Guia de Moradia Digna- OBS das Metrópoles

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    Polticas Pblicas e Direito Cidade:Poltica Habitacional e o Direito Moradia Digna

    Programa Interdisciplinar de Formao de Agentes Sociaise Conselheiros Municipais

    Regina Ftima C. F. FerreiraRosane Coreixas Biasotto

    Organizadoras

    Caderno Didtico

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    ObservatriOdas MetrpOles - ippUr/UFrJ

    Av. Pedro Calmon, 550, sala 537, 5 andar - Ilha do FundoCep 21941901 Rio de Janeiro, RJ

    Tel/Fax (55) 21-2598 1950www.observatoriodasmetropoles.net

    letraCapital editOra

    Teleax: (21) 3553-2236 / 2215-3781www.letracapital.com.br

    Copylet (2012) Permitida a reproduo de todos os textos, desde que citada a onte

    Organizadoras:Regina Ftima C. F. Ferreira

    Rosane Coreixas Biasotto

    Equipe pedaggica:Adauto Lucio CardosoAna Lucia BrittoErick OmenaFlvia ArajoGrazia de GraziaLuciana Corra do LagoMauro Rego Monteiro dos SantosRegina Ftima C. F. FerreiraRicardo GouvaRosane Coreixas BiasottoSuya Quintslr

    Thmis Amorim AragoValrio da Silva

    Equipe de apoio e mobilizao social:Marcelo Augusto de SouzaMrcia Alves dos SantosJos Martins de Oliveira

    Rachel Carvalho dos SantosSandra Hiromi Kokudai

    Capa e ilustraes:Gabriel Pon

    Produo:INCT Observatrio das Metrpoles IPPUR/UFRJ

    Ao UrbanaFundao Bento Rubio

    Apoio:

    Fundao Bento RubioPastoral de FavelasINCT/FAPERJ/CNPQ/FINEPFundo Nacional de Habitao de Interesse Social -FNHIS

    C129Caderno didtico : polticas pblicas e direito cidade : poltica habitacional e o direito moradia digna :programa interdisciplinar de ormao de agentes sociais e conselheiros municipais / Regina Ftima C. F.Ferreira, Rosane Coreixas Biasotto organizadores. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2012.

    28 cm

    Inclui ndiceISBN 978-85-7785-141-6

    1. Poltica habitacional. 2. Habitao. 3. Habitao popular. 4. Planejamento urbano. 5. Poltica social. I.

    Ferreira, Regina Ftima C. F. 2. Biasotto, Rosane Coreixas

    12-1102. CDD: 363.5CDU: 351.778.532

    27.02.12 06.03.12 033465

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

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    Sumrio

    ApresentaoOrl

    Regina Ftima C. F. Ferreira e Rosane Coreixas Biasotto

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    Mdulo I Direito cidade e moradia digna

    Desaos da questo urbana na perspectiva do direito cidade

    Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Orlando Alves dos Santos Junior

    9

    Vazios urbanos e uno social da propriedade

    Adauto Lucio Cardoso

    17

    Direito moradia e a questo ambiental

    Suy Quintslr27

    Planejamento, legislao urbanstica e instrumentos de gesto do solo urbano

    em disputa

    Rosane Coreixas Biasotto

    35

    Mdulo II Poltica habitacional: nanciamentose programas

    A produo social da moradia e o Programa Minha Casa Minha Vida

    Thmis Amorim Arago

    43

    Produo social da moradia: desao para a poltica de habitao no BrasilEvaniza Rodrigues

    50

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    Mdulo III Polticas pblicas urbanas e a polticahabitacional

    Dilemas e desaos da poltica pblica de saneamento no municpiodo Rio de Janeiro

    Ana Lucia Britto

    60

    Acessibilidade e mobilidade urbana sustentvel: uma contribuio

    aos programas e planos de habitao de interesse social

    Luiz Paulo Gerbassi Ramos

    73

    O novo Plano Diretor do municpio do Rio de Janeiro e o acesso

    moradia e terra urbanizadaFabrcio Leal de Oliveira

    76

    Mdulo IV Poltica habitacional: limites epossibilidades

    Planejamento e interveno pblica urbana: qual o papel do Estado na garantia

    do direito moradia e cidade no Rio de Janeiro?

    Regina Ftima C. F. Ferreira

    81

    Panorama atual da habitao na cidade do Rio de Janeiro

    Fernando Cavallieri

    86

    Poltica urbana e autogesto na produo das cidades brasileiras

    Luciana Corra do Lago

    94

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    Programa interdisciplinar de ormao de agentessociais e conselheiros municipais:

    Curso de capacitao e ormao de agentes sociais, lideranas

    comunitrias e conselheiros(as) municipais de habitao para a elaborao,monitoramento e acompanhamento do Plano Local de Habitao de

    Interesse Social

    ApresentaoO Programa Interdisciplinar de Formao de Agentes Sociais e Conselheiros

    Municipais desenvolvido pelo Observatrio das Metrpoles, desde 1999, sempre

    em parceria com organizaes no governamentais, preeituras e movimentospopulares. A sua origem est diretamente ligada ao engajamento de proessorese educadores populares comprometidos com a reorma urbana e a ampliao doscanais de participao e controle social sobre as polticas e programas pblicos.

    O Programa desenvolve-se, hoje, em vrias cidades do Brasil, atravs daRede Observatrio das Metrpoles e parceiros, privilegiando o enoque sobre aspolticas de desenvolvimento urbano e seus espaos institucionais de participao,tendo como ponto de partida o conceito do Direito Cidade.

    Fundado na concepo pauloreiriana de educao permanente, os cursos

    de ormao so espaos de trocas entre educandos e educadores, que tm comoreerncia a construo e o monitoramento de polticas e programas pblicosque revertam as proundas desigualdades sociais que marcam as cidades e asociedade brasileira.

    Dessa orma, o Programa Interdisciplinar busca trazer elementos quequaliquem a atuao de agentes sociais, lideranas e conselheiros nas eseraspblicas de gesto (especialmente, nos conselhos de gesto de polticas pblicas),bem como em processos participativos de planejamento das cidades.

    Com estes objetivos, no Estado do Rio de Janeiro vm sendo realizados,

    regularmente, desde 1999, especialmente nos municpios da Baixada Fluminense,os cursos de capacitao e ormao para conselheiros municipais, cujo ococentral o debate sobre Democracia, Participao Poltica e o Direito Cidade.

    Paralelamente, e de orma integrada, dierentes processos de ormao tmtido lugar abordando temticas como as do Oramento Municipal, dos PlanosDiretores, dos Planos de Saneamento e de Habitao de Interesse Social.

    Estes ltimos ganharam destaque nos ltimos anos, considerando osavanos ocorridos com a aprovao da Lei 11.124, em 2005, que estabeleceu

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    como obrigatria para a adeso de estados e municpios ao Sistema Nacional deHabitao de Interesse Social, a elaborao dos Planos Locais de Habitao deInteresse Social, o PLHIS.

    Assim, em sintonia com a demanda pela qualicao de agentes sociais,lideranas e conselheiros para a discusso dos planos locais de habitao deinteresse social, o Observatrio das Metrpoles IPPUR/UFRJ, em parceria coma Fundao Bento Rubio e a Ao Urbana e o undamental apoio da Pastoralde Favelas, realizou, em 2011, pela primeira vez na cidade do Rio de Janeiro, umcurso de ormao visando o processo de discusso do Plano Local de Habitaode Interesse Social, origem deste caderno didtico. O processo de elaborao doPLHIS/RJ vem sendo conduzido pela Fundao Bento Rubio, instituio comreconhecida experincia na temtica da moradia no Rio de Janeiro e compromissocom a reorma urbana e a justia social.

    O curso visa ornecer aos participantes instrumental para (1) a compreensomais ampla dos atores geradores das desigualdades de acesso moradia digna,com destaque para os programas habitacionais e a legislao urbana vigentes, (2) aleitura poltica dos interesses em disputa na cidade e das barreiras implementaodos instrumentos de democratizao do acesso moradia e cidade e (3) aormulao, pelos movimentos populares, de polticas e programas habitacionaisque respondam s necessidades e desejos dos segmentos sociais de baixa renda,e a denio de estratgias para aprovao e implementao dessas polticas.

    Neste caderno esto reunidos artigos que subsidiam o debate sobre o PlanoLocal de Habitao de Interesse Social, em processo de elaborao. Os textosesto organizados em mdulos. O primeiro mdulo Direito cidade e moradiadigna introduz o debate sobre as cidades e os desaos colocados para uma gestourbana baseada nos princpios da reorma urbana. O segundo mdulo, Polticahabitacional: nanciamentos e programas, aborda os principais programas dehabitao de interesse social. No terceiro: Polticas pblicas urbanas e polticahabitacional discute-se a necessidade de integrar a poltica habitacional comas demais polticas urbanas de saneamento ambiental, mobilidade urbana e,especialmente, com a poltica undiria e os instrumentos previstos no Estatuto daCidade que assegurem terra urbanizada para a habitao popular. No ltimo mduloPoltica habitacional: limites e possibilidades, a partir de um breve diagnsticoda cidade do Rio de Janeiro, so apontados limites e desaos para o PLHIS/RJ ediscutidas as solues que vm sendo gestadas por associaes e cooperativaspopulares, na direo da produo social da moradia de orma autogestionria,como uma alternativa mercantilizao da moradia e das cidades.

    Espera-se contribuir com este caderno para o debate sobre os Planos Locaisde Habitao de Interesse Social e o ortalecimento da atuao de associaes

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    comunitrias, runs e redes para a discusso, elaborao, avaliao e controle depolticas pblicas, na perspectiva da garantia do direito moradia digna e cidade.Por ltimo, espera-se que este possa contribuir, ainda que de orma singela, para oexerccio sistemtico e permanente de refexo sobre as questes que se reerem

    relao entre educao, cidade e democracia.

    Boa leitura!

