Vergara, o quadro deixou de ser um delei-te, prazer ocioso ou egoístico, para transformar--se numa denúncia. Não foge nem esconde esta contingência – faz uma pintura em situação. (MORAIS, 1978 apud REIS, 2005, p.37).

A exposição Do corpo à Terra ocorre na gestão do governador Israel Pinheiro na inauguração do Palácio das Artes. Nessa ocasião, apresenta-se a palestra O Processo Evolutivo da Arte em Minas, coordenada por Maristela Tristão, que revê a produção mineira, de Athaíde aos vanguardistas. Parece que essa iniciativa é característica de momentos de ruptura, sendo necessária a reapropriação do passado para inaugurar novas possibilidades para o futuro. No caso específico de Belo Horizonte, o futuro é simbolizado pelo conceito de vanguarda.

Na exposição Do corpo à Terra, as propostas conceituais são realizadas durante três dias no Parque Municipal e nas ruas da cidade de Belo Horizonte. Dentre elas, destacam-se: Cildo Meirelles queima 10 galinhas vivas em ato que homenageia o sacrifício de Tiradentes; Lótus Lobo lança sementes no Parque Municipal; Luis Alphonsus queima um pano com extensão de 30 metros; o artista Eduardo Ângelo rasga jornais velhos; e Luciano Gusmão mapeia o Parque Municipal, dividindo-o em áreas livres e de repressão. Bastante conhecidas são

Page 43: GTO - tomo 1

43as trouxas de sangue lançadas no ribeirão Arrudas por Barrio. Lee Jaffe elabora um projeto na Serra do Curral desenhando uma trilha de açúcar.

O programa da “mostra” menciona que ela teria a duração de cinco dias – iniciando-se no dia 18 de abril de 1970 – e aconteceria no Palácio das Artes e em toda a extensão do Parque Municipal. Poderia ser incluído qualquer tipo de manifestação ou situação “no campo da arte ecológica (terra, água, ar, grama, etc.), conceitual (puramente mentais: imaginação), participacional, ambiental ou corporal” (Documento distribuído aos artistas que participaram da mostra: Objeto e participação e Do corpo à Terra). Todas as proposições artísticas deveriam ser realizadas em Belo Horizonte e seriam custeadas pelo Palácio das Artes nos seguintes termos:

as despesas referentes ao transporte (por terra: ônibus ou trem) e estadia do artista (até cinco dias) e de realização dos trabalhos até um má-ximo de NCr$300,00. O total das despesas (15 artistas) poderá ser administrado em grupo. Os artistas chegarão a Belo Horizonte na quinta--feira, dia 16, pela manhã, iniciando a apresen-tação de seus “trabalhos” no sábado. O dinheiro da passagem e mais os NCr$300,00 serão en-tregues no dia 16, em B.Hte. (Documento distri-buído aos artistas que participaram da mostra: Objeto e participação e DCAT, em 1970).

O documento alerta que a divulgação seria feita apenas por volantes escritos em “linguagem simples, que serão lançados nas ruas principais da cidade: no Mineirão, nos cinemas, etc. Não haverá catálogos nem cartazes, TV, rádio e jornal serão mobilizados”. (Documento distribuído aos artistas que participaram da mostra: Objeto e participação e Do corpo à Terra). O documento é finalizado, mencionando que Frederico Morais é o único autor intelectual da “mostra” e que, em São Paulo, os contatos com os artistas deveriam ser mantidos com Maria Eugênia Franco.

A crítica local recebe a “mostra” com desconfiança. Como mencionado anteriormente, existia uma disputa do conceito de vanguarda postulado pelos artistas mineiros que participavam do Salão de Arte Contemporânea e dos artistas do Do Corpo à Terra. Essas diferenciações podem ser notadas

nas observações de Ribeiro sobre Sampaio. Segundo a autora, Sampaio inicia o diálogo com Morais a respeito da exposição Vanguarda Brasileira, mas com bastante desconfiança, afirmando que essa exposição era “uma tentativa inútil de se criar”, em Belo Horizonte, uma “escola carioca” de “vanguardeiros”.

No que se refere à proposta Do Corpo à Terra, Morais busca um deslocamento do tradicional conceito de paisagem para o de ambiente ou ambientação. Uma aprofundada compreensão sobre esses conceitos já vinha sendo desenvolvida por Hélio Oiticica nas suas teorizações e proposições artísticas. É necessário mencionar que o artista carioca já estabelecia interlocuções com Morais desde suas participações em exposições como Vanguarda Brasileira e Do Corpo à Terra.

Relevos, Núcleos, Bólides, Tendas (Parangolés) buscam a criação de um mundo ambiental. Com seu pensamento, Oiticica busca transpor as noções de tempo e de espaço encontradas nas obras tradicionais, verificando o conceito de arte ambiental. Após a crise da pintura vivida por inúmeros movimentos das vanguardas históricas, o artista transforma-se em um propositor de práticas. O ambiental passa então a ser reconhecido como possibilidade no processo de libertação que abandona definitivamente o ilusionismo, na busca de estruturas que propiciem novas relações entre tempo e espaço. Algumas experiências anteriores como os Núcleos, Penetráveis e Bólides já sinalizam para esse novo tipo de proposta artística. De fato, as manifestações ambientais “compõem o programa de uma arte da totalidade: conjugam linguagem, espaços e tempos dispersos, reconceituando a arte, cujo objeto se desintegra e a imagem se recria”. (FAVARETTO, 2000, p.121).

A noção de espectador surge em um trabalho de recriação e participação constante. Para Oiticica, “a participação do espectador é também aqui característica em relação ao que hoje existe na arte em geral: é uma ‘participação ambiental’ por excelência”. (OITICICA, 1992, p.66). Trata-se de “totalidades ambientais que seriam criadas e exploradas

Page 44: GTO - tomo 1

44em todas as suas ordens, desde o infinitamente pequeno até o espaço arquitetônico, urbano, etc.”. (OITICICA, 1986, p. 66).

Nota-se que os Bólides participam da exposição Vanguarda Brasileira, com ovos sendo lançados nos participantes. Para Favaretto, as manifes-tações ambientais “são lugares de transgressão em que se materializam signos de utopias (de recriação da arte como vida); espaços poéticos de intervenções míticas e ritualísticas realizam a poética do instante e do gesto: ‘uma nova funda-ção objetiva da arte”. (FAVARETTO, 2000, p.121).

Embora tenham um histórico de vida em comum, Lygia Clark e Oiticica exploram esse aspecto participativo de formas individuais. Lygia atém-se às tentativas de dissolução do caráter dualista corpo/mente, físico/psicoló-gico, através de experimentações sensoriais, enquanto Oiticica se dedica a experimenta-ções envolvendo espaços sociais, culturais e arquitetônicos. Fundam, respectivamente, seus próprios modos de perceber a arte a partir de um substrato comum e reformulam o padrão de fruição estética ao confrontarem os meios tradicionais de expressão.

