Guilherme Arantes - Carta Capital

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82 WWW.CARTACAPITAL.COM.BR Plural G uilherme arantes en- trou em uma máquina do tempo e regressou três dé- cadas na sua história. A viagem não lhe proporcio- nou mudanças físicas. Os cabelos fartos não retornaram, tampouco o corpo es- guio da juventude. Seu reencontro deu- -se com a matriz pop romântica que o sa- grou nos anos1980, ao embalo de Cheia de Charme, Deixa Chover , Planeta Água e tantos outros hits. Uma sonoridade in- confundível, cunhada à base de sua “pe- gada” muito pessoal ao piano. Esse retorno aos primórdios o fez visi- tar o prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da USP, onde estudou na década de 1970, mas largou antes de con- cluir. Ele diz se arrepender de não ter ido até o fim. Não por acreditar que a mú- sica tenha sido um equívoco, mas por não ter conquistado o canudo de arqui- teto. “Levo mais jeito para arquitetura do que meus colegas”, graceja. O cantor e compositor paulistano revisitou o pas- sado para fazer as pazes com o presen- te. Sua máquina do tempo é o novo dis- co, Condição Humana (Coaxo do Sapo/ Tratore), que reúne dez faixas com a pre- sença marcante de seus teclados. Foram seis anos sem inéditas. Pausa para enxergar quem ele realmente foi e quem pretendia ser. “Fiz muito essa reflexão: por que as pessoas gostavam tanto de algumas coisas minhas e de ou- tras nem tanto? O que eu faço que mais ninguém faz parecido?” Foi o que o levou ao encontro de seu velho e amado piano romântico, deixando de lado outras in- cursões experimentadas na carreira, co- mo sua faceta bossa nova, tão elogiada por Tom Jobim, ou mais funkeada, cultuada por feras como Ed Motta. Condição Humana vem acompanha- do do subtítulo Sobre o Tempo. O tempo é tema recorrente no disco e em seus pen- samentos. Às vésperas de completar 60 anos ( julho), o músico analisa o novo ci- clo de vida a partir do que vê ao redor, uma nova geração que chega em bloco à fase adulta. Pai de cinco filhos, já é avô. “Quando me tornei pai senti o baque da passagem do tempo. Chegou o momento de viver tudo de novo, com um olhar mais tranquilo. O coroa negocia com a vida, o jovem dá trombada. Ao mesmo tempo há uma urgência, porque você sabe que só tem um terço de vida pela frente.” E como cantar o amor de modo a soar como um sentimento de alguém vivido? A resposta veio com a primeira música, Você em Mim, pensada para Maria Bethânia gravar. A cantora não conse- guiu, no entanto, incluir a canção em sua obra recente. “É a letra de um amor ma- duro, sobre a capacidade de amar com qualquer idade. E isso acabou aplican- do-se a mim.” Arantes não desistiu de criar uma canção para a diva, a quem deu Brincar de Viver . Ela não foi caso isola- do. Ele muniu intérpretes como Elis Regina (Aprendendo a Jogar) e Roberto Carlos ( Toda Vã Filosofia). Sua obra está impregnada de vivên- cias. É assim com Onde Estava Você, in- terpretada em tom nostálgico. Fala sobre a finitude da amizade, dos laços esfacela- dos. A princípio inspirou-se na filha ado- lescente, que perdeu contato com uma amiga, mas acabou resvalando na pró- pria história. Com os olhos marejados, lamenta os amigos perdidos. “Quando se é jovem, parece que toda aquela turma vai durar para sempre, mas houve ami- gos que não consegui reencontrar. Quis fazer uma música sobre a passagem do tempo sob o prisma das amizades que vão ficando num álbum de memórias. E me enxerguei também esquecido. Cadê meus amigos, o Ezequiel Neves, o Julio Barroso?”, complementa, voz embarga- da. A eles canta “Em tempos de guerra e paz/ Onde andava você/ Quando o mundo me esqueceu... na areia do deserto”. Para quem conhece a trajetória de su- perexposição do músico nas décadas de 1970 e 1980 e seu sumiço da mídia nos anos 1990 e 2000, a letra pode soar co- mo um desabafo. Ele não descarta essa leitura. Arantes recorda-se de quando "O sucesso é muito falso, volátil. Mas sabia que minhas músicas me fariam permanecer" Deixa chover PROTAGONISTA Após seis anos de pausa reflexiva, Guilherme Arantes revisita o passado e retoma a matriz pop romântica que o consagrou nos anos 1980 POR ADRIANA DEL RÉ ••CC_Plural_Arantes_748.indd 82 08/05/13 22:57