    Regina Ftima C. F. Ferreira e Rosane Coreixas Biasotto

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    Desaos da questo urbana na perspectivado direito cidade1

    Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro2Orlando Alves dos Santos Junior3

    A cidade brasileira contempornea resulta da combinao de dois mecanismoscomplementares: a liberdade para os agentes capitalistas tratarem e negociarem acidade (em especial a moradia e o solo urbano) como mercadoria (ou seja, a livremercantilizao) e a perversa politica de tolerncia com todas as ormas de uso eapropriao do solo urbano (o que permitiu no somente as ocupaes ilegais das

    avelas e loteamentos irregulares, mas tambm as ormas ilegais de ocupao de

    reas nobres pelas classes mdias e pelas elites). O primeiro mecanismo permitiua aliana entre as oras que comandaram o projeto de desenvolvimento capitalistano Brasil: (i) o capital internacional; (ii) as raes locais da burguesia mercantilinseridas no complexo conormado pelo trip ligado produo imobiliria, s obras

    pblicas e concesso de servios pblicos; e (iii) o Estado. O Brasil urbano oidesenhado pela ao dessa coalizo mercantilizadora da cidade, tendo o Estadocomo principal maestro, seja protegendo os interesses da acumulao urbana(proveniente da produo da cidade) da concorrncia de outros circuitos, sejarealizando encomendas de construo de vultosas obras urbanas, ou ainda pela

    omisso em seu papel de planejador do crescimento urbano. Omisso que, almde servir mercantilizao da cidade, teve papel undamental na transormao doterritrio para receber a massa de trabalhadores expropriada do campo. Para se teruma ideia desse processo, entre 1950 e 1970, quase 39 milhes de pessoas migraramdo mundo rural e se transormaram em trabalhadores urbanos vulnerveis em razodo incompleto assalariamento e da precria propriedade da moradia autoconstruda.

    Nesse contexto, a inormalidade do trabalho e da produo da casa constituiu-seem poderoso instrumento de amortecimento dos confitos sociais associados aomodelo de expanso capitalista baseado na manuteno de elevada concentrao

    da riqueza e da renda.No por outra razo que pode-se alar da emergncia de uma questo urbanano Brasil, uma vez que a dinmica de ormao, crescimento e transormao das

    nossas cidades sintetiza duas questes nacionais cruciais: por um lado, a questo

    1. Esta uma verso do artigo Desaos da questo urbana, publicado no jornal Le Monde DiplomatiqueBrasil, edio de abril de 2011.

    2. Proessor titular do IPPUR/UFRJ e coordenador do INCT Observatrio das Metrpoles.

    3. Socilogo, doutor em planejamento urbano e regional, proessor adjunto do IPPUR/UFRJ e membro dacoordenao do INCT Observatrio das Metrpoles.

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    democrtica, traduzida na consolidao da cidadania ativa capaz de substituir acoalizo de interesses que sustentou o processo de acumulao urbana de orma

    desigual, por um regime poltico republicano capaz de assegurar a todos o direitode cidade, isto , o direito participao nos processos deliberativos que dizem

    respeito cidade e a adoo do universalismo de procedimentos como padro dedeliberao da coletividade urbana sobre seus destinos; por outro lado, a questodistributiva traduzida na quebra do controle excludente do acesso riqueza, renda es oportunidades geradas no (e pelo) uso e ocupao do solo urbano, assegurando a

    todos o direito cidade como riqueza social em contraposio a sua mercantilizao.So estas as questes que oram traduzidas em movimento social organizado emtorno da bandeira da reorma urbana e no arcabouo institucional denominadoEstatuto da Cidade. Os conhecidos e assustadores problemas das nossas cidadesdevem, portanto, ser entendidos como parte undamental da nossa questo nacional,pois os mecanismos que azem a cidade uncionar como mquina de acumulao

    de riqueza tambm so responsveis pela manuteno do Brasil como uma naoinacabada, como apontou Celso Furtado. Nesse sentido, poderamos tambm dizerque temos cidades inacabadas, pois estas so incapazes de mediar os confitos eintegrar, mesmo que parcialmente, as distintas classes e grupos sociais.

    Vivemos hoje um momento crucial de transormaes que coloca a

    necessidade de atualizar a questo urbana brasileira e traduzi-la em novos modelosde planejamento e gesto das nossas cidades. A acumulao urbana est sendorecongurada no padro clssico da modernizao-conservadora que preside destesempre a nossa incluso na expanso da economia-mundo. As nossas cidades estosendo includas nos circuitos mundiais que buscam novas ronteiras de expansodiante da permanente crise de sobreacumulao do capitalismo nanceirizado. E o

    Brasil aparece com atrativas ronteiras urbanas para o capital nanceiro exatamenteem razo do ciclo de prosperidade e estabilidade que atravessamos, combinadascom a existncia de ativos urbanos (imveis e inraestrutura) passveis de seremespoliados, ou seja, comprados a preos desvalorizados, e integrados aos circuitosde valorizao nanceira internacionalizados. Podemos observar em nossas

    cidades, com eeito, um novo ciclo de mercantilizao que combina as conhecidasprticas de acumulao urbana baseada na ao do capital mercantil local com asnovas prticas empreendidas por uma nova coalizao de interesses urbanos nadireo da sua transormao em mercadoria (commodity). A expanso e crescentehegemonia da viso do Brasil como mercado conspiram contra a viso do Brasilcomo sociedade urbana, democrtica, justa e sustentvel.

    Apesar da insero da acumulao urbana nos circuitos nanceiros globalizadosdemandar novos padres de gesto do territrio, a anlise do que vem ocorrendoem muitas das nossas cidades indica, porm, a manuteno parcial da lgica da

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    modernizao-conservadora, resultando em uma governana empreendedoristacom traos muito particulares em relao a outros pases que vm vivenciando

    processos similares.Essa governana pode ser melhor compreendida a partir da identicao

    esquemtica de quatro lgicas polticas particularistas que coexistem na organizaoe no uncionamento da administrao urbana das cidades, em razo da ragilidadedas instituies de gesto democrtica, bloqueando, como consequncia, a adoodos necessrios instrumentos de planejamento e gesto pblica decorrentes da

    armao do direito cidade e da lgica do universalismo de procedimentos. Estaslgicas esquartejam a mquina pblica em vrios centros de deciso que uncionamsegundo os interesses que comandam cada uma delas. So elas:

    a) o clientelismo urbano que trouxe para as modernas cidades brasileiras opadro rural de privatizao do poder local, to bem transcrito por Vitor NunesLeal na expresso coronelismo, enxada e voto, mas que nas condies urbanas

    transormou-se em assistencialismo, carncia e voto. Trata-se da lgica que estna base da representao poltica no Poder Legislativo Municipal, mas que precisacontrolar parte da mquina administrativa para azer a mediao do acesso pelapopulao ao poder pblico. O clientelismo urbano alimentado por prticasperversas de proteo de uma srie de ilegalidades urbanas que atendem a interesses

    dos circuitos da economia subterrnea das nossas cidades (comrcio ambulante,vans etc.) e a necessidades de acessibilidade da populao s condies urbanasde vida, dando nascimento s nossas avelas e s entidades lantrpicas que,muitas vezes travestidas de ONGs, usam recursos pblicos para prestar, privadae seletivamente, servios coletivos que deveriam ser providos pelas preeiturasmunicipais. Atualmente, esta lgica vem se recongurando pela presena, nas

    Cmaras de Vereadores, de representantes dos interesses da criminalidade, como caso do enmeno das milcias no Rio de Janeiro.

    b) o patrimonialismo urbano, undado na coalizo mercantil da acumulaourbana, representados pelas empreiteiras de obras pblicas, concessionrias dosservios pblicos, entre elas o poderoso setor de transportes coletivos, e os do

    mercado imobilirio;c) o corporativismo urbano traduzido na presena dos segmentos organizados

    da sociedade civil nas arenas de participao abertas pela Constituio de 1988,cuja promessa era a constituio de um padro republicano de gesto da cidadeque, se implantado, criaria as condies para o surgimento de uma gesto urbanaundada no universalismo de procedimento. Nos municpios onde a correlao

    de oras levou ao comando das preeituras coalizes de oras comprometidascom o projeto de constituio de uma verdadeira esera pblica local, vericam-se processos de reverso desse projeto decorrentes, de um lado, do baixo ndice

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    de associativismo vigente na sociedade cabe registrar que, segundo dados doIBGE, apenas 27% da populao adulta integra as ormas de organizao cvica

    como sindicato, associaes prossionais, partidos, entidades de bairro etc. e,de outro lado, pela ragmentao e consequente enraquecimento dos movimentos

    sociais nas cidades enquanto sujeito coletivo articulado em torno de um projeto.Estes dois atos vm bloqueando a constituio de uma aliana entre o escassomundo organizado civicamente e o vasto segmento da populao urbana quese mobiliza politicamente apenas de maneira pontual e temporria. O resultado

    que, muitas vezes, as experincias participativas resultam no atendimento dosinteresses dos segmentos organizados, sem orar a adoo de um universalismode procedimentos, pressuposto da constituio de uma esera democrtica e deuma burocracia planejadora.

    d) por m, o empresariamento urbano, que se constitui na lgica emergenteimpulsionada pelo surgimento do complexo circuito internacional de acumulao

    e dos agentes econmicos e polticos organizados em torno da transormaodas cidades em projetos especulativos undados na parceria pblico-privado,conorme descreveu David Harvey. Integra este circuito uma mirade de interesses,protagonizados pelas empresas de consultoria (em projetos, pesquisas e arquitetura),empresas de produo e consumo dos servios tursticos, empresas bancrias e

    nanceiras especializadas no crdito imobilirio, empresas de promoo de eventos,entre outras. Tais interesses tm como correspondncia local as novas elites locaisportadoras das ideologias liberais que buscam recursos e undamentos de legitimidadeao projeto de competio urbana. As novas elites buscam a representao polticaatravs do uso das tcnicas do marketing urbano, traduzido em obras exemplaresda nova cidade, o que acilitado pela ragilidade dos partidos polticos. A poltica

    urbana passa a centralizar-se na atrao de mdios e megaeventos e na realizaode investimentos de renovao de reas urbanas degradadas, prioridades quepermitem legitimar tais elites e construir as alianas com os interesses do complexointernacional empreendedorista. Na maioria dos casos, esta orientao se materializana constituio de bolses de gerncia tcnica, diretamente vinculados aos chees

    do executivo e compostos por pessoas recrutadas ora do setor pblico. Portanto,a lgica do empresariamento urbano, que se pretende mais eciente, implica noabandono e mesmo desvalorizao da organizao burocrtica entendida comoum corpo tcnico vinculado ao universalismo de procedimento e subordinada aoprocesso democrtico de deciso.

    Essa lgica lidera e hegemoniza a nova coalizo urbana, integrada tambm

    por parcelas das demais lgicas, o clientelismo, o patrimonialismo e corporativismo,resultando em um padro de governana urbana bastante peculiar, onde oplanejamento, a regulao e a rotina das aes so substitudas por um padro

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    de interveno por exceo, com os rgos da administrao pblica e canaisinstitucionais de participao crescentemente ragilizados.

