Guerreiro Ramos

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2009, Conselho Federal de Administrao (CFA) proibido a duplicao ou reproduo deste volume, ou de parte do mesmo, por quaisquer meios, sem autorizao expressa do CFA.Endereo para contato:

Conselho Federal de Administrao (CFA) SAUS, Quadra 1, Bloco L, Edifcio CFA 70070-932 Braslia (DF)1 Edio (2009) 2.500 exemplares Projeto grfico e diagramao:

Via BrasiliaSuperviso:

Renata Costa FerreiraImpresso:

Artes Grficas e Editora Pontual LTDA - EPP

RAMOS, Guereiro Uma introduo ao histrico da organizao racional do trabalho. / Guereiro Ramos. - Braslia : Conselho Federal de Administrao, 2008. 132 p. Tese apresentada ao concurso para provimentos em cargos da carreira de Tcnico de Administrao do quadro permanente do Departamento Administrativo do Servio Pblico -1949 enquadrada na seo IOrganizao, item a da letra a, das instrues do referido concurso. Republicao do original publicado em 1950. 1- Eficincia industrial. 2- Sociologia industrial. I-Ramos, Alberto Guereiro. II- Conselho Federal de Administrao. III- Ttulo. CDU 306.36

PARA Rmulo de Almeida Ottolmy Strauch Jorge Lacerda Efran Toms B Abidias Nascimento Jos Leite Lopes Jlio S

Uma Introduo ao Histrico da Organizao Racional do Trabalho(Ensaio de sociologia do conhecimento)Tese apresentada ao concurso para provimentos em cargos da carreira de Tcnico de Administrao do Quadro Permanente do Departamento Administrativo do Servio Pblico 1949 Enquadrada na Seo I Organizao, item a da letra a, das Instrues do referido concurso.

Werkleute sind wir: Knappen, Jnger, Meister, und bauen dich, du hohes Mittelschiff. . Gott, du bist gross. RAINER MARIA RILKE

11PREFACIO ............................................ ...........................................13 APRESENTAO ....................................... ......................................15 PARTE I PLANO E JUSTIFICAO ........................... ..........................17 PARTE II DESENVOLVIMENTO.............................19 ............................. CAPTULO I O TRABALHO NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS .............21 ............. CAPTULO II OS PRECONCEITOS ANTI-TRABALHISTAS NA ANTIGUIDADE .................................29 ................................. CAPTULO III O trabalho na Idade Mdia e no Renascimento ........... ..........35 CAPTULO IV A RACIONALIZAO IN STATU NASCENDI ...............43 ............... CAPTULO V O AMBIENTE RACIONALIZADOR ....................... ......................47 CAPTULO VI O SISTEMA TAYLOR ................................53 ................................ CAPTULO VII O SISTEMA FORD .................................. .................................63 CAPTULO VIII A METODOLOGIA DA ORGANIZAO EM EMERGNCIA ..................................... ....................................69 CAPTULO IX A RACIONALIZAO DO TRABALHO NA ALEMANHA ......................................73 ...................................... CAPTULO X A FISIOLOGIA E A PSICOLOGIA APLICADAS AO TRABALHO....................................79 .................................... CAPTULO XI A RACIONALIZAO DA ADMINISTRAO PBLICA ......................................... ........................................85 CAPTULO XII A SOCIOLOGIA DO TRABALHO ....................... ......................101 PARTE III CONCLUSES................................. ................................117 BIBLIOGRAFIA .......................................119 .......................................

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PREFACIOAo republicar o presente livro Uma introduo ao Histrico da Organizao Racional do Trabalho de autoria de Alberto Guerreiro Ramos, o CFA Conselho Federal de Administrao, pretende apresentar sociedade, e em especial a todos os que se interessam pela Cincia da Administrao uma ferramenta de desenvolvimento e progresso para o pas, um trabalho focado na inovao. Esse livro no recebeu modificaes do seu contedo original, o mesmo que foi publicado em 1950, e, com toda certeza, vai revolucionar os meios acadmicos modernos. Apesar de ter sido escrito com foco em uma administrao federal do passado, quando os profissionais e tcnicos extraiam o saber administrativo dos modelos americanos, o livro ser de grande contribuio para os dias atuais. Alberto Guerreiro Ramos sempre propunha algo diferente e inovador, e exatamente isso que os leitores podero conferir nessa obra. O autor foi tambm de grande importncia para a elaborao do ante projeto original, feito para discusso pelos associados da ABAP Associao Brasileira de Administrao Pblica em 1965 e que serviu de fundamento terico para a redao da Lei 4769/65 que regulamentou a profisso de Administrador e criou os Conselhos Federal e Regionais de Administrao. Aps ampla discusso entre a categoria, Guerreiro Ramos, - ento Deputado Federal - acrescentou diversas alteraes que melhoraram o texto antes de apresent-lo ao Congresso Nacional. No livro que ora relanado, vale destacar os captulos I Trabalho nas Sociedades Primitivas; II Os Preconceitos Anti Trabalhistas na Antiguidade ; III O Trabalho na Idade Mdia e no Renascimento e IV A Racionalizao in statu faciendi por serem de suma importncia para o entendimento crtico estabelecido nos captulos que se seguem. No se v nos livros de Teoria Geral da Administrao tamanha fundamentao terica. A crtica aos humanistas da administrao, psiclogos e socilogos das correntes das Relaes Humanas, Comportamentalista e, at mesmo, Estruturalista esto bem colocadas, culminando com as

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propostas de modelos experimentados na estrutura administrativa federal da poca. No sem razo que o autor quando descreve seu pensamento diz , portanto perfeitamente justificvel o nosso procedimento. De um lado, porque a sntese deve suceder logicamente anlise; de outro lado, porque uma viso de conjunto da Organizao Racional do Trabalho contribuir para aqueles que a aplicam se tornem conscientes das limitaes histricas da referida tecnologia. O Conselho Federal de Administrao coloca disposio do mundo acadmico a republicao dessa obra e acredita que ser de grande valia para os que estudam a Administrao. Como lembrete final, importante ler a continuidade desse grande pensador Guerreiro Ramos em outro livro A Nova Cincia das Organizaes, onde o autor trata da Teoria da Delimitao dos Sistemas Sociais, onde prope um novo modelo alocativo de recursos e analisa criticamente o mercado sem regras, que acarreta o caos da economia que estamos passando nesse momento de turbulncia em todos os mercados do mundo.

Boa leitura a todos!

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APRESENTAO com muita satisfao que o Conselho Federal de Administrao republica o livro Uma Introduo ao Histrico da Organizao Racional do Trabalho de autoria de Alberto Guerreiro Ramos, acreditando que esta obra ter grande relevncia para os tericos comprometidos com as mudanas e que escrevem livros para o ensino e o desenvolvimento da Cincia da Administrao no Brasil. O livro que trata da Teoria Geral da Administrao e no recebeu modificaes em seu contedo original desde que foi publicado pela Imprensa Nacional no ano de 1950, uma homenagem do Sistema CFA/CRAs a Guerreiro Ramos. O autor nasceu em 1915, em Santo Amaro da Purificao, na Bahia , e faleceu em 1982. Guerreiro Ramos foi autor de alta relevncia no campo das Cincias Sociais no Brasil e no mundo. Era polmico, criativo, crtico, porm pro ativo, pois sempre propunha algo diferente. Ele inovou ao tratar da anlise do modelo mecnico taylorista/fordista, to usual na poca. J em 1943, como Administrador (Tcnico de Administrao) ingressou no servio pblico no DASP Departamento Administrativo do Servio Pblico e, em 1945 prestou concurso pblico apresentando como tese o estudo agora republicado em livro Uma introduo ao Histrico da Organizao Racional do Trabalho. Homem de grande cultura tambm escreveu dez livros e numerosos artigos que foram traduzidos em ingls, francs, espanhol, japons e chins. Alberto Guerreiro Ramos desenvolveu trabalhos importantes nas reas de Sociologia, Cincia Poltica e Administrao e sempre apresentou grande interesse poltico. Foi delegado do Brasil na XVI Assemblia Geral da ONU, tendo participado da Comisso de Estudos Econmicos. Na rea acadmica realizou trabalhos de destaque e foi o primeiro professor brasileiro a ministrar aulas no primeiro curso de Administrao na Fundao Getlio Vargas, no Rio de Janeiro. Outra obra de sua autoria, A Nova Cincia das Organizaes Uma Reconceituao da Riqueza das Naes, foi considerado nos Estados Unidos como a melhor obra de Cincias Sociais nos anos 80.

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Ao republicar esse livro, o Sistema Conselho Federal de Administrao e Conselhos Regionais de Administrao que representam os 27 estados brasileiros - busca contribuir para o desenvolvimento e a divulgao da Cincia da Administrao, em atendimento a misso de valorizar a profisso de Administrador. Pretende ainda resgatar um autor importante para a histria da Administrao no Brasil, divulgar sua obra nos meios acadmicos e prestigiar o escritor que, nos primrdios do sculo XX, ofereceu importante legado no campo de estudo da Administrao. Conhecendo a histria para administrar o futuro.

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PARTE I PLANO E JUSTIFICAOAs teses que tm sido apresentadas nos anteriores concursos para a carreira de Tcnico de Administrao, acrescidas das numerosas publicaes patrocinadas pelo D. A. S. P., constituem, em conjunto, um repositrio de indicaes e informaes utilssimas sobre os aspectos fundamentais da tcnica de administrao. Principalmente graas ao esforo de seus autores, as novas idias sobre a racionalizao administrativa foram debatidas e divulgadas, em nosso meio, de maneira acessvel ao grande pblico interessado nessas questes. Elas so, por assim dizer, um verdadeiro patrimnio do Servio Pblico brasileiro. Examinando-se, porm, esta abundante literatura, observar-se-, nela, a ausncia de qualquer estudo sobre a evoluo da Organizao Racional do Trabalho. Animados pelo intuito construtivo de contribuir para um acrscimo positivo daquele acervo, decidimos empreender o presente estudo, intitulado Uma Introduo ao Histrico da Organizao Racional do Trabalho, contrariando a tendncia do menor esforo, que seria a de seguir rotas j exploradas. , portanto, perfeitamente justificvel o nosso procedimento. De um lado, porque a sntese deve suceder logicamente anlise; de outro lado, porque uma viso de conjunto da Organizao Racional do Trabalho contribuir para que aqueles que a aplicam se tornem conscientes das limitaes histricas da referida tecnologia. O plano da presente tese concretiza-se nos seguintes tpicos que constituiro captulos da Parte II: I O trabalho nas sociedades primitivas; II Os preconceitos anti-trabalhistas na Antiguidade; III O trabalho na Idade Mdia e no Renascimento. IV A racionalizao in statu nascendi; V O ambiente racionalizador;

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VI O sistema Taylor; VII O sistema Ford; VIII A metodologia da organizao em emergncia; IX A racionalizao na Alemanha; X A fisiologia e a psicologia aplicadas ao trabalho; XI A racionalizao da administrao pblica; XII A sociologia do trabalho. Esta ordenao pareceu-nos a mais adequada ao objetivo desta tese que o de mostrar que a Organizao Racional do Trabalho conseqncia de um longo processo de secularizao, no transcurso do qual apareceu, tardiamente na civilizao ocidental, uma atitude laica do esprito humano, em face da natureza e da sociedade. Com efeito, nos captulos I e II, pretendemos ter evidenciado que o carter tradicional e sagrado das sociedades pr-modernas no possibilita o desenvolvimento de uma racionalizao do trabalho. No captulo III, em que estudamos o trabalho na Idade Mdia e no Renascimento, tivemos em vista assinalar o choque de duas tendncias histricas antinmicas e, no captulo IV, focalizamos a superao deste choque, pelo surto de uma nova atitude do esprito humano, em face da natureza e da sociedade. A configurao ntida e definitiva desta atitude demonstrada no captulo V. Do captulo VI em diante, acompanhamos a evoluo da Organizao Racional do Trabalho, propriamente dita. Na Parte III, encontram-se as concluses da tese, sob forma de itens.