Os Bichos necessitam ser manipulados para que sejam desvendadas todas as suas configurações; os Parangolés só se tornam obras no momento em que o participante os veste. Em qualquer outro instante, é só uma capa. Propondo uma cocriação, baseada na ativação de uma linguagem corporal, essas obras alteram a posição tradicional do espectador, o status do objeto artístico e do artista, redefinindo assim a ideia de autoria.

No 1º Salão de Arte Contemporânea, participam os seguintes membros do júri: Jacques do Prado Brandão, Jayme Maurício, Morgan Motta, Márcio Sampaio e Roberto Pontual, que premiam os trabalhos de José Ronaldo Lima, Lothar Charoux, Abelardo Zaluar, Jarbas Juarez, Humberto Espínola, Gilberto Loureiro, Luciano Gusmão, Lotus Lobo, Dilton Araújo, Annamélia, Dileny Campos, Sérgio de Paula, Raimundo Colares, Décio Noviello, Nemer, Madu, Pompéia Brito, José Avelino de Paula, Márcia Barroso, João Sérgio de Souza Lima e Zama. Apesar de não ser premiado, Geraldo Teles de Oliveira

(GTO) é escolhido como um dos artistas do ano. Esse artista é apresentado como

paulatinamente, saindo de manifestações po-pulares, o nosso grande escultor de Divinópolis, (...) com toda aquela sua simplicidade de ho-mem do interior, com toda aquela sua bondade de perfeito cristão, foi trabalhando a madeira que lhe caia nas mãos e dela extraindo novas formas que não mais eram as cenas comuns da vida cotidiana, mas a criação onírica de um artista preocupado com implicações extra-ter-renas. Daí surgiu sua arte fantástica ou surre-alista. (Diário da Tarde, Destaques nas artes de 1969, jan 1970).

Na mesma matéria, GTO foi apresentado como o grande artista participante da X Bienal de São Paulo. Muitos artistas mineiros não foram selecionados, o que provocou o questionamen-to dos critérios do júri:

Baseado em critério ou “critérios” que ninguém está entendendo, o júri de seleção da X Bienal de São Paulo divulgou quinta-feira passada a relação dos 25 artistas que serão convidados para integrar a representação brasileira. (MOT-TA, A Bienal do lixo? Diário da Tarde, jun.1969).

Segundo os artistas mineiros, os artistas esco-lhidos residiam no eixo Rio-São Paulo. No caso, o único artista fora do eixo, escolhido pelo júri, foi Rubem Valentim, mas que, de acordo com os mineiros, poderia ser considerado cario-ca, pois vivia há mais de 20 anos no Rio. Na opinião dos artistas e da crítica mineira, se o conceito utilizado para a seleção era o de van-guarda, aqui, em Minas Gerais, poderiam ser encontrados vanguardistas como José Ronaldo Lima, Maria Helena Andrés, dentre outros. A indignação dos artistas mineiros decorria de um convênio assinado com o Governo do Esta-do de Minas para que artistas fossem previa-mente selecionados em Belo Horizonte.

Na época, José Ronaldo Lima, representante da vanguarda mineira, envia uma carta para a Bienal de São Paulo exigindo explicações para a exclusão dos mineiros. Artistas como Inimá de Paula, Ildeu Moreira, Sara Ávila e Ione Fonseca solidarizam-se com a campanha e também assinam o documento. Como se sabe, após o envio das reivindicações, 6 artistas mineiros são selecionados, além de 14 paulistas, 7 cario-cas e um baiano. José Ronaldo Lima, o líder da vanguarda, Álvaro Apocalypse e GTO são convi-dados a expor na Sala de Arte Fantástica.

Page 45: GTO - tomo 1

45GTO foi selecionado para a Sala de Arte Fantástica, que tinha como objetivo reunir “o que havia de melhor na vanguarda brasileira – e ao mesmo tempo apresentar em algumas Salas Especiais algumas tendências de grande importância, vitalidade e atualidade”. (BERKOWITZ, Catálogo da X Bienal de Arte).

Berkowitz menciona que a rapidez da comu-nicação e as revistas de artes contribuíram para o processo de internacionalização da arte, embora fosse possível encontrar artistas que mantinham o “cunho de brasilidade sem cair no folclore”. Neste sentido, a escolha de GTO parecia se justificar, pois ele conseguiu um “índice de brasilidade” sem “cair no folclore”.

A transformação de um artista “popular” em um artista contemporâneo pode ser explicada pela nova perspectiva artística que nega a institucionalização (critica o espaço expositivo do museu); que rompe com a continuidade de um conceito de moldura e pintura existente desde o Renascimento (inaugura a quebra do suporte da pintura e busca a desmaterialização do objeto artístico); que exige conexões entre arte e sociedade (propõe diálogos com o contexto social) e se apropria de técnicas artísticas tanto artesanais como industriais.

REFERÊNCIASALVARADO, D.V.P. Figurações Brasil anos 60: neofigurações fantásticas e neo-surrealismo, novo realismo e nova objetividade. São Paulo: Itaú Cultural; Edusp, 1999.

ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Mário Pedrosa: itinerário crítico. São Paulo: Scritta Editorial, 1991.

ARCHER, Michael. Arte contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

COCCHIARALE, Fernando; GEIGER, Anna Bella. Abstracionismo Geométrico e Informal – A Vanguarda Brasileira nos Anos Cinqüenta. Rio de Janeiro: Funarte, 1987.

FAVARETTO, Celso. A invenção de Hélio Oiticica. EDUSP: São Paulo, 2000.

HOLLANDA, H.B.; GONÇALVES, M.A. Cultura e participação nos anos 60. São Paulo: Brasiliense, 1982.

JUAREZ, Jarbas; SILVA, Fernando Pedro da; RIBEIRO, Marilia Andrés. Jarbas Juarez: depoimento. Belo Horizonte: C/ARTE, 2003.

LIPPARD, Lucy L. Six years: The desmaterialization of the art object. Nueva York: Praeger Publishers, 1973.

LUZ, Ângela Ancora da. Uma Breve História dos Salões de Arte. Da Europa ao Brasil. Rio de Janeiro: Caligrama Edições, 2005.

MALAGOLI, Ado; QUINTANA, Mario. Ado Malagoli visto por Mário Quintana. Rio de Janeiro: L. Christiano, 1985.

MORAIS, Frederico. Artes Plásticas na América Latina: do transe ao transitório. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

______. Cronologia das Artes Plásticas no Rio de Janeiro: 1816-1994. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.

OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Introdução Luciano Figueiredo, Mário Pedrosa; compilação Luciano Figueiredo, Lygia Pape; compilação Wally Salomão. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

PECCININI, Daisy. Figurações: Brasil anos 60. São Paulo: Itaú Cultural/Edusp, 1999.

PEDROSA, Mário. Acadêmicos e modernos: textos escolhidos III. Organização Otília Beatriz Fiori Arantes. São Paulo: Edusp, 1998.

READ, Herbert Edward. História da pintura moderna. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.

REIS, Paulo Roberto de Oliveira. Exposições de arte - vanguarda e política entre os anos 1965 e 1970. Tese de Doutorado defendida na Universidade Federal do Paraná em 2005.

RIBEIRO, Marília Andrés. Neovanguardas, Belo Horizonte, Anos 60. Belo Horizonte: C/ARTE, 1997.

VIVAS, Rodrigo. Os Salões Municipais de Belas Artes e a Emergência da Arte Contemporânea em Belo Horizonte. 1960-1969. Tese de doutorado, Unicamp, 2008.

SILVA, Fernando Pedro da; RIBEIRO, Marília Andrés. Um século de historia das artes plásticas em Belo Horizonte. Belo Horizonte: C/Arte: Fundação João Pinheiro,Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1997.

FONTES PRIMÁRIAS

XV Salão de Belas Artes violou a lei: admitiu artistas de fora. Diário da Tarde. 3 dez.1960.

XX Salão de Belas Artes poderá revelar jovens em Museu Recuperado. Estado de Minas. Belo Horizonte, nov.1965.

Artistas protestam contra critério do salão municipal. Diário de Minas. Belo Horizonte, 6 dez. 1963.

ARAÚJO, Olívio Tavares. Ainda os premiados do Salão. Estado de Minas. Belo Horizonte, 11 dez. 1963.

BENTO, Antonio. Cortes drásticos no Salão Mineiro. Diário Carioca. Rio de Janeiro, 11 dez. 1964.

FRADE, Wilson. Estado de Minas. Belo Horizonte, 4 dez. 1963.

Page 46: GTO - tomo 1

46LAUS, Harry. Rigor no Salão Mineiro. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 6 dez. 1963.

MAURÍCIO, Jayme. O 22º SALÃO. Diário da Tarde. Belo Horizonte, 4 dez. 1967.

MORAIS, Frederico. Escolhidos ontem vencedores do XVII Salão de Belas Artes. Estado de Minas. Belo Horizonte, 2 dez. 1962.

MOTTA, Morgan. A Bienal do lixo? Diário da Tarde. Belo Horizonte, 3 jun. 1969.

Salão de belo horizonte vai mostrar gente nova. O Globo. dez. 1968.

TRISTÃO, Maristela. Cada cabeça uma sentença. Estado de Minas. Belo Horizonte, 12 dez. 1965.

______. Inaugurado ontem o Salão Mineiro. Estado de Minas. Belo Horizonte, 13 de dezembro de 1964.

______. Estado de Minas. Belo Horizonte, 26 de novembro de 1967.

Page 47: GTO - tomo 1

47

Page 48: GTO - tomo 1
Page 49: GTO - tomo 1

O criador autodidata que construía mandalas de homens

Jorge Cabrera GómezMestre em Artes Visuais

Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

He aquí el relato de cómo todo estaba en suspenso, todo tranquilo, todo inmóvil, todo apacible, todo silencioso, todo vacío, en el cielo, en la tierra. He aquí la primera historia, la

primera descripción.(...)Pájaros, anidaréis sobre los árboles, sobre los

bejucos moraréis; engendraréis, os multiplicaréis sobre las ramas de los árboles, sobre las ramas de los bejucos.(…)

Al instante, fueron hechos los maniquíes, los [muñecos] construidos de madera; los hombres se produjeron, los hombres hablaron; existió la Humanidad en la superficie

de la tierra. Vivieron, engendraron, hicieron hijas, hicieron hijos, aquellos maniquíes, aquellos [muñecos] construidos de madera.(…) 2

O Popol Vuh

Os Maias foram uma grande civilização, na América do Norte, que ocupou, principalmente, a região norte da

Guatemala e o sul do México. Deixaram-nos

1 Versos iniciais do poema “A Árvore dos Sonhos”, do escritor Lázaro Barreto. 1972..

2 Temos aqui o relato de como tudo estava em suspense, tudo calmo, tudo imóvel, tudo passivo, tudo silencioso, tudo vazio, no céu, na terra. Temos aqui a primeira história, a primeira descrição. [...]

Pássaros, aninhareis sobre as árvores, sobre os cipós morareis; engendrareis, vós multiplicareis sobre os galhos das árvores, sobre os galhos dos cipós. […]

No momento, foram feitos os manequins, os [bonecos] construídos de madeira; os homens se produziram, os homens falaram; existiu a Humanidade na superfície da terra. Viveram, engendraram, fizeram filhas, fizeram filhos, aqueles manequins, aqueles [bonecos] construídos de madeira. […]. Disponível em: <In: http://www.nueva-acropolis.es/filiales/libros/Popol_Vuh.pdf>.

uma herança cultural riquíssima em mitos, entre eles, o Popol Vuh, ou “livro do grande conselho”, que nos fala sobre a origem e a criação do mundo. Para o Popol Vuh, o homem também foi feito de madeira, da mesma forma que Geraldo Teles de Oliveira, GTO, criou multidões de homens de madeira se entrelaçando uns aos outros, escalando o pau de sebo ou configurando mandalas, “Rodas-Vivas”, como ele as chamava. Seus oroboros, ou “ginásticas”, criam tramas de homens de madeira, em brincadeiras próprias da vida na roça ou em grandes procissões religiosas.

Os Astecas, outra civilização pré-colombiana, por outro lado, conseguiram representar o

Page 50: GTO - tomo 1

tempo com a forma circular (FIG. 1), criando uma mandala iconográfica cujo centro é ocupado pelo deus solar Tonatiuh, que mostra a língua sedenta de sangue. O que o círculo representava para essa civilização à procura de estabelecer a ordem do tempo, para GTO eram “Rodas-Vivas” de pessoas representando “a luta para atingir a ordem”, a confusão (FIG. 2), compondo acumulações em arranjos, em muitos casos, verticalizados (FIG. 3):

Essa peça representa o mundo em confusão. Cada uma representa uma coisa diferente. Essa outra representa a roda viva, com uma pirâmi-de de meia lua embaixo. Essa outra, os índios – essa é primitiva – e essa é outra catedral com o Cristo crucificado.3

André Breton, em Autodidactes dits naifs – Autodidatas chamados ingênuos –, aponta como características dessa arte chamada naif a sua aproximação com obras do extremo-oriental ou pré-colombianas, a descrição ultraminuciosa, a preocupação pela simetria e o deleite para o motivo

3 OLIVEIRA, 1987.

ornamental.4Aplicando essas características à obra de GTO, observamos que os ornamentos de rostos alinhados e os círculos concêntricos de suas mandalas lembram alguns conjuntos figurativos das culturas pré-hispânicas, como a figura circular que representa um marcador do jogo de bola maia, oriundo de Chinkultic, datado de 591 (FIG. 4).