    As concluses da anlise dos planos diretores elaborados aps o Estatutodas Cidades, realizada pela Rede de Avaliao dos Planos Diretores Participativos,

    parece conrmar essa hiptese. De uma orma geral, a pesquisa demonstra ageneralizada incorporao dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade pelosmunicpios, o que permite intuir que a agenda e a propostas da reorma urbana orameetivamente disseminadas na sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, percebe-se

    que oram poucos os planos que avanaram no adequado rebatimento territorial dediretrizes e instrumentos vinculados armao da uno social da propriedade,o que evidencia, em diversos casos, o descolamento dos propsitos dos planoscom o territrio municipal e a ragilidade das estratgias de desenvolvimento urbanoestabelecidas. Da mesma orma, em linhas gerais, percebe-se que os PlanosDiretores estabelecem denies, diretrizes e objetivos relacionados poltica de

    habitao, poltica de saneamento ambiental, poltica de mobilidade, polticaambiental e gesto democrtica, porm sem incorporar os elementos necessrios eetividade dos instrumentos adotados. Em sntese, apesar de poder-se constataravanos no discurso relativo ao direito cidade, este no se traduz na deniode metas e estratgias eetivas para o enrentamento da problemtica urbana das

    cidades pesquisadas.Para enrentar esse novo contexto de aproundamento da mercantilizao

    da cidade contempornea, cremos que necessrio, antes de tudo, atualizar oiderio do direito cidade como parte de uma nova utopia dialtica em construo,emancipatria e ps-capitalista, materializada em um novo projeto de cidades ede organizao da vida social, e expressa tanto na atualizao do programa e da

    agenda da reorma urbana como na promoo de prticas e polticas socioterritoriaisde armao do direito cidade.

    Essa atualizao da agenda da reorma urbana, expressando o ideriodo direito cidade, deve ser capaz de propor mecanismos de um novo tipo decoeso social baseado na negao da segregao social, na promoo da uno

    social da cidade e da propriedade, na gesto democrtica, e na diuso de umanova cultura social, territorial e ambiental que promova padres de sociabilidadecom base na solidariedade, na construo de identidades e na representao deinteresses coletivos. Entre esses mecanismos destacamos a criao de eseraspblicas eetivamente democrticas de gesto das polticas pblicas (tais como osconselhos das cidades) que ultrapassem os limites das instituies da democracia

    representativa liberal e possibilitem a visibilizao, interao, confito e negociaoentre os dierentes agentes sociais e entre esses e o poder pblico, de orma que atomada de decises seja resultado desse confito e negociao.

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    Ao mesmo tempo, essa agenda exige um agente social capaz de expressaresse projeto e esse programa. Com eeito, o movimento da reorma urbana est

    desaado a intervir programaticamente na cidade na orma de uma rebeldia criativa,buscando promover universos sociais nos quais possam surgir e se desenvolver

    prticas educativas, polticas pblicas e novas linguagens culturais geradoras dadesmercantilizao da cidade e da promoo do direito cidade, buscando romper,desta orma, com a hegemonia do neoliberalismo empreendedorista.

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    Vazios urbanos e uno socialda propriedade

    Adauto Lucio Cardoso1

    Histrico

    O debate sobre os vazios urbanos aparece no Brasil na dcada de 1970,quando anlises sobre o processo de urbanizao capitalista2 mostravam como ascidades cresciam em direo s suas perierias, deixando nos interstcios dessecrescimento terrenos vagos, mantidos ora de mercado espera da valorizaoimobiliria. Documentos de planejamento da poca mostravam que cerca de 40% damancha urbana da Grande So Paulo seriam compostos de reas vazias3. Essa orma

    de especulao estava associada s ormas de interveno do Estado no urbano,que seguiam (e no precediam) o parcelamento e a ocupao do solo. Ao instalar asinraestruturas necessrias s reas mais periricas, j ocupadas, o poder pblicoacabava por valorizar indiscriminadamente as terras vazias que haviam permanecidoentre as reas mais centrais e a ronteira da expanso urbana. Esse processo era

    apontado como disuncional ou perverso, a partir de trs argumentos:

    porque mantinha articialmente grandes extenses de terra fora do mercado,

    pressionando para cima o preo dos terrenos em oerta;

    porque implicava em um maior custo de investimento para a instalao dasinraestruturas, nas reas eetivamente ocupadas; porque o investimento pblico em infraestrutura resultava na valorizao de

    reas privadas.

    Na dcada de 1970, como tentativa de resposta a essa avaliao, o ConselhoNacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU) incluiu, entre os novos instrumentospropostos no projeto de lei de desenvolvimento urbano, o IPTU progressivo, a ser

    aplicado sobre os terrenos vazios. importante, no entanto, recordar que, na poca, o

    CNDU avaliava que haveria um confito entre os proprietrios undirios (especuladores)interessados em maximizar a valorizao de suas terras e o setor da construo civilque, tendo seu lucro baseado na atividade produtiva, necessitaria da ampliao daoerta de terra para viabilizar a sua produo. No entanto, como mostraram pesquisas

    1. Arquiteto, doutor em planejamento urbano e regional, proessor do IPPUR/UFRJ e pesquisador do INCTObservatrio das Metrpoles.

    2. Conorme, entre outros, SINGER (1977).

    3. SILVA (1999)

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    desenvolvidas nos anos 80, os capitais envolvidos na produo de moradias tinhamo lucro sobre as operaes undirias (e no sobre a atividade construtiva) como o

    componente central do lucro imobilirio. Assim, no havia interesse, pelo lado docapital, no controle sobre os processos especulativos que, como cou claro durante

    os anos em que o BNH oi o responsvel pela conduo da poltica habitacional, oramalimentados pelas atividades de produo habitacional capitalista e pelo nanciamentopblico. Segundo SILVA (1999:2):

    As hipteses sobre a relao entre um controle dos vazios e a maior oerta

    habitacional no esto apoiadas em anlises sucientemente comprovadas. Pelo

    contrrio, sabe-se que, no perodo marcado pelos nanciamentos do SFH, a atividade

    imobiliria obteve lucros extraordinrios, possibilitados pela especulao com os

    terrenos utilizados e o descontrole dos valores nanciados. No havia controle sobre os

    valores de repasse dos terrenos vinculados aos nanciamentos habitacionais e sobre a

    percentagem por eles representada no custo dos empreendimentos. Paralelamente, a

    prpria demanda causada pela abundncia de nanciamento habitacional determinou

    ortemente a alta de preos undirios. Mas nada indica que a produo com recursos

    do SFH poderia ter sido maior ou de menor preo, se tivesse contado com instrumentos

    para aumentar a oerta de terrenos vazios. Por outro lado, o setor imobilirio, amplamente

    avorecido pela poltica do BNH, no utilizou seu poder para azer aprovar instrumentos

    contra a reteno de terrenos, demonstrando no necessitar deles.

    A partir do debate instaurado pela proposta ormulada pelo CNDU, o temachegou at Constituio de 1988, que reconheceu ormalmente a uno social dapropriedade. Esse tema oi ampliado pelo Estatuto das Cidades (2001) que deniu as

    diretrizes gerais para a poltica urbana, incluindo, entre outros, a

    garantia do direito a cidades sustentveis, entendido como o direito terra

    urbana, moradia, ao saneamento ambiental, inraestrutura urbana, ao transporte

    e aos servios pblicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e uturas geraes;

    a ordenao e controle do uso do solo, de orma a evitar (...) a reteno

    especulativa de imvel urbano, que resulte na sua subutilizao ou no utilizao; (...) a

    justa distribuio dos benecios e nus decorrentes do processo de urbanizao; (...) a

    recuperao dos investimentos do poder pblico de que tenha resultado a valorizao

    de imveis urbanos.

    Existe, portanto, reconhecimento legal da condenao s prticas especulativas,que mantm margem do desenvolvimento urbano reas espera de valorizao. O

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    texto da Constituio, no entanto, vai alm das consideraes vigentes na poca doCNDU ao articular explicitamente a utilizao da terra ao benecio social, ou seja,

    armando que no se trata apenas de ocupar a terra vazia, ou de buscar alternativaspara viabilizar o mercado, mas sim de dar substncia sua uno social atravs

    da oerta de moradias populares ou de servios e equipamentos a elas destinados,garantindo assim o direito moradia e s cidades sustentveis.Todavia, durante o longo perodo de maturao deste debate, desde a

    proposta do CNDU at a promulgao do Estatuto das Cidades, muita coisa mudou

    nas cidades brasileiras. Uma dessas mudanas oi o progressivo adensamento damalha, com ocupao dos lotes vazios, ao mesmo tempo em que o ritmo aceleradoque a ocupao peririca havia apresentado nos anos 60 e 70 arreeceu. SILVAmostra que, em 1989, So Paulo apresentava 25% de lotes vazios, em relaoao total de rea de quadras. Esse percentual se reduz, em 1997, para 17%. Osnmeros analisados mostram, ainda, uma utilizao mais intensa das grandes

    glebas para a realizao de empreendimentos de maior porte, em substituio sprticas mais tradicionais de remembramento de terrenos menores (construdos ouno). Analisando as prticas da incorporao imobiliria em So Paulo na dcada de1990, SILVA (1999) mostra que:

    A ocupao dos vazios urbanos pelo mercado ormal mesmo os situados nos

    anis intermedirio e peririco no tem signicado uma ampliao do atendimento

    s aixas de menor renda. Como regra geral, o preenchimento de vazios pelo mercado

    se az com construes de padro (e preo) superior ao dos bairros, infuindo na

    valorizao geral. A soluo habitacional para a populao mais pobre se d cada vez

    mais por superocupao de lotes j existentes e das avelas.

    Por outro lado, a ocupao de vazios com novos conjuntos para classe mdia

    ocorre paralelamente ao esvaziamento de edicios em bom estado nas reas mais bem

    dotadas de inraestrutura e servios.

    Pode-se concluir, a partir das observaes acima, que o mercado, pelo me-

    nos no caso de So Paulo, a partir de um certo patamar de expanso peririca,passou a ocupar os vazios, aproveitando-se das glebas maiores para viabilizar em-preendimentos de maior porte, em operaes imobilirias estruturadas sobre estra-tgias de sobrevalorizao a partir da transormao social (elitizao) das reas emque atua4. Isso pode signicar, por um lado, que eventuais prticas especulativasde reteno de terras pelos proprietrios oram bem sucedidas, mas pode signicar

    tambm que uma parcela dessa valorizao oi apropriada pelos capitais imobili-

    4. Para uma discusso mais aproundada sobre as estratgias de buscas de sobrelucros praticadas pelocapital imobilirio, ver RIBEIRO (1997).

