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COMO FAZER A GUERRA

Zeus, que controlava a chuva e as nuvens e tinha nas mãos otemível relâmpago, era o Senhor dos Céus e o maior de todos osdeuses, mas não o mais antigo. Ele e os 11 outros olímpicos — osdeuses e deusas que habitavam o cimo do monte Olimpo, a mon-tanha mais alta da Grécia — haviam sido precedidos em seureinado por deuses mais antigos, os Titãs, os quais eles haviamdestronado. Os Titãs tinham sido formados pelo Pai Céu e aMãe Terra, que existiam antes de qualquer dos deuses, tendoemergido do Caos primordial, cujos filhos, a Escuridão e a Morte,haviam gerado a Luz e o Amor (pois a Noite é a mãe do Dia),o que tornara possível o aparecimento do Céu e da Terra.

Zeus, filho do deposto titã Cronos, apaixonava-se perpe-tuamente, cortejando e geralmente possuindo à força belas mulhe-res, tanto mortais quanto imortais, que dariam à luz deuses esemideuses, coisa que complicava muito as relações familiaresno Olimpo. Hera, esposa e irmã de Zeus, sentia ciúmes constan-tes e planejava represálias cruéis contra uma série de rivais. Mastodas as deusas, até mesmo as virginais, eram propensas aos ciú-

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mes; foi esse defeito a causa da Guerra de Tróia, que começoucom uma maçã, como a tentação de Eva no Paraíso.

Havia uma deusa não olímpica, Eris, a quem os deusespreferiam excluir de suas festividades, pois era o Espírito daDiscórdia. Fiel à sua natureza, ao perceber que não fora convi-dada ao casamento do rei Peleu com Tétis, ninfa do mar, Erislançou no salão do banquete uma única maçã dourada comduas palavras nela escritas, tei kallistei (à mais bela). Todas asdeusas a queriam para si, mas as três mais poderosas acabarampor disputá-la: Hera, dos olhos de vaca; Atena, divindade dasbatalhas — filha de Zeus, que brotara de sua cabeça —; eAfrodite, a quem os romanos chamam Vênus, a divertidae irresistível deusa do Amor, nascida da espuma do mar.

Sabiamente, Zeus declinou a solicitação de ser árbitro des-se concurso de beleza, mas recomendou para isso Páris, príncipede Tróia, que havia sido exilado como pastor no monte Idaporque seu pai, o rei Príamo, recebera de um oráculo a revela-ção de que seu filho causaria um dia a ruína de Tróia. Páris,afirmou Zeus, era conhecido como árbitro de beleza feminina(e pouco mais do que isso, ao que poderia ter acrescentado). Astrês deusas se apressaram em apresentar-se ao espantado pastor-príncipe, oferecendo-lhe suborno: Hera prometeu fazê-lo rei daEurásia; Atena, dar-lhe a vitória na guerra contra os gregos; eAfrodite, entregar-lhe as mais belas mulheres. Páris decidiu-sepor Afrodite, que o presenteou com Helena, filha de Zeus e damortal Leda.

Havia apenas um pequeno problema: Helena era casadacom Menelau, rei de Esparta e irmão de Agamenon de Micenas,o soberano mais poderoso da Grécia. Mas, com o auxílio deAfrodite, Páris conseguiu, na ausência de Menelau, raptar He-

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lena e levá-la a Tróia. Ao regressar, Menelau descobriu o quesucedera e convocou os chefes de tribos da Grécia, que anterior-mente haviam jurado defender seus direitos de marido caso al-go assim acontecesse. Somente dois hesitaram: um foi o astutoe realista Ulisses, rei de Ítaca que amava seu lar e sua família esomente concordou com a aventura mediante um ardil; o outrofoi o maior guerreiro da Grécia, Aquiles, cuja mãe, a ninfaTétis, sabia que ele morreria se fosse a Tróia. Mas ele finalmen-te juntou-se às forças gregas porque seu destino era preferir amorte gloriosa em batalha a uma vida longa sem motivos deorgulho. Assim, os numerosos navios dos chefes gregos, cada qualembarcando mais de cinqüenta homens, zarparam para Tróiaem busca de um rosto humano — o de Helena —, segundo ovigoroso trecho de Marlowe, “o rosto que lançou ao mar milnavios”.

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OS SENTIMENTOS DERIVADOS do julgamento feito por Páristêm características muito diferentes das desgraças de

Deméter. Se a história anterior é genuinamente um mito,que dramatiza uma tragédia periódica e inexorável e a trans-forma em pesadelo cósmico, a segunda parece uma espéciede melodrama caseiro e fora de moda sobre as fraquezasmasculinas e femininas, no qual tudo foge monstruosamenteao controle e acaba em trágica farsa. Se Deméter nos leva devolta ao estilo agrícola de vida que imaginava a Terra e suasmanifestações como aspectos dos cuidados maternos, os es-tridentes deuses do Olimpo — desafiando-se e destronan-do-se mutuamente —, machos sempre dispostos à batalha eà conquista sexual, fêmeas que somente assumem o controlepor meio de lisonjas enganosas, são projeções de uma cultu-ra guerreira que coloca a vitória no combate armado acimade todos os demais objetivos — ou pelo menos assim pare-cia, pois sempre existem, no mais profundo de cada socieda-de, sonhos que tomam direção diversa, até mesmo contrá-

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ria, a seus propósitos articulados. Mas primeiro examine-mos o óbvio: as superfícies visíveis dessa sociedade belicosa,de metais reluzentes e clangor de armas.

O mundo de Micenas descrito por Schliemann era omundo de Agamenon e seus predecessores, o mundo canta-do por Homero em dois grandes poemas épicos, a Ilíada e aOdisséia, ambientados, tanto quanto podemos aquilatar, naGrécia do mar Egeu no século XII a.C., época a que chamei“proto-histórica” porque nela existia uma incômoda formade escrita, a Linear B, ainda que fosse usada somente pararegistros de contabilidade. As histórias dessa época, no en-tanto, foram preservadas pela poesia oral de bardos ambu-lantes e registradas por escrito somente bem mais tarde, quan-do apareceu uma forma de escrita muito mais flexível, quepermitia a redação de poemas épicos de grande extensão egraciosa sutileza.

A Ilíada não começa com a maçã e as deusas, mas comuma competição muito mais terrena, entre Agamenon, líderdas forças gregas, e Aquiles, o proeminente guerreiro heleno.A frota grega havia muito alcançara a costa troiana, e o exér-cito de fatigados régulos gregos manteve o sítio da fortificadacidade, que por nove anos conseguia resistir aos ataques. Maso brilhante e invencível Aquiles, a quem Homero imediata-mente chama dios, ou “nobre”, palavra cuja raiz indo-euro-péia significa “semelhante a um deus” ou “brilhante comoas estrelas divinas”, afastou-se do campo de batalha injuria-do pelo tratamento que lhe dera o soberbo Agamenon. Estehavia reivindicado a concubina que Aquiles obtivera comodespojo de guerra. Agamenon sentia que tinha direito àconcubina de Aquiles porque fora obrigado a concordar com

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o que era impensável e ceder a mulher que ele próprio con-quistara em batalha. O pai dela, Crises, sacerdote do templovizinho de Apolo, invocou a ira de seu deus contra os gre-gos, aos quais Homero chama “Aqueus”, “Argivos” ou “Da-nanos”, dependendo das exigências da métrica. A platéia deHomero já conheceria os pormenores da história, e por issoem nada se sentiria desorientada por este início, que resumeo conflito entre os dois homens e teria conseqüências fataistanto para os gregos quanto para os troianos:

Ó deusa ira, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu,mortífera, condenada à ruína, que custou incontáveis perdasaos aqueus, lançando à Casa da Morte tantas almasvigorosas, almas de grandes guerreiros, mas fez de seuscorpos carniça, pasto de cães e pássaros, e a vontade de Zeusseguia em direção a seu fim. Começa, Musa, quando os doispela primeira vez brigaram e se enfrentaram,Agamenon, senhor de homens, e o brilhante Aquiles.