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PARTE II DESENVOLVIMENTO preciso, no atual perodo de transio, utilizar o crepsculo intelectual que domina nossa poca e no qual todos os valores e pontos de vista aparecem em sua genuna relatividade. Karl Mannheim, Ideologia y Utopia. Fondo de Cultura Econmica Mxico. 1941. Pg. 75.

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CAPTULO I O TRABALHO NAS SOCIEDADES PRIMITIVASSignalons dabord que la stabilit est l trait l plus caractristique de toutes ls formes de culture primitive, ceci em raison de la simplicit et du manque de variet de la technique. Moins on introduit dinnovations dans une culture et plus elle a tendance demeurer uniforme. Richard Thurnwald, LEconomie Primitive. Payot. Paris. 1937. Pg. 349. When I said that primitive society is all of a piece, I meant that there is in primitive society an estimate linking of all social activities. For example, the anthropologist who sets out to study tribal economics finds that he cannot understand them unless he also find out about the kinship structure, the religious system, the technology, land tenure and other social structures. In fact, from whichever angle he approaches such a community in the field he finds that he cannot understand any single aspect of it outside and apart from the context provided by the rest. As regards the individual himself, his activity in these various single social fields is entirely determined by his position in all of them. In our society our business or workaday life is very little affected, for example, by our religious life; indeed; we need have no religius life. But the primitive cannot be an atheist if be wave, he would be unable to take up any other social role. In his experience, the social field is one. He cannot go out of any part of it without going out of all it. Adam Curle, Incentives to work, in Human Relations Vol. II. No. 1. Pg. 43 1949.

O trabalho nas sociedades modernas uma atividade institucionalizada. algo que tem uma existncia substantiva, perfeitamente ntida. Na maioria dos pases do mundo ocidental sua existncia to concreta que se materializa em reparties especializadas no seu tratamento. Alguns pases possuem museus do trabalho, edifcios onde se abriga, por assim dizer, a representao coletiva do trabalho e quase por toda parte est em vigncia um direito do trabalho.

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Tudo isto est a indicar que o trabalho assumiu no presente estdio da evoluo humana uma importncia decisiva, como fator bsico da posio do homem na sociedade e, at certo ponto, no universo1. Esta compartimentalizao do trabalho, entretanto, um fato relativamente recente. Nem, sempre ele constitui uma esfera decisiva da sociedade. Nem sempre ele foi nitidamente perceptvel, como em nossos dias. necessrio, pois, compreender a historicidade deste fato, porque s luz desta compreenso se poder explicar o aparecimento da organizao racional do trabalho, no fim do sculo XIX. Tal ocorrncia o resultado de um longo processo histrico e no de uma causalidade ou de uma inveno inopinada. Nada melhor para introduzir o estudioso na pista certeira da compreenso deste fenmeno que acompanhar o desenvolvimento da1

o que explica, em parte, o aparecimento dos partidos trabalhistas. oportuno, guisa de fundamentao do que se disse, transcrever estas pginas de Peter F. Drucker (The Future of Industrial Man), sobre o homem sem trabalho: O desempregado, sobretudo, desintegra-se socialmente. Perde as habilidades que tinha, a moral que ostentava, torna-se aptico e insocial. O desempregado a princpio pode ser mais amargo; o ressentimento ainda, uma forma de participao da sociedade, embora negativa. Logo, porm, para o desempregado, a sociedade se torna demasiado irracional e incompreensvel at para a revolta. Fica perturbado. Sente-se ameaado. Passa a resignado e por fim mergulha numa apatia que como que uma morte social. Durante os perodos crepusculares de alta atividade nos negcios e altos desempregos que caracterizam os pases industriais num passado recente, qualquer estudioso de questes sociais com experincia, seria capaz de descobrir dentro uma multido, de uma cidade industrial, numa tarde de sbado, os desempregados crnicos. No vestiam necessariamente com mais pobreza do que os outros; no pareciam mais subalimentados do que a maioria dos operrios empregados da multido. Tinham, porm, um ar iniludvel de perturbadao, de homens derrotados e perseguidos por uma fatalidade cega que os distinguia tanto como se eles pertencessem a outra raa. E assim num certo sentido. Em torno deles levantou-se uma muralha invisvel, separandoos da sociedade, que os proscreveu. No s os desempregados; a sociedade sentiu essa muralha. O intercmbio social entre os empregados e os desempregados gradualmente cessou. Freqentavam botequins diferentes, diferentes casas de jogo, quase no se casavam entre si e, em geral, permaneciam separados. No h pginas mais trgicas e mais espantosas em toda a literatura a respeito do desemprego crnico, do que as que contam a destruio, por ele causada, na comunidade mais indispensvel ao homem: a famlia. Muitas famlias completamente desempregadas mantiveram sua coeso e fora social. Mas, raramente, uma famlia, em parte desempregada, continuou a ser uma comunidade em funcionamento. Pai desempregado, filhos empregados, irmos desempregados, irm empregada ficavam separados por uma muralha de mtua suspeita e incompreenso, que nem o amor, nem a necessidade conseguiam destruir. Se h necessidade de outras provas da significao social do desemprego, temo-las na jogatina a que se entregavam os desempregados, em todos os pases industriais. A popularidade das apostas de futebol e corrida de cachorros, na Inglaterra, ou do jogo dos nmeros, nos Estados Unidos, no se explica pelo desejo dos desempregados de ganhar algum dinheiro da nica maneira possvel. O desempregado sabia to bem que podia perder, quanto qualquer articulista caturra que fizesse clculo das probabilidades. Mas a sorte cega e irracional lhes parecia a nica fora ativa deste mundo e desta sociedade. S a sorte vale. E as apostas de futebol ou os jogos dos nmeros lhes pareciam a nica conduta racional, numa sociedade sem outra razo de ser, sem significao, sentido, funo e poder integrativo. (Cr. A Guerra e a Sociedade Industrial, pgs. 139-141, traduo brasileira de The Future of Industrial Man, de Peter F. Drucker, Epasa, Rio, 1944).

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idia do trabalho nos vrios estdios da evoluo do ocidente, embora de maneira sumria. O estdio mais rudimentar da sociedade aquele a que que se tem convencionado chamar primitivo ou, como querem os socilogos norteamericanos, de pr-letrado2. Esta etapa , indisfaravelmente, comum a todas as civilizaes. Muitas destas, alis, permanecem ainda nesta fase, compondo o panorama daquilo a que W. Pinder chamaria contemporaneidade do coetneo3. Em tais sociedades pr-letradas o processo de individualizao do trabalho se apresenta in statu nascendi. O trabalho a algo difuso, coextensivo totalidade da vida social. Tem observado os antroplogos que freqentemente no se encontra nas sociedades primitivas uma palavra especfica para designa-lo. A sociedade primitiva , como diz A. Curlem, inconsutil, isto , feita de uma s pea. Economia, arte, religio, moral e magia se mantem em estreitssima interdependncia funcional, resultando disto obscuridade existencial de cada uma delas. Todavia, destas vrias esferas da vida social a que mais de perto se relaciona com o trabalho evidentemente a economia. Alis, isto acontece no s nos estdios rudimentares, como nos mais desenvolvidos da evoluo social, economia e trabalho se desenvolvem, de maneira interdependente. O carter da economia primitiva, refrao que do carter genrico da sociedade, no permite que o trabalho se desprenda das outras atividades. Dois aspectos da economia primitiva interessa-nos ressaltar aqui: a idia de lucro e a concepo do trabalho.

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Trmo proposto por Ellsworth Faris. (The Nature of Human Nature, McGraw-Hill Book Co. Inc. New York and London 1937). Escreve E. Faris, s pginas 252 e 253 deste livro: Preliterate seems a far better word. It is neutral, connoting no reflection of inferiority, and is, therefore objective and descriptive. Moreover, it may well be that the introduction of a written symbolic language is the chief differentiation between the culture of city-dwellers and those who belong to the Lower societies. But wether this be true or not, it is evident thatnone of the peoples we include in the terms savage and primitive possesses a developed, written language. This is not because such peoples cannot learn to read and write. Missionaries and teachers have proved that letters are not impossible to them. They have simply no had the opportunity to learn. They are not literate, nor illiterate. They are preliterate. Para maior desenvolvimento deste tema, vide: Wilhelm Pinder, El Problema de ls Generaciones na Historia del Arte de Europa. Editorial Losada, S. A. Buenos Aires 1946. Tambm: L. L. Schcking The Sociology of Literaty Taste. Kegan Paul, Trench, Trubner & Co. Ltd. 1944. London.

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Na sociedade pr-letrada, o processo de produo e de criao de bens est orientado pela tradio e pelo costume. Nela no se compagina a idia do lucro. Produz-se para a satisfao de relativamente restritas necessidades de nvel elementar. Tal economia tem sido chamada, por isso, de subsistncia. A produo dos bens se organiza rigidamente, em bases naturais, diferenciando-se as tarefas segundo o sexo e a idade. H assim atividades femininas, atividades masculinas, atividades da juventude, da maturidade e da velhice. Acresce ainda que as funes sociais (os status) distribuem-se conforme a distribuio etria e dos sexos. Quer dizer: , sobretudo, a condio biolgica do indivduo que lhe determina a funo e a posio na sociedade. No carece o indivduo de competir para adquirir um status determinado, ou seja, ascender verticalmente na hierarquia social, porque, para usar a terminologia de Sorokin, a sociedade pr-letrada imvel. A ambio de lucro s se justifica quando o capital o instrumento da ascenso social do homem. Nas sociedades primitivas, ordinariamente auto-suficientes e homogneas, a capitalizao no teria nenhum papel, para nada serviria, at porque, nelas, os instrumentos para conseguir prestgio so de outra natureza: s vezes, a bravura, outras a argcia e at um defeito fsico ou psicolgico. Os neurticos, por exemplo, em algumas destas sociedades so respeitados como entes portadores de foras sobrenaturais. A acumulao de utilidades se faz, certamente; mas com o objetivo de constituir reservas para o consumo futuro ou para serem dadas ou trocadas (no comerciadas). Os Swahili acumulavam milho e farinha de mandioca, que guardavam em sacos de peles de cabras. Nossos ndios tupinamb conservavam, durante muito tempo, carne de animais, pssaros e peixes e razes, pelo processo de moqucao. Certa farinha de mandioca duraria at um ano sem se estragar4. Por outro lado, a troca no feita com o objetivo de lucro, mas para satisfazer necessidades5. Confirmando os resultados de vrias pesquisas antropolgicas, verifica Florestan Fernandes que, entre os Tupinamb, o princpio fundamental da4 5

Cf. FLORESTAN FERNANDES, A Organizao Social Tupinamb, Instituto Progresso Editorial S. A. So Paulo. 1949. pg. 83. L commerce primitif, affranchi du dsir de gagner de largent et nayant pour objet que dobtenir directement les biens dont on a besion ou envie nous parat premire vue manquer de ce qui constitue pour nous lessence mme du commerce: le profit (cf. Richard Thurnwald, LEconomie Primitive. Payot. Paris 1937. pg. 192).

