Guerra e Paz: as relações internacionais entre a ... · f Compreender a formação e o papel da...
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UnIdAdE 3
Objetivos Especficos de Aprendizagem
Ao finalizar esta Unidade, voc dever ser capaz de:
f Compreender a formao e o papel da diplomacia moderna e do poderio militar moderno nas relaes entre estados;
f Conhecer, por meio do estudo de Carl von Clausewitz e Raymond Aron, aspectos das abordagens clssicas sobre guerra/conflito e diplomacia/cooperao nas relaes internacionais;
f Entender, a partir do estudo de Pierre-Joseph Proudhon e Michel Foucault, que so possveis outras perspectivas de anlise da relao guerra e poltica, aplicada ao estudo das relaes internacionais;
f Identificar as principais caractersticas da diplomacia e das funes do diplomata, para conhecer mais sobre a histria da diplomacia brasileira; e
f Identificar conceitos importantes no campo da poltica externa, distinguindo diplomacia de poltica externa.
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cooperao e o conflito
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Unidade 3 Guerra e Paz: as relaes internacionais entre a cooperao e o confl ito
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Gerra e Paz: as relaes internacionais entre a
cooperao e o conflito
Guerra e Diplomacia: instrumentos do Estado
O francs Raymond Aron (1985), um dos principais tericos das Relaes Internacionais, dedicou um dos seus mais conhecidos livros Paz e guerra entre as Naes , publicado em 1962, para pensar as duas formas pelas quais os Estados se relacionam: o conflito e a cooperao. Segundo o autor, os Estados praticavam suas relaes externas combinando ou alternando tticas de negociao e enfrentamento que levavam, respectivamente, celebrao de acordos, parcerias e alianas ou a guerras. Todo Estado teria, assim, dois meios para colocar em movimento suas relaes com outros pases; e para ilustrar esse duplo mecanismo, Aron elegeu as imagens do soldado
Caro estudante,nesta Unidade, voc estudar os dispositi vos fundamentais desenvolvidos pelos Estados Modernos para garanti r, no plano internacional, sua sobrevivncia e expanso: a guerra e a diplomacia. Ambas expressam as duas dimenses chaves e coexistentes das relaes internacionais que so a cooperao e o confl ito. At o fi nal da Unidade voc identi fi car as duas tradies de estudo da relao entre guerra e polti ca e estar apto a detalhar aspectos da prti ca diplomti ca.
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e do diplomata. Utilizando soldados ou diplomatas, ou seja, a fora militar ou a persuaso diplomtica, os Estados buscariam alcanar seus objetivos nas relaes internacionais.
Para Aron (1985, p. 73),
[...] a distino entre diplomacia e estratgia [a guerra] relativa. Os dois termos denotam aspectos complemen-tares da arte nica da poltica a arte de dirigir o inter-cmbio com os outros Estados em benefcio do interesse nacional.
Assim, a diplomacia no seria melhor que a guerra, ou vice-versa, mas apenas tcnicas diferentes que um Estado teria disposio para realizar internacionalmente o que define como seu interesse nacional*. Os dois maiores objetivos de um Estado, segundo a tradio que vem de Maquiavel, so sobreviver como unidade soberana e expandir sua capacidade de influenciar politicamente outros Estados. Para alcanar esses objetivos, um Estado deve eleger suas prioridades interesses e os meios que mais lhe convenham para alcan-las numa determinada situao. Nesse sentido, complementa Aron (1985, p. 73),
[...] a diplomacia pode ser definida como a arte de convencer sem usar a fora, e a estratgia [a guerra] como a arte de vencer de um modo mais direto. Mas impor-se tambm um modo de convencer.
Michel Foucault (2008b) considerou a articulao entre diplomacia e fora militar como um mecanismo ou dispositivo, o dispositivo diplomtico-militar, que os Estados Modernos desenvolveram, em primeiro lugar, para sua proteo e, depois, para ousar aumentar sua capacidade de exercer poder sobre outros Estados. Esse dispositivo combinaria o potencial militar de cada Estado, com as habilidades diplomticas de funcionrios especializados enviados a pases estrangeiros com as funes de representar o soberano, servir de canal permanente para a consulta poltica e a negociao entre Estados, e coletar
Fique atento ao raciocnio
em torno dessas fi guras,
pois ele ser necessrio
mais adiante.
Representar, negociar,
coletar e informar so
funes que permanecem
na base da ati vidade
diplomti ca dos Estados
(BATH, 1989).
*Interesse Nacional
conjunto de metas que
um Estado defi ne como
vitais e que devem ser
perseguidos por meios
diplomti cos ou milita-
res. Fonte: Elaborado pelo
autor deste livro.
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dados sobre a situao poltica, econmica, militar e social do pas em que estivesse para informar seu governo.
Desse modo, ao conhecer a situao de outro Estado (com suas fraquezas e foras), um soberano poderia tomar decises de governo sobre o seu prprio pas, alm de providenciar melhorias para suas foras armadas (compra de novas armas, convocao de mais soldados, construo de novas fortalezas etc.). Assim, os elementos clssicos do clculo de poder de um Estado quantidade e caractersticas da populao, tamanho do territrio, recursos naturais disponveis, qualidade da indstria e agricultura (economia geral), tamanho e poderio das foras armadas poderiam ser acompanhados, medidos e levados em conta na elaborao das diretrizes de poltica externa. Com isso, um Estado teria condies de ao menos se equiparar em poder (econmico, populacional e militar) aos outros Estados.
Num sistema interestatal anrquico, como o que estudamos na Unidade 1, a ausncia de um poder superior aos Estados e a urgncia dos soberanos em garantir sua independncia poltica, colocaram aos monarcas um problema: a necessidade de se autoproteger ou, em outras palavras, de se garantir pelas prprias foras num sistema competitivo. Segundo Foucault (2008b, p. 398):
Se os Estados so postos uns ao lado dos outros numa relao de concorrncia, preciso encontrar um sistema que permita limitar o mximo possvel a mobilidade de todos os outros Estados, sua ambio, sua ampliao, seu fortalecimento, mas deixando aberturas suficientes a cada Estado para que possa maximizar sua ampliao sem provocar seus adversrios e sem, portanto, acarretar seu prprio desaparecimento ou seu prprio enfraqueci-mento.