Que divindade os terá levado a lutar com tanta fúria?Apolo, filho de Zeus e Leto. Enraivecido contra o rei, elelançou sobre o exército uma peste fatal; os homens morriame tudo porque Agamenon desprezou o sacerdote de Apolo.Sim, Crises se aproximou dos ligeiros barcos dos aqueus pararecuperar a filha, trazendo um resgate incalculável eerguendo na mão, bem alto, seu cajado dourado com asguirlandas do deus, o distante e mortífero Arqueiro.Suplicou a todo o exército aqueu, mas principalmente aosdois supremos comandantes, os dois filhos de Atreu,“Agamenon, Menelau, todos os argivos armados para aguerra! Que os deuses que guardam as portas do Olimpo lhesgarantam a cidade de Príamo para a pilhagem, e o regresso

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em segurança.Mas libertem minha filha, minha querida... aquilhes trago estas dádivas, este resgate. Honrai o deusque ataca a distância — o filho de Zeus, Apolo!”

E todas as fileiras dos aqueus bradaram em assentimento:“Respeitai o sacerdote, aceitai o esplêndido resgate!”Mas isso não trouxe alegria ao coração de Agamenon.O rei expulsou o sacerdote com uma ordem brutalque ressoou em seus ouvidos: “Nunca mais, ancião,possa eu voltar a ver-te junto aos navios desertos!Não te aproximes agora, não te esgueires amanhã.Teu bastão e as guirlandas do deus não te salvarão.A jovem — não abrirei mão dela. Muito antes dissoa velhice a alcançará em minha casa, em Argos,longe de sua pátria, escravizada na roca de fiar,obrigada a partilhar de meu leito! Agora, vai,não provoques minha ira, e partirás com vida.”

O velho, aterrorizado, obedeceu à ordem,voltando-se e caminhando em silêncio ao longo da praiaonde as linhas de batalha das ondas se abatem e recuam.E colocando-se a uma distância segura, repetiudiversas vezes a prece ao filho de Leto, a de longos cabelos,o Senhor Apolo: “Ouve-me, Apolo! Deus do arco de prataque vives na sacrossanta mansão de Crise e Cila,poderoso senhor de tenedos — Esminteu, deus da peste!Se eu jamais ergui um santuário para agradar teu coração eofertei em sacrifício a queima dos longos chifres de tourose bodes em teu sagrado altar, torna agora realidade minha

prece.Dá em pagamento aos dananos tuas flechas por minhaslágrimas!”

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A prece subiu aos céus e Febo Apolo o ouviu.Desceu dos picos do Olimpo, com o coração enfurecidocom seu arco e a aljava a tiracolo.As setas se chocavam em suas costas e o deus tremia de raiva,o próprio deus marchou e desceu como a noite.Diante dos navios ajoelhou-se e lançou um dardoe um ruído terrível ressoou do grande arco prateado.Primeiro alvejou as mulas e os cães que as rodeavam, masdepois lançando uma flecha penetrante contra os própriossoldados, abateu-os em meio ao tumulto —e os cadáveres arderam noite e dia, interminavelmente.

Reproduzi essa extensa citação para recordar o esplen-dor de Homero. Se pudesse, citaria o poema inteiro antes deprosseguir — porque é uma glória, a obra-prima fundamentalda literatura ocidental — na imaculada tradução para o in-glês de Robert Fagles, que nos traz grande parte da precisãode Homero, ressuscitando a terrível beleza da Idade de Bronzeda Grécia numa linguagem veloz como as flechas de Apolo— note-se a avassaladora inevitabilidade do verso “e desceucomo a noite” —, mas ao mesmo tempo capturando umagraciosa contundência capaz de polir o brilho de cada detalhe.

O resultado da peste lançada por Apolo é que todos osgregos passam a compreender a causa de seu infortúnio: afilha do sacerdote tem de ser restituída ao pai para que a pes-te desapareça. Seu comandante, Agamenon, obrigado a con-cordar com o consenso da tropa, toma como prêmio de conso-lação a concubina de Aquiles, precipitando assim a decisãode abandonar a guerra. Durante a maior parte dos 24 livrosdo poema, Aquiles fica recolhido em sua tenda, enraivecido,ponderando se deve permanecer afastado da batalha ou aban-

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donar completamente os gregos, zarpando de volta ao larjunto com os companheiros sob seu comando.

Que mundo estranho esse, tão distante do nosso. Otema do poema, como nos informa Homero com as primei-ras palavras, é a ira de um herói — “cólera”, em traduçõesanteriores —, mas ira e cólera parecem estar por toda parte:em Aquiles, Agamenon, Crises e Apolo, em todos os perso-nagens aos quais somos apresentados durante os primeiroscinqüenta versos. Homero começa com uma prece de invo-cação à Musa da poesia épica, mas poucos versos adianteouvimos uma segunda súplica: a do sacerdote a seu deus demuitos nomes, o absolutamente elegante mas “mortíferoArqueiro” Apolo. E um terceiro deus é invocado: Zeus, aquem tanto Aquiles quanto Apolo são “caros” e que, ao quese depreende, é a força motriz por trás da narrativa, coman-dando de certa forma toda a ação, pois, como nos diz Home-ro numa frase atraente, “a vontade de Zeus seguia em dire-ção a seu fim”.

Homero não dedica muito tempo a comentar seus per-sonagens. Estes se revelam em palavras e atos, não no co-mentário do poeta. Mas sentimos desde o início que os per-sonagens humanos são capturados como nadadores numacorrenteza submarina muito mais forte do que seus enérgi-cos esforços, uma corrente que os levará aonde quiser, apesardo empenho deles. Ao mesmo tempo, essa correnteza não éinteiramente algo separado: na verdade, é a soma de todosos personagens, tanto deuses quanto homens, porque deu-ses e homens são impelidos por sua necessidade de glória. Adesonra de Hera e de Atena engendrada por Afrodite e a

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subseqüente humilhação de Menelau perpetrada por Páristornaram a guerra inevitável; Apolo é injuriado pela afrontaa seu suplicante, Crises; a necessidade, sentida por Agamenon,de ser o comandante supremo, se choca com a de Aquiles,de ser reconhecido como supremo guerreiro.

Percebemos, de alguma forma, que essas motivações, eoutras que serão ainda reveladas, impulsionam a ação dopoema até sua inevitável conclusão. Como diz o videnteCalcas, temendo a ira de Agamenon:

Um rei poderoso,irado contra um inferior, é demasiado forte.Ainda que hoje pudesse engolir sua raiva,mesmo assim acalentará o fogo que ruge em seu coraçãoaté que, cedo ou tarde, o faça explodir.

Isso é o que se espera dos reis poderosos, e nada pode serfeito para evitá-lo. Mas mesmo irado Agamenon não é abso-luto. Sua ira tem de medir-se com a cólera e a vontade deoutros. Quando graceja com Aquiles dizendo que virá pes-soalmente tomar-lhe a concubina — “para que aprendas oquanto sou mais poderoso do que tu” —, Homero nos mostrao coração de Aquiles latejando “em seu peito robusto”, lu-tando entre as alternativas:

Deveria ele sacar a longa e afiada espada presa à cintura,avançar entre os soldados e matar Agamenon nestemomento? — ou dominar a ira e subjugar a fúria?

Somente a intervenção de Hera, “a de alvos braços”, “queamava os dois homens e cuidava de ambos igualmente”,

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impede que a raiva de Aquiles atinja o alvo. Ela manda rapi-damente à terra a deusa da guerra, Atena, que invisível atodos menos a Aquiles o contém segurando-o pelos “cabelosde fogo”; e Aquiles se submete, embora, em suas própriaspalavras, “a fúria lhe parta o coração”, tal é seu desejo de queo “sangue escuro” de Agamenon “jorre em cascata na pontade minha lança!”, mas “quando o homem obedece aos deu-ses, eles depressa ouvem suas preces”.