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Guilherme Arantes - Carta Capital - Maio 2013

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Guilherme arantes en-trou em uma máquina do tempo e regressou três dé-cadas na sua história. A viagem não lhe proporcio-

nou mudanças físicas. Os cabelos fartos não retornaram, tampouco o corpo es-guio da juventude. Seu reencontro deu--se com a matriz pop romântica que o sa-grou nos anos1980, ao embalo de Cheia de Charme, Deixa Chover, Planeta Água e tantos outros hits. Uma sonoridade in-confundível, cunhada à base de sua “pe-gada” muito pessoal ao piano.

Esse retorno aos primórdios o fez visi-tar o prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da USP, onde estudou na década de 1970, mas largou antes de con-cluir. Ele diz se arrepender de não ter ido até o fim. Não por acreditar que a mú-sica tenha sido um equívoco, mas por não ter conquistado o canudo de arqui-teto. “Levo mais jeito para arquitetura do que meus colegas”, graceja. O cantor e compositor paulistano revisitou o pas-sado para fazer as pazes com o presen-te. Sua máquina do tempo é o novo dis-co, Condição Humana (Coaxo do Sapo/Tratore), que reúne dez faixas com a pre-sença marcante de seus teclados.

Foram seis anos sem inéditas. Pausa para enxergar quem ele realmente foi e quem pretendia ser. “Fiz muito essa

reflexão: por que as pessoas gostavam tanto de algumas coisas minhas e de ou-tras nem tanto? O que eu faço que mais ninguém faz parecido?” Foi o que o levou ao encontro de seu velho e amado piano romântico, deixando de lado outras in-cursões experimentadas na carreira, co-mo sua faceta bossa nova, tão elogiada por Tom Jobim, ou mais funkeada, cultuada por feras como Ed Motta.

Condição Humana vem acompanha-do do subtítulo Sobre o Tempo. O tempo é tema recorrente no disco e em seus pen-samentos. Às vésperas de completar 60 anos (julho), o músico analisa o novo ci-clo de vida a partir do que vê ao redor, uma nova geração que chega em bloco à fase adulta. Pai de cinco filhos, já é avô. “Quando me tornei pai senti o baque da passagem do tempo. Chegou o momento

de viver tudo de novo, com um olhar mais tranquilo. O coroa negocia com a vida, o jovem dá trombada. Ao mesmo tempo há uma urgência, porque você sabe que só tem um terço de vida pela frente.”

E como cantar o amor de modo a soar como um sentimento de alguém vivido? A resposta veio com a primeira música, Você em Mim, pensada para Maria Bethânia gravar. A cantora não conse-guiu, no entanto, incluir a canção em sua obra recente. “É a letra de um amor ma-duro, sobre a capacidade de amar com qualquer idade. E isso acabou aplican-do-se a mim.” Arantes não desistiu de criar uma canção para a diva, a quem deu Brincar de Viver. Ela não foi caso isola-do. Ele muniu intérpretes como Elis Regina (Aprendendo a Jogar) e Roberto Carlos (Toda Vã Filosofia).