Em um sistema como esse cada Estado tinha que conseguir, no mnimo, o equilbrio de suas foras com as dos demais Estados. Motivo pelo qual o componente diplomtico do dispositivo diplomtico-militar passou a cumprir a importante tarefa de dar elementos (informaes, dados, projees etc.) e recursos (canais de negociao, acordos e
decises como: que ramo
da economia incenti var,
que polti cas direcionar
populao, que regies do
pas ocupar etc.
Se voc no lembra
desse sistema retorne
Unidade 1.
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alianas etc.) para que os Estados se preparassem para garantir sua sobrevivncia nacional e possvel expanso territorial ou de influncia. O dispositivo diplomtico, portanto, cultivaria o equilbrio ou balano de poder entre os Estados europeus.
Mas o que aconteceria se algum pas conseguisse desequilibrar
a correlao de foras no sistema internacional? Isso implicaria
no fim do sistema de Estados?
No necessariamente, se o outro elemento do dispositivo diplomtico-militar entrasse em jogo: a guerra. Os conflitos armados entre os Estados tambm funcionariam como mecanismos de regulao do equilbrio de poder entre eles. Como? Se um dos Estados se sentisse em condies de perseguir suas ambies de ampliao e fortalecimento pela via militar, rompendo o equilbrio, os outros Estados se sentido ameaados tenderiam a se aliar de modo a enfrentar esse Estado agressor. Uma vez derrotado, uma nova recomposio de foras entre os Estados surgiria, recuperando o sistema em nome da sade, fora e sobrevivncia de todos os Estados.
Os perodos de equilbrio de foras entre os Estados foram trs:
f o formado aps a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e registrado nos Tratados de Westflia este perodo durou do sculo XVII at o final do sculo XVIII, com a expanso militar da Frana de Napoleo Bonaparte;
f o novo balano de poder, conhecido como Concerto Europeu, estabelecido na Conferncia de Viena a partir de 1815, pelos pases que venceram Napoleo, e que se sustentou at a ecloso da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Contudo, a tentativa de formar um novo sistema internacional em equilbrio aps a Primeira Guerra falhou com a ecloso da Segunda Guerra Mundial, em 1939, como veremos na Unidade 3; e
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f Depois desse conflito, um terceiro equilbrio, o bipolar, surgiu entre os blocos liderados pela Unio Sovitica (URSS) e pelos Estados Unidos, e perdurou at o fim da Guerra Fria, na passagem da dcada de 1980 para a de 1990, quando se abriu um novo momento de indefinies e mudanas na poltica internacional, que estudaremos na Unidade 4.
Cada novo equilbrio de poder foi estabelecido depois que uma guerra redistribuiu territrios, populaes e capacidades militares e econmicas entre vencedores e vencidos. O equilbrio do sistema fi rmado em Westf lia terminou com a expanso militar napolenica; o equilbrio do Concerto Europeu ruiu em 1914 com a Primeira Guerra Mundial; assim como o equilbrio precrio dos anos 1920 e 1930 terminou com a expanso nazista. J o terceiro grande equilbrio de poder, terminado com o fi m da Guerra Fria, foi diferente, sem que uma grande guerra entre os lderes de cada bloco selasse o desti no das relaes internacionais (estudaremos com mais ateno esse momento na Unidade 4). Os trs perodos de equilbrio, no entanto, no foram pocas de paz: se as grandes potncias no se enfrentaram diretamente, elas se envolveram direta ou indiretamente em inmeros confl itos nos quatro conti nentes, como, por exemplo, os ingleses na Guerra da Crimia (1853-56), os Estados Unidos na Guerra do Vietn (1965-73) e a URSS no Afeganisto (1979-89); alm das dezenas de golpes de Estado, intervenes, guerras civis e regimes autoritrios apoiados pelas potncias ao longo dos sculos XIX e XX.
As foras militares no precisariam, no entanto, entrar em ao para cumprir seu papel de instrumento da poltica exterior dos Estados: um pas que tivesse foras equiparveis aos seus principais
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competidores poderia esperar que seus adversrios no optassem pela violncia direta, pois recorrer a isso exporia o prprio agressor derrota: se o principal objetivo do Estado sobreviver como unidade soberana, decidir pela guerra quando ela ameaa a sobrevivncia do Estado seria um equvoco. Essa capacidade de um Estado em manter um poderio militar que ameasse seu oponente chamada de poder de dissuaso militar.
A equiparao de foras militares, desse modo, operaria como um mecanismo de equilbrio gerando uma paz armada, ou seja, a paz como ausncia temporria de guerra entre Estados em competio. Para Foucault (2008b), quando desequilbrios de fora se apresentassem, com pretenses de expanso ou de hegemonia por parte de um ou mais Estados, uma guerra aconteceria; no para destruir o sistema interestatal, mas, ao contrrio, para reorganiz-lo a partir do princpio do poder poltico centralizado no Estado. Nessas guerras, alguns Estados poderiam desaparecer ou perder territrios, outros poderiam crescer e at mesmo novos pases poderiam surgir; no entanto, o sistema de Estados seria preservado. As guerras, assim, seriam crises de reorganizao visando a preservao do sistema e a continuidade do modelo estatal. As guerras, portanto, no seriam ameaas ao sistema interestatal, mas instrumentos para a sade e preservao do Estado e do prprio sistema.
Os Estados, lanando mo dos dois elementos do dispositivo diplomtico-militar a negociao diplomtica e o poderio militar , poderiam cultivar [...] a conservao de uma certa relao de foras, a conservao, a manuteno ou o desenvolvimento de uma dinmica das foras [...] (FOUCAULT, 2008b, p. 397) nas relaes internacionais de modo a criar um cenrio mais seguro e equilibrado para eles prprios.
Saiba mais Dissuaso militar
a manuteno de exrcitos poderosos para servir
como recurso de defesa ao convencer possveis
agressores de que a guerra no seria uma boa
opo. A clssica frase do militar e estrategista
romano Renato Vegcio (sculo IV d. C.) si vis
pacem, para bellum (se queres paz, prepara-te
para a guerra) sinteti za esse princpio. Fonte:
Elaborado pelo autor deste livro.