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    rios. Outra consequncia importante que, com isso, reduziram-se os vazios pas-sveis de ocupao para viabilizar polticas de ampliao do acesso terra para as

    camadas de baixa renda.Como j anuncia a citao acima, alm da ocupao de terrenos vazios, o

    processo de desenvolvimento urbano na maioria das grandes cidades brasileirasnas ltimas dcadas oi marcado pelo deslocamento dos centros tradicionais e pelosurgimento de novas centralidades. Com isso o mercado imobilirio abriu novasronteiras de valorizao, principalmente nos setores de escritrio e de lojas, mas

    tambm no setor de empreendimentos residenciais para as classes alta e mdia 5.A produo desses novos espaos, muitas vezes amparada em intervenes doEstado, deixou para trs um conjunto de territrios subocupados, ou que passam aser predominantemente ocupados por populaes de baixa renda, seja atravs deatividades econmicas de cunho popular, seja atravs de processos de encortiamentodos prdios existentes. Esses territrios logo passam a ser denominados como

    degradados, o que corresponde, em parte, ao abandono a que so relegados os prdiosdesocupados, que passam a no contar mais com investimentos de manutenopelos seus proprietrios, mas que tambm corresponde a uma viso negativa sobrea populao que passa a usar preerencialmente este territrio. A resposta do poderpblico a esse processo, se d atravs de um conjunto de intervenes que passaram

    a ser denominadas como revitalizao, regenerao, reabilitao ou requalicaourbanas. importante refetir um pouco sobre essas denominaes.

    Revitalizao, segundo o dicionrio6, signica dar nova vida a; revigorar;vitalizar. Ou seja, trata-se de levar vida (ou vigor) a algo morto ou sem ora.Requalicar signica trazer de volta qualidades perdidas. Qualidade propriedade,atributo ou condio das coisas ou das pessoas capaz de distingui-las das outras

    e de lhes determinar a natureza, ou seja, algo que dene a peculiaridade de cadacoisa. Ou ainda, dote, dom, virtude. Tratar-se-ia, nesse caso, portanto, de recuperara peculiaridade de cada territrio ou de recuperar as suas caractersticas maispositivas (dotes, dons ou virtudes). Reabilitao signica recobramento de crdito,de estima, ou do bom conceito perante a sociedade, ou restaurao normalidade,

    ou ao mais prximo possvel dela, de orma e de uno alteradas por algum tipo deleso ou ainda, j incorporando o seu sentido urbanstico o conjunto de medidasque visam a restituir a um imvel ou a um complexo urbanstico a capacidade deutilizao. Capacidade de utilizao que pressuporia uma restaurao de um bomconceito perante a sociedade ou a recuperao da normalidade do que oi lesionado.

    5. So caractersticos deste perodo: os empreendimentos comerciais tipo shopping-center, os conjuntos detorres para escritrios, como no caso da renovao da Av. guas Espraiadas, em So Paulo, e a produode condomnios echados em novos bairros de elite.

    6. Novo Aurlio Dicionrio da Lngua Portuguesa.

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    Todas essas denies trazem implicaes simblicas que no devem serdesconsideradas. Os espaos objeto de interveno so vistos como mortos, sem

    vigor, sem identidade, sem virtudes, mal vistos pela sociedade, anormaisou subnormais. No por acaso essas reas so tratadas como degradadas ou

    abandonadas. Cabe, nesse sentido, uma refexo sobre o que eram essas reasrenovadas, revitalizadas, requalicadas ou reabilitadas, antes da sua interveno equal o resultado desse processo.

    Reabilitao urbana em reas centrais o debate internacional

    O debate sobre a experincia internacional de reabilitao urbana das reascentrais marcado pela questo do enobrecimento (gentrication)7. Trata-se dasubstituio da populao residente ou que utilizava uma determinada rea da cidade,a partir de intervenes do mercado ou do poder pblico. Ressalta-se que, nos pases

    centrais, com a nova atratividade exercida pelas edicaes antigas existentes nasreas centrais e que eram, em muitos casos, moradia de camadas sociais maispobres, as novas camadas superiores passaram a procurar e valorizar estes espaos,provocando a expulso dos mais pobres.

    A transormao da rea central de Nova Iorque paradigmtica8. Ela tem incio

    nos anos 60, com a ocupao de reas industriais decadentes na regio do Soho oslots por artistas em busca de espao, baixos aluguis, moradia junto ao trabalhoetc. Conorme cresceu o nmero de artistas, cresceu tambm proporcionalmente o debares e cas, gerando um processo que acentuou a expulso da pequena indstria,distribuidores e atacadistas remanescentes. Esse processo gera ainda um progressivoaumento nos preos de aluguis e uma revalorizao simblica da rea, levando a que

    seja objeto de uma nova demanda nos anos 80: a dosyuppies.Outra rea, ainda em Nova Iorque, objeto de renovao, o Upper West Side.

    Espao ocupado por imigrantes porto-riquenhos aps a Segunda Guerra Mundial, objeto de investimentos pblicos nos anos 60, para ocupao por amlias debaixa e mdia renda. Nos anos 80 a rea demandada pelos novos prossionais,

    tambm atrados pela revalorizao simblica do espao construdo -brownhouses erowhouses - e pela proximidade ao local de trabalho.

    O caso do Lower East Side tambm signicativo. Habitado por hippies eesquerdistas nos anos 60 e por tracantes na dcada seguinte, incorporado na grandeestratgia de transormao de Manhattan, orquestrada pelos grupos imobilirios enanciada pela preeitura da cidade, nos anos 809. Transormada em East Village,

    7. Ver SMITH (2006).

    8. WALLOK (1993).

    9. Sobre a estratgia de transormao de Nova Iorque em uma cidade global, a partir da transormao darea central pela produo de novos espaos de escritrios e habitao de luxo, ver tambm FICHT, R. (1993).

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    a rea concentrou alto nmero de galerias de arte, clubes noturnos e restaurantes,atraindo assim uma demanda de outro tipo.

    Os exemplos acima citados, que poderiam ser reproduzidos tambm paraoutras cidades, denotam algumas tendncias bsicas. A renovao de reas centrais

    se d pela substituio de reas industriais, aetadas pela reestruturao econmica

    10

    ,por moradias, atravs de uma transormao de uso e de uma converso espacialque gera uma requalicao simblica de toda a rea. Este mesmo processo podese dar com a remoo - induzida ou espontnea - de populaes empobrecidas,

    moradoras de reas residenciais antigas. Essa transormao, todavia, tem doispressupostos: uma interveno pblica e uma requalicao simblica destesespaos. A renovao das docklands, em Londres, ou de Battery Park, em NovaIorque, sintetiza estes dois pressupostos.

    Alm das reas centrais, outros bairros passam tambm por importantesmodicaes, a partir das mudanas que se operam na estruturao econmica das

    cidades, com o deslocamento ou a perda de unes industriais e o consequenteabandono de galpes e outras construes de mesmo tipo. Tambm a essas reasso aplicadas as denominaes acima descritas.

    A nomeao desses espaos de moradia popular ou de atividades queenvolvem trabalho manual ou de baixa qualicao como degradadas, mortas,

    sem vigor, sem identidade, sem virtudes, mal vistas pela sociedade, anormaisou subnormais, traz um trao de preconceito contra o que popular e traduz naverdade com preciso o projeto de enobrecimento que implica a expulso dos antigosmoradores e sua substituio pelas novas elites ou pelas atividades de consumo porelas valorizadas galerias de arte, cas, livrarias etc. exemplo sintomtico desseprocesso, no caso brasileiro, a renovao da rea do Pelourinho, em Salvador (GOMES,

    19950).

    As ocupaes e luta pela moradia

    No entanto, uma outra mudana importante ocorre tambm nas cidades

    brasileiras, principalmente a partir da dcada de 1990, que veio requalicar o debatesobre vazios e sobre a degradao dos centros. Trata-se do movimento de ocupaode prdios em reas centrais, que trouxe para o centro o debate sobre a ausncia demoradia e sobre os problemas recorrentes da habitao peririca.

    10. FITCH (1993) sugere que a decadncia industrial no apenas ruto da reestruturao econmica,. FITCH (1993) sugere que a decadncia industrial no apenas ruto da reestruturao econmica,mas tambm resultado da alta de apoio institucional e governamental a processos de modernizaodesse parque industrial, como sinal da opo pelo modelo de desenvolvimento imobilirio ancorado emlanamentos comerciais e residenciais de alta renda.

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    Uma avaliao mostra que, em 2000, haviam 14 prdios ocupados na reacentral de So Paulo, abrigando cerca de 2.000 amlias. Esse nmero sempre

    mutvel, j que muitas das ocupaes so desalojadas por despejos judiciais. Existemcasos de resistncia mais duradoura11 e de ocupaes que conseguiram conquistar

    a regularizao e nanciamento para obras de adequao dos prdios ocupados snecessidades das amlias residentes.O movimento comeou em So Paulo, a partir da ocupao de prdios e da luta

    da populao residente em cortios nas reas centrais contra a remoo. Segundo

    BARBOSA e PITA (s/ data) a primeira ocupao da Alameda Nothman (Casaro dosSantos Dumont) oi em 1983 e em 1986, ainda na administrao Jnio Quadros,centenas de amlias encortiadas oram removidas do Monumento dos Arcos na

    Avenida 23 de Maio de So Paulo, apesar da resistncia. A partir da, segundoBARBOSA e PITA (s/ data):

    Em 15 de junho de 1991 a Arquidiocese de So Paulo organizou o primeiro

    encontro de Cortios da Pastoral da Moradia, deste Encontro surge o Movimento

    Unicado de Cortios (MUC) com apoio do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos.

    Este movimento se transorma na Unicao das Lutas de Cortios (ULC), matriz de

    todos os Movimentos de Moradia da regio Central: Movimento de Moradia do Centro

    (MMC), Frum de Cortios e Sem Teto de So Paulo - Movimento Sem Teto do Centro

    (MSTC).

    A luta pela habitao popular no centro de So Paulo ganhou ora com osprojetos desenvolvidos durante a gesto de Luiza Erundina rente da preeitura,que instauraram uma nova maneira de pensar o cortio, a partir do princpio da

    manuteno daquela populao na rea central, com garantia, por outro lado, demelhoria signicativa das condies de habitabilidade dos prdios. O programa deregularizao e melhoramentos de cortios desenvolvido em So Paulo, virou modelopara o Brasil, tendo se desenvolvido uma iniciativa semelhante, porm de menorescala, no Rio de Janeiro12.