Por sua vez, o conjunto dos objetos esculturais do artista remete a uma simetria que é quebrada com muita sutileza pelo deslocamento das figuras humanas localizadas na parte externa do círculo ou invertidas dentro da própria figura. Por outro lado, muitas de suas mandalas não marcam imageticamente o centro da figura geométrica. É a tensão que induz seu centro. Esta solução compositiva (FIG. 4) é bem característica de GTO, proporcionando certa complexidade ao seu trabalho, o que faz dele um artista particular configurando um lugar fora dos chamados artistas primitivos.

4 BRETON apud FROTA, 1978, p.12.

FIGURA 1 - Calendário solar. Arte asteca, 1325-1521.

Page 51: GTO - tomo 1

51Lucy Lippard afirma que nas comunidades pré-históricas as formas simbólicas como a serpente ou a espiral, esta última símbolo do moinho cósmico, estão associadas ao movimento da água. Assim, também os Maias, uma notável civilização pré-hispânica, eram grandes observadores e criadores de formas simbólicas inspiradas na natureza. Essa observância gera um sistema de representação que Lippard define como “metáforas visuais” ou “justaposição colagem”5, associado como processo criativo à bricolage, conceito elaborado por Claude Lévi-Strauss.6

Neste sentido, GTO foi também um homem criador de metáforas visuais e de uma justaposição colagem, reflexo de sua mitopoética caracterizada pelas lembranças das brincadeiras da roça, das revelações de seus sonhos, do misticismo de um homem sacro, como ele parecia ser, e, ainda, de seu repertório de homem simples do interior de Minas Gerais:

Comecei e não tive que aprender a fazer nada. E nem de nada eu sou. Aquilo que Deus me falou para fazer, eu fiz, pelo sonho. E depois o sonho me largou um bocado e eu comecei pela criação, porque eu sou primitivo e criador.7

5 LIPPARD, 1983. p. 3.

6 LÉVI-STRAUSS, 1976.

7 OLIVEIRA, 1987.

FIGURA 3 - Obra de GTO fixa sobre uma base de concreto

FIGURA 2 - Janela com mandala

Page 52: GTO - tomo 1

É importante assinalar que GTO considerava-se um criador, mas não um artista plástico. Assim demonstra a entrevista concedida à revista Análise, na qual ele responde:

ANÁLISE: O senhor se considera um artista?

GTO: Eu não me considero um artista. Eu não tenho inclinação. O povo é quem me considera.8

É necessário se denominar artista para ser reconhecido como tal? Seria possível assegurar que é o público quem atribui esse status tomando-se como referência a seguinte reflexão de Marcel Duchamp: “O que é um

8 OLIVEIRA, 1990.

artista? É tanto o fabricante de móveis, como Boulle, como o indivíduo que possui um ‘Boulle’. O Boulle também é feito da admiração que se lhe atribui”.9 Dessa forma, “é pela intervenção do público, pela intervenção do espectador, que é reconhecido o artista”, acrescenta Duchamp.10

Assim, a definição de primitivo que GTO dá a si mesmo, provavelmente, é proveniente de sua origem humilde, “rústica”, do interior, ou por sua ascendência paterna indígena: “Eu fiz índio, que também sou da mesma raça. Vovó

9 DUCHAMP, 2002, p.110.

10 Ibid. p.110.

FIGURA 4(a) - Marcador oriundo do sítio maia de Chinkultic, datado de 591

Page 53: GTO - tomo 1

53era índia. Ela era de Rio Ipiranga, Estado de Manaus, mãe de papai. Ela foi presa pegada no braço pra criá, novinha, tava mamando ainda”.11

Sendo um criador autodidata, é possível que com o termo primitivo ele não se referia a uma autoclassificação dentro da história da arte, es-tilo este que esteve na moda durante a segun-da metade da década de 1960 no contexto das galerias belo-horizontinas, dos salões de arte, da Bienal de São Paulo e do mercado da arte brasileira, segundo Márcio Sampaio.12

Sendo assim, como se inicia, simbolicamente, a trajetória criadora de GTO?

Pelas declarações da esposa de Geraldo Teles de Oliveira, Dona Maria de Oliveira,13 o escultor encontrou, por meio de suas preces, a condução para o mundo da arte. Segundo Dona Maria, cansada pelo sofrimento e pelas dificuldades de sua família, ela alcançou a “graça” de que GTO e seus descendentes artistas encontrassem uma forma de sustento e de realização pessoal: “Geraldo sonhou que estava fazendo uma igreja na madeira, no pau que eu não deixei rachar para lenha”,14 declara Dona Maria. É assim que é marcado o início da mitopoética do criador.

A mitopoética é uma bricolage intelectual, uma elaboração a partir de fragmentos de lembran-ças, histórias e outros elementos. Segundo Wunenburger, a mitopoética se origina em uma espécie de imaginação transcendental que, no caso de GTO, está principalmente relacionada com uma bricolage de seus sonhos: “Acho que os trabalhos feitos pelos sonhos são mais importantes porque são coisas de Deus. Não tive que aprender nada”.15 Com essas declarações, GTO demonstra que os trabalhos mais importantes para ele são aqueles gerados a partir do inconsciente. Neste sentido, Lucy Lippard afirma que a arte pré-histórica “teve sua origem no inconsciente e nosso próprio inconsciente ainda reage prontamente a ela”.16

11 FROTA, 1978, p. 95.

12 SAMPAIO, 1967 apud BARBOSA, [2011].

13 OLIVEIRA, 1987.

14 Ibid.

15 OLIVEIRA, 1990.

16 It had its source in the unconscious and our own unconscious

FIGURA 4(b) - Duas Rodas, obra de GTO

Page 54: GTO - tomo 1

54Contudo, podemos afirmar que o trabalho autodidata de GTO dialoga com as origens da obra de arte, quando os objetos eram criados a serviço de um ritual, a serviço da magia, com valor de culto e não artístico.

O sonho, processo fundamental para GTO na criação plástica, foi um elemento determinante do processo criativo de artistas do século XX. Um exemplo disto são os surrealistas, que encontraram no mundo do inconsciente e dos sonhos uma matéria fértil para suas criações.17 Com isso, não quero dizer que GTO seja um artista surrealista. Ele estaria, talvez, mais próximo dos artistas chamados de artistas brutos.