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economia consiste na produo do estritamente necessrio ao consumo e, ainda, que a acumulao de utilidades como tcnica de racionalizao dos meios de produo e de coleta era completamente desconhecida6. No quer isto dizer que no processamento das trocas os indivduos no considerem a equivalncia dos valores dos bens trocados. A idia de reciprocidade muito viva na conscincia dos povos primitivos. Mas, ento, o critrio de valor dos bens no objetivo e abstrato como no ato comercial tpico; subjetivo e individual. Ocasional, muitas vezes um meio de atrair grupos inimigos a fim de ataca-los, a troca, entre os primitivos, no constitui uma fonte de reservas e de recursos capaz de aumentar a autonomia ou o poder do homem. A inexistncia da idia de lucro na conscincia do pr-letrado tambm perceptvel no seu estilo de trabalho. Inicialmente, deve-se observar que ele no distingue um tempo destinado ao cio, de um tempo destinado ao trabalho, - o que quer dizer que o trabalho nesta etapa da vida social ainda no se coagulou em estilos independentes. Todo trabalho prazer e criao. uma espcie de atividade oriunda de um forte instinto de vida. Por isto no necessrio nenhum incentivo, nenhuma presso externa para que o primitivo trabalhe7. O aparecimento do instituto do contrato de trabalho s se registra, ulteriormente, quando as relaes sociais se secularizam: No existe na sociedade primitiva algo semelhante ao que chamamos de mercado de trabalho porque, nela, o trabalho no se aluga, nem se vende. Um exemplo esclarece o assunto: o mutiro. Entre os tupinamb, quando algum precisava realizar uma tarefa que demandasse ajuda como derrubar matas e arrotear terras, chamava em seu auxlio os vizinhos. Florestan Fernandes, resumindo um texto de Evreux, informa8: Todos trabalham cooperativamente nas roas de um Thuyaue durante uma ou duas manhs. Levantam-se ao romper do dia e almoavam. Os diversos grupos familiares partiam cantando para o servio. Quando o sol6 7

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Cf. FLORESTAN FERNANDES op. cit. pg. 83. Sobre o tema, cf. Adam Curle. Incentives to Work (in Human Relations, A Quarterly Journal of Studies towards the Integration of the Social Sciences Vol. II. No. 1 1949). Vide tambm Fancis L. K. Hsu, Incentives to Work in Primitives Communities, (American Sociological Review, Vol. 8. No. 6. December 1943). Op. cit. pg. 120.

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ficava muito custico, mais ou menos pelas dez horas, interrompiam os trabalhos. Depois, caulnavam na maloca do dono das roas. A compensao propriamente dita esclarece o socilogo paulista assumia a forma de prestao recproca de servio; por isso, teria ocorrido antes ou se processaria posteriormente. Tal sistema o que Richard Thurnwald chama de trabalho solicitado9. Nenhum vizinho se recusa ao convite de outro, do contrrio cometeria uma afronta. Por outro lado, sabe que a ajuda prestada ser resgatada sob a mesma forma, na ocasio em que dela necessitar. E confirmando o que ocorria entre os Tupinamb, escreve Thurnwald: Quando algum precisa abater uma rvore ou transport-la para dela fazer uma canoa, o chefe para quem o trabalho feito fornece aos trabalhadores uma merenda composta de porco assado, de inhame cozido, de cco fresco, de acar e de nozes de btele. Durante todo o trabalho, realizam-se ritos mgicos. No a obra propriamente que se remunera, mas o gasto de energia que ele implicou. Os esforos recepcionais recebem uma recompensa de ordem emocional: festas, danas10. No se aplica na estimao do trabalho o clculo, elemento caracterstico das relaes comerciais. Tampouco, realiza-se o trabalho conforme a lei do menor esforo. Na realizao de suas tarefas, o primitivo emprega, muitas vezes, grande energia e tempo, que a ns pareceriam desnecessrios. Todos conhecemos o gosto que tm os povos primitivos pelas decoraes, muitas de difcil elaborao. At em objetos de uso freqente como armas ou utenslios elas so registradas, muitas vezes tornando o manejo de tais objetos mais penoso. que o trabalho dos primitivos, impregnado de magia, como observa Thurnwald,11 supera o quadro de um relacionalismo estritamente econmico. Com efeito, a aplicao de procedimentos nacionais na execuo do trabalho uma idia que a mentalidade primitiva constitucionalmente9

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Le principe est que laide prte, disons pour la construction dune maison, soit paye la premire ocasin dune aide analogue, par celui qui en a bnfici: cest ce que nous appellons le travail sollicit. Le mme principe joue la chasse ou la pche et dans l cas o un village en aide um autre au travail du jardinage (Thurnwald, op. cit. Pg. 274). Op. Cit. Pg. 274.

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incapaz de assimilar. Toda a tarefa est submetida a regras e preceitos mgicos, que no devem ser violados. Acredita-se, mesmo que o bom xito de qualquer trabalho depende mais da observncia daquelas normas do que da atividade humana. Em muitas sociedades pr-letradas em que as fainas agrcolas so consideradas femininas, toda vez que os homens as realizam devem vestir-se com trajes de mulher. Muitas vezes, necessrio manter o segredo dos ritos mgicos do trabalho e, por esta razo, certas indstrias desaparecem de uma regio, pelo simples fato de terem desaparecido as famlias nelas especializadas. certo que muitos procedimentos tcnicos tm sido encontrados entre os povos naturais (Vierkandt), mas parece que eles a surgem, no por um esforo inventivo deliberado, plenamente consciente de si e sim casualmente. O acaso o tcnico, nestas circunstncias12. A mentalidade primitiva incompatvel com a tcnica, a racionalizao econmica do trabalho. Esta, como se sabe, supe a renovao incessante dos processos de trabalho, tendo em vista a maior economia das energias humanas e das matrias-primas e o maior aperfeioamento dos produtos. Implica, assim, uma mudana incessante em pleno desacordo com a estabilidade caracterstica da economia primitiva. tradio compete quase exclusivamente fixar as necessidadesLa place quoccupe le travail dans la vie des peuples primitive est trs diferente de celle quil oxxupe dans notre monde moderne. Il ne sagit plus dune marchandise mise sur le march, mais dune activit mise an oeuvre pour soi-mme ou pour autrui dans le but aobtenir un resultat immdiat et non de gagner sa vie. Cest pour cette raison que le primitif aborde sa tche dans um esprit entirement different du ntre. Il laccomplit, en rgle gnrale, non sous une pression extrieure, delle que la ncessit dexcuter un contrat ou sous le contrle direct dun chef, mais son gr et suivant sou inclination du moment. Cependant, mme dans ce cas un ne saurait dire quil chappe entirment une certaine ncessit car, dans tout ce quil ehtreprend en vue de se procurer de la nourriture il est bien evident quil existe un rapport direct entre le travail et le rsultat desire (Thurnwald, op. cit. pg. 272). 12 Sobre a tcnica do primitivo, diz Jos Ortega y Gasset: La tcnica que llamo del azar, porque el azar es en ella el tcnico, el que proporciona el invento, es la tcnica primitiva del hombre pre e proto-histrico y del actual salvaje se entiende, de los grupos menos avanzados , como los Vedas de Ceiln, los Semang de Borneo, los Pigmeos de Nueva Guinea y Centro Africa, los australianos, etecctera. - Como se presenta la tcnica a la mente de este hombre primitivo? La respuesta puede ser aqui sobremanera taxativa: el hombre primitivo ignora su propia tcnica como tal tcnica; no se da ucenta de que entre sus capacidades hay una especialsima que le permite reformar la naturaleza en el sentido de sus deseos (Ensimismamiento y Alteracin, Espasa Calpe Argentina S. A. Buenos Aires. 1939, pgs. 130-131). 13 ... le travail des primitifs... est tout imprgn de magie. Presque partout et plus particulimente chez les peuples de culture moyenne et suprieure nouns voyons la magie accompagner laccomplissement du tavail et assurer son succs. Les indgenes pensent, dune part, que les crmonies magiques alderont la nature dans des oprations telles que la chasse, la pche, la11

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humanas e os modos de satisfaze-las13. Assim, qualquer tentativa deliberada de criar necessidades ou de alterar os processos de satisfao das mesmas se afigura sacrlega e ofensiva aos mores. Focalizando esta averso da mentalidade primitiva s inovaes, Thurnwald expe as extremas precaues que se tomam quando se tem de adotar uma inovao. preciso diz ele que se promova uma espcie de adoo da novidade pelo grupo. Para produzir todos os seus efeitos, no basta que as descobertas tenham sido realizadas por tal ou tal indivduo; necessrio, ainda, que elas sejam elevadas pelo grupo categoria de tradies culturais e a mesma observao se aplica adoo de qualquer trao de uma cultura estrangeira, de sua arte, de seus conhecimentos, de seus costumes, de suas instituies14. Inrcia emocional, desconfiana, apreenso impedem o desenvolvimento da racionalizao do trabalho nas sociedades pr-letradas. O fato, porm, tem uma razo profunda que explicada pelo antroplogo Adam Curle15 deste modo: Talvez seja errado dizer que os primitivos no desejam mudar. mais correto dizer que eles no conhecem a mudana. Isto por que seu prprio modo de vida um emaranhado de observncias rituais que d s vrias atividades no apenas sanes sobrenaturais que se reforam mutuamente, mas tambm que atualmente relaciona os indivduos com o cosmos e neste lhes d um lugar. Alterar um processo de caa quase alterar a relao do sol com a lua. Tal coisa inconcebvel. Mas se acontece que por intermdio de uma agncia externa, alguma mudana forada numa sociedade primitiva, ento a estrutura total se desintegra, desde que a mudana de uma parte afeta o todo. A interrelao do ritual, do folclore, das atitudes e das atividades tcnicas ser perturbada. O esforo comum, a moralidade, as artes e o senso social desaparecero, em conseqncia.croissances des plantes, la reproduction de animaux, etc. et dautre part ils croient quelles sont ncessaires la reussit dun travail personnel, comme la construction dun canot ou dune maison. Chez les plus avancs des primitifs, ces crmonies trouvent une application chacune des phases de la vie des plantes cultives. Notons quelles ne sont pas sans importance pratique car elles exercent une grande influence en systmatisant, en ordonnant, en contrlant le travail. Elles entranent par contre une grande somme de travail suplementaire et en apparence, inutile. Le magicien est lexpert que lon consulte en toutes circonstances et le contrleur que domine mentalement le travail et les ouvriers (Thurnwald, op. cit. Pg. 273). Thurnwald, op. cit. Pgs. 349-350. Op. cit. pg. 43.