Essas forças em conflito, todas as cóleras e abusos dedeuses e de homens, aparentemente balançando-se numainterminável gangorra, produzirão finalmente um resulta-do, a queda de Tróia. Para os antigos, no entanto, cuja opi-nião Homero exprime, esse resultado não é mais do que umnovo balanço da gangorra, que em breve ficará equilibradadevido a um efeito oposto. Essa visão dos antigos, portanto,é uma verdadeira interpretação do mundo, isto é, uma ten-tativa de enxergar a experiência humana em seu aspecto in-tegral, tanto psicológico (na avaliação das motivações hu-manas) quanto teológico (ao presumir a intervenção celestenos assuntos dos homens). Os resultados das motivações hu-manas e das intervenções divinas produzem conseqüênciaspredeterminadas, porém de maneira tão complexa e comtantas derivações conflitantes que somente um vidente ouprofeta é capaz de compreendê-las de antemão e identificarno presente as sementes dos resultados futuros. Isso signifi-ca que os seres humanos, e até certo ponto os próprios deu-ses, são aprisionados como figuras em uma tapeçaria, inca-pazes de se desvencilhar da trama, desempenhando os papéisque lhes foram atribuídos, seja de heróis ou de reis, de mãesdedicadas ou de troféu sexual, de patrono divino de uma

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pessoa ou cidade, e percebendo apenas de modo passageiroo resultado que seu personagem ou suas necessidades virão ater sobre a empresa humana em sua totalidade.

De vez em quando, um presságio anuncia uma conse-qüência futura. Uma vez reunida a armada grega, muitosanos antes, e enquanto o exército heleno oferece seus sacri-fícios “sob um plátano de ramos espessos” em Aulis, antesda partida para Tróia, aparece um desses augúrios, e Ulissesrecorda à tropa ansiosa:

“Uma serpente, com o dorso listrado de vermelho como

sangue, criatura do terror! O próprio Zeus olímpico

a lançara à límpida luz do dia.

Rastejou de sob o altar, subiu pelo tronco da árvore

Onde uma ninhada de pardais, pequenos, indefesos,

se equilibrava nos galhos mais elevados,

escondendo-se sob as folhas, e eram ao todo oito, com

a mãe completavam nove, ela dera à luz a todos, piavam

de cortar o coração, mas a cobra os engoliu enquanto

a mãe gritava por seus filhos, esvoaçando sobre ela...

A serpente se enroscou, deu o bote, apanhando-lhe a asa —

um grito agudo!

Mas depois de devorar a mãe pardal com sua ninhada,

O filho do aleijado Cronos que enviara a serpente

transformou-a em símbolo, num visível monumento;

Zeus a transformou em pedra! E nós ali ficamos

maravilhados com o que tínhamos presenciado.

E então,

quando esses presságios terríveis, monstruosos, ocorreram

diante das vítimas que oferecíamos aos deuses,

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Calcas rapidamente revelou a vontade de Zeus:

‘Por que temeis, aqueus de longos cabelos?

Zeus, que governa o mundo, nos mostrou um assombroso

sinal, um acontecimento no futuro distante, que ainda levará

tempo, mas a fama dessa grande obra jamais desaparecerá.

Assim como a serpente devorou a mãe pardal e sua ninhada,

Oito, com a mãe nove, ela que dera à luz a todos,

Assim também lutaremos em Tróia o mesmo número de anos,

e depois, no décimo, invadiremos suas largas avenidas.’”

Não é fácil, do ponto de vista de um ocidental do sécu-lo XXI, imaginar de que forma esse presságio confortaria ossoldados gregos. Homero qualifica seus símbolos de “terrí-veis, monstruosos”, e ao repetir a expressão “ela que dera àluz a todos” sugere sua simpatia pelos troianos em sua futuraderrota, assim como em relação aos passarinhos que “pia-vam de cortar o coração”. Tais homens traziam somente umconsolo indeciso, não apenas devido à sua obscuridade —como disse Ulisses, “coragem, amigos, resistamos um poucomais/até vermos se Calcas adivinhou a verdade ou não” —,mas porque lhes faltam os detalhes. Bem, talvez os gregosvençam, mas o presságio não leva em conta o custo, nempara o exército nem para os indivíduos.

Apesar da limitada capacidade de cada indivíduo paradesvendar seu próprio destino (ou o de outra pessoa), existetambém outra forma pela qual é possível projetar a vastainteração da Guerra de Tróia com precisão quase matemáti-ca, como se fosse uma fórmula algébrica fugidia e extrema-mente complexa da teoria dos jogos. A intenção de Homeroé revelar-nos essa fórmula, uma representação sofisticada dos

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assuntos humanos, em três dimensões, como num delírio,que nos mostra exatamente de que modo cada personagemdesempenhou seu papel e de que forma cada papel interagiucom os dos demais a fim de produzir a narrativa. Portanto,Homero pretende oferecer-nos um prognóstico ao revés, apercepção após o fato. Onze séculos depois de Homero, osofista grego Filostrato articularia uma convicção a respeitodo prognóstico, mostrando-nos que durante muito tempo osgregos acreditaram nisso: “Deus percebe os acontecimentosfuturos, e os mortais os do presente, enquanto que os sábiospressentem aqueles que são iminentes.” Embora nem todossejam igualmente capazes de ver o futuro, existe um padrãoque pode ser distinguido, e Homero o revelará para nós.

Para poder fazê-lo, ele se apóia numa capacidade apa-rentemente divina — ajudado, sem dúvida, pela Musa quefreqüentemente invoca —, a fim de proporcionar-nos retra-tos vivos traçados com destreza. Tem de tratar de um imen-so elenco de personagens — os deuses, os gregos, os troia-nos —, cada qual repleto de artifícios e características pró-prias. Mesmo assim ele consegue atribuir a todos umaatmosfera própria que lhe confere realidade vívida. Talveznão seja de admirar que as lutas autodestruidoras no interiordo exército grego são retratadas com caracterização, energiae detalhes familiares (um sentido do lugar de onde vem cadaum dos lutadores, que tipo de gente teve de deixar para trás),pormenores que suscitavam reconhecimento e emoção nosouvintes orgulhosamente gregos de Homero. Nem tampouconós, tantos séculos depois da época em que os deuses gregoseram invocados, achamos muito improvável que eles aindasejam capazes de nos emocionar com suas dimensões e velo-

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cidade, sua combinação de generosidade divina e sublimefúria, seus banquetes eternos e seus rancores. Eles são, afinalde contas, os eternos super-heróis da imaginação humana.

O que realmente causa espanto, no entanto, é a apre-sentação dos troianos, aos quais o poeta atribui plena huma-nidade, apesar de serem inimigos mortais dos gregos. Olendário correspondente de guerra do New York Times,Chris Hedges, escreveu que a guerra normalmente cria umadinâmica cruel: “Demonizamos o inimigo de tal forma quefazemos com que o adversário já não seja mais humano.(...) Na maioria das guerras míticas isso acontece. Cadalado reduz o outro a objetos, em última análise, em formade cadáveres.” Embora ninguém na história possa reivin-dicar a nacionalidade grega mais do que Homero, e nãoexista guerra mais mítica do que a de Tróia, o surpreen-dente Homero jamais deixa de pintar seus troianos pelomenos tão simpáticos quanto os gregos. Em sua generosi-dade para com o inimigo troiano, Homero proporciona aexceção que prova a regra de Hedges. Assim as inexpugná-veis torres e fortificações da “sagrada Tróia” se elevam maisuma vez para cada um dos leitores de Homero, seus gran-des portões, sua planície cortada pela corrente do rioEscamandro, que termina na fímbria do oceano onde osmil barcos deram à praia, suas “mulheres de amplos seios”de pé nas muralhas, “com seus longos vestidos de cauda”.Até mesmo a maneira de lutar dos troianos é original, histé-rica em comparação com a dos gregos:

Já com os esquadrões formados, com capitães no comando,os troianos avançaram aos gritos de guerra no fragor da

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batalha como pássaros selvagens quando os gritos roucos dasgarças sobem até o firmamento e as grandes revoadas fogemdas tempestades do triste inverno, voando com energia,lançando-se ao sul sobre os golfos do Oceano,trazendo sangue e morte aos guerreiros pigmeus* namadrugada lutando selvagemente por sobre suas cabeças.Mas os exércitos aqueus chegaram em silêncio, resfolegandona fúria do combate, os corações em chamas, paradefenderem-se uns aos outros até a morte.