Primitivista18, naif, ingênuo19, artist brut20 foram algumas catalogações feitas para GTO e para sua obra. Na história da arte, o artista francês Jean Dubuffet, no manifesto de 1945, define arte bruta da seguinte maneira:

Nós entendemos por arte bruta as obras exe-cutadas por pessoas alheias à cultura artística, para as quais o mimetismo, contrariamente com o que se passa nas obras dos intelectuais, tem pouca ou nenhuma contribuição, pois seus autores tiram tudo (temas, materiais para colo-car na obra, meios de transposição, ritmos, frag-mentos de escritura, etc.) de sua profundeza, e não dos cânones da arte clássica ou da arte que está na moda. Nós assistimos à operação artís-tica pura, bruta, reinventada no interior de to-das as suas fases por seu autor, a partir somen-te de seus próprios impulsos. Falamos da arte que se manifesta só em função da invenção. 21

Tomando como base Dubuffet, a obra objetual de GTO pode ser considerada arte bruta, inclusive, pelos seus acabamentos em que

still reacts readily to it. In: LIPPARD, Lucy R. Overlay: contemporary art and the art of prehistory. New York: Pantheon, 1983. p. 4.

17 Segundo Dempsey, “o subconsciente, os sonhos e as teorias freudianas em geral foram utilizadas pelos surrealistas como repertório de imagens reprimidas para explorá-las à vontade”. In: DEMPSEY, Amy. Estilos, escuelas y movimientos, 2002. p. 153.

18 De acordo com Lélia Coelho Frota, “a denominação de ‘primitivo’, às vezes empregada em relação aos artistas liminares [...], prende-se a sua afinidade com as civilizações da África Negra, que Léopold Sédar Senghor chamou de ‘civilizações da ideia encarnada”.

19 Em 1968, GTO participou da Exposição de Arte Ingênua de Belo Horizonte. In: FERREIRA, Mauro Eustáquio. GTO Homem simples, grande escultor. Divinópolis: Águas Claras, 2005. p. 7.

20 GTO participou de uma coletiva de Art Brut em 1985, no hall do Cine Metrópole-Gaumont, em Belo Horizonte. In: FERREIRA, Mauro Eustáquio. GTO Homem simples, grande escultor. Divinópolis: Águas Claras, 2005. p. 7.

21 DUBUFFET, 1945 apud DANTAS, 2009. p. 32.

foi deixada a marca da machadinha, do canivete, da batida do formão. Contudo, prefiro denominar GTO de artista autodidata em função das conotações que o termo “artista bruto” possa adquirir em língua portuguesa e pela grande particularidade de sua obra no contexto das artes plásticas brasileiras dos anos 1960 e 1970.

Cândido Portinari, Di Cavalcanti e Lasar Segall mantiveram a hegemonia do modernismo brasileiro até o evento da I Bienal de São Paulo, em 1951. Após esta data, os rumos da arte moderna no Brasil mudaram em direção ao Concretismo, a princípio, animado pelas obras de Max Bill, rumo a “uma revisão de valores [artísticos]”, conforme explicita Mario Pedrosa.22 Acrescenta este crítico de arte23 que a I Bienal de São Paulo, organizada graças à visão progressista de Francisco Matarazzo Sobrinho e do grupo do Museu de Arte Moderna de São Paulo - MAM, “atualiza o mundo artístico e culto do país que retardavam em trinta anos”.

Do Concretismo ao Abstracionismo, a arte no Brasil avançava em direção à contemporanei-dade com artistas do grupo paulista Ruptura, tais como Haroldo de Campos, Geraldo de Bar-ros e Valdemar Cordeiro, e, na linha contrária, no Rio de Janeiro, pelo grupo Neoconcretista Frente, que tinha como proposta uma arte abstrata que se aproximava da Op-Art e da arte cinética, elaborando obras que valorizavam a luz, o espaço e os símbolos. Seus artistas mais representativos foram Amilcar de Castro, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape, Hélio Oiticica e Ivan Serpa. Assim, neste contexto, no interior de Minas Gerais, em Divinópolis, o criador GTO iniciou sua trajetória artística com, aproximadamente, 52 anos de idade. Embora distante dos grandes centros urbanos e isolado do circuito das artes plásticas, ele fazia um trabalho que criava aproximações com o ambiente artístico da época.

Neste contexto, em meados de 1965, GTO já começava a expor seus trabalhos na janela de sua casa, na rua Rubi, no bairro Niterói, em

22 PEDROSA, 1981. p. 42.

23 Ibid.

Page 55: GTO - tomo 1

55Divinópolis.24 Inicia-se, assim, uma carreira vertiginosa de reconhecimento no mundo das artes plásticas. A primeira exposição individual acontece em 1967, na Galeria Guignard, em Belo Horizonte; posteriormente, GTO expõe na galeria do Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, em 1968, participando neste mesmo ano da Exposição Arte Ingênua, em Belo Horizonte.

Após essas exposições, GTO alcança a X Bienal Internacional de São Paulo e o I Salão de Arte Contemporânea de Belo Horizonte, em 1969. Em quatro anos a carreira do artista segue em rápida ascensão. A entrada no circuito internacional das artes acontece em 1973 com a exposição Brazil Export 7, em Bruxelas, Bélgica; com a Biennale Formes Humaines, no Musée Rodin, em Paris, França, entre outras.

Com a repercussão de sua obra, GTO se consolidou como artista, mesmo que ele não se reconhecesse como tal. Assim como Frederico Morais, mais adiante, nos anos de 1980, empenhou-se em consolidar a autoria de Arthur Bispo do Rosário como o fenômeno artístico da época, na segunda metade da

24 FERREIRA, 2005. p. 7.

década de 1960, o arquiteto Aristides Salgado dos Santos, a jornalista Mari´Stella Tristão, Sálvio de Oliveira, Roque Nunes e Laertes Mendes de Oliveira empenharam-se em dar a conhecer ao circuito das artes plásticas brasileiras a figura artística de GTO. Para os mentores de GTO, a promoção não foi difícil, foi rápida em sua ascensão.25

É possível que essa aceitação de GTO esteja ligada a vários fatores, a saber: à associação do artista com as artes primitivas, de moda no Brasil e em Belo Horizonte nos últimos anos de 1960; à linguagem original de suas danças do Reinado, dos seus santos, das igrejas, das “ginásticas” que remetem a oroboros, dos paus de sebo, das correntes, das acumulações humanas e suas tramas, originalidade de uma arte brasileira que quebrava qualquer associação de continuidade com a escola implantada em Minas Gerais por Alberto da Veiga Guignard. Assim, GTO e Arthur Bispo

25 Segundo Lélia Coelho, “a importância do papel desempenhado pelo inconsciente no trabalho destes artistas [primitivos] vem aproximá-los, apenas sob este aspecto, das artes igualmente periféricas do interno em hospitais psiquiátricos, da arte dos médiuns, da arte infantil”. In: FROTA, Lélia Coelho. Mitopoética de 9 artistas brasileiros. 1978, p.4.