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CAPTULO II OS PRECONCEITOS ANTI-TRABALHISTAS NA ANTIGUIDADEDesde los tiempos humanos ms primitivos aparece una vida de hazaas personales, em sua relaciones con el medio ambiente material y animal, frente a otra oscura y dura, dedicada a un continuo trabajo productivo, necesario para satisfacer las necesidades de la existencia. J. A. Hobson, Veblen, Fondo de Cultura Economica. Mxico, 1941, pg. 60. Cest un des caracteres essentiels de lconomie antique quil y ait eu des tres humains traits comme des choses, que lindustrie ait dispos ainsi que le grand propritairi, bien entendu dun capital de chair et dun outillade de muscles. Henri Berr, Avant-Propos de L conomie Antique, de autoria de J. Toutain, pg. XXII. Paris, 1927. Les veritables valeurs humaines, pour les crivains grecs, sont les valeurs de contemplation, de connaissance libre et dsintress. Entre la contemplation et le travail manuel, le conflit est absolu, lopposition invincible. Le travail nest pas une activit vraiment humaine. Il alourdut lme, la rend semblable la matire. Etienne Borne e Fanois Henry, Le Travailet L Homme, Descle de Brouwer, Paris. 1937, pg. 28.

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O desprezo do trabalho, especialmente do trabalho muscular, tem a evidncia de um axioma justificado pelo consentimento universal1. Em todas as sociedades letradas ou pr-letras, ele se tem verificado e Thorstein Veblen, impressionado com este fato, elaborou uma teoria da diferenciao social, cuja idia bsica , precisamente, a de que a vida ociosa , por toda parte, um dos signos mais evidentes das classes sociais superiores. A etnografia e a histria parecem dar indiscutvel legitimidade a esta formulao genrica de Thorstein Veblen. Em sua obra, a Teoria da classe ociosa, o famoso socilogo e economista norte-americano distingue duas etapas originrias da sociedade2: a do selvagem e a do brbaro. Na primeira, o estado de pobreza, o carter extremamente rudimentar da cultura torna necessrio o trabalho dos homens e das mulheres. Esto neste estdio, segundo Veblen, os povos pacficos e sedentrios, entre os quais a propriedade individual no uma caracterstica dominante do sistema econmico. Nas comunidades brbaras, aparece o instinto precatrio que promove a distribuio diferencial das tarefas entre os indivduos. De modo geral, forma-se uma classe ociosa, que se incumbe das tarefas honorrias como a guerra e o sacerdcio, e uma classe industriosa, que se encarrega das ocupaes servis. A quase unanimidade dos etngrafos atesta, com efeito, um estado de rapina entre os povos de organizao social rudimentar. Destaca-se a a figura do lutador ou do guerreiro que defende o territrio e o gado. E como quem trabalha no tem tempo para treinar-se no ofcio das armas imputa-se-lhe uma certa inferioridade social. E deste modo escreve Flausino Trres vai formando-se aquela concepo do trabalho normal que encontramos plenamente elaborada na Repblica de Plato e no Gnesis: o trabalho degrada quem pratica; por isso, os que trabalham formam uma classe parte; mas no a ela que cabe a direo da sociedade; para mandar no se pode ter as mos manchadas por certos ofcios....31 2 3

Cf. ETIENNE BOROE et FANOIS HENRY, Le Travail et L'Homme. Descle de Brouwer. Paris, 1937, pg. 31. Cf. FRANCISCO AYALA, Historia de la Sociologa. Editorial Losada. Buenos Aires. 1937, pg. 146. Cf. FLAUSTINO TORRES, Civilizaes Primitivas. Cosmos Lisboa. 1943, pg. 149.

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O mesmo testemunho oferece o etnlogo alemo Richard Thurnwald4 que registrou entre povos pastores e caadores a tendncia a viver da rapina e da pilhagem e a considerar desclassificado o trabalho ordinrio, especialmente a agricultura. To persistente, porm, este desprezo do trabalho que ainda em nossos tempos ele se apresenta, umas vezes ostensiva, outras veladamente, parecendo, assim, indicar que o desfavor atribudo ao trabalho manual e comandado5 no um caracterstico passageiro mas inseparvel de qualquer sociedade estratificada. o a que induz toda uma srie de estudos de natureza sociolgica, desde Karl Marx a Edmond Goblot e Maurice Halbwachs. Todavia, uma conjugao de fatores deu, em nosso tempo, uma alta categoria moral ao trabalho emancipando-o, por assim dizer, do aviltamento em que permaneceu na Antiguidade e na Idade Mdia. H estreita relao entre a concepo que uma poca faz do trabalho e o grau de evoluo de seus procedimentos ergolgicos. Assim a aplicao da cincia na organizao das foras de trabalho s se torna possvel de maneira sistemtica, na medida em que se opera aquele desaviltamento. Por conseguinte, muitas transformaes histricas devero ocorrer para que se torne possvel a elaborao de uma cincia do trabalho. Na histria da Antiguidade, confirma-se a mesma condio do trabalho acima referido. Herdoto, reportando-se ao costume grego de atribuir ao trabalho uma acepo oprobriosa, escreve6:4

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"L'activit du chasseur ou du berger ne peut tre appele travail, aussi, lorsque l niveau de vie s'amliore, ont-ils tendence vivre de rapines ou de trafic ou, dans certains cas, comme nous l voyons au Soudan, se lancer dans de vraies incursions but commercial; ailleurs encore l travail du sol est reserve aux femmes etrangres et aux prisonniers de guerre" (R. Thurnwald, op. cip. Pg. 279). "Cette dfaveur qui s'attache au travail manual et au travail command n'est d'ailleurs pas un trait caractristique de la bourgeoisie franaise moderne; il se recontre partout a il y a des castes ou des classes. Tout superiorit de rang social se traduit et s'exprime par le pouvoir de so faire servir et cela moins pour s'eviter de la peine que pour marquer son rang. Car il faut qu'il soit reconnaissable et, s'il se peut, au premier coup d'oil. En chine, les ongles du mandarin, aussi long que ses doigts, ces ongles soigns, souples, transparentes, spirals, sont une preuve manisfeste qu'il ne fait rien de ses mains. N'est-ce pas aussi pour signifier qu'il ne s'abaisse pas aux travaux serviles que notre bourgeois porte un costume avec lequel ils seraient impossibles? Il prouve le bsoin de faire savoir, la simples inspection, qu'il n'est pas un manoeuvre, un homme de peine qui dtermine la profesin? N'est-ce pas plutt la profesin qui classe?" (Edmond Goblot, La Barrire et le Niveau, Flix Alcan. Paris. 1930, pg. 45). HERDOTO, II, 167 (citado em Etienne Borne e F. Henry, op. cit. pgs. 30 e 31).

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No saberia afirmar se os Gregos tomaram este costume dos Egpcios, porque eu o encontro estabelecido entre os Trcios, os Citas, os Persas, os Ldios; em uma palavra, porque entre a maior parte dos brbaros os que aprendem as artes mecnicas e at seus filhos so considerados como os ltimos cidados; ao contrrio, estimam-se como mais nobres aqueles que no exercem nenhuma arte mecnica e principalmente aqueles que se consagram profisso das armas. Todos os Gregos so criados nestes princpios, particularmente os Lacedemnios: todavia excetuo os Corintios que fazem muito caso dos artesos. V-se assim, por este trecho de Herdoto, que a idia infamante do trabalho foi universal na Antiguidade. justo, por conseguinte, tomar como representativo desta fase do Ocidente o caso grego. A atrofia dos procedimentos ergolgicos que se registra na Grcia e em todo o mundo antigo representa o correlato necessrio do sistema de escravido, justificado por uma filosofia social generalizada que encontra em Aristteles o seu mais claro expositor, e segundo a qual a vida humana verdadeiramente superior a contemplativa. O dualismo metafsico, que consagra a oposio entre o intelecto e a matria, legitimava a estratificao social vigente nas cidades gregas. A escravido se justifica no pensamento grego como uma decorrncia da hierarquia dos valores. O escravo verdadeira mquina viva, vocacionalmente destinado a obedecer. Faz parte da comunidade domstica juntamente com os outros bens, objetos e animais, e carece da temperana, da coragem e da justia, virtudes nobres, possuindo apenas as virtudes de um bom instrumento. luz desta filosofia social, o trabalho torna-se desprezvel, bem com as aplicaes materiais da cincia. Especialmente por este motivo, no se desenvolve na Antiguidade, nem a tcnica do trabalho, nem o maquinismo. Henri Berr examinou bem esta questo. Acentua este historiador que progressos decisivos foram realizados na tcnica durante a idade da pedra e dos metais. Contudo entre estes tempos recuados em que a utensilagem fundamental da vida econmica se constituiu de uma srie de in-

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venes maravilhosas e o perodo das mquinas, por que razo, pergunta Henri Berr, permaneceu estacionria a intelligence fabricatrice? E explicando a razo deste fenmeno, escreveu7: A organizao social pode, em certos momentos, pelos progressos da tcnica verbal, pelas tcnicas ilusrias, de origem religiosa, mgica, pelo poder conservador da tradio, do esprito corporativo, entravar o jogo deste instinto de mecnica, formado no indivduo ao contato da natureza e de que se beneficia a organizao social: mas a escravido, sobretudo, parece-nos, que preciso incriminar aqui. Ela no somente ofereceu aos problemas tcnicos uma soluo cmoda (paresseuse), como fez desprezar o trabalho normal como ocupao social... Dada essa escravido, no houve, no podia haver, na antiguidade, maquinismo, nem salariado organizado. Na Grcia e em Roma, a filosofia social ento vigente se nutria na realidade social contempornea e vice-versa. Xenofonte considerava as artes mecnicas infamantes, pois elas minam os corpos dos que as exercem, forando-os a permanecer sentados, a viver na sombra e, s vezes, a ficar perto do fogo. Plato coloca os arteses em ltimo lugar em sua cidade ideal. Em sua Poltica, Aristteles declara que nenhum arteso ser cidado. A palavra banausos (arteso) mesmo, informa Pierre Mxime Schul8 sinnimo de desprezvel e se aplica a todas as tcnicas. Parafraseando H. G. Wells, pode dizer-se que as civilizaes antigas foram edificadas sobre o ser humano barato e degradado.

7.Cf. J. Toutain, L'conomie Antique La Renaissance du livre. Paris. 1927, pgs. XXII-XXIII. 8.Op. cit. pg. 11.

