GUIDO GUERRA, UM CRIADOR DE MUNDOS PARALELOS

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1 | 1 | Cid Seixas GUIDO GUERRA, UM CRIADOR DE MUNDOS PARALELOS Foi num dia sombrio deste ano de Nosso Se- nhor que Guido Guerra partiu de corpo alma para o desconhecido mundo dos ausentes. Como não poderia deixar de ser, jornais e re- vistas registraram o fato. É o que faz agora este número de Iararana. Aleilton Fonseca, sempre atento, me liga dizen- do que gostaria de incluir nesta edição dois textos que publiquei sobre o amigo de muitos anos. Pede- me também as fotos que reuni para o livro Auto- retrato, preparado por iniciativa primeira de James Amado para comemorar os sessenta anos de Guerra, em 2003. Para atender ao convite, foram selecionados trechos de alguns artigos escritos em lugares e

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Cid Seixas

GUIDO GUERRA,UM CRIADOR DE

MUNDOS PARALELOS

Foi num dia sombrio deste ano de Nosso Se-nhor que Guido Guerra partiu de corpo alma parao desconhecido mundo dos ausentes.

Como não poderia deixar de ser, jornais e re-vistas registraram o fato. É o que faz agora estenúmero de Iararana.

Aleilton Fonseca, sempre atento, me liga dizen-do que gostaria de incluir nesta edição dois textosque publiquei sobre o amigo de muitos anos. Pede-me também as fotos que reuni para o livro Auto-retrato, preparado por iniciativa primeira de JamesAmado para comemorar os sessenta anos deGuerra, em 2003.

Para atender ao convite, foram selecionadostrechos de alguns artigos escritos em lugares e

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tempos diversos sobre o autor de Vila Nova daRainha Doida, sua obra mais representativa.Como colagem feita no calor da hora, para entrarna gráfica, o que aqui se publica sob os títulos “Re-cordações do escrivão Guido Guerra” ou “Perfil deum criador de mundos paralelos” é algo fragmen-tário e pouco representativo da obra múltipla des-te jornalista, contista e romancista que deixou suamarca generosa e explosiva não apenas na litera-tura baiana, mas no seu contexto cultural.

 Joana Felicidade:A ironia que afirma

 Guido Guerra, ficcionista e repórter formado na

turbulência de uma redação de jornal, durante osprimeiros anos de inquisição e arbítrio impostospelo golpe militar de 64, começou como repórterpolicial e terminou como cronista diário, onde oastuciado cedia lugar ao acontecido. Mas nadafoi por acaso, nenhuma experiência ficou solta nopassado sem resposta futura — como, por exem-plo, a passagem pelo setor político do jornal. Seutrajeto e seu aprendizado estiveram sempre cir-cunscritos ao cotidiano do homem, quer na tragi-comédia do submundo das crônicas policiais ouno drama silencioso da opressão política. Talvez,por isso mesmo, o compromisso do ficcionista de

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hoje não desdenhe da dura realidade partilhada,através da pena, pelo repórter de ontem.

Os temas que servem de material narrativo aoseu livro Ela se chama Joana Felicidade (Rio deJaneiro, Record, 1984, 118 p.) são um só: a vidado homem. O cotidiano com sua tragédia habitu-al, homeopática, gradativa e, por isso mesmo,capaz de subjugar sem revolta ou reação maisconsequentes. Essa dimensão trágica da vida queGuido Guerra procura subl inhar em coresmetonímicas, caricaturais, portanto, é narrada comironia, como se quisesse negá-la, arrancá-la doinfortúnio dos homens. Mas a negação, sabemos,é a primeira forma de aceitação do difícil ou dorecalcado. Aquilo que eu não posso dizer nempermitir aflorar à consciência, em forma de pala-vra, insiste em se fazer ouvir como palavra inverti-da, que se nega. Negando-se, afirma-se. E a es-crita de Guerra sabe disso, ao se valer da ironia.