    A partir da criao dos movimentos e do seu ortalecimento durante a gestoErundina, as prticas de ocupao de prdios ganham ora, trazendo para a agendapblica a questo da carncia de moradia e do enorme desperdcio social representadopelo parque imobilirio sem utilizao na rea central. O movimento, nascido em SoPaulo, logo se expande para outras cidades do pas:

    11. No Rio, um dos exemplos mais bem-sucedidos o da ocupao Chiquinha Gonzaga, na Central doBrasil, que completou dois anos no ltimo dia 23. No local, no endereo de um prdio pertencente aoINCRA, esto abrigadas 68 amlias, lutando para obter legalmente a cesso do imvel. Outro exemplo aocupao Zumbi dos Palmares, na Praa Mau, ocorrida em 2005.

    12. Trata-se do programa Novas Alternativas, responsvel pela reorma de dois casares tombados na rea. Trata-se do programa Novas Alternativas, responsvel pela reorma de dois casares tombados na reacentral da cidade do Rio de Janeiro.

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    A ocupao do prdio do INSS em 2001 em Recie; a ocupao do prdio do

    Hospital Crdio-Minas em Belo Horizonte, em 2003; a ocupao do prdio do INSS

    em Porto Alegre em 2005; as ocupaes dos Sem Teto do Rio de Janeiro; as aes

    de resistncia dos moradores na restaurao do Pelourinho em Salvador, e a luta

    contra os despejos em Alcntara e So Luis, so alguns exemplos de como esta lutano apenas local e pode at sob alguns aspectos ter sua matriz organizativa na

    cidade de So Paulo, mas hoje, sem dvida, tem alcance nacional.13

    Essa realidade, tematizada politicamente pelos movimentos de moradia, veio ase ortalecer com a divulgao dos dados do Dcit Habitacional, pela Fundao JooPinheiro que, utilizando dados sobre imveis vagos disponibilizados pelo IBGE, mostrouque o estoque imobilirio sem utilizao seria suciente para abrigar a populaoem situao de dcit habitacional. Anlises especcas sobre a rea central de SoPaulo mostra que os imveis residenciais vazios chegam a 12% do parque residencial

    existente na rea central, enquanto os comerciais chegam a 20% (BONFIM, 2005).A mesma pesquisa, interrogando os proprietrios desses imveis, mostrou que aexpectativa de recuperao dos valores imobilirios anteriores permanece, ortalecidapelos anncios sobre a interveno do poder pblico na recuperao, regeneraoou requalicao destes bairros. Essa expectativa se traduz em aumento de preo

    para venda ou aluguel e em manuteno do imvel ora do mercado espera davalorizao. Ou seja, independentemente da no existncia de mercados solvveispara esta oerta, os preos mantm-se acima das possibilidades das camadasmais desavorecidas da populao, para quem a moradia no Centro se revestiria devantagens de acessibilidade e de ganhos de qualidade de vida indubitveis.

    Concluses

    A questo da ocupao socialmente responsvel dos vazios urbanos entrouortemente na agenda poltica da administrao das cidades brasileiras com aConstituio de 1988 e, mais importante, com o Estatuto da Cidade, em 2001. No

    entanto, muita coisa mudou nas cidades brasileiras entre as primeiras propostas, nadcada de 1970, e as possibilidades concretas de interveno que se desenham hoje.Nesse sentido, cabem algumas refexes, mais como propostas para uma agenda depesquisa e refexo que possa orientar os atores sociais nas suas aes.

    Em primeiro lugar, em muitas cidades j no parece ser realidade a ideia, vigentenos anos 70, de vastas extenses de terra inraestruturada e desocupada espera da

    valorizao. Nossas cidades so hoje mais densas e compactas do que eram nosanos 70, com a reduo do ritmo da expanso peririca e com o aproveitamento

    13. BARBOSA e PITA (s/ data).. BARBOSA e PITA (s/ data).

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    de oportunidades de valorizao que se abriram com o deslocamento das ronteirasda atuao do capital imobilirio em relao aos mercados de comrcio, servios e

    residncias de mdia e alta renda.Nesse sentido, hoje mais importante do que nunca que se qualiquem os

    terrenos vazios, em uno da sua situao real de disponibilidade jurdica e depossibilidades sicas para ocupao. Uma boa parte destes vazios, por exemplo, podeser ormada por lotes de pequenas dimenses, de pequenos proprietrios (de rendabaixa ou mdia baixa) que, alm de serrem pouco adequados para pensarmos uma

    ampliao eetiva da oerta de moradias, no se constituem exatamente como imveispara especulao, mas como patrimnio de camadas populares ou de camadasmdias empobrecidas. Existem ainda muitas reas com problemas de titularidade

    jurdica ou submetidas e regimes institucionais especcos e, portanto, inadequadaspara ocupao.

    H que se considerar ainda, nas propostas de ocupao de vazios que muitos

    bairros j esto com nveis de densidade muito altos o que d aos vazios existentes umpapel importante na manuteno de uma certa qualidade de vida local. Nesse sentido,estas reas cumpririam muito melhor a sua uno social se ossem destinadas aespaos livres e reas de uso pblico, do que se utilizadas para moradia.

    Outra mudana sobre a qual cabe refetir que todo o debate sobre vazios

    tinha como horizonte terrenos livres de construo e no exatamente prdios inteirosdesocupados. Assim, no muito claro ainda se os instrumentos disponibilizadospelo Estatuto das Cidades nos permitem atuar com ecincia na ocupao dessesprdios. Uma situao peculiar, neste sentido, diz respeito aos galpes abandonadosque j esto sendo ocupados, por iniciativa da populao, para ns de moradia,congurando situaes de risco e insalubridade alarmantes14. Trata-se, ao mesmo

    tempo, de reas extensas e que poderiam ser eetivamente aproveitadas, dentro deum projeto de recuperao adequado.

    A elaborao recente dos Planos Diretores na grande maioria das cidadesbrasileiras certamente trouxe novas inormaes sobre o tema dos vazios e apossibilidade de que se comece a montar um painel mais amplo sobre o assunto, ao

    invs de carmos ainda em torno de estudos de caso e de inormaes de naturezae grau de proundidade dierenciados para cada realidade. Trata-se de um desaoque envolve no apenas os pesquisadores da rea, mas todos aqueles interessadosem reconstruir nossas cidades segundo os valores da igualdade, da democracia e da

    justia social.

    14. Essa situao aparece com clareza na cidade do Rio de Janeiro, principalmente na regio do entorno da. Essa situao aparece com clareza na cidade do Rio de Janeiro, principalmente na regio do entorno daAv. Brasil que passou por intenso processo de desindustrializao.

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    Bibliograa

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    Capacitao em Desenvolvimento de Projetos Urbanos de Interesse Social. SoPaulo: LABHAB FAUUSP, s/ data. Disponvel em http://www.au.usp.br/depprojeto/labhab/index.html, consultado em 20/07/2008.

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    Challenges and Opportunities. Rio de Janeiro, 26-30 abril 1999.SINGER, Paul. Economia Poltica da Urbanizao. So Paulo: Brasiliense/

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    Cit: perspectives comparatives (LHarmattan, Paris).

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    Direito moradia e a questo ambiental

    Suy Quintslr1

    O objetivo deste texto refetir sobre a relao entre a questo ambiental e aquesto urbana, com enoque nos confitos entre o direito moradia e a preservaoambiental nas cidades. Para tanto, utilizando a contribuio de diversos autores, ele

    est organizado em trs partes. Na primeira, alamos do surgimento da preocupaocom o meio ambiente no perodo moderno e sobre como o discurso ambiental ganhouprogressiva legitimidade nos dias atuais; em seguida, discutimos a ambientalizaodos confitos urbanos, recorrendo ao conceito de confito ambiental, tal qualormulado por Acselrad; por m, na ltima sesso, azemos uma breve apresentao

    dos instrumentos presentes na legislao ambiental com oco naqueles aplicveiss reas urbanas.

    1. O surgimento da preocupao com o meio ambiente no perodo moderno

    Segundo diversos autores, o preservacionismo surgiu no perodo moderno,

    sendo ruto de um processo de revalorizao da natureza pela sociedade ocidentalque teve incio neste perodo na Europa. A valorizao do mundo natural no sdata do perodo moderno como tambm ruto das transormaes intrnsecas

    modernidade, entre elas a superpopulao das cidades, a poluio gerada pelacrescente atividade industrial, o aumento do barulho e uma maior separao entre ocampo e a cidade.

    O reconhecimento de que a atividade humana ocasionou a extino de inmerasespcies criou tambm um sentimento de responsabilidade em relao ao resto dacriao divina, levando ao surgimento de uma srie de restries legais ao extermnio deanimais. Neste perodo, at mesmo o direito humano a matar animais para se alimentaroi contestado pelo vegetarianismo como um ato cruel e abominvel (THOMAS, 1983).

    O novo interesse pela natureza oi se convertendo em admirao esttica e estima

    pelo ambiente selvagem, onde os habitantes da cidade podiam buscar renovaoespiritual. Em ns do sculo XVIII, o apreo pela natureza, e particularmente pelanatureza selvagem, se convertera numa espcie de ato religioso. A natureza no eras bela; era moralmente benca (ibid, 1983, p. 309). Da mesma maneira, o habitantedo campo passou a ser visto como moralmente superior ao morador da cidade.

    Tal pensamento oi infuenciado pela obra e pensamento de Rousseau, paraquem o homem primitivo, vivendo em estado natural, isento de maldade por no

    1. Biloga (UFRJ), mestre em Cincia Ambiental (PGCA-UFF), educadora da Ong Ao Urbana.

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    conhecer os vcios e mazelas que surgiram com a sociedade civil.Como destacado por Keith Thomas (1983), o desenvolvimento industrial e

    tecnolgico ocorrido durante o perodo moderno ez surgir, por um lado, uma srie deconortos e comodidades para a populao, por outro, levou ao surgimento de uma

    nova sensibilidade em relao ao mundo natural que serviu de base ao movimentopreservacionista de ns do sculo XIX e incio do sculo XX.Antnio Carlos Diegues (2004) identica um processo semelhante no surgimento

    do preservacionismo nos Estados Unidos no incio do sculo XIX, que teria contribudo

    para a criao do primeiro parque nacional do mundo, o Parque de Yellowstone.Segundo este autor, a essncia do preservacionismo pode ser descrita como areverncia natureza no sentido de apreciao esttica da vida selvagem (wilderness).Ela pretende proteger a natureza contra o desenvolvimento moderno, industrial eurbano (DIEGUES, 2004, p. 30).

    Desta orma, a posio preservacionista engendra uma concepo de reas

    protegidas desabitadas, uma vez que qualquer interveno humana na natureza serianociva. Tal concepo, ao no tolerar a presena humana em um espao que devaser mantido em seu estado natural, cria uma clara oposio entre homem e natureza.