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CAPTULO III O TRABALHO NA IDADE MDIA E NO RENASCIMENTOFor though the development of economic rationalism is partly dependent on rational technique and law, it is at the same time determined by the ability and disposition of men to adopt certain types of practical rational conduct. When these types have been obstruced by spiritual obstacles, the development of rational economic conduct has also met serious inner resistance. The magical and religious forces, and the ethical ideas of duty based upon them, have in the past always been among the most important formative influences on conduct (Max Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, George Allen & Unwin Ltd. London. 1948, pginas 26-27). The medieval theorism condemned as a sin precisely that effort to achieve a continuous and unlimited increase in material wealth which modern societies applaud as meritorious, and the vices for which he reserved his most merciless denunciations were the more refines and subtle of economic virtues (R. H. Tawney, Religion and the Rise of Capitalism. Penguin Books. England, 1942, pg. 39).

A Idade Mdia transformou radicalmente a idia antiga do trabalho, o qual adquire, nesta etapa da histria do Ocidente, um valor asctico. O trabalho no corrompe a alma e o corpo, como se proclamava no mundo antigo mas, ao contrrio1, prepara a primeira para a vida contemplativa e ao segundo d ocupao, livrando-o dos apetites inferiores. So Bento inclui em suas regras a necessidade do trabalho e Santo Agostinho combate certos monges africanos que afirmam haver incopatibilidade entre o trabalho e a vida monstica. Este reconhecimento do valor interior do trabalho produziu, entretanto, efeitos sociais muito restritos. No plano metafsico,1

Referindo-se civilizao medieval, escrevem Etienne Borne e Franois Henry: ... le travail prenant une valeur religieuse entre dans la vie humaine, il sert mettre dans une vie personnelle des valeurs de sacrifice et de dtachement; l'agriculteur, l'ouvrier ont leurs fins personnelles et ne sont plus des instruments anims; le travail ne sert plus seulement dispenser des inquitudes de lavie quelques prdestins la vie speculative ou la vie hroique, il a un sens interieur et prend place dans une vie intrieure (Le Travail et L'Homme, Descle de Brouwer. Paris. 1937, pg. 48).

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proclamava-se a dignidade do trabalho, mas no plano social ocorria o contrrio. Os mesmos preconceitos gregos se difundiram nas sociedades medievais. Nelas ocorria, portanto, um singular conflito entre a conscincia e a existncia. interessante observar, em confirmao disto, que a ordem das classes na Idade Mdia , por assim dizer, uma concretizao do estado Platnico. Em sua cidade ideal, Plato coloca os sbios no primeiro lugar, os guerreiros, em segundo, e os artesos, no ltimo, o que uma antecipao da constituio tripartida da sociedade medieval. E para maior acordo com o pensamento grego, esta constituio tripartite das sociedades se pretende definitiva, uma ordem imutvel e eterna. Cada uma destas partes da sociedade constitui uma raa de homens (a raa de ouro, a raa de prata, a raa de ferro e bronze) e tem a sua moral prpria2. Este quietismo social da Idade Mdia assume decisiva importncia no condicionamento da tica do trabalho. Visto como a posio e a funo do indivduo na sociedade resultam de designio da vontade de divina, no se pode conceber a idia de fazer do trabalho um instrumento de asceno social3 . Um servo no pode tornar-se nobre, j porque h uma diferena de virtudes entre um e outro, j porque a mera posse da riqueza no lhe daria acesso nobreza. O homem, portanto, deve trabalhar para se manter dentro do seu compartimento social e as sobras do seu trabalho devem ser convertidas em esmola. Esta idia do sustento acomodado a cada estamento , como assinala Werner Sombart, a caracterstica siva da economia medieval.2 3

Cf. PLATO, A Repblica, Livro III (Platon, La Repblique, Librairie Garnier Frres. Paris. 1936, pg. 118). Las classes no son em primer trmino hechos economicos, sino hechos vitales y espiritueles. La clase supone el honor de clase, el deber de la clase, el derecho de clase y la solidaridad en todas las cosas sociales. Aqui tiene su ms firme apoyo el hombre que pertenece a una clase. Pero tambim la economia estaba determinada por aquelios hechos vitales y espirituales (Pablo Luis Landsberg, La Edad Media y nosotros. Revista de Occidente. Madrid, 1925, pgs. 38-39). esta mesma imobilidade social assinalada por Groethuyaen: Hacerse rico es mucho peor que ser rico. El rico no es culpable, por decirio as, de su riqueza. La divina Providencia le h hecho lo que es. Aunque la riqueza siempre encierra em si grandes peligros para el cristianiano, no es el ser rico en cuanto tal un pecado. Quien es rico por su casa puedo apelar a Dios. Dios quiso que fuese rico. Los nuevos ricos, por el contrario, son todos pecadores. Han querido su riqueza: se han hecho a s mismos lo que son. La Concincia Burguesa. Fondo de Cultura Economica. Mxico. 1943, pg. 334).

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A eficincia, a economia de esforo humano, mediante o desenvolvimento da tcnica do tabalho no teria sentido efetivo num tipo de organizao economica como este. O mvel desta economia seria a prosperidade, noo que no se compagina numa sociedade imvel. A assimilao da idia de progresso4 se verificar muito tardiamente entre os povos europeus. Havia ainda nesta poca um impedimento para o progresso da tcnica do trabalho; era a persitncia da oposio entre as profisses liberais e as profisses mecnicas, entre a arte e a natureza. O nobre, na sociedade medieval, se orgulha de no trabalhar, como o guerreiro da cidade antiga5. Henri Pirenne informa que a idia antiga do trabalho indigno do homem se reencontra na cavalaria. A dominao da natureza, atravs da aplicao de um saber tcnico, equivaleria a uma atitude hertica. Como a ordem social, a ordem natural no deveria ser perturbada, porque havia uma autoridade divina suprema6 que dispunha dos meios para intervir nas leis naturais. Dentro destes marcos, o trabalho se organizava socialmente de maneira estvel. No podia ser objeto de um aperfeioamento tcnico. Dentro de cada corporao, o processo produtivo obedece a regras mais ou menos fixas. Descrevendo-as, assinala Wilbert E. Moore7: Em termos gerais, funcionavam por meio de um regulamento interno do trabalho dos manufatores e do4

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J. HUIZINGA, assinala este aspecto com rara felicidade. Diz ele, referindo-se ao mundo medieval e Antiguidade: Ces priodes ent toujours cru que le but aunquel il fallait tendre et les moyens pour y arriver taient solidement et simplemnt dtermins. Le but, nous l'avons dit, s'appelait, presque toujours redressement, retour l'ancienne perfection, la puret d'antan. L'idal tait rtrospectif. Et non seulement l'idal, mais les moyens pour y arriver. Cette mthode s'talait clairemente devant les yeux et consistait reconqurir et pratiquer nouveau l'antique sagesse, l'antique beaut, et l'antique vertu des sicles passs - ce regard de l'humanit tourn si longtemps vers l'ancienne perfectin a chang d'orientation depuis Bacon et Descartes (Incertitudes. Librairie de Medicis. Paris, 1939, pgs 38 e 40). Vale descartar, ainda, estas palavras de Erich Kahler: ... la ideia de un progresso del gnero humano surge solamente em el siglo XVII. Para la Antiguedad, la edad de oro reside em el passado y no en el futuro. La idea de mutacin era repulsiva e intolerable a los antiguos, que consideraban al tiempo como el enemigo de la humanidad. Si se llega a admitiria era slo en el sentido de mutacin o cambio recurrente, cclico, lo qual equivalia al principio de la eternidad cclica (Historia Universal del Hombre, Fondo de Cultura Economica. Mxico. 1943, pg. 411). Cf. ETIENNE BORNE e FRANOIS HENRY. Op. cit. pg. 50. Cf. ALFRED VON MARTIN, Sociologia del Renacimiento. Fondo de Cultura Economica. Mxico. 1946, pg. 44. WILBERT E. MOORE, Industrial Relations and the Social Order. The Mcmillan Co. New York. 1946, pgs. 16-17.

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monoplio externo dos servios e da produo contra os estranhos. O controle da qualidade do trabalho dependia antes do regulamento da associao do que da presso externa atravs da competio do mercado. Estes regulamentos eram fortemente tradicionais, muitas vezes levados a extremos que nos parecem hoje ridculos. Uma ateno particular era dada especialmente forma e fonte da matria-prima, ao processo de produo, forma de instrumentos empregados e qualidade, antes que as mercadorias fossem colocadas no mercado. Estes regulamentos podem ter resultados em benefcios econmicos para os consumidores, no mnimo pela padronizao da qualidade, mas eram claramente planejados para acautelar os interesses dos membros das corporaes, preservando a sua uniformidade. Um novo processo tcnico que permitisse ao homem produzir melhor um produto ou o mesmo produto em menos tempo, era considerado imprprio e sua introduo tomada como sinal de deslealdade ao grupo. Regulando o abastecimento da matria-prima, a quantidade e o tipo de produo, o preo e o mtodo de distribuio, o sistema de corporao estabelecia uma vida econmica equilibrada. Tal o sistema de organizao emprica e tradicional do trabalho cuja incompatibilidade com a organizao racional do trabalho foi claramente posta em evidncia po Taylor. Seria excesso de ambio pretender seguir o desenvolvimento da tcnica do trabalho com detalhe histrico. Para tanto, no haveria mesmo, entre ns, fontes suficientes ou disponveis. A fim contornar obstculos desta ordem, historiadores, como Jacob Burckhardt, e socilogos, como Max Webwer8, tm recorrido ao procedimento construtivo do tipo-ideal e que consiste em extrair de um determinado conjunto de fatos recorrentes uma ordem conceitual abstrata. Entre a Idade Mdia e a data em que F. W. Taylor cria a Organizao Cientfica do Trabalho medeia um sem-nmero de ocorrncias de difcil captao e que preparam o ambiente para aquela criao. Uma parte desta distncia histrica se identifica tpico-idealmente como o Renascimento, a primeira cisura social e cultural9 que produz o trnsito da Idade Mdia Idade Moderna.8 9

Cf. GUERREIRO RAMOS, A Sociedade de Max Weber, in Revista do servio Pblico. Agosto e setembro de 1946. Cf. ALFRED VON MARTIN. Op. cit. pg. 18.