Os personagens do lado troiano são distintos e indivi-duais. Helena, causa da guerra, aparece em breves momentosnesse drama, mas estes são inesquecíveis. Percebemos queela passa o tempo criando uma obra de arte autobiográficasobre as conseqüências de seu rapto, uma espécie de “Esta éa Minha Vida”:

tecendo uma trama, um manto vermelho-escuro crescendo emdobras, trançando na tela as intermináveis sangrentas batalhastroianos e argivos em seus valentes cavalos com armas debronze que sofreram por ela nas mãos do deus da guerra.

Ao ouvir dizer que Páris e Menelau, “seu esposo de muitotempo atrás”, irão decidir a sorte em combate singular, sob

* Pigmeu é uma palavra grega que indica a distância do braço de um homem docotovelo às falanges dos dedos, usado também para significar uma raça de anõesde tamanho comparável que se acreditava viverem na Etiópia e serem devoradospelas garças no verão. Há uma lenda que diz que os pigmeus tentaram subjugarHércules, com dois exércitos que o prenderam enquanto dormia, imagem queJonathan Swift retomou nas Viagens de Gulliver. Quando, no final do séculoXIX, exploradores europeus descobriram um povo de anões na África equatorial(e, mais tarde, também povos de baixa estatura em partes da Ásia), estes foramdenominados com certa razão “pigmeus”, pois sua descoberta parecia confirmarque a lenda grega tinha certa base em fatos.

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os olhares dos dois exércitos, o coração dela se enche de “ar-dente e profundo desejo/pelo esposo de muito tempo atrás,sua cidade e seus pais”. Helena é uma mulher sincera, e omanto que tece não é uma forma de auto-elogio egoísta, esim a expressão de sua condição como figura incrustada numtecido que ela é incapaz de desfazer, um peão no jogo dosdeuses e dos homens.

“Vestindo-se rapidamente de linho brilhante”, “comlágrimas enchendo-lhe os olhos”, Helena corre às muralhasde Tróia, onde é observada pelos “anciãos do reino”, a quemHomero compara a gafanhotos ou, na tradução de Fagles,“cigarras”...

pousadas nos topos das árvores, erguendo as vozes nafloresta, alteando-se suavemente, caindo, desmaiando...Assim esperaram, os velhos chefes de Tróia, sentados no

cimo da torre.E ao ver Helena passando pelas muralhas,murmuraram uns aos outros palavras aladas, gentis:“Quem seria capaz de reprová-los? Ah, não admiraque os homens armados de Tróia e Argiva tenham sofridoanos de agonia somente por ela, por uma mulher assim.”

Dessa forma, quando finalmente podemos entrever a fabu-losa Helena através dos olhos dos anciãos, Homero acentuanossa apreciação de sua beleza.

Enquanto os velhos continuam a murmurar, na espe-rança de que Helena, apesar de sua semelhança com uma“deusa da eternidade”, possa “voltar a seu lar nos grandesnavios”, pois “ao longo dos anos sua tristeza foi irresistível”,o rei Príamo a recebe com requintada gentileza:

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“Vem até aqui, querida menina. Senta-te diante de mim,para que possas ver teu marido de muito tempo atrás,teus compatriotas e tua gente.A culpa não é tua. Os deuses são os culpados. (...)

Aqui, chega mais perto.Diz-me o nome daquele terrível guerreiro.”

E Helena fala, revelando a confusão que reina em seuspensamentos:

“Eu te respeito, caro pai, e também te tenho temor —desejaria que a morte me tivesse atendido naquele dia, a friamorte, quando segui teu filho em direção a Tróia,abandonando meu leito nupcial, meus compatriotas e meufilho, meu favorito, hoje já crescido,e a amável companhia das mulheres de minha idade.Mas à tua pergunta — sim, tenho a resposta.Aquele é Agamenon, filho de Atreu, senhor de impérios,poderoso rei e destro no manejo da lança,que era meu compatriota, eu que sou prostituta!Existia um mundo... ou era tudo um sonho?”

Mais tarde, ela modifica um pouco sua autodescrição: “ca-dela que sou”, e mais adiante outra vez “eu que sou prostitu-ta”, uma mulher castigada pela consciência, ainda que escra-vizada pela paixão.

Enquanto isso, no campo de batalha, Páris, seu raptor,uma espécie de ídolo de matinê pouco perseverante, estáprestes a perder a vida no combate corpo a corpo com Me-nelau, muito melhor lutador do que ele. Mas Afrodite, agrande protetora de Páris, intervém envolvendo seu protegi-do em “turbilhões de névoa”, e o retira dali, deixando-o “em

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sua alcova cheia de perfumes”. Em seguida a deusa atraiHelena para o leito onde jaz Páris, “resplendente em toda asua beleza”. Embora a princípio Helena proteste energica-mente, por fim sucumbe à deusa e ao convite de Páris para“perdermo-nos no amor”, enquanto Homero nos mostraMenelau caminhando “como fera selvagem, ao longo dasfileiras”, tentando descobrir onde Páris se escondeu.

Após nove anos de guerra interminável, ambos os ladosse encontram exaustos. Homero nos deixa ouvir suas fatigadastentativas de chegar a um término: os gregos se reúnem emconselho e pensam em voltar à sua terra, sem atingir o obje-tivo, enquanto um número não pequeno de troianos estádisposto a entregar Helena; somente Páris não concorda,e Páris, príncipe de Tróia, prevalece. O combate singularentre Páris e Menelau por um instante parecia trazer umasolução — o vencedor, ao que ambos os lados convieram,ganharia a mulher e a guerra —, mas o mágico desapareci-mento de Páris significa que a carnificina geral continuará:

Finalmente os exércitos se enfrentaram num pontoestratégico, os escudos se chocaram, as lanças seentrecruzaram, com a energia dos corpos de guerreirosarmados de bronze e seus escudos redondos avançaram,bossa contra bossa, e o estrondo da luta rugiu, estremecendo

a terra.Gritos de homens e brados de triunfo no mesmo alento,guerreiros matando, guerreiros mortos, e o sangue

escorrendo pelo chão.

À medida que vamos conhecendo mais e mais guerrei-ros de ambos os lados, suas famílias e sua história pessoal,

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seus temores atuais e esperanças futuras, as vívidas descri-ções de batalhas feitas por Homero nos fatigam, e, assimcomo os próprios guerreiros, começamos a temer o alvore-cer, que somente pode trazer mais sangue, como no trechoem que o grego Diomedes, sob a proteção de Atena, derrubao troiano Pândaro:

Em seguida lançou seu dardo e Atena o guioue ele rompeu o nariz do arqueiro entre os olhosquebrando-lhe os dentes brilhantes, e o duro bronzecortou-lhe a língua pela raiz, esmagou-lhe a mandíbulae a ponta surgiu rasgando a base do queixo.

A Ilíada contém centenas de descrições semelhantes; ocorpo de um homem que passamos a conhecer é retalhado,suas entranhas se derramam para fora enquanto ele cai, agar-rando-se à terra em “ondas negras de dor”, e “a escuridãochega em nuvens espessas a seus olhos”. Embora Homerodeseje com essas passagens impressionar-nos com o preço daguerra, ele jamais pretende simplesmente causar-nos nojo.A guerra pode ser um inferno, mas é um inferno glorioso, oápice do sofrimento humano, a essência da virtude humana,o máximo da realização do homem, que junta à tragédiafinal da morte a graça duradoura de um grande feito — amaior de todas as façanhas, a coragem no combate. Por cau-sa disso, Homero é capaz de admirar Menelau, “enlouqueci-do pelo doce sangue humano”, um exemplo daquilo queAjax, o segundo mais valoroso dos gregos depois de Aquiles,chama “a alegria da guerra”.