Sua obra está impregnada de vivên-cias. É assim com Onde Estava Você, in-terpretada em tom nostálgico. Fala sobre a finitude da amizade, dos laços esfacela-dos. A princípio inspirou-se na filha ado-lescente, que perdeu contato com uma amiga, mas acabou resvalando na pró-pria história. Com os olhos marejados, lamenta os amigos perdidos. “Quando se é jovem, parece que toda aquela turma vai durar para sempre, mas houve ami-gos que não consegui reencontrar. Quis fazer uma música sobre a passagem do tempo sob o prisma das amizades que vão ficando num álbum de memórias. E me enxerguei também esquecido. Cadê meus amigos, o Ezequiel Neves, o Julio Barroso?”, complementa, voz embarga-da. A eles canta “Em tempos de guerra e paz/ Onde andava você/ Quando o mundo me esqueceu... na areia do deserto”.

Para quem conhece a trajetória de su-perexposição do músico nas décadas de 1970 e 1980 e seu sumiço da mídia nos anos 1990 e 2000, a letra pode soar co-mo um desabafo. Ele não descarta essa leitura. Arantes recorda-se de quando

"O sucesso é muito falso, volátil. Mas sabia que minhas músicas me fariam permanecer"

Deixa choverPROTAGONISTA Após seis anos de pausa reflexiva, Guilherme Arantes revisita o passado e retoma a matriz pop romântica que o consagrou nos anos 1980por aDriaNa DEl rÉ

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Imersão. Hoje, perto de completar 60 anos. E no limiar do sucesso, em 1984 (alto) e 1982

Os anos 2000 simbolizaram um novo capítulo. O cantor, que cresceu em meio à efervescência cultural do Bexiga, em São Paulo, e morou no Rio de Janeiro, se mu-dou para a Bahia. Em Barra do Jacuípe, Camaçari, ergueu o estúdio e pousada Coaxo do Sapo, com projeto arquitetôni-co próprio. Perto funciona seu Instituto Planeta Água, que desenvolve ações so-ciais e ambientais. “Comecei a recons-truir tudo da estaca zero.” Em Condição Humana, o músico cercou-se de uma par-cela expressiva da nova geração, Marcelo Jeneci, Curumin, Duani, Mariana Aydar, Thiago Pethit, Tiê, Tulipa Ruiz. Com o ál-bum recém-lançado, tem novo desafio: competir com suas músicas consagradas. Mas o Guilherme Arantes de hoje, mais se-reno, certamente dará um jeito de convi-ver em harmonia com a obra do irrequie-to Guilherme Arantes de 30 anos atrás. •

estava no apogeu. Que muitas vezes, depois de fazer show para uma multi-dão enlouquecida, “eu era uma espécie de Luan Santana”, voltava para o hotel, punha um calção e saía caminhando pe-la cidade para ouvir o barulho do ven-to, os passos no chão. “O que me segurou a cabeça durante o estrelato foi o tem-po da faculdade, ter lido Maiakovski. Sucesso é muito falso, volátil. Mas sa-bia que o que me faria permanecer se-riam as músicas.”

Apesar de ser o menino de ouro da vez, não escondia a insatisfação com a dinâmi-ca das grandes gravadoras. Era preciso aparecer na tevê à exaustão, gravar um som palatável às massas, ser rentável. E ele só queria fazer música. Na CBS (atual Sony) havia planos de carreira internacio-nal. Para o Guilherme Arantes tipo expor-tação pensava-se na imagem do cantor

romântico, nos moldes de Julio Iglesias. “Queriam me transformar. E havia pesso-as que achavam que estava fora desse pro-jeto eu tocar piano. Mas eu os enganava. Ficava prometendo disco para o outro ano, mas não lancei nada. Nunca deixei mexe-rem na minha verdade do piano.”

com a chegada do CD, nos anos 1990, o cenário mudou. O axé, o pagode e o ser-tanejo se fortaleceram como fenômenos populares e jogaram para escanteio no-mes consagrados do rock e da MPB, entre eles Os Paralamas do Sucesso e Guilherme Arantes, respectivamente. Os primeiros investiram em shows fora do Brasil e encontraram plateias devo-tas na Argentina. O segundo seguiu ca-minho longe dos holofotes, continuou a fazer shows, a lançar discos e voltou ao anonimato. “Foi a década perdida.”

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