    Ainda que diversos autores identiquem o surgimento da preocupaocom a degradao ambiental no perodo moderno, at meados do sculo XX, as

    preocupaes ambientais oram dispersas e pontuais: a questo ambiental s viria aser ormulada mais sistematicamente a partir da dcada de 1950, quando aumentoua preocupao com a dimenso das alteraes ocasionadas pelo progressourbano e industrial. Contriburam para este processo diversos eventos ocorridos nasegunda metade do sculo XX, como (i) a constatao da contaminao da Baade Minamata (1950), no Japo, pelo mercrio lanado por uma indstria qumica,

    onde cou provado que diversas reaes e graves doenas oram provocadas pelaingesto de mercrio pelos moradores locais; (ii) o acidente nuclear em Chernobil(1986) contaminando uma grande rea da Ucrnia, (iii) a publicao do livro PrimaveraSilenciosa, de Rachel Carlson (1962), onde a autora alerta sobre os riscos para asade e o meio ambiente advindos do uso indiscriminado de pesticidas; entre outros.

    Assim, na segunda metade do sculo XX, diversas conerncias internacionais voproblematizar a questo ambiental e infuenciar na orma como ela hoje enunciada.Vale destacar tambm a emergncia dos problemas considerados globais, ou seja,aqueles em que os impactos no se restringem a um pas ou regio onde sogerados tais como o buraco na camada de oznio e as mudanas climticas globais inserindo na discusso acerca do meio ambiente aspectos vinculados soberania

    nacional. Ou seja, a partir da reelaborao da problemtica ambiental decorrentedos problemas globais, as forestas, a gua e outros recursos passam a ser denidoscomo bens comuns da humanidade, sendo a deciso de sua utilizao no mais

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    restrita aos pases onde esto localizados.No Brasil, as preocupaes ambientais vinculadas sustentabilidade tambm vo

    ser progressivamente incorporadas tanto nas prticas do poder pblico e dos diversosagentes sociais, como nos discursos que undamentam tais prticas, por vezes com

    sentidos dierenciados. O importante aqui ressaltar a legitimidade alcanada por taldiscurso. Para Topalov (1997), o meio ambiente tem se tornado o problema centralem torno do qual, daqui em diante, todos os discursos e projetos sociais devem serreormulados para serem legtimos (TOPALOV, 1997).

    2. A ambientalizao dos confitos urbanos

    Diversos autores (FREITAS, s/d; TOPALOV, 1997; ACSELRAD, 1999) constatarama ambientalizao ou esverdeamento dos confitos urbanos, estratgia cada vez maiscomum devido ao enorme apelo poltico da proteo ambiental. Segundo Freitas (s/d),

    os discursos sobre meio ambiente [...] tm se mostrado com alto grau de aceitaoe legitimidade poltica nos dias de hoje, alm de um enorme lego para combater omodelo de desenvolvimento estabelecido.

    De ato, no Rio de Janeiro, muitos dos confitos urbanos em curso envolvem ostemas da habitao em especial nas reas de moradia popular e do meio ambiente.

    Como sabemos, a expanso urbana da cidade do Rio de Janeiro se deu, em grandeparte, em reas ambientalmente rgeis, como pntanos, manguezais, margens derios e encostas ngremes. A excluso de grande contingente populacional do mercadoimobilirio levou a uma progressiva ocupao de reas no incorporadas ao mercadoimobilirio ormal, seja pela ausncia de inraestrutura urbana, seja devido a aspectosambientais considerados adversos (MARICATO, 1996). Tal processo resultou em uma

    grande irregularidade urbanstica na cidade, alm de ocasionar diversos problemasaos moradores de tais reas que, via de regra, convivem com um meio ambientedegradado e insalubre devido ausncia de uma srie de servios urbanos, como osservios de saneamento.

    Nos ltimos anos, possvel constatar o acirramento dos confitos em relao s

    reas no edicveis (denidas pela legislao urbanstica e ambiental) habitadas porpopulao de baixa renda. Exemplos destes confitos so (i) o debate sobre a construodo muro do Dona Marta, na Zona Sul do Rio de Janeiro, nos marcos do ProjetoEcolimites; (ii) o acirrado da disputa poltica a respeito da regularizao de moradiasnas comunidades do Horto; (iii) as ameaas de remoo soridas por comunidades

    justicadas pela questo ambiental, como a Vila Autdromo (Jacarepagu), a avela

    Vila Alice (Laranjeiras), removida em 2006, e as comunidade do Macio da Tijuca.As disputas em torno da ocupao de diversas reas se intensicaram,

    especialmente, a partir das chuvas de abril de 2010, que deixaram 257 mortos no

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    Estado do Rio de Janeiro, sendo a maior parte em decorrncia de deslizamentos deterra. Esta tragdia suscitou um grande debate sobre a possibilidade da permanncia

    da populao nestas reas consideradas de risco. A opo apresentada pela preeiturae pelo governo do estado oi a remoo de oito comunidades, justicada pela alegada

    impossibilidade tcnica de reduo do risco atravs de obras de engenharia. Adelimitao das reas de risco a serem realocadas, entretanto, desagradou grandeparte dos moradores, que se viram ameaados de remoo, prtica que pareciaabandonada desde a redemocratizao do pas.

    Entretanto, tais propostas se distinguem das remoes promovidas no inciodo sculo XX durante a reorma de Pereira Passos e daquelas ocorridas durante operodo ditatorial. As propostas atuais no mais acionam a identicao da avelacomo local com problemas de higiene e oco de doenas, como no perodo higienista,tampouco como local do vcio e da promiscuidade, como no perodo da ditaduramilitar. Hoje, os argumentos que buscam legitimar as polticas para as avelas esto

    bastante identicados com a questo da segurana e a questo ambiental: a avelaora vista como local dominado pela violncia e pelo trco, rea que deve serpacicada pela polcia e retomada do poder dos tracantes pelo Estado, ora comoameaa preservao ambiental, sendo seus moradores considerados predadoresdo meio ambiente de todos os cidados cariocas. Entretanto, esta posio no

    uma unanimidade dentro do poder pblico, existindo diversos atores que deendemo acesso aos servios pblicos nestas reas, integrando-as cidade ormal numaperspectiva de garantia do direito cidade. Neste contexto, as propostas polticasatuais para essas reas variam desde a urbanizao (Programas Pr-Moradia eMorar Carioca) at a remoo, passando pela pacicao atravs de Unidades dePolcia Pacicadora.

    A nosso ver, o conceito de confito ambiental ornece uma base conceitual til nacompreenso dos confitos em curso. Segundo Acselrad (2004, p.26),

    [...] os confitos ambientais so aqueles envolvendo grupos sociais com modosdierenciados de apropriao, uso e signicao do territrio, tendo origem quandopelo menos um dos grupos tem a continuidade das ormas de apropriao do meio

    que desenvolvem ameaadas por impactos indesejveis [...] decorrentes do exerccioda prtica de outros grupos.

    Ainda conorme o autor acima citado, os confitos entre os atores sociais podemser compreendidos a partir do seu posicionamento no campo material (no planoda reproduo social) e no campo simblico (no plano das representaes), este

    acionado para legitimar ou contestar as ormas de apropriao material do meio, quese traduzem em espaos sociais de distribuio do poder (ACSELRAD, 2004).

    De ato, tais confitos so permeados por interesses objetivos dos dierentes

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    agentes sociais, vinculados a suas ormas de apropriao do espao urbano, sejapara a sua reproduo social, seja para a reproduo dos seus interesses econmicos

    (Harvey, 1980). Ou seja, os interesses objetivos, nestes casos, podem ser a garantiada manuteno da moradia em local prximo ao trabalho, escola, onde os vnculos

    sociais oram construdos, no caso dos moradores ameaados de remoo e, no casodos deensores de sua remoo, a valorizao imobiliria ou a incorporao destesterrenos ao mercado. Todavia, nem sempre tais interesses so enunciados destaorma. Outros elementos podem ser acionados para a legitimao dos projetos de

    ambos os grupos.Rose Compans (2007) argumenta que o discurso ambiental vem sendo

    instrumentalizado por alguns grupos de interesse com o objetivo de pressionar o poderpblico a retomar a poltica de remoo de avelas. Segundo a autora, se, em umprimeiro momento, a denio de encostas como reas de preservao permanente(APP) possibilitou sua ocupao pelos pobres devido a no incorporao destas

    reas pelo mercado de moradia ormal, em um segundo momento, ela ornece umajusticativa amplamente aceita para a remoo de avelas, especialmente rente escassez de terras nas reas mais valorizadas da cidade. A autora destaca, ainda,as tentativas de fexibilizao da legislao urbanstica e ambiental quando existeinteresse dos governos e das elites urbanas em viabilizar a construo de moradias e

    condomnios de alto padro.Assim, nos confitos aqui enocados, na legitimao das prticas materiais dos

    agentes sociais, o interesse real pode ser diverso da alegada preocupao ambientalou com os riscos oriundos da ocupao de encostas.

    A valorizao imobiliria de reas desvalorizadas pela proximidade deassentamentos de populao de baixa renda parece, de ato, ser um dos principais

    interesses objetivos envolvidos nestes confitos. Srgio Besserman expressaclaramente essa posio2. Segundo o economista, as remoes se justicam mesmoonde no h risco para os moradores uma vez que as reas avelizadas provocamuma acentuada degradao da paisagem da cidade [], assim, quando uma anlisede custo-benecio revelar que a realocao de uma avela trar retorno nanceiro

    e social elevado deve-se considerar a alternativa de remoo, evitando prejuzosao ambiente de negcios. Para exemplicar como a remoo de uma avela podetrazer benecios para a cidade, Besserman aponta o caso da remoo da avela daCatacumba, na Lagoa Rodrigo de Freitas: Quando uma avela oi retirada dali, em1970, os imveis da regio, cujos valores vinham sendo depreciados, inverteram acurva e passaram a se valorizar, aumentando a riqueza do bairro e da cidade, em

    benecio de todos.Entretanto, necessrio ressaltar que nem todos aqueles que deendem projetos

    2. Por um Rio Sem Favelas, Veja, edio 2161, 2010.

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    que prope a desocupao destas reas esto vinculados ao mercado imobilirio oupretendem se beneciar da valorizao imobiliria. Em So Paulo, por exemplo, as

    restries impostas s moradias localizadas em reas de mananciais tinham comoobjetivo principal a proteo das ontes de abastecimento de gua. Em tais confitos um

    aspecto importante a ser considerado a discusso em torno dos interesses diusos einteresses coletivos. Assim, as polticas ambientais legitimam-se por estarem voltadaspara o interesse diuso, o qual caracteriza-se pela impossibilidade de denio dossujeitos, enquanto a resistncia s remoes vai acionar, principalmente, um aspecto

    relacionado a um direito coletivo: o direito moradia.