FIGURA 5 - GTO Trítico

Page 56: GTO - tomo 1

56do Rosário, caladamente, com um trabalho artístico sem a intenção de provocações públicas, tornam possível o caminho aberto pelo Concretismo e pelo Neoconcretismo em busca de uma brasilidade nas artes.

Retornando a sua obra formal, o trabalho artís-tico de GTO deve ser analisado sob o ponto de vista do indivíduo sacro, sua mitopoética e seu contexto cultural. Ele conseguiu na junção de massas de pessoas, um dos signos plásticos po-tenciais de sua obra, uma forma organizativa, um sistema compositivo com base na repetição formal. A forma de organização unitária desses conjuntos é o círculo, a “Roda-Viva”, a ascen-são vertical, o pau de sebo, inclusive em suas diferentes combinações. Claude Lévi-Strauss assinala que a base da composição dos conjun-tos unitários e das afirmações simbólicas está na seguinte questão:

Numa coleção finita de elementos juntados ao acaso, ou que o bricoler encontra em seu tesouro, como estabelecer uma ordem? A noção de ritmo recobre a série das permutações permitidas para que o conjunto forme um sistema. [...] a repetição é essencial para a expressão simbólica.26

Por outro lado, como é a representação simbólica das figuras esculpidas por GTO?

GTO esculpe figuras se autorretratando. Esculpe a figura do índio com muita dignidade. Esculpe o Cristo e o santo, as figuras angelicais e as demoníacas, as figuras erotizadas e as figuras assexuadas. GTO retrata o negro, o escravo trazido pelo seu avô português de outras terras. Retrata figuras de cabeça para cima e de cabeça para baixo. A polaridade está presente na iconografia de sua obra. Os extremos. O bem e o mal. A classificação do mundo, a confusão e a ordem (FIG. 5).

Essa polaridade também está presente nas esculturas com correntes, outro dos signos plásticos presentes na obra de GTO (FIG. 6). Segundo Hans Biedermann, “uma corrente de ouro é, segundo Dionísio Areopagita (500 a.C.), a oração do Cristiano, que com sua luz supera o abismo entre criatura e Criador”27. Assim, na figura 7, encontramos, à esquerda, a corrente

26 LÉVI-STRAUSS, 1997. p. 125.

27 BIEDERMANN, 1996. p. 81.

FIGURA 6 - GTO Cristo acorrentado. S/d.

Page 57: GTO - tomo 1

57entre a águia e o sapo, emblema alquímico da tensão entre sólido e volátil, entre os extremos, como as correntes que unem o homem à cruz na obra da figura 6. No lado direito, na figura 7, a representação da corrente faz alusão àquilo que oprime e decora ao mesmo tempo, segundo a ilustração de J. Boschius, de 1702.

A corrente é um elemento simbólico que, na obra de GTO, permite o trânsito entre dois polos opostos. Como nos rituais, ela é o objeto que permite o deslocamento entre o profano e o sagrado e vice-versa. GTO, pelo que observa-mos, utiliza as correntes em sua obra unindo os homens uns aos outros. Acaso serão ho-mens bons unidos a homens ruins? Em outras iconografias observadas, ele une o homem – o profano – ao Cristo, à cruz – o divino (FIG. 6).

Essas polaridades entre o bem e o mal presen-tes na representação das esculturas do artista podem ser dissociadas do caráter bifásico das esculturas de GTO. Para o criador, a obra não possui frente e verso. Ela é trabalhada em todos os seus lados, inclusive assinada em suas duas fases, como a junção de duas obras em

uma. Esta ausência de demarcação se expressa também em algumas de suas figuras bifásicas.

As aglomerações autorretratadas inundam as obras desse artista: o mesmo corte de cabelo, figuras simplificadas e vestidas com a mesma roupa. Todas são a imagem e o simulacro do artista. Com sua participação em múltiplas figuras dele mesmo, em massa, não desejaria o artista organizar aquele mundo caótico que ele próprio retratava?

Outra figura recorrente em sua obra é o índio com o cocar e longas túnicas, portando colares no pescoço, representado de forma diferencia-da e reverente. Esta figura ocupa posição de destaque no seu conjunto compositivo, ad-quirindo heroísmo e idealização. Assim, Leila Coelho afirma que:

Em algumas representações, a imagem do ín-dio não se limita a ter formas irradiantes de penas partindo da cabeça, como raios: é inteira-mente cercada por elas, como um nimbo, como a peça dos “dois índios xavantes costa a costa, separados por uma folha de coco licuri.28

28 FROTA, 1978. p. 102.

FIGURA 7 – M. Maie, Symbola, 1617 e J.Boschius, 1702Fonte: BIEDERMANN, 1996, p.81.

Page 58: GTO - tomo 1

58GTO era, segundo ele mesmo, uma pessoa religiosa, uma pessoa sacra. Essa condição, pelo que parece, levou o artista à polaridade do mundo – sagrado, profano – e à representação dos extremos em sua obra. Sob essa perspecti-va, Mircea Eliade assegura que “para viver no mundo é preciso fundá-lo e nenhum mundo pode nascer no caos da homogeneidade e da relatividade do espaço profano [...]”29. Assim, a instalação de um templo ou de um museu segrega um espaço sagrado do quotidiano, delimita um território em que o religioso e o artístico se revelam em mútua origem. Contu-do, contradizendo o que para GTO representava o mundo em confusão, as obras verticalizadas, que conjugam mandalas em forma ascendente com figuras humanas escalando rumo ao céu, não seriam um recorte do sagrado, no mundo profano e caótico, representado por GTO?

Segundo o próprio artista, suas obras mais significativas são aquelas reveladas por meio dos sonhos, pois elas provêm de Deus. Então, revela-se a origem divina de várias peças desse artista configuradas por círculos ou mandalas. Sendo assim, como é que ele chega à eleição dessas últimas formas em suas obras?

Para Carl Gustav Jung, a mandala é um

arquétipo inato da humanidade que, inclusi-ve, em pessoas não formadas previamente na história da cultura, pode aparecer espontane-amente (por exemplo em sonhos, visões ou na livre configuração pictórica) no transcurso de um processo de descenso e interiorização de-pois de fases caóticas para realizar a expressão de uma ideia do núcleo psíquico do ser e da re-conciliação interior e da totalidade30.