“A pele do covarde muda constantemente”, afirma cheiode si o capitão cretense Idomeneu, que voltará vivo a seu lar

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(e tornar-se-á personagem principal de uma das primeirasóperas de Mozart, a faustosa Idomeneu):

“ele não consegue dominar-se, não consegue estar tranqüilo,de cócoras, balançando, apoiando-se num pé e noutro,o coração disparado, latejando dentro de suas costelas,os dentes batendo — ele teme uma morte horrível.Mas a pele do soldado corajoso jamais empalidece.Ele se controla. Tenso, mas não apavorado.Ao juntar-se a seus camaradas preparados para a emboscadaPede para lançar-se à carnificina, atacar imediatamente.”

Ao ver um guerreiro como Idomeneu no ataque “feroz comouma labareda”, Homero comenta com admiração:

Somente um veterano de nervos de aço poderia contemplaraquela batalha e ainda assim encher-se de alegria e jamais

sentir terror.

Ou, como confessa George C. Scott, em sua inesquecívelpersonificação do veterano de muitas batalhas, general GeorgeS. Patton, ao contemplar um campo de batalha juncado demortos e feridos: “Eu adoro isto. Que Deus me perdoe, ado-ro isto. Gosto mais disto do que da minha própria vida.”

AQUILES PODERÁ SER o incomparável guerreiro grego, maspor passar a maior parte do poema acalentando sua ira

na tenda, não é ele o herói final da Ilíada (que, afinal decontas, significa uma obra a respeito de Ílion, o antigo nomede Tróia). Essa posição está reservada ao guerreiro troianoHeitor, “domador de cavalos”, filho do rei Príamo e da rai-

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nha Hécuba, irmão de Páris, o homem que quase sozinhoanima as tropas troianas com espírito de luta sem jamaisduvidar de que seu destino será morrer na planície de Tróia,deixando sua amada mulher Andrômaca e o filho de ambos,Astianax, à mercê dos gregos. Não temos dificuldade em con-siderar Aquiles simples e digno de confiança em seu robustovigor, assim como muitos dos outros heróis que Homero des-creve para nós. Mas o Heitor de Homero, embora “um potrobem nutrido” e um leão “louco para meter as garras na bata-lha”, é um personagem muito mais complexo do que qual-quer de seus principais adversários, homem de “tempera-mento suave” por trás da fachada belicosa, como o defineHelena, e finalmente não se mostra à altura de Aquiles.

Como os demais heróis, ele está comprometido com oque chama “o belo perde-ganha da guerra”. Mas está tam-bém ligado a Andrômaca por uma amizade profunda entrehomem e mulher. Afasta-se da batalha para passar algumtempo com o que compreende será seu último encontro com“minha querida esposa e meu filho ainda bebê”. EmboraHomero pouco comente a ação de seus personagens, permi-te-se nesse encontro uma ternura verbal que poucas vezesocorre no poema, chamando Andrômaca “esposa terna egenerosa” de Heitor, filha de um pai “de coração valoroso”,e Astianax “o querido dos olhos [de Heitor], reluzente comouma estrela”, e vendo em Heitor “o grande guerreiro que seabre num sorriso, o olhar fito em seu filho, em silêncio”. Osilêncio é importante, pois Heitor não é um homem efusivo.

Andrômaca lhe suplica que não volte à batalha, porqueela já perdeu toda a família — “o grande Aquiles os massa-crou a todos”. “Tu, Heitor”, suplica ela,

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“és agora meu pai, minha nobre mãe,irmão também, e és meu marido, jovem, ardente e forte!Tem pena de mim, te rogo! Toma posição aqui na torre,antes que teu filho se torne órfão e tua mulher, viúva.”

Mas Heitor não poderá permanecer em segurança nointerior das muralhas inexpugnáveis de Tróia. Sua respostaé ponderada e triste:

“Tudo isso pesa em minha mente também, querida mulher.Mas eu morreria de vergonha diante dos homens de Tróiae das mulheres de Tróia com seus longos mantos,se agora eu fugisse à batalha, como um covarde.Meu espírito tampouco me impele nessa direção.Já aprendi tudo muito bem. Erguer-me corajosamente,sempre lutar na linha de frente dos soldados troianos,trazendo maior glória a meu pai e glória a mim mesmo.Pois sei muito bem em minha alma e em meu coraçãoque o dia virá em que há de perecer a sagrada Tróia,Príamo há de morrer e com ele todo o seu povo, Príamo, queatira a forte lança prateada...

Mesmo assim,não é tanto a dor que cairá sobre os troianoso que me abate, nem mesmo a da própria Hécubaou do rei Príamo, ou a idéia de que meus próprios irmãostodos eles, com toda a sua valorosa coragem,irão cair por terra, esmagados pelos inimigos —Isso não é nada, nada comparado com tua agoniaquando algum ousado argivo te arraste em lágrimas,arrancando de teus dias a luz e a liberdade!Terás de viver na distante terra de Argos,labutando no tear, sujeita a outra mulher,trazendo água de alguma fonte, Messânia ou Hipéria,

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resistindo a tudo —com a rude canga da necessidade em teu pescoço.E algum homem dirá, vendo tuas lágrimas rolarem:‘Eis a mulher de Heitor, o mais valente dos guerreirosque os troianos domadores de cavalos levaram ao campo debatalha, há muito tempo, quando eles lutaram por Tróia.’Assim, ele falará e uma nova mágoa inundará mais uma vezteu coração, viúva, já sem o único homem capaz de com suaforça libertar-te da escravidão.”

Em seguida, diz-nos Homero, Heitor, “no mesmo fô-lego”, estende a mão para o filho, mas a criança grita “ao verseu próprio pai”,

aterrorizado pelo brilho do bronze, pela crista de crina decavalo, a maciça cumeeira do elmo balançando, gerandoterror — assim apareceu a seus olhos. E o amoroso pai riue sua mãe também, e o glorioso Heitor, tirando rapidamenteo elmo da cabeça, colocou-o no chão, brilhando ao sol,e erguendo o filho, beijou-o, levantou-o nos braços,elevando uma prece a Zeus e aos outros deuses imortais:“Zeus, e todos os imortais! Fazei este menino, meu filho,igual a mim, primeiro em glória entre os troianos,forte e bravo como eu, e que governe Tróia com seu poder,e que algum dia todos digam: ‘Foi um homem melhor do

que seu pai!’ —quando regressar da batalha com as armas ensangüentadasdo inimigo mortal que matou na luta —uma alegria no coração de sua mãe.”

Assim orou Heitore depôs o filho nos braços da amantíssima esposa.Andrômaca abraçou o filho contra o seio perfumado,sorrindo por entre as lágrimas. O marido percebeu,

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e cheio de pena agora, Heitor a tocou ternamente,procurando confortá-la, repetindo seu nome: “Andrômaca,querida, por que está tão aflita? Por que tanta tristeza por

mim?Ninguém me lançará à morte contra meu destino.O destino? Nenhum ser vivo jamais escapou a ele,nem o bravo nem o covarde, eu te digo —ele nasce conosco no dia em que viemos ao mundo.”

Algumas palavras mais, e ambos se separaram, sabemos quepara sempre, Heitor “coberto de armas”, Andrômaca “cho-rando mornas lágrimas vivas”, voltando-se para enfrentar osdestinos diversos que Heitor havia previsto para ambos.

Essa é uma cena única na Ilíada, um oásis de ternurafamiliar em meio à carnificina da guerra. Mas é também ori-ginal na literatura universal, a primeira vez em que um autorantigo (fosse da Mesopotâmia, egípcio, hebreu ou grego) pro-curou retratar o inquebrantável laço de afeto entre um casal,a primeira vez em que uma família aparece como unidadeno amor.* Andrômaca está ligada a Heitor não apenas peloelo do dever que se poderia esperar numa época de casamen-tos arranjados. Aqui há mais do que dever, tanto que nãoseria extravagante chamá-lo amor romântico, fenômeno que

* Há muitos exemplos anteriores de poemas de amor — fragmentos vindos daMesopotâmia que datam até mesmo do segundo milênio a.C. e consideráveiscoletâneas do Egito com datas igualmente remotas —, mas estes não aparecemcomo parte de uma narrativa, e sim como diálogos ou monólogos ritualizados,em geral postos na boca de um deus ou de uma deusa. É possível que muitostenham sido parte de orgias sagradas, na qual um rei representaria o deus, umaprostituta sagrada a deusa, coisas que certamente eram comuns na Mesopotâmia.De qualquer forma, esses poemas tendem a ser sexualmente provocantes e nuncase sugere que os amantes sejam casados, e na verdade ocorre o oposto. O primeiro(e único) exemplo hebreu desse gênero é o Cântico dos Cânticos, provavelmenteposterior ao Exílio e, portanto, não é provável que seja anterior ao século V a.C.