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Em suma, os Estados Modernos consti turam um sistema para regular suas relaes externas de modo a proteger sua existncia e garanti r espaos para sua expanso. Passemos, agora mais em detalhe, diplomacia e fora militar, os dois elementos desse dispositi vo diplomti co-militar, destacando suas caractersti cas e principais traos histrico-polti cos.
A Guerra dos Estados
Raymond Aron combinou muitos de seus estudos sobre as relaes internacionais com escritos, livros e conferncias a respeito de Carl von Clausewitz, general do exrcito prussiano (antiga Prssia), e considerado o mais influente terico da guerra moderna (STRACHAN, 2008; HOWARD, 2002).
Raymond Aron iniciou seu livro Paz e guerra entre as naes com uma sistematizao da obra de Clausewitz por acreditar que a reflexo do general sobre a relao entre guerra e poltica continuaria vlida para o estudo das relaes internacionais contemporneas.
O que seria, em suma, essa reflexo de Clausewitz? Ao enfrentar
essa questo poderemos compreender melhor como os Estados
Modernos procuraram lidar com a guerra e porque ela um
acontecimento fundamental da poltica internacional.
Saiba mais Prssia
Estado Moderno estabelecido em 1701 no que hoje a regio
norte oriental da Alemanha e que, ao longo dos sculos XVIII
e XIX, fi rmou-se como o mais forte dos diversos Estados
independentes em que se dividiam os germnicos. Em 1871,
sob o comando do primeiro-ministro Ott o von Bismarck (1815-
1898), os prussianos venceram uma guerra com a Frana,
consolidando a unifi cao polti ca da Alemanha. Fonte:
Elaborado pelo autor deste livro.
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Clausewitz: um general pelo limite guerra
A vida de Clausewitz foi marcada pela guerra em que participou contra os franceses. Entre 1806 e 1808, o exrcito prussiano, liderado por nobres aristocratas como ele, foi destrudo pelas tropas comandadas por Napoleo Bonaparte, numa srie de batalhas nas quais a fora francesa mostrou superioridade no apenas pela maior quantidade de homens e armamentos. Para Clausewitz, alm do poderio em armas e soldados, os franceses foram superiores tambm na disposio ao combate porque lutavam motivados por ideais (os da Revoluo Francesa) e por sua Nao, diferentemente dos prussianos convocados fora para lutar em nome de um rei e da nobreza que os sujeitavam. O surgimento de uma guerra popular, mobilizando toda a nao em sua defesa, parecia ser, para Clausewitz, a grande novidade de sua poca que transformaria as guerras do futuro (HOWARD, 2002).
Clausewitz registrou suas impresses sobre a guerra, do ponto de vista tcnico e poltico-filosfico, em escritos que planejava publicar num grande tratado. No entanto, morreu antes de completar o livro, vtima de uma epidemia de clera. Sua mulher reuniu o material seguindo instrues deixadas pelo general e publicou Da guerra, em 1832. Do vasto tratado nos interessa analisar o trecho mais filosfico-poltico reunido no primeiro captulo da obra, chamado O que a guerra?.
Segundo Clausewitz (2003), uma primeira imagem que poderia vir mente ao pensar sobre a guerra seria a do duelo: dois oponentes se enfrentando violentamente em busca da vitria. Um duelo no existiria sem aquilo que chamou de inteno hostil: o dio que levaria tentativa de solucionar uma desavena pela fora. Essa inteno hostil, alimentando um desejo de vingana, faria com que os desafiantes se enfrentassem at a vitria total de um dos lados, ou seja, a morte do inimigo. O duelo seria um combate que se resolveria num s momento, quando a lmina da espada ou a bala da arma de fogo selassem o triunfo de um dos duelistas.
Tambm entre os Estados, para Clausewitz, no haveria mobilizao para a guerra sem que existisse uma inteno hostil a contrapor um povo a outro. No entanto, quando esse dio acendia os nimos das massas, e o pas terminava por declarar guerra a outro,
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no era propriamente um duelo que viria a acontecer. As guerras entre Estados seriam uma srie de combates entre massas de soldados organizados em grandes exrcitos e no um duelo entre duas pessoas que terminaria apenas com um golpe. Portanto, as guerras no seriam duelos, mas uma forma de conflito entre Estados que contaria com uma lgica e objetivos prprios.
A guerra tambm no visaria, como num duelo, a destruio total do outro Estado. Se a inteno hostil num duelo leva a um confronto definitivo e nico entre duas pessoas, a guerra no reproduziria esse formato. Clausewitz afirmou que se a guerra fosse um duelo haveria uma guerra absoluta, na qual um Estado com sua populao, cidades, campos, riquezas seria totalmente arrasado por outro. Mas, para Clausewitz (2003, p. 15), [...] a guerra nunca algo absoluto no seu resultado. Haveria, ento, uma diferena entre a guerra absoluta, apenas um conceito, e a guerra real, a que de fato acontece quando Estados decidem se enfrentar.
A guerra real seria composta por um conjunto de batalhas que se prolongaria no tempo meses ou anos e que teria, como resultado final, a derrota militar de um ou mais Estados. A vitria militar significaria no a destruio do Estado derrotado, mas a sua capitulao, ou seja, a sua desistncia em seguir lutando. A guerra, ento, deveria castigar o Estado oponente (destruindo cidades, estradas, fortalezas, plantaes, civis, soldados etc.) at que ele no suportasse mais a luta e se rendesse. Nesse momento, a rendio implicaria na submisso vontade do vencedor: o Estado perdedor ficaria sob a influncia direta do ganhador, devendo obedincia, ou mesmo sendo anexado pelo pas vitorioso.