Embora o jornalista e o escritor caminhem jun-tos, conforme se vê na opção deste autor, há noentanto um ponto crucial onde o ficcionista rompecom o repórter: se no registro jornalístico os fatose acontecimentos chegam ao texto marcados pelodistanciamento de quem escreve (exigência dochamado jornalismo informativo, objetivo, que pri-vilegia a notícia), nas páginas ficcionais o univer-so das criaturas se desenrola como o centro de

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um sistema solar a atrair o comprometimento emo-cional do criador.

Enquanto no texto jornalístico, o acontecimentoe o repórter formam dois mundos paralelos, natessitura absurda e possível do mundo ficcional —que é o paraíso perdido da encenação do desejo— a criatura e o criador comungam o mesmo ori-ginal pecado e se interpenetram no ato de amorda escrita.

É por isso que, na ficção, não só o criador mastambém a criatura está investida na função de nar-rar, atuando como personagem e diretor da repre-sentação; como passista e mestre sala no carna-val do invento.

Na reportagem jornalística, quem narra é sem-pre o autor do texto. Na ficção, a personagem tomaa palavra do autor que se faz narrador e conta ahistória a partir do seu ponto de vista. Mas o autornão protesta. Porque apesar de todas as teoriasdo texto literário, de toda assepsia estrutural,neopositivista, a penetração do criador na criatu-ra projeta em um o desejo do outro, criando umespaço único e diverso. Um é o espelho do outro.É sempre preciso não confundir o criador com acriatura, não atribuir a um o caráter do outro. Opoeta é um fingidor, nos ensina um dos mais ver-dadeiros poetas do fingimento, que no próprionome — Pessoa — se confunde com a persona,

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máscara ou personagem. Mas é sempre precisotambém saber que um é o outro, como o corpo deDeus é a sua alma. A criatura é o criador.

E Guido Guerra nos dá belos exemplos, ceden-do a função de narrar às criaturas, às personagens.

Guido Guerra, Jorge Amado e Carybé

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Na primeira parte do livro, “O sorriso dos mortos”,o narrador que nos introduz à história pode ser oautor, que, pouco a pouco, cede lugar ao diálogo— elemento preponderante na linguagem ficcionalde Guerra —, mas o diálogo cresce de tal modoque a fala das personagens ganha estatura de umanova narrativa. Assim, os capítulos do conto (ou,se preferirem, da novela) que abre o livro são mar-cados pela troca de posição entre João e Joanaenquanto narradores intercalados. Trata-se, por-tanto, de um grande diálogo experimentalmentetransformado em ponto de vista, ou foco narrativo,que sob o ângulo estrutural se constitui num bompretexto para discussões teóricas sobre o fazerficcional. 

A outra parte do livro, “O santo rosto de papel”,é um grande monólogo, onde uma velha morado-ra dos Alagados, conversando com sua solidão esua viuvez nos permite conhecer a história. Trata-se, portanto, do mesmo fenômeno anterior: o diá-logo ou a fala da personagem cresce de tal modoque toma o lugar da narração, se transformandona própria narração e transformando o persona-gem em narrador.

De resto, é conveniente lembrar que o proces-so vem sendo trabalhado por Guido Guerra nosúltimos livros, como em Lili Passeata, tambémpublicado pela Record. Ela se chama Joana

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Felicidade é um livro onde o autor tem oportuni-dade de testar perante o público, de forma ousa-da, este seu experimento com a linguagemficcional. Mas como a literatura não conhece fron-teira entre o fato e o ato de contar, entre o discur-so e o curso dos acontecimentos, a linguagemficcional é ela mesma a obra de ficção. Com issoquero dizer que se o recurso empregado pelo au-tor é bom, bom também será o resultado — suaobra. Isto Guido Guerra aprendeu com a maturi-dade, quando o texto do escritor de hoje ganha amesma segurança do texto do jornalista de sem-pre.