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geralmente se acredita haver chegado às relações humanassomente com o advento da tradição do “amor cortês”, 19séculos mais tarde.

Da mesma forma, o riso afetuoso do casal diante dotemor desnecessário da criança e a disposição imediata deHeitor de despir-se do aterrorizante capacete, a fim de tran-qüilizar o filho, mostram que pai e mãe compreendem que ainfância é uma época especial, com necessidades e reivindi-cações específicas com as quais os adultos têm de confor-mar-se — compreensão que em geral se imagina haver sidoexpressa somente após o Émile de Rousseau, o que colocariaseu aparecimento no século XVIII de nossa era. Ainda maisextraordinária do que o entendimento do casal a respeito dainfância é a tocante humildade de Heitor diante da novageração, expressa em sua súplica de que seu filho se mostreainda “homem melhor do que o pai”. Não poucos pais,mesmo os provenientes de sociedades supostamente maisesclarecidas, mostraram-se incapazes de tal desprendimento.

Essa cena singular de Heitor e de sua família nas mura-lhas de Tróia nos assegura que pelo menos algumas pessoaseram “humanas” segundo nosso modo de ver as coisas —isto é, ternamente dedicadas à família —, muito, muito tem-po antes do que os eruditos vêm confortavelmente reconhe-cendo.* E é justamente a profundidade dos sentimentos da-queles três personagens o que torna os iminentes aconteci-mentos tão irremediavelmente trágicos.

* Existe vasta literatura sobre aquilo que os estudiosos consideram como as origensocidentais recentes do amor romântico e a evolução extremamente lenta da idéiade infância. Veja-se, por exemplo, História do Amor no Ocidente, de Denis deRougemont, e Séculos de Infância, de Philippe Aries.

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Aquiles continua a remoer-se em sua tenda mesmoquando as forças de Heitor empurram os gregos até seus na-vios, quase até o mar, e tratam de incendiar os barcos. Dian-te da alarmante proximidade de uma derrota final dos gre-gos, Aquiles permite a seu inseparável e generoso compa-nheiro Pátroclo lançar-se à batalha em seu lugar, usando suasarmas e sendo levado à planície no carro de Aquiles, puxadopor seus cavalos imortais. Heitor mata Pátroclo, provocan-do em Aquiles uma insaciável dor e impelindo-o a voltar aocampo (desde que recupere sua concubina — intacta, comolhe assegura o aflito soldado Agamenon). Aquiles, incon-trolável como um dinossauro, atira-se à luta e, na cena maistriste de toda a literatura antiga,* abate Heitor, cuja alma“voa para a casa da Morte”. Mas Aquiles não está satisfei-to. Gritando: “Morra, morra!”, sobre o corpo do príncipetroiano, retira-lhe a armadura e chama os demais gregos paraque profanem o cadáver,

todos eles olhavam estupefatoso belo corpo, esbelto e bem-proporcionado de Heitor.E todos os que avançaram esfaquearam seu cadáverolhando para um companheiro e rindo: “Ora, veja,que ele agora está muito mais fácil de tratar, este Heitor,do que quando incendiou nossos navios com ardentes

chamas!”

* A morte de Heitor na planície de Tróia foi considerada em todo o mundo clássi-co como o ápice da experiência trágica na literatura, e o trecho continuou a serigualmente admirado já no avançado período medieval. Um escriba irlandês dostempos pós-romanos, que havia copiado um relato em latim sobre a morte deHeitor, escreveu uma nota pessoal na margem do manuscrito: “Sinto grandepesar pela morte acima mencionada.”

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Embora Aquiles organize jogos fúnebres em homena-gem a Pátroclo, construa uma pira funerária para incinerarseu corpo e enterre seus restos numa tumba especialmenteconstruída, já não consegue dormir, e passa os dias e as noi-tes cavalgando em redor do túmulo, rebocando o cadáver deHeitor amarrado atrás de seu carro de batalha. Finalmente,outro pranteador, Príamo, pai de Heitor, já não agüenta maisessa profanação, e vem à noite à presença de Aquiles parasuplicar-lhe a restituição do cadáver do filho. O rosto enve-lhecido e inconsolável de Príamo, obscurecido por dias enoites de luto, e sua desesperada coragem em atravessar aslinhas de batalha finalmente comovem o espírito de Aquiles,que responde com simpatia ao pedido do velho rei:

“Respeita os deuses, Aquiles! Tem piedade de mim,lembra-te de teu próprio pai! Eu mereço mais piedade...Suportei o que ninguém na terra antes fez —Beijei a mão do homem que matou meu filho.”

Estas palavras provocaram em Aquiles um profundodesejo de lamentar a morte de seu próprio pai. Tomando amão do velho suavemente o afastou.* E vencidos pelamemória ambos deixaram à solta suas mágoas. Príamochorou abertamente pelo matador Heitor, soluçando,encurvado aos pés de Aquiles, enquanto este choravatambém primeiro por seu pai, depois outra vez porPátroclo, e os soluços se elevaram e encheram a mansão.

* A postura que um suplicante assumia era ajoelhar-se ante o homem a quem su-plicava, com uma das mãos em seu joelho e a outra apoiando o queixo barbado.Não é preciso dizer que é difícil assumir essa posição se o potencial doador dese-jasse evitá-lo, e a própria postura era em si mesma o máximo do servilismo.

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A exclamação de Zeus, um pouco adiante na narrativa,após a morte de Pátroclo, pode também servir de epitáfiopara a cena:

“Nenhum ser vivo sofre maior agonia do que o homem,entre todos os que respiram ou rastejam pela terra.”

Mas a última linha do longo poema de Homero nãotrata de um rei, nem de um guerreiro sobrevivente, e sim deHeitor. Seu corpo, agora recuperado, é incinerado numa pira,os ossos esbranquiçados reunidos numa arca dourada, en-voltos “com várias voltas de macios panos de cor púrpura”,e enterrados numa tumba de “enormes pedras” na famosaplanície de Tróia, que em breve estará deserta.

E depois de amontoarem as pedrasvoltaram-se novamente para Tróia, e outra vez reunidoscompartilharam de uma esplêndida festa fúnebre em honrade Heitor, na mansão de Príamo, rei por vontade de Zeus.

E assim os troianos enterraram Heitor, o domador decavalos.

DEPOIS DE HOMERO, todas as eras encontraram em seupoema épico algo de relevante para sua própria época.

Para nós, Aquiles poderá assemelhar-se a um adolescente mal-humorado cuja extraordinária maturidade física é muito su-perior à sua capacidade de julgamento. O historiador mili-tar contemporâneo Victor Davis Hanson chegou a compa-rar as descrições das façanhas dos heróis de Homero às letras

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de músicas do gênero rap, que “glorificam as quadrilhas ri-vais que matam e aleijam umas às outras em busca de prestí-gio, mulheres, pilhagem e território”. Sem dúvida, as platéi-as de ambas as formas de entretenimento têm muita coisaem comum, especialmente a necessidade de sentirem-se lison-jeadas por suas atitudes agressivas. Os admiradores de Home-ro, afinal, se encontravam abandonados pela sorte e assimhaviam estado durante muitas gerações: eram aristocratasdo século VIII que viviam numa época de transição — nofinal da Idade das Trevas, porém reverenciando a memóriade heróis ancestrais que tinham conhecido época melhor, aera heróica de Agamenon, Menelau e os demais chefes quetinham conquistado glória eterna numa batalha lendária.