Esse apontamento de Jung tem sentido se observamos que a escultura significou para GTO um momento especial em sua vida. A entrada no mundo da arte representou para ele a saída de uma fase caótica, repleta de dificuldades, o que pode ser observado no seguinte trecho de uma entrevista:

Lígia: Você também passou muito aperto quan-do começou?

GTO: Passei aperto demais [...] Mas Deus me ajudou e eu aguentei firme a barra. [...] mas tudo isso é Deus quem manda.

29 ELIADE, 1992. p. 17.

30 BIEDERMANN, 1996. p. 289.

Lígia: Você vende muito nas exposições que faz?

GTO: Aqui em Belo Horizonte não sai muito porque a situação está ruim, mas no Rio de Janeiro e em São Paulo - na bienal lá no Ibira-puera, no Morumbi - vai chegando e vendendo tudo na hora [...]31.

As revelações do inconsciente em forma de círculos ou de mandalas na iconografia de GTO poderiam estar associadas, sob o ponto de vista de Jung, a esse momento de interiorização e de equilíbrio que o escultor consegue, em sua vida, por meio da arte. Sob outra ordem, o círculo remete ao divino. Não é o círculo a projeção da cúpula, representação do céu, nas plantas dos templos sagrados? As esculturas de GTO com mandalas não poderiam ser representações de catedrais verticalizadas, recorte do divino no mundo profano? Segundo Biedermann, as mandalas “em [seu] sentido próprio são reproduções espirituais da ordem do mundo (cosmogramas)” .

GTO constrói objetos sagrados e um mundo iconográfico que não é suficiente só para ele. Ele o expande para a geração de artistas de sua família, entre eles, seu filho Mário Teles. A escola que o artista criou entre seus familiares pode ser comparada ao que se configurava nas relações dos povos chamados de primitivos com as artes. Nessas civilizações, o artista era considerado uma pessoa especial, ligada, inclusive, ao sobrenatural. Lévi-Strauss exemplifica esse quadro com o mito da Dama Dupla , nas planícies da América do Norte: a mulher que sonhava com ela transformava-se em uma artista genial, pois ninguém a superava na arte do bordado com espinhos de porco-espinho. Assim, a Dama Dupla, por meio dos sonhos, revelava novas formas de ilustrações e quem as recebia as repassava para o grupo de artesãos da comunidade. Da mesma forma, GTO também repassou seu repertório para seus descendentes, distante da imagem romântica do artista, do pintor maldito e dos compromissos de autoria.

Para finalizar, destacamos que GTO é, atualmente, um artista quase esquecido. Sendo assim, são necessárias mais e maiores pesquisas sobre sua obra, assim como a devida

31 OLIVEIRA, 1987.

Page 59: GTO - tomo 1

59catalogação desta. Como consequência da falta de um registro sistematizado do trabalho de GTO, podemos apontar a perda dos títulos originais de alguns de seus trabalhos.

REFERÊNCIAS BARBOSA, Faber Clayton. Um artista que rondava obras: a trajetória de Geraldo Teles de Oliveira até o surgimento de GTO. Belo Horizonte. [2011].

BIEDERMANN, Hans. Diccionario de símbolos. Barcelona: Paidos, 1996.

DANTAS, Marta. Arthur Bispo do Rosário - A poética do delírio. São Paulo: Museu Lasar Segall e Instituto Moreira Salles, 2009.

DEMPSEY, Amy. Estilos, escuelas y movimientos. Barcelona: Ed. Blume, 2002.

DUCHAMP, Marcel. Engenheiro do tempo perdido: entrevistas com Pierre Cabanne. (Tradutor) Rodrigues, Antonio. 2. ed. Lisboa: Assírio & Alvim. 2002, 240p.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

FERREIRA, Mauro Eustáquio. GTO Homem simples, grande escultor. Divinópolis: Águas Claras, out. 2005.

FROTA, Lélia Coelho. Mitopoética de 9 artistas brasileiros. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1976.

______. Olhar, escutar, ver. Tradução Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

______. Pensamento Selvagem. São Paulo: Papirus, 2005.

LIPPARD, Lucy R. Overlay - Contemporary Art and the art of Prehistory. New York: Pantheon books, 1983.

OLIVEIRA, Geraldo Teles. Entrevista à Ligia Jacques. Divinópolis: Aqui para Nós. 11 a 17 ago. 1987.

______. Entrevista a Wilson Medeiro da revista Análise. Divinópolis: Correio do Centro Oeste. Jul. 1990.

PEDROSA, Mario. A primeira Bienal I. In: Dos Murais de Portinari aos Espaços de Brasília. São Paulo: Editora Perspectiva, 1981.

POPOL VUH. Cortesía de Nueva Acrópolis p. 68. Disponível em: < http://www.nueva-acropolis.es/filiales/libros/Popol_Vuh.pdf>.

Page 60: GTO - tomo 1
Page 61: GTO - tomo 1
Page 62: GTO - tomo 1

1910-1920

1920/1930

1940/1950

1947

1950/1960

1967

1968

1938

Geraldo Teles de Oliveira (GTO) nasce em 01 de janeiro de 1913, no município de Itapecerica, em Minas Gerais. Nesse mesmo ano, sua família muda-se para o bairro Niterói, em Divinópolis, Minas Gerais, onde o artista vive sua infância.

GTO e Dona Maria Quirina casam-se em cerimônia religiosa.

Conhece Dona Maria Quirina, sua futura esposa.

Começa a trabalhar no Serviço Nacional da Malária (SNM). Na década de 40, é transferido, pelo SNM, para o Rio de Janeiro com outros companheiros de Divinópolis.

Casa-se com Dona Maria Quirina no civil.

Trabalha na Companhia de Abastecimento Agrícola de Minas Gerais (CAMIG), na cidade de Divinópolis.

- Trabalha como rondante nas obras da Cidade Industrial localizada em Contagem, Minas Gerais.

- Trabalha como rondante nas obras do Hospital São João de Deus, em Divinópolis, época em que começa a fazer suas primeiras esculturas durante as rondas do serviço.

Maio – Realiza sua primeira exposição em Divinópolis, durante a Semana da Comunidade, promovida pela Superintendência Regional de Ensino dessa cidade.

2 de junho – Exposição individual de GTO na Galeria Guignard, patrocinada pelo Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento de Minas Gerais.

GTO participa da exposição Arte Ingênua na Biblioteca Pública Luís de Bessa, em Belo Horizonte.

16 a 31 de julho – Exposição 3 Artistas Populares, realizada em conjunto pela Galeria Guignard e pela Galeria Copacabana Palace. Esculturas de GTO, pinturas Rodelnégio Gonçalves e Julio José dos Santos no Copacabana Palace, no Rio de Janeiro.