 Guido Guerra, ensaísta-autorde uma reportagem sentimental

 Um menino, filho de italianos, com seu registro

de tenor, partic ipando, em 1903, daópera Carmem, de Bizet, impressionou de tal for-ma a Caruso, que o grande lírico queria levá-lopara Itália e ensiná-lo os segredos da sua arte.Mas ele preferiu ficar no Brasil e trocar a iniciaçãono canto lírico por uma carreira na música popular.Este é um dos fatos que envolvem a vida deVicente Celestino, um dos maiores fenômenos danossa música popular, ao lado de contemporâne-os como Francisco Alves e Orlando Silva.

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Quando se comemora nos palcos do Rio deJaneiro o centenário de nascimento desse artista,Guido Guerra publica pela Record O hóspede dastempestades.

Autor conhecido através dos seus livros de con-tos, ou de romances de ressonância nacional,além de cronista com passagem por vários jor-nais, Guido Guerra “abandona temporariamentea ficção”, conforme as palavras do seu editor, paraapresentar ao público um livro escrito com ternurae admiração. Trata-se de um conjunto de textosdíspares em torno da vida e da obra do tenorVicente Celestino.

O hóspede das tempestades é um livro monta-do pela reunião de sete textos ou capítulos. Em-bora denominado pelo autor de ensaio-reporta-gem, rótulo que se aplica à maioria dos textos, doisdeles, o primeiro e o último, merecem destaquepor não se enquadrarem nesta designação.

“O mito à sombra do homem”, primeiro capítulodo livro, é um exercício de escrita que leva o leitora imaginar que O hóspede das tempestades seconstrói como uma espécie de biografia roman-ceada. Aí, o narrador é um jovem repórter dos Di-ários Associados que passa de entrevistador aamigo de Vicente Celestino. A sobreposição deepisódios e a substituição do tempo cronológicoda narrativa pelo tempo psicológico remetem oleitor ao território do romance-documento.

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Mas nos cinco capítulos seguintes, Guido Guerramuda completamente de estilo, assumindo o lu-gar do ensaísta, ou mesmo do repórter objetivo,embora crítico. O último capítulo, “A voz orgulho doBrasil”, é uma reunião das várias entrevistas, emforma de pergunta e resposta, que Guido publicouna imprensa baiana com Vicente Celestino. Aocontrário do que disse José Ramos Tinhorão, emcrítica ao livro, a transcrição destes documentos,mesmo tendo servido de base aos textos anterio-res, não são redundantes. Testemunham, de mododireto, e sem a refração do olhar do outro, a pro-funda lucidez e o senso crítico do velho tenor. Éadmirável a compreensão que um cantor e com-positor da chamada velha guarda tem dos novosmovimentos e do lugar que lhe é reservado. Nãoacalenta ilusões, mesmo diante de homenagense palavras de reconhecimento, como o título deexpressão máxima da música brasileira, que lhefoi conferido pelo Festival Internacional da Can-ção, realizado em 1967, no Rio de Janeiro.

Vicente Celestino sabia que sua música não ti-nha mais lugar no gosto das novas gerações. Elediz, numa das entrevistas a Guido Guerra, que “caibem reverenciar uma figura do passado, homena-gear um velho cantor que conheceu os píncarosda glória, cuja popularidade ninguém discute: cir-culam piadas com meu nome, lendas de que que-

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brei copos de cristal com um simples agudo, quedesafiei tenores para um dó-de-peito, coisas queestão enraizadas no anedotário popular. Quandouma mulher tinha seios volumosos, dizia-se quetinha mais peito que Vicente Celestino. Pois bem,retomando o fio da meada: uma coisa é o reco-nhecimento pelo que se fez. Outra é premiar peloque se faz agora, no presente. No caso, foi umahomenagem hors concurs. Não é a mesma coi-sa. Se eu me inscrevesse, se disputasse uma clas-sificação, aí a coisa seria bem diferente. Eu nãoestou enquadrado no que, hoje, o bom gosto mu-sical consagra.”