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O Renascimento representa, na Europa, o aparecimento de um explosivo que se encarrega de vencer a inrcia de um mundo que parecia definitivo em sua arquitetnica estabilidade. A este explosivo pode chamar-se a ratio por oposio traditio. A ratio , assim, o instrumento que serviu para emancipar o indivduo da tradio ou para erradicar o medo do sagrado; em suma, um instrumento de secularizao. Com o Renascimento, inicia-se o processo fundamental de secularizao, a transformao da ordem social da Idade Mdia, fundada na santidade da tradio e nos sentimentos humanos, em uma ordem social fundada na calculabilidade dos atos humanos e na objetividade racional. Transformao sem a qual no se desenvolveriam aquelas instituies (a economia monetria e a indstria) que constituem os pressupostos funcionais de uma tcnica do trabalho, de base cientfica. As sociedades anteriores s conheceram o trabalho como criao e arte, como atividade pela qual a vontade humana assimilava a matria que dominava em proveito da comunidade10. Surge, porm, agora, a fora do trabalho, o trabalho mercadoria, objetivo da especulao, da contabilidade e da cincia. Interpretando o pensamento de Fernando Tnnies, escreve J. Leif11, focalizando o estado de secularizao que, na terminologia do socilogo alemo, se chama estado societrio ou sociedade: A abstrao e racionalizao constituem, com efeito, a essncia mesma da sociedade. Nada ou quase nada de orgnico ou afetivo subsiste nas relaes societrias. No estado de sociedade, no somente os indivduos so estranhos uns aos outros, mas ainda a separao e a oposio dos bens engendram infalivelmente entre eles a hostilidade e a inimizade. As relaes dos homens so tais que ningum ceder a outra pessoa seja o que for, sem estar seguro de receber, em troca, um valor pelo menos igual quele que lhe foi cedido e isto, no porque algum lao afetivo o liga ao objeto que possue,10 11

Cf. J. LEIF, La Sociologie de Tnnies. Presses Universitaires de France. Paris. 1946, pg. 60. Cf. J. LEIF, Op. cit., pgs. 67-68.

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mas em virtude de uma igualdade matemtica da vontade refletida, que seria absurdo, para um esprrito racional querer negar. No existe aqui relao intma com os objetos e com as pessoas. Da provm o carter abstrato e quantitativo do trabalho e da arte. Tudo reflexo, clculo, especulao, deciso, aspirao ao poder e ao domnio. A atividade e a vida societria so comrcio, no verdadeiro sentido da palavra. O que se configurou nestas palavras foi a categoria sociolgica chamada por Ferdinand Tnnies de sociedade (Gesellschaft), por oposio comunidade (Gemeinschaft). Mas esta categoria se realiza plenamente no plano histrico, sobretudo a partir do Renascimento. Alfred Von Martin, descrevendo o Renascimento Italiano, informa12: O vnculo social no est mais constitudo por um sentimento orgnico de comunidade (de sangue, de vizinhana ou de servio), mas por uma organizao artificial e mecnica, desligada das antigas foras da moral e da religio, e que, com a ratio status, proclama o laicismo e a autonomia do Estado. Esta arte do Estado, to objetiva, e sem preconceitosque atua atento s distintas situaes que se podem apresentar, e segundo os fins a realizar, tem por base um mero clculo dos fatores disponveis. uma poltica metdica em absoluto, objetivada e carente de alma. Assim o sitema da cincia e da tcnica do stato. A antiga oposio entre a arte e a natureza desapareceu, bem assim a temerosa atitude humana em face da ltima. esta uma transformao de importncia capital para o avano do progresso da tcnica, em toda acepo, inclusive a do trabalho. O saber tcnico13 s se constitui quando o homem se liberta do medo sagrado de intervir no mundo natural. como um eco retardado que ressoa a voz de Petraca (13041374) e Arioso (1474-1533), quando protestam contra a fabricao de plvora, esta imitao funesta e impia do raio que os antigos diziam inimitvel.12 13

Cf. A. VON MARTIN. Op. cit., pg. 31. ... la ciencia positiva moderna es el impulso ilimitado, esto es, no limitado por una necessiad especial, antes bien, aprobado por el ethos y por la voluntad que empuj a la burguesia, vida de subir, a tratar de dominar la naturaleza em todas em todas las formas (Mas Scheler, Sociologia del saber. Revista de Occidente Argentina. Buenos Aires. 1947, pg. 123).

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A nova vontade de poder escreve Alfred Von Martin14 se exprime, tcnica e econmica, como vontade para a transformao produtiva de coisas (Scheler). O homem deixa de ser o fim da dominao e converte-se em meio. Agora quando aparece a idia do aproveitamente e explorao da fora de trabalho (que, em ateno a esta finalidade, se declara livre), ao contrrio da Idade Mdia, em que aquela relao de submisso envolvia, ao mesmo tempo, um dever de proteo por parte do senhor. A nova cincia natural e a nova tcnica servem vontade de poder econmico e intelectual como expresso das novas tendncias racionais e liberais, opostas s velhas tendncias conservadoras. O fim novo da vontade, que a economia monetria fez possvel, tem agora um novo saber como base para a emancipao e como instrumento na luta pelo poder, que agora uma luta para a dominao da natureza, fundada no conhecimento das leis. A nova cincia da natureza tambm produto desta atividade de empresa que no mais se conforma com os fatos dados pela tradio nem com o reconhecimento das submisses queridas por Deus, mas considera tudo como objeto de um tratamento racional. No s no sentido terico, em considerao ao mtodo cientfico que no admite nada esteja garantido, como tambm no da aplicao do conhecimento. O pensador burgus, engenheiro por natureza, faz uma rpida aplicao prtica nas cincias tcnicas. Deseja-se saber para intervir na natureza; trata-se de entender as coisas para domin-las e realizar os objetivos de poder propostos. E porque somente com a nova concepo naturalista do mundo se podia chegar a dominar tecnicamente a natureza, porque s esta nova concepo cientfica burguesa realizava a funo social de prestar os servios necessrios de acordo com as exigncias da nova classe em ascenso, ela se converteu em dominante. Sob o influxo desta nova mentalidade, inicia-se, na Europa, o processo de racionalizao em todas as esferas da vida humana. No que concerne trabalho, este processo de racionalizao significa uma gradativa liquidao dos preconceitos contra as profisses mecnicas do que ir resultar a aplicao sistemtica da cincia ao trabalho.

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Op. cit., pgs. 47-48.

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CAPTULO IV A RACIONALIZAO IN STATU NASCENDISiltt que jai eu acquis quelques notions gnrales touchant la Physique, et que, commenant les prouver en diverses difficults particulres, jai remarque jusquo elles peuvent conduire..., jai cru que je ne pouvais les tenir cahes, sans pcher grandement contre la loi qui nous oblige procurer, autant quil est en nouns, le bien general de tous ls hommes. Car elles mont fait voir quil est possible de parvenir des connaissances qui soient fort utiles la vie, et quau lieu de cette philosophie spculative, quon enseigne dans les coles, on en peut trouver une pratique, par laquelle connaissant la force et ls actions du feu, de leau, de lair, ds astres, ds cieux et de tous ls outres corps qui nous environnent, aussi distinctement que nous connaissons ls divers mtiers de nos artisans, nous l pourrions employer, en mme faon tous ls usages auxquels ils sont propres, et ainsi nous rendre comme matres et possesseurs de la nature. Descartes, Discours de la Mthode, citado em Pierre Mxime Schul, Machinisme et Philosophie. Flix Alcan. 1938. pgs. 36-37. Que la connaissance de la nature et de ss lois pusse amener, non seulement en accepter linvitable necessite (ce qui est le point des vue de anciens), mais la transformer, voil la grande ide qui contient em germes la morale du second Faust et lIndustrialisme moderne. Pierre Mxime Schul, Machinisme et Philosophie, Librairie Flix Alcan. Paris. 1938, pgina 33.

Os sistemas de racionalizao, que se constituram a partir de Taylor, no so criaes abruptas, mas se precipitaram de um ambiente sciocultural que se formou muito lentamente. Eles so conseqncia lgica de uma radical transformao da atitude do esprito humano em face da natureza e da sociedade. Inicialmente, o homem se emancipa do quietismo, segundo o qual o mundo um cosmo, um todo ordenado conforme um plano, um

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conjunto que se move tranqilamente em obedincia a leis e ordenaes eternas1. Uma das manifestaes desta emancipao o crescente progresso das cincias do mundo fsico, particularmente da fsica. A aplicao da cincia no assenhoramento das foras naturais, tendo em vista objetivos utilitrios, o correlato de uma atitude que no se encaixa no sistema medieval. A natureza, para o homem medieval2, considerada como fonte de tentaes que o conduzem ao pecado, como uma causa de sujeio aos elementos inferiores. O novo tipo de homem3, porm, pretende transformar estes elementos inferiores em instrumentos, em meios de realizao de fins humanos, do bem-estar e da satisfao dos seus interesses. Leonardo de Vinci (1452-1519), por exemplo, um filho desses tempos, no hesita em se proclamar engenheiro, numa certa carta a Ludovico L More e, de fato, ocupou-se ativamente dos trabalhos de canalizao do Arno. O seu entusiasmo pela mecnica leva-o a escrever este louvor4: ... mecnico o conhecimento que nasce da experincia, cientfico, o que nasce e termina no esprito... mas parece-me que so vs e cheias de erro as cincias que no nascem da experincia: me de toda certeza, e que no terminam por uma experincia definida... A cincia da mecnica1

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La idea central, la clave que nos abre la inteligencia del pensamiento, de la visin del mundo y de la filosofia en la Edad Media, es la creencia de que el mundo es un cosmos, un todo ordenado con arreglo a un plano, un conjunto que se mueve tranquilamente segn leyes y ordenaciones eternas, las cuales, nacidas con el primer principio de Dios, tienen tambin en dios su referencia final (Pablo Lus Landsberg, La Edad Media y Nosotros. Revista de Occidente. Madrid. 1925, pg. 18). This Law of Nature is no revolutionary, world-transforming theory, which has been newly discovered by human reason, like the Natural Law of the Enlightenment, or the modern theories of the State and of Society; it is a conservative, organic, and patriarchal conception of the Law of Nature, which is under the protection of the Church, and is only entirely intelligible to the illuminated Christian reason, even although, in itself, it proceeds from pure reason. It is rather a rationalism which quiets the mind with accepted truths, which can be supported by definite proofs, than one of critical iniciative and reform. The world order is based upon reason, it is true, but this basis is not human reason but Divine; it is objective, not subjective. That, too, only explains why it unites itself so easily with supernaturalism and with the ecclesiastical mysticism of grace. (Ernst Troeltsch, The Social Teaching of the Christian Churches. Vol. I. The Macmillan Company. New York. 1949. pginas 305-306). La manifestacin ms clara de este proceder utilitario de la razn es la herramienta, la mquina (mechane) que sirve para el dominio y exploracin de la materia. La razn interpreta las leyes de la naturaleza en la forma que corresponda mejor al tratamiento mecnico, que es la de la causalidad mecnica. Este orden de ideas es diametralmente opuesto a la visin del mundo, esencialmente religiosa, vlida hasta el final de la Edad Media, que basaba todo el ser en la existencia y no en el procedimiento y el propsito. Esa imagen del mundo lo muestra como un sistema reposado y armonioso que corresponde a la ajustada forma organica del cuerpo humano y la criatura viviente en general. (Erich Kahler, Historia Universal del Hombre. Fondo de Cultura Economica. Mxico. 1943, pg. 414). Cf. PIERRE MXIME SHUL, Machinisme et Philosophie. Flix Alcan. Paris. 1938, pgs. 26-27.