Ao definir a guerra real, Clausewitz estabeleceu sua relao entre guerra e poltica: o objetivo da guerra no seria destruir, mas submeter o oponente, criando uma relao poltica de mando e obedincia. Por isso, a imagem do duelo no corresponderia guerra, uma vez que no h relao de mando e obedincia quando o oponente morre. Um Estado definitivamente arrasado no obedece ou se submete a outro. Dessa maneira, a guerra seria apenas uma forma de um Estado perseguir objetivos polticos nas relaes internacionais: um modo de, pela fora militar, sujeitar outros Estados
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sua vontade. A guerra, assim, no seria um fim em si mesmo, mas um recurso militar disposio do governo para perseguir as metas polticas da sobrevivncia do Estado e de seu fortalecimento e expanso. Para Clausewitz, quem decide ir guerra o governante em nome da expanso ou defesa do Estado. Os militares seriam apenas os tcnicos especialistas para executar, pela via militar, o plano poltico definido pelo governante.
A partir da podemos compreender a passagem mais famosa da obra de Clausewitz (2003, p. 27): [...] a guerra uma simples continuao da poltica por outros meios. A guerra no teria uma funo desconectada dos objetivos centrais do Estado; seria somente um meio para alcan-los. Nesse ponto, notamos como a figura do soldado proposta por Aron se encaixa nessa perspectiva da guerra como um meio do Estado perseguir a realizao do seu interesse nacional.
A guerra na perspectiva clausewitziana seria um instrumento do Estado para estabelecer, pela fora, relaes polti cas de mando e obedincia nas relaes internacionais.
Como pensador militar, Clausewitz defendia que a guerra deveria estar a servio do Estado. Tal conceito da guerra como um instrumento poltico do Estado nas relaes internacionais decorre de dois pressupostos que atravessam a reflexo do general e que devem ser destacados. Vamos a eles.
Paz Interna e Guerra Externa
O conceito de guerra como instrumento da poltica indica a filiao de Clausewitz tradio contratualista da filosofia poltica. Contratualistas como Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, apesar das diferenas entre si, tinham em comum o argumento de que a paz civil seria alcanada apenas quando os homens celebrassem um contrato que criasse o Estado, dando-lhe
Voc teve a oportunidade
de estudar esta tradio
na disciplina de Cincia
Polti ca. Caso julgue
necessrio, retorne aos
seus materiais para
relembrar o conceito.
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poderes para proteger a vida de cada indivduo e suas propriedades. Para o contratualismo, antes do pacto social teria existido um estado de natureza, no qual a ausncia de poder poltico central criaria um ambiente inseguro com a possibilidade constante de guerra entre os homens: a situao que Hobbes chamou de guerra de todos contra todos. No estado de sociedade gerado pelo contrato social, o Estado seria, pela sua fora fsica descomunal, o garantidor da ordem, colocando fim violncia entre os homens. A guerra, portanto, estaria superada dentro dos limites do Estado.
Sendo a guerra extinta pelo contrato, sua nica possibilidade de acontecer seria no espao sem contrato das relaes internacionais. Os Estados, todos soberanos e sem dever obedincia a um soberano dos soberanos, poderiam recorrer guerra sem impedimentos. a existncia de algo como um estado de natureza internacional, como sugere a passagem a seguir, escrita por Hobbes (1979, p. 132-131) em Leviat:
[...] tal como entre homens sem senhor existe uma guerra perptua de cada homem contra seu vizinho [...] assim tambm, nos Estados que no dependem uns dos outros, cada Estado [...] tem a absoluta liberdade de fazer tudo o que considerar mais favorvel [...] a seus interesses. Alm disso, vivem numa condio de guerra perptua, e sempre na iminncia da batalha, com as fronteiras em armas e canhes apontados contra seus vizinhos a toda a volta.
Se o contrato social era a nica forma de deixar o estado de natureza, e os Estados no estavam dispostos a celebrar um grande contrato universal que os submetesse a um poder superior, a formao de cada Estado como uma bolha de paz implicaria na produo de um novo estado de natureza entre os Estados. Clausewitz descreveu a guerra como um instrumento da poltica porque tinha como pressuposto que a guerra s poderia acontecer fora do Estado, pois estaria pacificada dentro dele, sendo apenas um recurso estatal para buscar objetivos polticos nas relaes internacionais. Raymond Aron (1985, p. 53), que incorporou as reflexes de Clausewitz,
Lembre que um dos
quesitos para tornar uma
pessoa jurdica legti ma
o seu contrato social.
Ser que essa questo
do contrato social no
mbito internacional
gerou alguma infl uncia
para se estabelecer o que
conhecemos hoje pelo
insti tuto do contrato social
de empresas no Brasil?
Pense a respeito e inicie
uma discusso com seus
colegas no aVea.
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afirmou: [...] enquanto a humanidade no se tiver unido num Estado universal, haver uma diferena essencial entre a poltica interna e a poltica externa. A diferena essencial seria essa entre a paz interna garantida pelo monoplio da violncia legtima e a possibilidade de guerra constante nas relaes internacionais. Logo, possvel notar que tanto Clausewitz quanto Aron esto filiados tradio da filosofia poltica que associa Estado como sinnimo de paz e ausncia de Estado como sinnimo de guerra.
A Guerra Exclusividade do Estado?
Clausewitz defendeu a guerra como instrumento disposio do Estado e Aron, na mesma linha do prussiano, sustentou que as aes militares precisavam ser [...] dominadas pela poltica (definida como a personificao da inteligncia do Estado) (ARON, 1985, p. 72). Em outras palavras, os recursos militares deveriam estar sob controle do Estado para serem utilizados por ele na perseguio de objetivos polticos (entendidos como o estabelecimento das relaes de mando e obedincia). No entanto, do ponto de vista histrico, a guerra no foi sempre uma exclusividade do Estado.
A formao do Estado Moderno foi um processo de centralizao do poder poltico que no foi realizado sem aquilo que Michel Foucault (2002) chamou de uma nova economia das armas, ou seja, uma nova distribuio do poder militar que passou das mos dos senhores feudais para as do monarca, no que Weber chamou de monoplio legtimo da coero fsica. Dominar as foras militares, portanto, foi fundamental para constituir essa forma de poder poltico conhecida como Estado Moderno. No entanto, a guerra no Estado Moderno
essa que vimos descrita por Clausewitz e Aron no o nico meio pelo qual os homens guerrearam na histria das sociedades, tampouco a nica relao entre poltica e guerra que se tem registro.