Ele percebeu como os compositores e intérpre-tes da Bossa Nova criaram uma nova estéticamusical, destinada a sepultar o velho estilo de can-tar. E afirma: “Ela veio porque teria de vir, porqueos jovens surgiram em busca de caminho. Umageração não se afirma copiando a outra, mas ne-gando-a.” E acrescenta, comparando a durabili-dade dos movimentos e modas em outros paísescom o consumismo relâmpago instaurado no Bra-sil: “Quando o rock surgiu nos Estados Unidos,com Elvis Presley, não inviabilizou a balada, o fox,o blues, o jazz. Havia espaço para todas as ver-tentes. No Brasil, quando uma moda pega, pare-ce que vira a cabeça de todo mundo e nada maispresta. Isto é terrível, porque cria uma unanimida-

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de estética, um padrão exclusivo de cantar e com-por, de ver o mundo sob a mesma ótica, ou seja,não se cria o confronto entre as várias tendênciasartísticas.”

Vê-se, portanto, como as reflexões do velho te-nor continuam atuais, sendo de extrema importân-cia a transcrição das suas próprias palavras, nasentrevistas concedidas a Guido Guerra.

O capítulo inicial e o final do livro O hóspededas tempestades, divergentes que são do corpodeste ensaio reportagem, cumprem porém umpapel bem definido. O primeiro dá lugar à livreimaginação, redimensionando e refazendo os fa-tos acontecidos, o segundo amarra estes aconte-cimentos à estrita realidade.

Creio que o ponto forte do livro de Guido Guer-ra é a sua intimidade com o objeto eleito, a sua

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profunda e não ocultada simpatia por VicenteCelestino. Pelo homem e pelo artista. Esse amore essa proximidade obrigam o autor do livro a co-nhecer e nos revelar muito deste artista.

Se os capítulos que fixam a trajetória de VicenteCelestino revelam uma intimidade produtiva como objeto da sua análise, o mesmo não se podedizer do capítulo em que Guido Guerra analisamovimentos como a Bossa Nova, a Tropicália e aJovem Guarda. Isso, críticos de música popular jáo fizeram melhor. Mas tal incursão foi sentida peloautor como uma necessidade de contextualizaçãode Vicente Celestino.

São justas as suas reflexões sobre diversos fatosda carreira do compositor-intérprete. Quando, noauge das reverências e irreverências doTropicalismo, Caetano gravou um dos dramalhõesmusicais mais conhecidos de Vicente Celestino,público e artistas se dividiram no modo de rece-ber e interpretar o acontecimento. Com isenção epropriedade, Guido Guerra observa no seu livro:“A interpretação de Coração Materno, na recria-ção de Caetano Veloso, demarcaria as diferen-ças entre o movimento nascente e o agonizante: aexpectativa, anunciada a gravação, era de um tomcrítico que expusesse o velho cantor ao ridículo, oque não ocorreu: observou-se, ao contrário, a su-pressão da carga dramática pela valorização da

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letra e, por via travessa, do conteúdo trágico; e aísaltava à vista o conflito entre duas gerações”.

Para os admiradores de Vicente Celestino, apublicação de O hóspede das tempestades é umaexcelente oportunidade de reencontro com o ve-lho tenor. Nessa celebração, envolvendo o autor eos leitores, a cumplicidade da emoção fala maisalto e renova na lembrança o tempo as auroraspuras.

 O impassível fluir do trágico:maturidade da escrita

 Depois de bem sucedidas incursões pelo vas-

to território do romance, Guido Guerra volta aoconto, escrevendo páginas da melhor qualidadeem Vila Nova da Rainha Doida. Ele saltou da crô-nica diária do jornal para as páginas do livro quan-do ainda não conhecia o fluxo das traiçoeiras cor-rentezas do rio, cortado por pedras, quedas d’águae cachoeiras – o curso da escrita.

Os contos de Dura realidade, publicados em1965 pela Editora Progresso, marcaram a estreiade um escritor que em quase nada deixava entre-ver o ficcionista da maturidade. Na casa do semjeito, livro de crônicas que veio em seguida, trazi-am para o livro a irreverente figura do Papagaio

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Devasso, uma espécie de Boca do Inferno dosinquietos anos sessenta.