Por ser a história de um sítio que já contava cinco sécu-los de idade, seu campo de batalha está repleto de incoerênciasmilitares. Ele próprio, assim como sua platéia, recordava,por exemplo, que os chefes guerreiros lutavam em carrospuxados por cavalos; mas como ninguém no século VIII ti-nha a mínima idéia de como era possível guerrear dessa for-ma, Homero fazia com que seus heróis saltassem dos carrosde combate no campo de batalha e ali lutassem, freqüen-temente, em fileiras cerradas. Os carros, vagamente recorda-dos como equipamento essencial para as guerras aristocráti-cas, tinham pouca utilidade para Homero, exceto emprestarcerta aura de antigüidade ao que ocorria. Uma vez desmon-tados, os heróis se assemelhavam bastante, em técnica e emvestimenta, aos infantes hoplitas contemporâneos de Ho-mero, que usavam armaduras pesadas — capacete, escudo,peitoral, proteção para as pernas, espada, lança e outras de-fesas corporais que poderiam chegar a pesar trinta quilos —

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e lutavam em formações cerradas e a curta distância do ini-migo. Não atiravam dardos de seus carros, como haviamfeito seus ancestrais num mundo menos populoso, no quala guerra parecia mais um jogo de coragem ou uma marchaem grupo do que o encontro de dois exércitos treinados emum campo de batalha.

Essa combinação peculiar entre o já conhecido e o ima-ginado torna a ação mais distante, separando-a de nós (e detodas as platéias anteriores), conferindo-lhe uma intem-poralidade em câmera lenta que também faz parte de suaatração universal. Sabemos, por exemplo, que os guerreirosnunca tiveram oportunidade de fazer discursos elegantes unspara os outros antes de lutar até a morte, como acontecefreqüentemente na Ilíada. Mas tampouco o Macbeth deShakespeare poderia ter encontrado tempo, imediatamen-te antes de seu último duelo, para informar o adversário,Macduff, de sua certeza, obtida de feiticeiras, de que nãopoderia ser morto por nenhuma pessoa “nascida de mulher”,nem Macduff poderia ter-se dado ao luxo de responder emquatro versos em decassílabos perfeitos que fora “do ventre desua mãe / prematuramente retirado”. Tanto Homero quantoShakespeare elevam seus guerreiros ao nível de quadros eurnas, onde podemos vê-los em suas personalidades essen-ciais, fixados para toda a eternidade em poses características.

Mas não devemos deixar que os elementos coreográfi-cos e anacrônicos da narrativa de Homero nos ocultem seurealismo básico: ali estava a guerra como era feita no tempode Homero, e não no tempo de Agamenon. A lenda é queHomero era um bardo ambulante e cego (que enxerga maisprofundamente devido à cegueira), mas isso quase certamente

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se deve à descrição de um rapsodo cego feita por ele na Odis-séia, e que mais tarde foi considerada uma autodescrição dopoeta. Qualquer que fosse o caso, ele deve ter sido capaz deenxergar, pelo menos na primeira parte de sua vida, pois naIlíada há descrições chocantes demais para que possamospensar que o poeta jamais tenha presenciado uma batalha.Na verdade, seria muito improvável que Homero nunca te-nha sido soldado. O antigo dramaturgo Ésquilo lutou emmaratona; Sófocles, seu contemporâneo mais jovem, foi ge-neral na conquista de Samos pelos atenienses; o irritante fi-lósofo Sócrates foi elogiado por seu heroísmo em três bata-lhas separadas — Potidéia, Anfípolis e Délio; o historiadorTucídides foi o almirante que deixou a vitória ateniense es-capar em Anfípolis; a história militar de Xenofonte, oAnabase, era o relato de sua própria experiência na guerra,a Marcha dos Dez Mil; o orador Demóstenes lutou emCaeronéia e em seguida organizou as últimas defesas de Ate-nas contra Alexandre, o Grande. Praticamente não existefigura grega de alguma importância que não tenha servidona juventude como militar ou que mais tarde não tenha seinteressado vivamente pela arte da guerra. “A guerra”, disseo filósofo antigo Heráclito, “é o pai de tudo, o rei de tudo.”E para Platão, maior de todos os filósofos, a guerra continuaa ser necessária, “sempre existente por natureza”.

Ao examinarmos mais detidamente o campo de bata-lha que o poeta nos apresenta, podemos discernir a maioriados elementos da subseqüente maneira ocidental de guerrear,todos eles variações inovadoras das técnicas antiquadas doschefetes de Micenas. Apesar das numerosas descrições deconfrontações entre dois adversários, a guerra sempre é

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conduzida em forma de cargas maciças de infantaria blinda-da, soldados que se movem lentamente em fileiras cerradas,fila após fila, vestidos não com aristocráticos mantos queesvoaçam dramaticamente atrás de si quando o vento os agi-ta nos carros de combate, e sim blindados como besouros,protegidos da cabeça aos pés por pesadas armaduras de bron-ze, caminhando a pé como uma máquina desajeitada poréminexorável:

compacta como uma muralha bem construída pelo pedreiro,blocos de granito empilhados para uma casa de dois andarescapaz de arrostar os ventos fortes — capacetes unidos,escudos preparados, seguros diante deles,carapaça com carapaça, elmo com elmo, homem a homemmuito juntos com as cristas de crina de cavalo sobre oscapacetes agitando-se quando eles viram a cabeça, osbatalhões densamente aglomerados.

Dentro de três séculos, as formações inventivas tais comoessas falanges (palavra grega) seriam suplementadas pormáquinas de sitiar, contrafortificações, guindastes, alavan-cas e artilharia, enquanto a organização militar e as divi-sões hierárquicas continuariam a evoluir — mas já nos tem-pos de Homero a arte da guerra havia sido essencialmentemodificada.

A platéia grega se emocionava com a coragem pessoaldos soldados de Homero. O mundo derramava lágrimas coma bravura de Heitor, como choraria muitos séculos mais tar-de com as palavras do trágico poeta e fidalgo Richard Lovelaceao deixar o “casto seio” de Lucasta e correr para “a guerra eas armas”. “Eu não poderia amar-te tanto, querida / se não

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amasse mais a honra.” Tais sentimentos heróicos têm de serexpressos de maneira enfática, memorável, repetidamente,para que o público que permanece na retaguarda dê apoioconstante aos homens que morrem na batalha. Mas o exér-cito grego histórico pode ser considerado — em meio a to-das as expressões de heroísmo — como a brutal inovaçãoque efetivamente representava: uma massa de homens, nãomais indivíduos e sim sujeitos a uma disciplina férrea, tecno-logicamente superior aos adversários, cujos generais haviamaprendido que é necessário tratar da guerra com astúcia, cadabatalha sendo planejada e meditada com antecedência aoembate dos exércitos, e que, tanto quanto possível, o mo-mento, o lugar e as condições do combate possam ser esco-lhidos antecipadamente, a fim de melhorar a própria posi-ção e colocar o inimigo em desvantagem. A partir desse mo-mento, no final do século VIII, a máquina ocidental de guerrase tornou operacional, e seu objetivo passou a ser colocar emjogo uma força de tal forma letal que inspirasse terror abjetoem todos os inimigos; e os soldados ocidentais marchamatravés da história não mais como exemplares de coragemaristocrática e sim como partes componentes, que realmen-te são.

“A maneira ocidental de fazer a guerra”, escreve Hanson,“é aterrorizante, tanto em termos relativos quanto absolutos.A marcha dos exércitos europeus tem sido descuidada e assas-sina, e acabou por esmagar qualquer coisa que se tenha le-vantado durante mais de dois milênios de oposição militarorganizada. Outras tradições beligerantes na China, nas Amé-ricas, na Índia e nas ilhas do Pacífico também se orgulhamde uma cultura militar contínua de longa duração. Não po-

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dem reivindicar, no entanto, a prática de eficácia e flexibili-dade similares, ou uma capacidade guerreira tão aperfeiçoa-da em sua devastação, como atestam a incursão de Alexan-dre até o Ganges, que durou toda uma década, ou a ‘pacifi-cação’ da Gália efetuada por César, ou o saqueio da Europadurante os seis anos da Segunda Guerra Mundial, ou aatomização de Hiroshima e Nagasaki.”