Page 63: GTO - tomo 1

1971

1972

1973

1974

Continua...

1969

1970

Março – GTO participa da exposição inaugural da Pinacoteca do Estado no Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte.

Julho – Participação na exposição Artistas Mineiros 60/70 no V Festival de Inverno da Universidade Federal de Minas Gerais, em Ouro Preto.

GTO expõe na Arte/Brasil/Hoje – 50 Anos da Semana de Arte Moderna na Galeria Collectio, em São Paulo.

Participação de GTO na Trienal de Bratislava, na Tcheco-Eslováquia.

18 de agosto – Participação de GTO na exposição de Arte Popular de Minas Gerais, organizada por Márcio Sampaio e Léo Guimarães.

Participação na Brasil Export 73 em Bruxelas, na Bélgica

6 de abril – GTO e Rosina Becker em exposição na Galeria de Artes da Associação Mineira de Imprensa.

Outubro de 1973 – Participação na III Semana de Artes, promovida pela União Estudantil de Divinópolis..

Participa da Biennale Formes Humaines no Museu Rodin de Paris, na França. Expõe, ainda, na Galeria Iemanjá e na Galeria Montparnasse, em Paris.

Julho – GTO expõe na X Bienal de São Paulo.

Dezembro – Participa do I Salão Nacional de Arte Contemporânea de BH.

Exposição individual na Galeria Copacabana, no Rio de Janeiro.

Janeiro – Exposição dos artistas GTO e Pedro Miranda na Galeria Guignard, em Belo Horizonte.

30 de agosto a 7 de setembro – GTO participa da II Semana de Artes de Divinópolis, realizada pela União de Estudantes de Divinópolis – UED.

31 de agosto a 4 de setembro – Exposição de GTO na Coletiva de Primitivos Mineiros, realizada em Araxá pela Galeria Guignard durante o XXII Congresso Brasileiro de Gastroentereologia.

7 a 31 de dezembro – Participação na V Feira de Arte, promovida pela Galeria Guignard.

Dezembro – Premiação de GTO no II Salão Nacional de Arte Contemporânea de Belo Horizonte.

Page 64: GTO - tomo 1

1975

1978

1980

1984

1976

1977

Participação de GTO na Sala Especial, na XIII Bienal de São Paulo.

2 a 7 de junho – Exposição de obras de GTO na biblioteca municipal de Divinópolis, promovida pela Divisão Cultural da Secretaria Municipal de Educação e pela Sociedade de Amigos da Biblioteca Pública Ataliba Lago.

21 de junho a 13 de julho – GTO recebe o prêmio Embaixada Francesa no III Salão Global de Inverno, organizado pela emissora de televisão Rede Globo.

Agosto – Exposição de obras de GTO na I Semana do Folclore, promovida pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Divinópolis e pela comunidade divinopolitana.

Participação na Bienal de Veneza, na Itália.

É produzido o documentário A Árvore dos Sonhos, de Carlos Augusto Calil, sobre a vida de GTO.

Realização do projeto O Escultor dos Sonhos sobre o artista GTO, feito pelos alunos da Escola Estadual Polivalente em Divinópolis.

3 de novembro a 17 de dezembro de 1978 – GTO participa da Bienal Latino-Americana Mitos e Magias, em São Paulo.

Dezembro de 1978 – Exposição no I Salão de Artes Plásticas do Conselho Estadual de Cultura, realizado no Palácio das Artes, em Belo Horizonte.

Novembro – Exposição na Galeria Bonino, no Rio de Janeiro.

Fevereiro – Realização da mostra Avô, Pai e Neto, na Galeria Novo Estilo .

Participação na exposição O Saber Autodidata no Museu de Arte Moderna da Pampulha, em Belo Horizonte, Minas Gerais.

Participação no II Festival Mundial e Africano de Cultura Negra em Lagos, na Nigéria.

Julho de 1977 – Participação e premiação no V Salão Global de Inverno. Durante o salão, foi exibido o documentário O Gesto Criador, realizado pela Rede Globo sobre o artista GTO.

5 a 15 de novembro – Exposição de GTO e de seu filho Mário Pereira Teles no Centro de Artes e Museu Histórico de Divinópolis.

Page 65: GTO - tomo 1

1985

1989

1990

1991

1995

2008

1986

1987

1988

Abril – Participação na Coletiva de Art Brut, no Hall do Cine Metrópole Gaumont.

Maio – Participação na Exposição Divinópolis, promovida pelo Centro de Artesanato Mineiro no Palácio das Artes.

Novembro – Participação na mostra Arte do Povo – Arte Popular do Nordeste, no Palácio das Artes.

Novembro de 1989 – Exposição no Espaço Cultural da Companhia Vale do Rio Doce, no Rio de Janeiro.

5 de julho – Falecimento do artista GTO, em Divinópolis.

22 de setembro – Exposição Homenagem a GTO e Descendência, realizada pelo Setor Cultural do Centro de Educação e Assistência Social (CEAS), no bairro Niterói.

Agosto – Realização da 27ª Semana do Folclore Painel sobre o Folclore em Minas Gerais e homenagem póstuma a GTO no Centro Cultural UFMG, em Belo Horizonte.

Agosto – Exposição Cinco Novos Anos Sem Sonhos de GTO com obras do artista e também do miniaturista Edésio na Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa, em Belo Horizonte.

Junho – Exposição Legado de Um Artista, realizada pelo Instituto GTO, pela Secretaria Municipal de Cultura de Divinópolis e pela Caixa Econômica Federal, na Câmara Municipal de Divinópolis.

Participação em Arte em Madeira no Museu do Folclore, no Rio de Janeiro.

Dezembro – Realização da exposição GTO Esculturas, no Espaço Cultural Pampulha Iate Clube, em Belo Horizonte.

Julho – Participação na exposição Madeira à Moda Mineira I, na Galeria Trem de Minas, em Belo Horizonte.

Agosto – Realização da exposição GTO: Vinte Anos de Sonhos no Museu Histórico de Divinópolis e também no Rio de Janeiro.

1o de setembro de 1988 – Participação em Madeira à Moda Mineira II, na Galeria Trem de Minas.

Page 66: GTO - tomo 1

CólofonImpresso em novembro de 2011

Capa em Kraft 300g/m2

Miolo Chamois 120g/m2 (tomo 1)Miolo em Couché Fosco 120g/m2 (tomo 2)

Encadernação em Z (lombada dupla ou dos-a-dos)

TipografiaFF Amman, The Sans e The Serif

ImpressãoRona Editora

Page 67: GTO - tomo 1
Page 68: GTO - tomo 1