Procurando na histria a relao entre guerra e poltica seria possvel encontrar as mais diversas combinaes, como por exemplo os mongis, que dominavam outros territrios pelo uso da fora; os
Voc lembra que
estudamos sobre isso na
Unidade 1? no? Ento,
retorne e reavive sua
memria.
Saiba mais Mongis
Povo nmade sem um Estado unifi cado que
liderado por um rei-guerreiro, Gngis Khan, e
seus descendentes saquearam e submeteram,
no sculo XII, populaes e territrios que
foram do leste da China fronteira oriental da
Polnia. Fonte: Adaptado de Keegan (2002) e
Bonanate (2001).
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ndios tupinambs brasileiros, que motivados por sua cultura dominavam somente aqueles os quais consideravam fortes; tambm os gregos clssicos, que travavam guerras nas quais apenas os cidados (homens nascidos na Cidade-Estado e proprietrios) podiam lutar. Podemos lembrar ainda dos romanos, que inspiraram os exrcitos modernos, e tambm dos astecas, que sculos depois dos romanos, faziam guerras de conquista, construindo atravs delas um vasto imprio. Em suma, seria possvel identificar incontveis modos e objetivos pelos quais os homens tm guerreado na histria (KEEGAN, 2002; BONANATE, 2001).
Pierre-Joseph Proudhon, no seu livro A guerra e a paz, publicado em 1861, afirmou que a guerra a mais antiga legisladora: que pela vitria na guerra que historicamente o direito e as instituies polticas foram construdos. Os vencedores na guerra teriam fundado ou destrudo Estados, definindo as leis segundo sua vontade e seus valores. Segundo Proudhon (1998), somente a partir dos autores contratualistas que se teria tentado apagar essa origem violenta do Estado e do direito, substituindo-a por outra verso mais benvola, que atribui a criao do Estado vontade de todos e cada um. Assim, na perspectiva de Proudhon, o soberano estabeleceria seu governo pela guerra e manteria sua soberania pela capacidade de ativar a guerra internamente (contra todos que ousassem desobedec-lo) e externamente (contra os Estados que tentassem domin-lo). A paz civil, desse modo, seria a paz do vencedor gerada pela guerra e mantida pela guerra. Por isso, [...] o Pacificador um conquistador cujo reino se estabelece pelo triunfo [na guerra] (PROUDHON, 1998, p. 74).
A tradio na qual podemos encontrar Proudhon oposta dos contratualistas, de Clausewitz e de Aron. Ela, ao contrrio, remonta aos filsofos gregos como Herclito de feso, que escreveu: [...] de todos a guerra pai, de todos rei; uns indica deuses, outros homens; de uns faz escravos, de outros, livres (HERCLITO, 2002, p. 200). Essa perspectiva no compreende a guerra apenas como o momento em que dois grupos armados representando unidades polticas diferentes entram em choque. A guerra, ao contrrio, seria um princpio organizador das
Saiba mais ndios Tupinambs
Assim como os mongis esses ndios formavam uma
sociedade sem Estado. Eles guerreavam no para
conquistar territrios ou para sujeitar outros povos,
mas, dentre outros objeti vos, para capturar bravos
guerreiros para seus rituais antropofgicos. Fonte:
Adaptado de Keegan (2002) e Bonanate (2001).
as armas usadas nas
guerras pertenciam, eram
propriedade pessoal,
de cada cidado, isso
porque no havia exrcitos
permanentes.
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sociedades: no haveria vida sem conflito e no haveria ordem poltica sem guerra e sem resistncia a ela.
Michel Foucault (1995) tambm estaria nesse campo quando afirma que as relaes de poder poderiam ser analisadas em termos de combate e que, por isso, a poltica poderia ser compreendida como uma forma de guerra, ainda que diferente daquela dos exrcitos nas frentes de batalha. Foucault (2002, p. 22), ento, inverteu a famosa passagem de Clausewitz que estudamos anteriormente (a guerra a poltica continuada por outros meios), dizendo: [...] a poltica a guerra continuada por outros meios. Ou seja, a paz civil, as lutas polticas, os enfrentamentos a propsito do poder, com o poder, pelo poder, as modificaes de fora [...] tudo isso, num sistema poltico, deveria ser interpretado apenas como a continuao da guerra [...] (FOUCAULT, 2002, p. 23). Para Foucault (2002), a vida poltica seria, ento, formada pela guerra e mantida por disputas constantes como uma guerra silenciosa.
Esse debate sobre a relao entre guerra e poltica
importante, mas para avanar precisaramos de mais espao e
tempo. Por ora, essa breve exposio pretende apenas provocar
sua reflexo e alert-lo para o fato de que no h apenas uma
perspectiva de anlise das relaes de poder, da guerra e
da poltica. No entanto, a verso hegemnica no campo das
Relaes Internacionais a proveniente da filosofia poltica e
do contratualismo. Depois de estudar como a filosofia poltica
produz conceitos, como o de contrato social, e associa poltica
paz, fica mais claro a voc por que os filsofos contratualistas
defendem e justificam a existncia do Estado?
O Estado Moderno pretendeu domar a guerra como um recurso a seu dispor para poder governar sobre uma populao e um territrio, para defender-se de eventuais ataques de outros Estados e para, sempre que possvel, expandir atacando outros Estados. Assim,
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pela leitura de Carl von Clausewitz e de Raymond Aron podemos encontrar uma sntese da viso clssica da guerra, que ressalta a importncia de seu controle e monoplio pelo Estado para que ele garanta sua segurana. Por outro lado, a indicao de uma perspectiva diferente sobre guerra e poltica, a partir das leituras de Pierre-Joseph Proudhon e Michel Foucault, poder ser interessante para estudar a guerra contempornea que vai alm dos Estados e organizaes no estatais, como narcotraficantes e terroristas.
Como ficaria a anlise da guerra para alm da guerra apenas
entre Estados? Da guerra que escapa ao controle exclusivo do
Estado? Pense a respeito disso, pois voltaremos a esse ponto
na Unidade 4. Antes disso, h alguns aspectos do outro
elemento do dispositivo diplomtico-militar, a diplomacia,
que precisamos estudar.