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o paraso das cincias matemticas, porque com ela se chega aos frutos das matemticas.... Um texto mais antigo (De re aedificatoria, Florena, 1485) de Leon Baptiste Alberti refere-se tcnica de maneira entusistica, considerando-a em expediente que permite furar os rochedos, atravessar as montanhas... resistir aos transbordamentos do mar e dos rios limpar os pntanos, construir os navios5. Em 1580, Conrad Dasypodius publica em Estrasburgo uma obra chamada: Heron mechanicus, seu de mechanicis artibus que trata das mquinas como instrumentos de economizar o trabalho. Em De Subtilitate, editado em Lyon, em 1569, Jernimo Cardan, que considera Arquimedes maior gnio que Aristteles, faz o elogio das mquinas. Um dos mais destacados representantes deste novo humanismo Francisco Bacon (1561-1626) que, em De Augmentis, preconiza ser o objetivo do moralista o de fornecer armas vida ativa e no o de escrever no cio coisas para serem lidas no cio. este mesmo Bacon que escreve, em Cogitata et Visa que as tcnicas progrediram a transformaram o mundo, enquanto os problemas filosficos permaneceram no mesmo ponto durante sculos; e em Parasceue, que elas devem ser estudadas ainda que paream mecnicas e pouco liberais. Um outro contemporneo de Bacon d uma contribuio decisiva para a transformao do esprito humano: Galileu (1564-1642). So numerosas as suas descobertas e observaes. Particularmente interessante, do ponto de vista em que nos colocamos, o estudo do trabalho muscular do fsico italiano, descrito por Leon Walther, nestas palavras: Impressionado, especialmente com o fenmeno da fadiga, acreditou encontrar sua explicao no fato de terem os corpos grave tendncia a mover-se para baixo e no para cima. A asceno em uma escada , pois, contrrio s leis naturais, e acarreta a fadiga. Mas porque h fadiga, tambm, na descida prolongada pela mesma escada? Galileu modifica a a sua explicao: ele admite que os msculos se fatiguem porque no tem que mover to somente seu peso, mas tambm o peso do esqueleto (do corpo todo algumas vezes, no caso das pernas). O corao, ao contrrio infatigvel porque no move seno a prpria massa6.5 6

Cf. PIERRE MXIME SHUL, op. cit. pg. 25. Cf. LON WALTER, Tchno-Psychologia do Trabalho Industrial. Comp. Melhoramentos de So Paulo. 1929. Pg. 13.

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Descartes (1596-1650) elaborou at uma concepo mecnica dos corpos que la nature seule compose. No h diferena entre estes corpos e ls machines que font ls artisans, segundo o filsofo. Baillet, seu bigrafo, informa que Descartes pretendia fundar uma Escola de Artes e Ofcios. Escreve Baillet, em La Vie de M. Descartes (1691: Ss conseils alloient faire btir, dans le collge Royal et dans dautres lieux quon aurait consacrez au Public, diverses grandes salles pour ls artisans; destiner chaque salle pour chaque corps de mtier; joindre chaque salle un cabinet rempli de tous les instrumens mchaniques ncessaires ou utiles aux Arts quon y devoit enseigner; faire des fonds suffisans, non seulement pour fournir aux dpenses que demanderaient les expriences, mais encore pour entretenir ds Matre ou Professeurs, dont le nombre aurait tgal celui ds Arts quon y aurait enseignez. Ces Professeurs devoient entre habiles en Mathmatiques et en Physique, afin de pouvoir repondr toutes les questions des Artisans, leur rendre raison de toutes coses, et leur donner du jour pour faire de nouvelles dcouvertes dans ls Arts.ils ne devoient faire leurs leons publiques que les Ftes et ls Dimanches aprs vpres, pour donner lieu tous ls gens de mtier de sy trouver, sans faire tort aux heures de leur travail7. O esforo construtivo de que so representantes estes grandes espritos desencantou8 a natureza. Dele resultou a soluo do conflito, patente, no mundo antigo e apenas velado na Idade Mdia, entre a arte e a natureza e que abriu a pista de moderno industrialismo.

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Cf. Pierre Mxime Shul. Op. cit. pgs. 28-29. Ello es que hacia 1540 stn de moda en el mundo las mecnicas. Esta palabra, consta, no significa entonces la ciencia que hoy ha absorbido ese trmino que aun no existia. Significa las mquinas y el arte de ellas. Tal es el sentido que tiene todava en 1600 para Galileo, padre de la ciencia mecnica. Todo el mundo quiere tener aparatos, grandes y chicos, tiles o simplesmente divertidos. Nuestro enorme Carlos, el V, el de Mhlberg, cuando se retira a Yuste, en la ms ilustre bajamar que registra la historia, se leva en su formidable resaca hacia la nada slo estos dos elementos del mundo que abandona: relojes y Juanelo Turriano. Este era un flamenco, verdadero mago de los inventos mecnicos, el qye construye lo mismo el artificio para subir aguas a Toledo de que aun quedan restos que un pjaro semoviente que vuela con sus alas de metal por el vasto vaco de la estancia donde Carlos, ausente de la vida, reposa. (Jos Ortega y Gasset, Ensimismamiento y Alteracin. Espasa Calpe Argentina, S. A . Buenos Aires Mxico. 1939, pgs. 150-51).

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CAPTULO V O AMBIENTE RACIONALIZADORThe factory system not only brought to industrial workers a new and rigorous type of industrial discipline; it also uprooted the older intellectual perspective and social attachments of mankind, which had been built up over tens of thousands of years of human experience. Harry Elmer Barnes, Society in Transition, Prentice-Hall Inc. New York. 1941, pg.14. Any general character, from the best to the worst, from the most enlightened, may be given to any community, even to world at large, by the application of proper means; which means are to a great extent at the command and under the control of those who have influence in the affairs of men. Robert Owen, A New View of Society. London. 1817, pg. 19.

A chamada Revoluo Industrial no um acontecimento inopinado e limitado por datas precisas. A quase unanimidade dos estudiosos deste assunto afirma ter ela comeado no fim do sculo XVIII. No s, alis, quando se trata de estabelecer a data inicial da Revoluo Industrial, que se cai no terreno da impresio. Tambm, quando se trata de dizer em que ela consiste. No h dvida, porm, de que a expresso Revoluo Industrial se refere principalmente a uma radical transformao da cultura material do Ocidente. At 1750, os principais implementos da utensilagem humana j tinham sido elaborados desde a idade da pedra e dos metais. Os meios de comunicao, at aquela data, eram os mesmos do tempo de Abraho. Os habitantes dos lagos da Sua e do norte da Itlia j possuam, h dez anos antes da metade do sculo XVIII, a mesma tcnica industrial conhecida nesta poca. Certas tcnicas de manufatura de tecidos, a maioria dos animais domsticos, as principais frutas, os cereais j eram conhecidos desde a idade da pedra. A organizao social e econmica at aquela data era comparativamente rudimentar. Estavam ainda vista os estamentos1. Os1

A palavras estamento, oriunda do castelhano, tornou-se habitual no linguajar dos socilogos brasileiros. Sobre seu sentido, escreve Morris Ginsberg (Manual de Sociologia, Editorial Losada.

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Estados recm-egressos do feudalismo constituam territrios, mais ou menos isolados uns dos outros. A atividade econmica ainda transcorrida em bases agrrias e prevaleciam as relaes pessoais entre o empregador e empregado. A Revoluo Industrial o teste mais decisivo da atitude laica do homem ocidental diante da natureza. Mediante a mquina, ele a submete e a conforma. Mas resulta da utilizao extensiva das mquinas uma profunda desintegrao das estruturas da sociedade europia. As cidades industriais se multiplicam e nelas se aglomeram massas jamais vistas at ento. De 1800 para 1900, a populao da Europa duplica. Gradativamente a produo a domiclio e o sistema da produo parcelada so superados pelas fbricas. Uma grande mobilidade social se registra neste perodo. A formao dos centros industriais promove os deslocamentos de populaes, atradas por melhores condies de vida. O progresso crescente da tecnologia das distncias estreita a interdependncia dos Estados. As instituies sociais, entretanto, as tradies, os costumes; em suma, aquele repertrio de elementos que constituem a cultura no material resiste mudana. Esta resistncia a matriz dos problemas sociais que se agravam medida que se desenvolve a tecnologia2. Como seria lgico esperar, a resposta que o homem desta poca d aos problemas sociais que defronta de carter racional. Amadurece nele a idia de aplicar o mtodo cientfico no tratamento dos problemas sociais.Buenos Aires. 1942, pgina 147): os estamentos (em alemo, estande): so os estratos scias cuja posio est definida pela lei e pelo costume. Encontram-se, com variaes, quase em todo ponto da Europa continental do velho regime e tambm do mundo antigo. As categorias so, em todas as partes, quase as mesmas. Na capa superior, encontram-se os nobres-governantes e defensores do Estado, - e os sacerdotes, em seguida vem os mercadores, os artesos e os camponeses, cada um deles com deveres e funes mais ou menos claramente definidas, e finalmente toda a variedade dos servos. As classes altas retm numerosos privilgios como a jurisdio privada e imunidades, como a iseno de tributos. O nascimento decide da categoria e da posio. Os indivduos ascendem de categoria, ocasionalmente, mediante enobrecimento, por exemplo, e a Igreja recruta tambm seus membros, s vezes dos estratos inferiores. Mas em conjunto, cada estrato se recruta entre seus prprios membros e a ascenso depende da boa vontade das categorias superiores. Na Europa o sistema estamental surgiu gradualmente, em regra geral, do feudalismo e conservou suas ordens at fins do sculo XVIII, especialmente a subordinao hierrquica e a dependncia. Vide tambm Guerreiro Ramos, A Sociologia de Max Weber, in Revista do Servio Pblico. Agosto e setembro de 1946. Pg. 129 e segs. The enormous and unprecedent gulf between machines and institutions is, then, the outstanding aspect of our type of civilization. All the special social problems which we shall deal with in this book (problemas da sociedade em transio) are but secondary and subordinate manifestations of the major social problem of our era, namely, the gulf between our marvelous mechanical equipment and the economic and political institutions through which we attempt to control it (Harry Elmer Barnes, Society in Transition. Prentice-Hall Inc. New York. 1941, pgs. 2-3).