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 A partir do final dos anos 70, Guido Guerra cons-

truiu seu espaço no quadro da ficção e, especial-mente, do romance brasileiro com livros como Oúltimo salão grená, Lili Passeata, Quatro estre-las no pi jama e Ela se chama JoanaFelicidade, publicados pela Civilização Brasilei-ra, pelo Clube do Livro e depois pela Record.

Jornalista por formação, começou pela narrati-va curta, pela história feita para ser lida de uma sófôlego. História que reunia a agilidade da reporta-gem e o humor circunstancial da crônica. Depois,ele descobriu que precisava do tempo e do espa-ço romanescos para conferir densidade aos seuspersonagens, muitos deles nascidos do texto pe-recível de jornal.

Chegando ao romance, Guerra apurou sua ar-tilharia narrativa e amadureceu como escritor. VilaNova da Rainha Doida é o retorno do escritor aocampo de desafios da história curta. Neste livroele realiza alguns contos exemplares, capazes depermanecer na mente do leitor engendrando ou-tras palavras. Palavras ditas do interior de cadaum de nós quando tecemos o fio de ligação entre

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o destino dos seus personagens e o nosso cotidi-ano de leitores.

Outros contos, no entanto, permeiam a crônica,com sua despretensiosa espontaneidade, onde oanedótico se sobrepõe à astúcia fabulativa. Sãohistórias que não alcançaram o mesmo nível delinguagem e fabulação que caracteriza o livro comoum conjunto, como um todo formado por cordilhei-ras ensolaradas e vales sombrios. Mas as boashistórias compensam plenamente os momentosem que o cronista do cotidiano aligeirado insisteem ocupar espaço nestas quase duzentas pági-nas de Vila Nova da Rainha Doida. 

O mundo rural, as pequenas cidades do interi-or, tomadas como metáforas confortáveis da so-ciedade global, constituem o território mais lumi-noso da narrativa de Guido Guerra, o espaço ondeele realiza melhor o trabalho ficcional. As históriastranscorridas nesse mundo emblemático são asmais fascinantes, a exemplo daquelaspassadas em Mirante dos Aflitos, cidade do Co-ronel Duarte e do seu fiel escudeiro Tibério BoaMorte.

Nesse espaço denso e trágico o ficcionistapôde alcançar seus mais bem acabados relatos,transpondo para o domínio distante das ficçõesdo interior, a opressão e a injustiça que caracteri-zam a reluzente miséria do neoliberalismo.

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Sem fazer apologia dos deserdados e semmacaquear o engajamento dos anos sessenta, otexto desse escritor dispara certeiro e objetivo,guardando nos cofres do faz de conta os tesourosda solidariedade e da denúncia mais conse-quentes.

A força da tragédia banal dos homens simplesé, às vezes, arrefecida pela busca do humor. Emmeio ao desapontamento do narrador e do leitordiante das impassíveis engrenagens da máquinado mundo, Guido Guerra recorre ao humor de con-formação um tanto irônica e cáustica, quebrandoa tensão da narrativa. Mas os melhores momen-tos são aqueles em que ele enfrenta o destino dassuas criaturas de papel, deixando que elas execu-tem movimentos de desespero e resignação con-tra a rede da vida. Deixando que elas encenem ogesto falido ou o ensaio mambembe desse dra-ma, cujo roteiro todos gostaríamos de reescrever.Mas o drama não se passa num palco, porém nasruas do nosso tempo, onde o riso desconcertado

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toma o lugar que poderia ser ocupado por um socono vazio – ou pelo impassível fluir do trágico.

 Guido Guerra: do jornalismoà criação literária

 Auto-Retrato é um livro que se escreveu a mui-

tas mãos e há muitos anos; ou melhor, ao longodos anos. As mãos do escritor maduro e com se-guro domínio dos seus instrumentos de trabalho,reunindo os textos que compõem este livro de re-talhos, ao completar sessenta anos, não são asmesmas mãos do incipiente cronista que, nos anossessenta, verteu pelas páginas do velho Diário deNotícias golfadas de mel e de fel, às vezes mistu-radas numa mesma taça. São outras também, di-versas das do cronista de Na casa do sem jeito,as mãos que escreveram O último salão grená eaquelas outras, definitivamente seguras, que tra-çaram as linhas precisas de Vila Nova da RainhaDoida.