As Diplomacias
A palavra diplomacia deriva de diplum que, em grego, significa diploma [ou] documento dobrado em dois (SOARES, 2004, p.13). Esses documentos registravam acordos importantes entre Cidades-Estado na Grcia Antiga. Durante toda a Antiguidade e Idade Mdia os diplomas e seus portadores, os diplomatas, foram personagens importantes que prncipes, imperadores e chefes militares enviavam com mensagens a outras autoridades estrangeiras. Cada misso de um diplomata chamava-se embaixada, que, geralmente, durava apenas o tempo necessrio para tratar do tema que havia motivado o envio do negociador. Encerrada a negociao, o diplomata voltava com a resposta, que poderia ser favorvel ou no. Entre os gregos havia o costume de respeitar a integridade fsica do diplomata para garantir que as mensagens entre os governantes pudessem circular tanto em tempos de paz quanto de guerra.
Essa prti ca conti nua at
hoje, sendo ampliada
para o respeito aos seus
documentos, s malas
diplomti cas e ao sigilo
das comunicaes entre
diplomatas.
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Relaes internacionais
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Essas embaixadas foram temporrias at que no final da Idade Mdia as cidades do norte da Itlia comearam a instalar representaes permanentes em outras cidades: misses diplomticas estveis e no voltadas apenas a negociaes pontuais. Segundo Srgio Bath (1989), a primeira embaixada permanente foi fundada por Milo em Gnova, no ano de 1455. A data do estabelecimento dessa embaixada significativa, pois corresponde poca na qual despontavam os primeiros Estados Modernos. Como estudamos no incio dessa Unidade, os Estados
Modernos passaram a ter necessidade de informaes e canais abertos de negociao para garantir sua prpria segurana e a defesa de seus interesses externos. Assim, uma rede de embaixadas comeou a ser montada, interligando politicamente os Estados do emergente sistema internacional.
A primeira forma das relaes diplomticas modernas foi chamada de diplomacia bilateral, a qual consistia na manuteno de contatos permanentes entre dois Estados pela instalao recproca de misses diplomticas e reparties consulares. Deste modo:
f As misses diplomticas, o que hoje conhecemos por embaixadas, eram representaes polticas de alto nvel. O embaixador fixava-se como o representante direto do chefe de Estado de um pas em outro, nomeado diretamente por esse chefe de Estado para tratar das mais importantes questes e negociaes polticas.
f As representaes consulares tinham outros objetivos. So escritrios sem o mesmo status diplomtico das embaixadas, que se dedicam a atender cidados do seu pas, emitir passaportes, fazer registros civis, divulgar a imagem do pas e promover o comrcio e a iniciativa
Cada estado pode contar
com uma embaixada em
outro Estado, geralmente
situada na capital do pas
anfi trio. O terreno e os
edif cios das embaixadas
so considerados territrios
do pas que ela representa;
assim, um ataque ou
invaso a uma embaixada
equivale a uma agresso
direta ao estado por ela
representado.
Saiba mais Chefe de Estado
Em um sistema presidencialista o chefe de Estado o ti tular do
Poder Executi vo, o responsvel pelo governo de um Estado e pela
representao simblica e internacional do pas. Em sistemas
parlamentaristas, h a diviso destas funes entre Chefe de
Estado e Chefe de Governo. nesse caso, o Chefe de Governo
(o primeiro-ministro) responsvel pela administrao do pas
e o Chefe de Estado (presidente ou monarca) responde pela
imagem e representao simblica e ofi cial do Estado. Brasil
e Estados Unidos so exemplos de sistemas presidencialistas;
o Reino Unido (com uma monarca) e a alemanha (com um
presidente) so parlamentaristas; enquanto a Frana tem um
sistema presidencialista diferenciado, que conta com primeiro-
ministro. Fonte: Elaborado pelo autor deste livro.
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Unidade 3 Guerra e Paz: as relaes internacionais entre a cooperao e o confl ito
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de empresrios de seu Estado. Dependendo da importncia de um pas para outro, possvel manter consulados em mais de uma cidade, coordenados por um Consulado Geral. Os cnsules e funcionrios consulares podem ser ou no diplomatas de carreira, assim como os funcionrios de apoio nas embaixadas.
As misses diplomticas e consulares de um pas em outro constituem o aspecto mais tradicional da rede de informaes e de negociao poltica estabelecida no comeo da Era Moderna. A diplomacia bilateral, no entanto, no se restringe s relaes Estado-Estado. A partir da segunda metade do sculo XIX, e principalmente, desde o comeo do sculo XX, Estados comearam a formar organizaes internacionais dedicadas a temas de interesse comum. Essas organizaes, to variadas em objetivos e alcance como a Organizao Internacional do Trabalho (OIT), a Organizao das Naes Unidas (ONU), a Organizao Mundial do Comrcio (OMC) ou o Fundo Monetrio Internacional (FMI) tm em comum o fato de se constiturem como um novo espao para a diplomacia com implicaes polticas importantes para as relaes internacionais contemporneas. Por ora, suficiente indicar que nas organizaes internacionais pratica-se a diplomacia multilateral, ou seja, aquela que implica em negociaes nos fruns permanentes de debate formados em tais organizaes (BIANCHERI, 2005).
Aps a Segunda Guerra Mundial, com o avano dos meios de transporte, os prprios chefes de Estado passaram a viajar mais, selando diretamente acordos polticos e mostrando-se como a imagem internacional de seu pas. Essa prtica ficou conhecida como diplomacia presidencial e tem sido utilizada com frequncia pelos Estados incluindo o Brasil, principalmente a partir de Fernando
Saiba mais Diplomata de carreira
So os funcionrios pblicos formados por
uma academia diplomti ca. no Brasil, a escola
preparatria o Insti tuto Rio Branco, em Braslia.