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E as cincias naturais lhe oferecem um molde para a constituio desta nova cincia que procura. Morelly, por volta de 1755, escreveu o seu Cdigo da Natureza em que preconizava a formao e o treinamento tcnico do trabalhador. Antecipando Taylor, recomendava que cada um deve ter um trabalho de acordo com a sua habilidade3. A idia de que a prpria sociedade pode ser organizada racionalmente4 se formula cada vez mais nitidamente no sculo XIX e inspira o desenvolvimento do que se pode chamar de ambiente racionalizador. neste ambiente que lana suas razes o movimento da racionalizao do trabalho. Muitos filsofos do sculo XIX j tinham percebido claramente a necessidade da elaborao de disciplinas cientficas no apenas para serem aplicadas na organizao da sociedade, como tambm na organizao do trabalho. Saint-Simon (1760-1825), em obra de 1819, intitulada L Organisateur prope um Governo constitudo de trs cmaras: a da Inveno, a do Exame e uma terceira, dita cmara Executiva, constituda de lderes industriais capitalistas e banqueiros. Em sua obra de 1821, (L Systme Industriel), prope que se cometam as funes de governo a um grupo de cientistas que conduzam os negcios da sociedade de maneira cientfica. Inspirado nas cincias naturais, Saint-Simon imagina a fisiopoltica, cujo objetivo seria a direo cientfica da sociedade. A filosofia do sculo XIX tem que organizar, dizia ele, numa de suas antecipaes mais claras da planificao, seno da racionalizao do trabalho. Mais do que a intuio, a idia clara de uma organizao racional do trabalho se encontra formulada no sculo XIX. O prprio Saint-Simon se detm a recomendar o que hoje se chamaria de orientao3 4

Cf. Joyce Oramel Hertzier, The History of Utopian Thought. The Macmillan Company. New York. 1926. pg. 188. Sobre este tema, vide Francisco Ayala, Histria de la Sociologia. Editora Losada S. A. Buenos Aires. 1947. Tambm de Hans Freyer, Soziologie als Wirklichkeitswissenscfht (Leipzig e Berlim, 1930) e Einlaitung in die Soziologie (Leipzig, 1931).

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profissional e Charles Fourier (1772-1837) , neste particular, um verdadeiro precursor. Muito de bizarro e extravagante se registra na obra de Fourier, mas ele pode ser considerado um dos espritos que mais decisivamente contriburam para a formao do ambiente racionalizador. Suas reflexes mais importantes a ressaltar so as que se referem falncia das instituies, dos costumes e das tradies vigentes em sua poca. Fourier percebeu nitidamente a necessidade de reconstruir a sociedade, cuja estrutura se tornara arcaica ou rgida em face das transformaes tecnolgicas. Inspirado em Newton, que havia descoberto a lei de atrao do universo material, e em Leibnitz que desenvolveu o pensamento do fsico ingls, elaborou uma cincia natural da sociedade, segundo a qual existe no mundo do esprito, uma lei fundamental, que se chama lei da atrao passional. Em sua terminologia, as paixes so impulsos naturais da criatura humana. A sociedade, contrariando a manifestao das paixes, torna-se causa dos vcios e da anormalidade. Em si mesmas, elas no so nocivas. O que preciso reorganizar a sociedade a fim de ajust-la natureza fundamental do homem. Com o nome de falange, imaginou um ambiente ideal para o homem, no qual as paixes desfrutando de perfeita liberdade, poderiam combinar harmoniosamente e funcionar em benefcio da sociedade. As suas indicaes mais importantes pertinentes ao campo da tcnica do trabalho, podem ser resumidas nas seguintes palavras de Hertzler5: Ele pretendia adaptar a ocupao inclinao e capacidade do trabalhador. Preconizava que o trabalho deve ser sempre uma fonte de prazer. Percebeu que na sociedade existente o trabalho se tinha tornado repelente antes que atrativo; assim as melhores energias eram desperdiadas antes que utilizadas. No havia nenhuma tentativa de ajusta a capacidade tarefa, nenhuma oportunidade era dada aos jovens para descobrir em que direo seu talento os levava, nem para se treinarem num trabalho adequado s suas paixes... Na falange, nenhum trabalho deveria ser montono, pois todos fariam o que desejassem. Cada um deveria executar as tarefas, de acordo com suas propenses. Assim, a produo aumentaria, porque o trabalho se tornaria dignificado e atrativo,5

Cf. HERTZLER. Op. cit. pgs. 201-202.

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uma vez que os indivduos fariam o que gostavam de fazer e trabalhariam com quem estimavam. Merece um lugar de destaque entre estes epgonos do movimento racionalizador a figura de Robert Owen (1771-1857). Em sua obra, formula-se com clareza uma teoria perfeitamente enquadrada na nova estrutura lgica do universo6. A natureza humana no , para Robert Owen, uma entelequia, uma categoria esttica e absoluta, mas alguma coisa precria e sujeita a manipulao. Ele abre a pista da orientao profissional, uma das vigas mestras da organizao racional do trabalho, e do que tem sido atualmente chamado de sociologia industrial. significativo que a obra principal de Owen tenha o ttulo de A New View of Society. A ele expe sua teoria da natureza humana e a sua experincia de organizao racional do trabalho em New Lanark. Salienta o socialista ingls que o carter do homem principalmente pr-fabricado pelos seus predecessores. Suas idias, hbitos, crenas lhe foram dadas pela tradio. Nunca o homem pode formar seu prprio carter. Owen, entretanto, em suas obras, afirma o princpio revolucionrio de que atravs da manipulao das circunstncias possvel governar e dirigir a conduta humana. Na obra referida, prope um sistema nacional de formao do carter. No hesitando em chamar a criatura humana de vital machine, capaz de ser aperfeioada, by being trained to strength and activity, Owen preconiza um novo tipo de direo (management). Aos gerentes de sua poca, dirige-se nestes termos3: Quando adquirirdes um conhecimento correto destas (as mquinas vivas), de seu curioso mecanismo, de seus poderes de autoajustamento; quando os principais processos mais adequados puderem ser aplicados aos seus variados movimentos, vs vos tornareis conscientes de seu real valor e ficareis prontamente inclinados a voltar os vossos6 7

MRIO LINS, A Transformao da Lgica Conceitual da Sociologia. Rio. 1947. Pg. 18. Cf. ROBERT OWEN, A New View of Society. London. 1817. Pg. 73.

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pensamentos mais freqentemente das mquinas inanimadas para as animadas; descobrireis que as ltimas podem ser facilmente treinadas e dirigidas para fornecer um grande incremento do ganho pecunirio, enquanto podereis derivar delas um lucro alto e substancial. Estas idias foram aplicadas por Owen em seu famoso experimento em New Lanark. A ele introduziu processos de treinamentos de operrios, reduziu horas de trabalho, aboliu o emprego de crianas menores de 10 anos, suprimiu os castigos, por notificaes e advertncias. Percebendo a influncia dos fatores indiretos do trabalho (o que um postulado da recente sociologia industrial), fez construir habitaes higinicas para seus operrios e gastou elevada quantia na edificao de uma escola. Este empreendimento foi coroado de grande sucesso, que, alis, no se repetiu em sua tentativa de construir uma comunidade modelo, em Nova Harmonia, nos Estados Unidos. De qualquer modo, na obra de Robert Owen, no se pode deixar de reconhecer, em estado embrionrio, a idia da racionalizao do trabalho. Em 1839 apareceu na Europa um livro que se intitula Organisation du Travail. Seu autor, Louis Blanc (1813-1882), se preocupa especialmente com a organizao social do trabalho, tendo por objetivo supresso do individualismo, da propriedade privada e da competio. Todavia, a expresso organizao do trabalho, utilizada por Louis Blanc, mostra que sua poca j no repugna a idia que ela encerra. Com efeito, Taylor um contemporneo de Louis Blanc.

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CAPTULO VI O SISTEMA TAYLORL Prsident Je pense que vous avez dit, Monsieur Taylor, que lorganisation scientifique est dans une large mesure un tat desprit. M. Taylor LOrganisation scientifique ne peit exister sil nexiste em mme temps un certain tat desprit... llide de paix droit remplacer lancienne ide de guerre entre ouvriers et patrons. Il faut donc quoutre ce changement de mantalit, les uns et les autres en veinnent sefforcer de faire dpendre tous leurs actes de faits prcis et de renseignements exacts... Tout acte doit tre base sur la science exacto et non dpendre comme autrefois de connaissances aproximatives ou de suppositions. Expos devant le Comit spcial de la Chambre des reprsentants in L Organisation Scientifique dans lIndustrie Amricaine, par La Socit Taylor. Dunod. Paris. 1932. pg. II). Le dbut de lorganization scientifique, il la dit maintes fois, a t une revolution spirituelle. (Robert Brure, Relations Industrielles, in L Organisation Scientifique dans lIndustrie Amricaine, par la Socit Taylor. Dunod. Paris. 1932. Pg. 577). F. W. Taylor (1856-1915) foi o iniciador da organizao racional do trabalho. Antes dele, muitos procedimentos pertinentes a esta tecnologia foram descobertos casualmente, por uns, ou deliberadamente inventados por outros1. Tais achados ou invenes, porm, nunca se organizaram em sistemas e jamais adquiriram plena eficincia histrica. Os tratadistas, ao delinearem o histrico da organizao racional do trabalho, mencionam vrios nomes, aos quais atribuem esta ou aquela1

Para uma conceituao sociolgica da descoberta casual e do invento, cf. Karl Mannheim, Libertad y Planificacon Social. Fondo de Cultura Economica. Mxico. 1942.

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observao isolada. Tais so, por exemplo, Sebastian Vauban (em 1680) e Blidor (em 1729) que perceberam o efeito da fiscalizao sobre a conduta dos operrios; Bernoulli, Euler, Schulze, que procuravam a formula matemtica do trabalho mximo do homem; o fsico francs Coulomb (1736-1806) que estudou a fadiga e a quantidade de trabalho nas vrias profisses; Lavoisier (1743-1794) que estabeleceu as relaes entre o oxignio consumido pelo corpo e a produo de foras; Camus, Carlus Dupin, Poncelet, Navier, Perronet e outros que se preocuparam com aspectos fisiolgicos do trabalho humano. Este tipo de enumerao parece-nos falho: primeiro porque nenhuma luz traz ao significado histrico da questo; segundo porque, como bvio, rigorosamente conduz a omisses. Nos captulos anteriores parece ter ficado claro, de um lado, a relao funcional entre a tcnica do trabalho e a estrutura total das sociedades; de outro lado, o encadeamento de transformaes da civilizao ocidental de que resulta a organizao racional do trabalho. E desse modo pretendemos ter esboado uma histria compreensiva desta tecnologia. De fato, a tcnica do trabalho no se desenvolve de maneira contnua ou unilinear. neste sentido que assiste razo a Ortega y Gasset quando diz que, embora a plvora e a imprensa tenham sido conhecidos dos chineses, desde muitos sculos antes do Renascimento, elas devem ser consideradas contemporneas dos inventos do sculo XV, porque s da em diante se integram no programa vital do tempo, e traspassam o umbral da eficincia histrica2. necessrio observar, ainda, que se acompanhar, daqui por diante, o desenvolvimento da organizao racional do trabalho, com orientao2

...no basta que se invente algo en certa fecha y lugar para que el invento represente so verdadero significado tcnico. Laq plvora y la imprenta, dos des los descobrimientos que parecen ms importantes, existian en China siglos antes de que sirviesen para nada aperciable. Slo en el siglo XV en Europa, probablemente en Lombadia, se hace la plvora una pontencia histrica, y en Alemania, por el mismo tiempo, la imprenta. En vista de ello, cuando diremos que se han inventado ambas tcnicas? Evidentemente slo integradas en el cuerpo general de la tcnica finmedieval e inspiradas por el programa vital del tiempo transpasan el umbral de la eficiencia historica. La plvora como arma de fuego y la imprenta son autnticamente contemporneas de la brjula y el comps: los cuatro, como pronto se advierte, de un mismo estilo, muy caract