    3. O que diz a Legislao Ambiental sobre a preservao de reas urbanasambientalmente vulnerveis?

    Em nvel nacional, a preservao de reas de forestas denida pelo Cdigo

    Florestal Lei n 4.771 de 1965. Em seu artigo segundo, o C.F. estabelece a existnciade reas de preservao permanente (APPs) onde a vegetao deve ser preservadaindependentemente da criao de uma unidade de conservao. Para os objetivosdeste curso, so de especial interesse as regras estabelecidas para as APPs smargens de rios e nas encostas.

    Nas encostas, so denidas como reas de preservao permanente aquelas comdeclividade superior a 45. O artigo 10 do C.F. estabelece, ainda, que nas encostascom declividade entre 25 e 45 vedada a supresso da vegetao (apesar de nodeni-las como APP). Ao longo dos cursos dgua, a legislao ederal estabelece asseguintes larguras mnimas para as APPs:

    - 30 (trinta) metros para os cursos dgua com menos de 10 (dez) metros de largura;

    - 50 (cinquenta) metros para os cursos dgua que tenham de 10 (dez) a 50(cinquenta) metros de largura;

    - 100 (cem) metros para os cursos dgua que tenham de 50 (cinquenta) a 200(duzentos) metros de largura;

    - 200 (duzentos) metros para os cursos dgua que tenham de 200 (duzentos) a

    600 (seiscentos) metros de largura;500 (quinhentos) metros para os cursos dgua que tenham largura superior a

    600 (seiscentos) metros.

    Alm destas, so consideradas reas de preservao permanente a vegetaosituada ao redor de lagoas, lagos ou reservatrios dgua naturais ou articiais, nas

    nascentes, no topo de morros, nas restingas, entre outros.O Cdigo Florestal no distingue critrios para a denio de reas de

    preservao permanente entre as dierentes regies do pas. Entretanto, reconhecendo

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    especicidades regionais e considerando o processo de ocupao de nossas cidades,abre uma possibilidade de supresso da vegetao da APP em reas urbanas, desde

    que autorizada pelo rgo ambiental competente e que o municpio possua Conselho deMeio Ambiente com carter deliberativo e Plano Diretor. Entretanto, conorme denido

    em seu artigo 4, a supresso de vegetao em rea de preservao permanentesomente poder ser autorizada em caso de utilidade pblica ou de interesse social(C.F., art. 4. Redao dada pela Medida Provisria n 2.166-67, de 2001).

    Coube Resoluo CONAMA 369 de 2006 denir os casos excepcionais onde

    pode ser autorizada a supresso da vegetao de APP em casos de utilidade pblicaou interesse social. Dentre as situaes caracterizadas como de interesse social,gura a Regularizao Fundiria Sustentvel de rea Urbana. Vale observar que, nestecaso, exigida daquele que az o requerimento da regularizao a comprovao dainexistncia de risco de agravamento de processos como enchentes, eroso oumovimentos acidentais de massa rochosa (art. 3, inciso IV).

    Na Resoluo CONAMA 369 apresentada uma srie de requisitos e condiespara a regularizao undiria em reas de APP, dos quais vale destacar: (i) ocupaesde baixa renda predominantemente residenciais; (ii) ocupaes localizadas em reaurbana declarada como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) no Plano Diretorou outra legislao municipal; (iii) ocupao inserida em rea urbana que possua no

    mnimo trs dos seguintes itens de inraestrutura urbana implantada: malha viria,captao de guas pluviais, esgotamento sanitrio, coleta de resduos slidos, redede abastecimento de gua, rede de distribuio de energia.

    No Estado do Rio de Janeiro, o decreto estadual 42.326 de 2010 legisla sobre otratamento e a demarcao das aixas marginais de proteo (ou APPs) nos processosde licenciamento ambiental e de emisso de autorizaes ambientais. Este decreto

    possibilita a reduo dos limites estabelecidos pelo Cdigo Florestal para as APPss margens de cursos hdricos em reas urbanas, desde que autorizada pelo rgoambiental competente (no caso, o Instituto Estadual do Ambiente INEA). Alm disso,para que a APP seja reduzida, a rea deve ter ocupao consolidada e inraestruturaimplantada, no sendo permitida a derrubada de vegetao primria ou secundria

    em estado avanado. Nestes casos, segundo o decreto, a APP poder ser reduzidapara 15 metros. No caso de cursos dgua de pequeno porte (com vazo inerior adez metros cbicos por segundo) a APP pode ser ainda mais reduzida, devendo serdemarcadas, em ambas as margens, aixasnon edicandique permitam o acesso dopoder pblico ao corpo hdrico.

    Apesar de o decreto estar em vigncia no Estado do Rio de Janeiro, ele considerado

    inconstitucional por alguns atores, uma vez que a legislao estadual no poderia sermenos restritiva que a Lei ederal. Alm disso, o decreto no considera o impacto doempreendimento, apenas as caractersticas da aixa de proteo, sendo usado para o

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    licenciamento de indstrias que podem causar signicativo impacto ambiental.Em que pese a necessidade de preservao do meio ambiente no espao urbano

    e a importncia da legislao pertinente, ao que parece, estas regras, ao denir reasque no poderiam ser construdas, possibilitaram sua ocupao pela populao que

    no tem acesso ao mercado imobilirio ormal. Por outro lado, o discurso ambiental ea mesma legislao que possibilitou aos pobres ocupar reas de encosta e margensde rios (por no serem incorporadas ao mercado ormal de terras) oerecem hoje

    justicativa e base jurdica aos processos de conteno da ocupao e remoo

    de moradias, como vemos acontecer atualmente no Rio de Janeiro. No bastasse oconfito entre o direito ao meio ambiente e o direito moradia, agrava o desrespeito aodireito das populaes ameaadas de remoo o ato de nem sempre o discurso deproteo do meio ambiente corresponder s prticas objetivas do poder pblico, quevem autorizando e viabilizando projetos ambientalmente problemticos em diversospontos da cidade (so exemplos a fexibilizao da legislao para construo de

    hotis nas encostas ngremes da Niemeyer, a licena ambiental da TKSA, entre outros).

    Bibliograa

    ACSELRAD, Henri. As prticas espaciais e o campo dos confitos ambientais.

    In: Confitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumar, FundaoHenrich Boll, 2004. p. 13-35.

    COMPANS, Rose. A cidade contra a avela: a nova ameaa ambiental. In:Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. ANPUR, v. 9, n 1, 2007.

    DIEGUES, Antnio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. Sao Paulo,Ed. Hucxitec. 1996. 160 p.

    THOMAS, Keith. O Homem e o mundo natural: mudanas de atitude em relaos plantas e aos animais: 1500-1800. So Paulo. Cia das Letras, 1989.

    TOPALOV, Christian. Do Planejamento Ecologia. In: Cadernos IPPUR. Rio deJaneiro: IPPUR/UFRJ, Ano XI n 1 e 2, 1997.

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    Planejamento, legislao urbanstica einstrumentos de gesto do solo urbano em disputa

    Rosane Biasotto (1*)

    O poder pblico local tem um papel importante no planejamento das cidades,sobretudo por sua atribuio de elaborar e azer cumprir as leis que orientam o usoe ocupao do solo urbano. Essa atribuio oi reorada a partir da ConstituioFederal de 1988, conhecida como uma constituio municipalista, pois reorou econsagrou um papel protagonista dos municpios brasileiros na regulao do solourbano e, portanto, na gesto das ormas de expanso e de organizao interna dascidades. O que isso quer dizer na prtica do planejamento do territrio? A Unio caresponsvel pela edio de normas gerais que valem para todas as cidades e territrionacionais, os estados assumem a responsabilidade de cuidar das questes regionais

    (ou seja: que so comuns a mais de um municpio), enquanto os municpios camencarregados de zelar pelo patrimnio local e por valores materiais e simblicos queintegram a vida cotidiana dos cidados.

    Os papis dos trs entes da Federao (Unio, estados e municpios), em tese,devem ser complementares e criar condies para que as dierenas regionais e locaispossam propiciar o desenvolvimento social, econmico e ambiental em todo territrionacional que bastante diversicado. Para lidar com esta diversidade cultural, social eambiental que caracterizam as cidades brasileiras, oram institudas algumas diretrizesgerais que devem orientar as polticas urbanas e a ao dos municpios. Estas diretrizesgerais que regem, sobretudo, a regulao do uso e ocupao do solo nas cidades,alm do que diz a Constituio Federal1, esto na lei do Estatuto da Cidade2 e na Lei

    Federal de Parcelamento da Terra3 que apesar de estar em processo de reviso ainda o principal marco regulatrio para o planejamento da expanso urbana nosterritrios municipais.

    Experincias recentes, entretanto, a partir da elaborao de Planos Diretores, apsa aprovao do Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257, de julho de 2001, indicam queos instrumentos de planejamento e gesto do solo no Brasil permanecem em disputa apesar de todo o avano normativo que, atualmente, orienta a regulamentao dosolo nas cidades , sobretudo os instrumentos que oram concebidos, originalmente,para intererir no mercado de terras urbanas, visando controlar ou contribuir parabaixar os preos dos imveis e terrenos nas cidades. A expectativa que se tinha com a

    aprovao do Estatuto da Cidade era de alterar a lgica do planejamento e gesto dosolo urbano, como revela o trecho do artigo publicado no Correio da Cidadania, logoaps a aprovao da lei ederal, em 2001:

    *1 Rosane Biasotto. Coordenadora tcnica apoio aos Planos de Habitao de Interesse Social daFundao Bento Rubio FBR. Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional do IPPUR/UFRJ.1. Ver artigos 182 e 183 da Constituio Federal do Brasil, 1988.2. Lei Federal n 10.257 10 de julho de 2001.3. Lei Federal n 6.766 de 19 de dezembro de 1979.

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    Dentre os aspectos mais importantes do Estatuto, est a gesto democrticadas cidades, ocializando, por exemplo, a obrigatoriedade do oramento participa-tivo. Mas o aspecto mais esperado talvez esteja na regulamentao de instrumentoslegislativos que permitem garantir a uno social da propriedade, dando ao poderpblico a possibilidade de resgatar para o benecio da sociedade a valorizao

    provocada por seus prprios investimentos em inraestrutura urbana, e de rear areteno especulativa de imveis vazios em reas urbanas. (MARICATO, E. e FER-REIRA, J., 2001.).