Em nosso pas, o candidato aprovado no concurso
de ingresso cursa dois anos de um programa de
formao do qual sai com o cargo de terceiro
secretrio. Apresentando-se para concursos
internos, o diplomata pode subir na hierarquia: 2
secretrio, 1 secretrio, conselheiro, ministro de
2 classe, ministro de 1 classe. no Brasil, a funo
de embaixador um cargo polti co, indicada pelo
presidente, no sendo necessariamente exercida por
diplomata de carreira. Fonte: Elaborado pelo autor
deste livro.
Como veremos mais
detalhadamente na
Unidade 3.
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Relaes internacionais
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Henrique Cardoso e Luis Incio Lula da Silva nas cada vez mais comuns cpulas de chefes de Estado (como a Cpula das Amricas, Cpula Ibero-Americana, Cpula Amrica do Sul/Pases rabes etc.).
A diplomacia bilateral entre Estados e os primeiros encontros multilaterais como o que celebrou os Tratados de Westflia, em 1648 so recursos complementares aos militares na formao desse sistema de segurana que os Estados Modernos construram para si. Como estudaremos na prxima Unidade, as novas modalidades diplomticas produzidas no sculo XX no invalidaram o dispositivo diplomtico que despontou nos sculos XVI e XVII, mas o atualizaram seguindo as mudanas da poltica internacional.
Mas antes de chegarmos a essa discusso, e para concluir essa
Unidade, preciso passar por mais uma questo: a distino
entre poltica externa e diplomacia.
Polti ca Externa e Diplomacia: formulao e execuo
muito comum que as expresses diplomacia e poltica externa sejam utilizadas como sinnimos, indicando a atuao internacional de um Estado. No entanto, elas no so idnticas. Segundo Brigago e Rodrigues (2006, p. 05-06),
Assim como um Estado nacional tem suas vrias polti-cas internas (educacional, social, ambiental, de trabalho, monetria, industrial etc.), ele tambm desenvolve sua poltica externa, isto , um conjunto de polticas trans-portadas para as relaes com outros Estados e demais atores internacionais, sob a forma de objetivos a serem alcanados.
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na lngua portuguesa no fazemos disti no entre polti ca como o conjunto de relaes de poder e/ou prti cas polti cas insti tucionais e polti ca no senti do de diretrizes ou planos de ao. J em ingls, por exemplo, h a disti no entre politi cs, para o primeiro caso, e policy para o segundo, derivadas do alemo politi k e polizei, respecti vamente. no Brasil, usa-se a expresso polti ca pblica para policy (as polti cas educacionais, econmica etc. descritas anteriormente). Ento, polti ca externa seria uma policy ou polti ca pblica especfi ca para questes internacionais: estratgias de ao para alcanar os objeti vos defi nidos como os interesses nacionais (que estudamos no incio dessa Unidade).
No Brasil, a Constituio de 1988 define que o presidente da Repblica o formulador de poltica externa, ou seja, que cabe ao chefe de Estado a definio dos chamados interesses nacionais e a produo das estratgias de ao necessrias para alcanar as metas traadas. Nesse trabalho, ele pode ser apoiado por assessores especiais e pelo ministro das relaes exteriores, que nomeado pelo presidente para chefiar a Chancelaria. Cada Estado tem um servio exterior, ou uma chancelaria, que o rgo ou ministrio responsvel pelas relaes exteriores do pas. O servio exterior recebe vrios nomes diferentes, dependendo do pas: no Reino Unido, o Foreign Office; nos Estados Unidos, o Departamento de Estado; na Frana, o Quai dOrsay; no Brasil, o Ministrio das Relaes Exteriores (MRE) ou Itamaraty.
O Poder Legislativo no Brasil tem pouca influncia nos rumos da poltica externa. O Congresso deve aprovar os tratados assinados pelo Poder Executivo para que eles se transformem em lei nacional (processo de ratificao) e deve aprovar uma eventual declarao de guerra do Brasil a outro Estado. J o
Saiba mais Itamaraty
O servio exterior do Imprio do Brasil foi instalado, em 1851,
no palcio do Baro de Itamaraty, no Rio de Janeiro e, por esse
moti vo, o nome da chancelaria brasileira fi cou associado ao
do palcio. Quando o novo palcio do MRE foi instalado em
Braslia, nos anos 1960, o nome Itamaraty o acompanhou.
Fonte: Elaborado pelo autor deste livro.
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Mdulo 8
Senado, especificamente, tem uma Comisso de Relaes Exteriores para acompanhar as iniciativas internacionais do Poder Executivo. Essa pouca relevncia do Legislativo tem causas mltiplas, mas em suma, relembra a procedncia centralizadora e monrquica do servio diplomtico brasileiro e o pouco interesse dos polticos profissionais nas questes internacionais. Nos Estados Unidos, com tradio poltica diferente da brasileira, o Congresso com destaque para o Senado tem muita influncia na formulao de poltica externa, limitando e controlando a capacidade do presidente em tomar decises sobre suas relaes exteriores (DEVIN, 2007).
No entanto, no simples a discusso sobre como, de fato, as diretrizes de poltica externa so definidas. H uma confluncia de interesses pblicos de rgos e ministrios, partidos polticos e privados organizaes da sociedade civil, empresas, associaes de classe, sindicatos que agem sobre os formuladores de poltica externa. As decises so muitas vezes conduzidas mais por interesses polticos internos que externos, respondendo a circunstncias eleitorais, por exemplo. Se o presidente o responsvel formal pela poltica externa, ele no a planeja simplesmente baseado na sua viso de mundo ou de seu partido e aliados polticos. Alm dos lobbies de grupos organizados, h presses da mdia, da conjuntura internacional que podem direcionar decises para um lado ou outro e, tambm, da tradio e histria diplomtica do pas, que agem como uma marca registrada da ao externa do Estado. No caso do Brasil, esse
componente da tradio muito presente, principalmente pela memria sempre cultivada pelo Itamaraty da prtica diplomtica do Baro do Rio Branco, que poderia ser resumida na postura de conquistar espao e ampliao de influncia internacional pela via da negociao e no pela via do conflito.
Desse modo, a diplomacia no deveria ser confundida com poltica externa, pois ela um instrumento de sua execuo (BATH, 1989, p.