Esse livro é, mais do que um painel, uma espi-ral. Ascendendo, depois de muitas voltas, idas evindas, até achar o caminho mais simples e maispróximo da chegada: a maturidade.

Nascido a 19 janeiro de 1943, na cidade deSanta Luz, região sisaleira da Bahia, Guido Guer-ra viveu boa parte da infância e da adolescência

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(1947-1958) em Senhor do Bonfim, onde o seupai, o futuro desembargador Adolfo Leitão Guer-ra, foi Juiz de Direito.

Em Salvador estudou no Ginásio Ipiranga, noColégio de Aplicação da UFBA e, finalmente, noColégio da Bahia (Central), onde começou a fa-zer o curso Clássico, que não chegou a concluir.

As redações de jornal foram responsáveis pelasua formação posterior. Mesmo sem curso univer-sitário obteve o registro de Jornalista Profissional,após os muitos anos de aprendizado. Neste pon-to, sua trajetória foi idêntica a de muitos escrito-res brasileiros tanto do século XIX quanto do sé-culo XX, cuja escola superior foi o trabalho diáriocom a palavra escrita no calor da hora e na apres-sada contingência do jornal. Machado de Assis,Graciliano Ramos, ou o baiano Herberto Sales sãoapenas exemplos.

Ainda estudante no Central, começou o apren-dizado no Jornal da Bahia, em 1961, recém-fun-dado diário que teve em seus quadros intelectu-ais como João Carlos Teixeira Gomes, FlorisvaldoMattos, Glauber Rocha, Ariovaldo Matos, DavidSalles, Paulo Gil Soares e outros. Pouco depois,por volta de 1962, transferiu-se para o Diário deNotícias, onde foi repórter e logo em seguida co-meçou a assinar uma coluna.

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Sobre os anos de atuação de Guido Guerra novelho DN, Jorge Amado deixou algumas páginasregistradas no livro de memórias Navegação deCabotagem que bem revelam o perfil combativodo jornalista e do futuro escritor. Em 1972, o jorna-lista responde pela primeira vez a um inquérito naPolícia Federal, órgão civil responsável pela cen-sura e pela repressão aos adversários do regimemilitar implantado em 1964 e que, poucos anosdepois, se caracterizaria como uma longa ditadu-ra de direita, a serviço da política imperialista dosEstados Unidos, hoje plenamente hegemônica. Aesta acusação de subversão, seguiram-se muitasoutras. Guido Guerra respondeu a 17 inquéritos einterpelações do regime ditatorial. Algumas vezesfoi afastado do jornal, para voltar em seguida etornar a ser afastado, enquanto durou a censura e

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a presença dos oficiais militares nas redações dosjornais.

Em 1963, escreveu no semanário Folha daBahia, jornal de esquerda empastelado pelo gol-pe militar de 64, cuja redação funcionava na sededo Partido Socialista Brasileiro, congregando mi-litantes do clandestino Partido Comunista. Emseguida passou a colaborar com o Jornal IC, diri-gido por Ariovaldo Matos e José Gorender, am-bos anteriormente ligados à Folha da Bahia. Apartir de 1977 retorna ao Jornal da Bahia, ondeassina a coluna “Nariz de Cera”, transferindo-seem seguida para a Tribuna da Bahia, como reda-tor principal da seção “Roda Viva”. Nos anos 80torna-se editorialista e colunista do Jornal daBahia, funções que deixa para assinar umaprestigiada coluna no recém-fundado Bahia Hoje,de vida curta.

Recordações do escrivão Guido Guerra; ou perfil de umcriador de mundos paralelos. Publicado anteriormenteem Iararana (Salvador), v. IX, p. 16-25, 2007.