    Depois de dez anos, no entanto, poucas cidades utilizam os instrumentosprevistos no Estatuto da Cidade. Observa-se, de acordo com os resultados da pesquisaRede de Avaliao e Capacitao para a Implementao dos Planos DiretoresParticipativos, promovida com recursos do Ministrio das Cidades e coordenadapelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federaldo Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ), que os instrumentos concebidos originalmente paraevitar a reteno especulativa de imveis urbanos e capturar mais valias undiriasoram incorporados nas leis municipais de maneira rgil, assim como os mecanismosde participao e controle social associados gesto democrtica e participativa.Destaca-se que poucos municpios possuem delimitao de reas vazias providas deinraestrutura destinada para a produo de moradia popular.

    Embora o Plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro, aprovado no incio dadcada de 1990, tenha se antecipado ao prprio Estatuto da Cidade, contemplando oparcelamento e utilizao compulsrios, o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU)progressivo no tempo, o solo criado e as operaes urbanas consorciadas, nenhumdesses instrumentos chegou a ser eetivamente utilizado at os dias de hoje. O novoPlano Diretor, aprovado em 2010, recuou na regulamentao de tais instrumentos,

    deixando sua utilizao para um uturo incerto.Destaca-se, desse modo, o debate em torno das ormas de azer a gestodas cidades que continua aberto e repleto de confitos e contradies que se pena contramo da reorma urbana, comprometendo a aplicao de instrumentos decaptura de mais valias undirias, nas entrelinhas dos argumentos e aparatos tcnicosde um planejamento urbano renovado, mas que se mantm como ora de reproduodos processos tradicionais de excluso territorial urbana. Como diz ROLNIK (1997):

    Mais alm do que denir ormas de apropriao do espao permitidas ou proi-bidas, mais do que eetivamente regular a produo da cidade, a legislao urbanaage como marco delimitador de ronteiras de poder. A lei organiza, classica, colecio-na os territrios urbanos, conerindo signicados e gerando noes de civilidade ecidadania diretamente correspondentes ao modo de vida e micropoltica amiliar dosgrupos que estiveram mais envolvidos na sua ormulao. Funciona, portanto, comoreerente cultural ortssimo na cidade, mesmo quando no capaz de determinar suaorma nal. (Rolnik, Rachel, 1997: p-13)

    Isto quer dizer que os instrumentos do Estatuto da Cidade, assim como alegislao urbanstica ordinria, no portam signicados em si mesmo ou seja:

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    signicados autnomos ou independentes das prticas sociais , mas a partir dossentidos que lhes so atribudos no processo de planejamento e gesto do solo urbanorente s dinmicas de reproduo das cidades.

    A induo da ocupao dos vazios urbanos a partir da obrigao de parcelar eutilizar imveis que estariam sendo retidos por ao estratgica dos proprietrios uma

    das orientaes do Estatuto da Cidade para enrentamento da especulao imobiliria.Segundo CARDOSO (2009), esta discusso iniciada em 1970 no Brasil assume hojenovos contornos, sobretudo nas grandes cidades que ultrapassaram certo patamarde expanso peririca. As estratgias de valorizao e sobrevalorizao a partir datransormao social de reas urbanas exigem refexes cuidadosas, inclusive sobreas denies e terminologias que vm sendo utilizadas para representar o territrio e

    justicar grandes intervenes urbanas, especialmente nas aes de recuperao erevitalizao de reas centrais.

    A incorporao dos instrumentos do Estatuto da Cidade do Rio de Janeiropassa por uma nova ase, pois instrumentos como operaes urbanas consorciadase a outorga onerosa do direito de construir, dentre outros que, originalmente, estavamundamentados pela uno social da propriedade e em plataormas polticas dedeesa do direito cidade e direito moradia digna esto sendo apropriados revelia de conquistas sociais mais slidas. As experincias recentes mostram que,apesar dos avanos na ormulao de polticas urbanas em direo integrao dasaes setoriais e a articulao entre os nveis de governo, a legislao de controledo uso e ocupao do solo permanece ainda orientada por um marco urbansticopr-Estatuto da Cidade.

    A aplicao dos instrumentos que visam gesto social da valorizao da terra tmida em relao s prticas tradicionais de licenciamento urbano. sabido queas cidades brasileiras cresceram indierente aos limites e s condies estabelecidas

    pelas regras de controle e ordenamento do uso e ocupao do solo. So cidadescaras, onde o custo da terra muito alto. A legislao urbanstica tradicional pouco,ou quase nada, ez pela incluso social e territorial das populaes mais pobres. Nestesentido no adianta planos diretores completos e tecnicamente bem elaborados se asnormas e regras de uso e ocupao do solo permanecem na lgica dos zoneamentostradicionais essencialmente elitistas e excludentes. preciso mudar esta lgicatradicional de aparente controle, de maneira democrtica, prevendo maior participaosocial para que de ato estas regras tenham eeito sobre as dinmicas de produoe reproduo das cidades, revertendo o padro de excluso territorial que hoje amarca das cidades brasileiras.

    Duas imagens se opem na disputa pelos signicados e contedos atribudosaos instrumentos de planejamento e gesto do solo urbano. A primeira reere-se imagem da cidade-mercadoria, associada ao valor de troca da cidade e, a segundaexpresso, cidade-direito que enatiza o seu valor de uso. A cidade-mercadoria seexpressa com vigor na lgica empresarial do mercado imobilirio, enquanto o debateem torno do direito cidade e do direito moradia digna reivindica a construo deinstrumentos de planejamento e gesto do solo que sejam orientados para a produode cidades socialmente mais justas e inclusivas.

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    As cidades brasileiras em geral, incluindo a cidade do Rio de Janeiro, secaracterizam por uma orte dierenciao interna. Dierenas que reproduzemprocessos de excluso territorial que se materializam a partir das oportunidadesdesiguais de acesso aos benecios da urbanizao. A desigualdade na distribuiode inraestrutura e servios urbanos so componentes determinantes da ormao

    dierenciada do preo da terra no processo de urbanizao. Embora a terra possaser vista como um bem natural, irreprodutvel pelo trabalho humano, ela , ao mesmotempo, passvel de ser beneciada de maneira dierenciada pelo trabalho humano. Obeneciamento do solo com a implantao de servios e equipamentos pblicos ecoletivos, portanto, condio essencial para reproduo do espao urbano e para aormao da demanda por bens imobilirios.

    A legislao urbanstica tem um orte poder de infuenciar as ormas de apropriaodos espaos na cidade, pois aeta diretamente valores materiais e simblicos que estona raiz da ormao do preo da terra. Por isso, argumenta-se que esta legislaopoderia e deveria ser utilizada para induzir a ocupao de reas vazias ou subutilizadas,mas com capacidade de adensamento, assim como: i) recuperar investimentospblicos que resultem a valorizao de imveis urbanos; ii) antecipar recursos para onanciamento de intervenes urbanas estruturantes; iii) condicionar o licenciamentode grandes empreendimentos ao cumprimento de medidas mitigadoras de impacto oucompensatrias; iv) ou mesmo para aquisio de terrenos necessrios implementaode polticas habitacionais mais democrticas e inclusivas.

    Combinada com o Estatuto da Cidade, a legislao urbanstica poderia serutilizada como instrumento balizador da recuperao de mais valias undiriasproduzidas no processo de crescimento e expanso da cidade, com potencial degerar recursos prprios para a implantao de uma poltica habitacional de interessesocial de peso. No adianta, entretanto, importar modelos e rmulas prontas. Como

    j mencionado, os instrumentos da poltica urbana regulamentados no Estatuto daCidade podem ser vistos como erramentas importantes para o planejamento dascidades, mas antes preciso observar qual a lgica e quais so as prticas sociais queesto inormando e sustentando a utilizao destes instrumentos.

    sabido que a legislao urbanstica combinada com investimentos pblicosem inraestrutura urbana tem o poder de gerar expectativas de ganhos uturos(especialmente renda utura da terra em uno de alteraes na legislao e no padrode urbanizao). A competio entre servios comerciais e nanceiros e amliasde alta renda pelas localizaes acarreta a intensicao de uso do solo escassodisponvel, por via do aumento dos coecientes de aproveitamento de terreno e/oureduo da rea til dos imveis. A intensicao do uso propiciada pela reduo darea til dos imveis tambm aumenta o rendimento econmico por metro quadradodo terreno. O aumento da densidade no acompanhado do aumento do imposto sobrea propriedade undiria implica que uma parcela crescente do dinheiro pago por cadaimvel destinado a comprar o direito localizao.

    A alta de clareza dos objetivos que undamentam os parmetros de uso eocupao do solo, em geral, diculta o entendimento sobre quem ganha e quemperde no jogo da cidade. Por isso se az necessrio que a gesto do solo urbanose aa de maneira democrtica e com maior controle social sobre as decises de

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    investimento pblico, assim como sobre as decises que aetam a regulao do usoe a ocupao do solo. A gesto do solo no est ora das prticas sociais e envolveinteresses econmicos poderosos.

    Vale lembrar que nas ltimas dcadas o tema da regularizao urbanstica eundiria ganhou espao na agenda da poltica urbana, desde a ao pioneira de alguns

    municpios (tais como Belo Horizonte, Recie, Rio de Janeiro) at gurar no Estatuto daCidade como uma de suas principais diretrizes. Atualmente, h programas ederais emandamento justamente com objetivo de promover a regularizao urbanstica e undiriade grandes assentamentos na perspectiva de promover a incluso territorial urbana.So avanos, sem dvida, no sentido do reconhecimento da cidade real, que at bempouco tempo nem gurava nos mapas ociais das principais cidades brasileiras.

    A rea de Especial Interesse Social (AEIS) um dos instrumentos que pode estarcombinado na lgica da legislao urbanstica, visando a permanncia e at mesmoo acesso dos mais pobres a reas bem localizadas, com melhores condies deinraestrutura urbana. Em geral, as AEIS so utilizadas para viabilizar os processos deregularizao de reas j ocupadas, mas podem tambm ser utilizadas para reservarterrenos vazios ou subutilizados para implantao de projetos habitacionais. Hoje

    j so concebidas dierentes categorias de AEIS que podem ser articuladas com oszoneamentos mais tradicionais, abrindo novas perspectivas para uma gesto do solourbano capaz de viabilizar a ampliao do acesso terra urbanizada.

    Com este quadro geral, destaca-se que a gesto do solo urbano (combinandoinvestimentos pblicos e o controle do uso e ocupao do solo) no um temaque diz respeito exclusivamente aos tcnicos e especialistas no assunto, pois temrebatimentos sobre a dinmica econmica da cidade e sobre a garantia de direitossociais e universais direito cidade e d