Saiba mais Baro do Rio Branco
Jos Maria da Silva Paranhos Jnior (1845-1912) foi Ministro
das Relaes Exteriores da Primeira Repblica entre 1902
e 1912. Iniciou sua vida pblica como deputado do Parti do
Conservador quando seu pai, o Visconde do Rio Branco, era
primeiro-ministro de d. Pedro II. no entanto, se celebrizou
como ministro da Repblica, quando conquistou territrios
pela via diplomti ca com destaque para o Acre, em 1903
e defi niu o esti lo da diplomacia brasileira servindo de
modelo, desde ento, para a formao de diplomatas e para
a formulao de polti ca externa. Fonte: Elaborado pelo autor
deste livro.
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14). Assim, o diplomata no formula poltica externa, mas recebe instrues para negociar, representar e informar seguindo as metas estabelecidas pelo Poder Executivo. Ele , portanto, um funcionrio pblico especializado que trabalha pelos interesses exteriores definidos pelo Estado que serve. O diplomata, para Raymond Aron simboliza o brao diplomtico da ao externa dos Estados e, nesse sentido, espelha a poltica externa de seu pas. No entanto, espelhar no significa formular. A diplomacia e o diplomata so instrumentos de um dispositivo de ao internacional dos Estados que, complementado pelas foras militares, conformam o dispositivo diplomtico-militar, descrito por Foucault (2008b) como o sistema de segurana que cada Estado constitui para sua sobrevivncia e expanso nas relaes internacionais.
Complementando...
Para voc entender melhor os assuntos tratados nesta Unidade, sugerimos que voc visite os sites indicados a seguir:
Site do Ministrio das Relaes Exteriores neste endereo voc poder saber mais sobre a histria e a estrutura da diplomacia brasileira. Disponvel em: . Acesso em: 31 jul. 2012.
Site da Fundao Alexandre de Gusmo (FUNAG) neste site vinculado ao Itamaraty voc encontrar, disponvel para download, livros e estudos sobre a poltica externa e a diplomacia brasileira. Disponvel em: . Acesso em: 31 jul. 2012.
Instituto de Pesquisa de Relaes Internacionais (IPRI) disponvel em: . Acesso em: 31 jul. 2012.
Clausewitz se voc estiver interessado em saber mais sobre Clausewitz, este site apresenta uma boa relao de livros, estudos e biografias do general prussiano editado em vrios idiomas, alm de escritos do prprio Clausewitz disponveis para download. Disponvel em: . Acesso em: 31 jul. 2012.
International Political Sociology este um site interessante, com artigos sobre Relaes Internacionais no campo histrico-poltico e oferece textos para consulta. disponvel em: . Acesso em: 31 jul. 2012.
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Relaes internacionais
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Resumindonesta Unidade, estudamos mais detalhadamente as duas
dimenses que confi guram o sistema internacional moderno: a
do confl ito e a da cooperao/negociao. Para tanto, na pers-
pecti va histrico-polti ca, analisamos como o Estado Moderno
produziu os dois mecanismos ou dispositi vos para garanti r sua
segurana em um sistema internacional competi ti vo: o disposi-
ti vo militar (para a dimenso confl ito) e o diplomti co (para a
dimenso cooperao/negociao). Acompanhando a refl exo
de Carl von Clausewitz e Raymond Aron foi possvel apresentar
as linhas gerais do discurso sobre a guerra que a coloca como
um recurso de violncia f sica disposio do Estado em sua
polti ca externa. Foi possvel, tambm, notar como os argu-
mentos de Clausewitz e Aron fi liam-se tradio contratualista,
associando Estado garanti a da paz e a ausncia de Estado
guerra constante. nesse senti do, a guerra seria apenas poss-
vel nas relaes internacionais, o que daria senti do famosa
mxima de Clausewitz: a guerra a polti ca conti nuada por
outros meios.
no entanto, pode-se indicar que essa no a nica forma
de analisar a relao entre guerra e polti ca. H, ao menos,
outra perspecti va na qual esto Pierre-Joseph Proudhon e
Michel Foucault, que compreendem a polti ca como uma forma
de guerra permanente: a polti ca como a guerra conti nuada por
outros meios.
Por fi m, o estudo da dimenso diplomti ca do disposi-
ti vo diplomti co-militar tornou possvel descrever modalida-
Essa perspecti va de anlise
ser interessante para
estudar, nas prximas
Unidades, outros aspectos
das relaes internacionais
contemporneas.
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des bilateral, multi lateral e presidencial e prti cas do canal
de negociao e representao polti ca dos Estados. Pudemos,
tambm, diferenciar polti ca externa e diplomacia, indican-
do como a primeira se relaciona formulao de estratgias
de ao internacional defi nidas em nome do interesse nacio-
nal e como a segunda se relaciona sua execuo. Guerra e
paz, estratgia e diplomacia apresentam-se, assim, como dois
elementos de um dispositi vo que os Estados acionam para
garanti r sua sobrevivncia, manter chances de expanso e
preservar o sistema internacional.
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Relaes internacionais
Atividades de aprendizagem
Leia o trecho a seguir e depois responda s perguntas:
Compreende-se a insistncia que os soberanos adotaram em reservar para si o direito de guerra e de paz e, pela mesma razo, interditar as guerras privadas em seus dom-nios. Garantir o monoplio da mobilizao de pessoal para a guerra indispensvel ao exerccio desse direito. Alm disso, desde muito tempo tem-lhes sido necess-rio fazer face s rebelies armadas de grandes persona-gens investidos do governo de provncias, minando-lhes a autoridade e as engrenagens do Estado. (CORVISIER, 1999, p. 172).
1. Qual deveria ser, na perspecti va de Carl von Clausewitz e Raymond
Aron, a relao entre polti ca e guerra?
2. Quais so os papis da guerra e da diplomacia na preservao do
poder, na sobrevivncia e na busca por maior infl uncia dos Estados?
3. Em que a perspecti va de Proudhon e Foucault se diferencia da de
Clausewitz e Aron?
4. Quais so as funes da diplomacia?
5. Qual a diferena fundamental entre diplomacia e polti ca externa?
Vamos verifi car se voc est acompanhando os estudos propostos at o momento nesta Unidade? Para isso, procure resolver as ati vidades a seguir.
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