As interpretações da história militar antiga feitas porHanson são muito admiradas por pessoas que, como DickCheney, têm influência sobre George W. Bush. Esses asses-sores consideram a visão grega da guerra como “terrível poréminerente à civilização — e nem sempre injusta ou imoral, sefor empreendida em prol de boas causas, a fim de destruir omal e salvar os inocentes”, como diz Hanson em O Outono daGuerra. Robert D. Kaplan, outro comentarista contemporâ-neo glorificado pelos militaristas norte-americanos, chega aargumentar, em Políticos Guerreiros: A Arte de Liderar ao Lon-go da História da Roma Antiga até Hoje, que a política exteriordos Estados Unidos não se deixa constranger pela moralidadejudaico-cristã e que “o progresso freqüentemente resulta doprejuízo alheio”. Se quisermos manter nossa preeminênciaglobal, deveremos, na opinião de Kaplan, regressar comple-ta e descaradamente a nossas raízes pagãs gregas.

Grande parte de nossa visão militar atual — e muitasvezes até mesmo nosso vocabulário — pode ser identificadaem sua origem nas transformações que ocorriam nos cam-pos de batalha do tempo de Homero, no final do séculoVIII e início do século VII a.C. A força militar avassaladora,por exemplo, a doutrina avançada nos anos recentes, maisnotavelmente pelo general Colin Powell no início da pri-

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meira Guerra do Golfo, mostrou-se muito mais decisiva emdiversas confrontações ao longo da história ocidental do quea bravura individual dos soldados. O cálculo frio e o plane-jamento racional, e não a retórica heróica ou a fé mística,serviram como armas principais da máquina militar ociden-tal. Por intermédio desses elementos, os conquistadores, porexemplo, conseguiram subjugar em três décadas as popula-ções do México e do Caribe e suas altivas, porém instáveis,tradições. Enquanto que os espanhóis rapidamente com-preenderam a sociedade asteca, seus pontos fortes e suas de-bilidades, por meio de uma combinação de observação desa-paixonada e lógica indutiva, os indígenas, como diz Hanson,“durante várias semanas após a chegada dos castelhanos aindanão sabiam se enfrentavam homens ou semideuses, centaurosou cavalos, navios ou montanhas flutuantes, deidades do-mésticas ou estrangeiras, trovões ou armas de fogo, emissáriosou inimigos”.

É claro que ocasionalmente exageramos. Das Termó-pilas ao Little Big Horn e ao Vietnã, aparecem as exceçõeshistóricas que conseguiram, pelo menos momentaneamen-te, derrubar a máquina do domínio militar ocidental. Aindase está por ver qual será o resultado final da interminável“guerra” global contra o terrorismo, guerra na qual o inimi-go não tem um território a defender e não pode ser enfrenta-do em nenhum campo de batalha conhecido, guerra em quetoda iniciativa pertence ao inimigo e cada sombra pode ocul-tar uma terrível surpresa. É possível que o terrorismo inter-nacional na época da globalização tecnológica represente umainovação para a qual ainda não encontramos um antídotomilitar adequado (será possível que um antídoto militar não

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seja o que necessitamos)? Ou será mais provável que nossoatual arsenal de técnicas seja suficiente para preservar nossahegemonia? Certamente vale a pena perguntar se a tradiçãoocidental de militarismo, que hoje pode orgulhar-se de qua-se três milênios de êxitos, esteja chegando ao fim de sua uti-lidade, mesmo que qualquer tentativa de responder a estapergunta seja definitivamente prematura.

Tal indagação, por mais desagradável que seja às men-tes fechadas, é muito condizente com o espírito grego. Pen-sar no impensável, colocar o impossível, considerar todas asopções: tais hábitos de discurso somente podem florescer nadiscussão livre entre mentalidades não restritas. Um dos com-ponentes do militarismo grego que ainda temos de ponde-rar é que ele tinha raízes em noções emergentes de cidadaniae participação popular. Homero compreendeu que as socie-dades de Agamenon e Príamo eram aglomerações tribais,onde todas as decisões de guerra e paz eram tomadas porchefes poderosos capazes de liderar seus seguidores em meioa quaisquer perigos a que seus caprichos os levassem. Porisso duas sociedades foram impelidas à beira da destruiçãoem conseqüência do que deveria ser uma aventura amorosaefêmera. Mas Homero também colocou em sua narrativaexemplos de discussões francas dos soldados gregos sobremuitas coisas, desde as limitações pessoais de Agamenon atétáticas alternativas para enfrentamentos futuros. Essas dis-cussões abertas, sensatas e amplas pertencem à cultura mili-tar do tempo de Homero e épocas posteriores, e não à Mice-nas do século XII, e devido a sua especificidade parecemter origem na experiência pessoal de Homero de uma espé-cie de debate em assembléia, no qual os soldados gregos se

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interessavam intensamente pela empresa em que estavamengajados e faziam contribuições enérgicas à logística dabatalha. Era um convite geral para a discussão prévia da es-tratégia — e estratégia é mais uma palavra grega, derivada destratos, o termo grego para “exército”, sendo strategos o “ge-neral” —, combinada com um comprometimento com adisciplina subseqüente do grupo, o que ajudou a criar umamáquina de matar sem rival, a maneira grega de fazer a guerra.

Bem se pode querer perguntar de que modo tal combi-nação surgiu e chegou a afetar toda a história seguinte noOcidente e no mundo. No passado, grande número de co-mentaristas, fossem eles estudiosos da era clássica, políticosou leitores comuns, sentiu-se tentado a colocar uma pitadade racismo no tema: nós, no Ocidente, somos mental e espi-ritualmente superiores a outras civilizações, e por isso preva-lecemos. Mas o pêndulo da convicção popular poderá hojeem dia ter passado para o outro lado; e a meditação sobre oséculo XX, atolado em sangue que pelo menos em parte temde ser atribuído à máquina de guerra do Ocidente, estimu-lou os comentaristas a uma espécie de racismo às avessas: oOcidente agora é visto como mais selvagem do que outrasculturas supostamente mais pacíficas e mais nobres. Ambasas visões são falhas e fantasiosas, porque nenhuma tem apoioem provas. Na verdade, os persas e outros povos conquista-dos pelos gregos teriam desejado ardentemente ser eles osconquistadores e não teriam poupado esforços, por mais san-grentos, para sê-lo. Tal combatividade tem sido a normapara virtualmente todos os que foram vencidos nas guerrascom o Ocidente, e portanto não vale a pena apregoar a su-perioridade moral dos perdedores.

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Nem podemos legitimamente identificar algum elemen-to individual simples — por exemplo, a maneira pela qualos micróbios nos favoreceram, ou nossa posição geográficaestratégica — responsável pela superioridade ocidental.Hanson traz à baila o conhecido bio-historiador Jared Dia-mond (Armas, Germes e Aço), justamente sobre este ponto:“Os esforços daqueles que procuram reduzir a história à bio-logia e à geografia depreciam o poder e o mistério da cultu-ra, e freqüentemente se desesperam. (...) A terra, o clima, ameteorologia, os recursos naturais, o destino, a sorte, algunsraros indivíduos brilhantes, desastres naturais e outras coisasmais — tudo isso desempenha um papel na formação deuma cultura distinta, mas é impossível determinar exatamentese o homem, a natureza ou o acaso tenha sido o catalisadorinicial para as origens da civilização ocidental” [grifo meu].

Investigar as formas pelas quais uma combinação his-tórica imprevisível — neste caso, a mistura de obstinadapraticabilidade militar com a responsabilidade sem prece-dentes dos cidadãos — pode gerar uma nova força culturalcom tremendo impacto sobre muitos séculos nos leva tãopróximo aos profundos mistérios do processo histórico quan-to é provável que possamos chegar. Pode ser melhor sim-plesmente reconhecer o êxito dessa combinação virtualmenteimbatível e dizer, como o Dr. Seuss, que simplesmente “acon-teceu que ela tenha acontecido”.