Guillaume Prévost - O Livro do Tempo -vol. 2 - As sete moedas+

download Guillaume Prévost - O Livro do Tempo -vol. 2 -  As sete moedas+

of 315

Transcript of Guillaume Prévost - O Livro do Tempo -vol. 2 - As sete moedas+

  • Guillaume Prvost

    As sete moedas

    O Livro do Tempo

    Traduo de ANDR TELLES

    galera RECORD

    Rio de Janeiro | 2009

  • CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    Prvost, Guillaume P944s As sete moedas / Guillaume Prvost; traduo Andr Telles. - Rio de Janeiro: Galera Record, 2009. (O livro do tempo; 2) Traduo de: Les sept pices Sequncia de: A pedra esculpida ISBN 978-85-01-07957-2 1. Viagem no tempo - Fico. 2. Pessoas desaparecidas -Fico. 3. Fico francesa. I. Telles, Andr. II. Ttulo. III. Srie. CDD - 84308-4647 CDU - 821. 111. 1-3 Ttulo original francs: LES SEPT PICES Impresso no Brasil

  • I

    Raiva matinal

    miservel estava tentando estrangul-lo... Sa-muel sentia suas mos compridas e calejadas apertando-lhe a garganta prestes a asfixi-lo. O

    pior que no adiantava erguer os olhos, no conseguia discernir seus traos. Via nitidamente a neve caindo do cu sobre as torres de Bruges, as pessoas passeando com suas tnicas sem lhe dar a mnima ateno o que fazi-am todos aqueles egpcios numa rua daquela cidade em pleno inverno? Mas a fisionomia de seu agressor continua-va transparente, como que esculpida num vidro cristalino. A medida que a observava, porm, a cabea invisvel foi gradativamente se revestindo de uma substncia metlica e brilhante: o nariz, as faces, a testa, o rosto inteiro trans-formava-se numa espcie de espelho caleidoscpico! Fas-cinado, Sam tentou reerguer-se para contemplar seu re-flexo. Mas no foi sua imagem que o horrvel espelho de forma humana devolveu-lhe: foi a do pai... Seu pai esgo-tado e velho; multiplicado ao infinito e balbuciando an-gustiadamente. Socorro, Sam, socorro!

  • Samuel esticou o brao para socorr-lo, mas sua mo esbarrou na mesinha de cabeceira. Acordou suando em bicas, subitamente tomando conscincia de que aquilo tudo no passava de um sonho. Sonho... Pesadelo, isso sim! E um pesadelo que era em parte real, infelizmente: a vida de seu pai de fato corria perigo.

    Tudo comeara vinte anos antes, no Egito. Na -poca, Allan Faulkner, pai de Sam, trabalhava nas escava-es do tmulo do sumo sacerdote Setni. L, havia feito a incrvel descoberta de uma pedra esculpida, que funcio-nava como uma mquina do tempo. Seu funcionamento parecia relativamente simples: para acion-la, bastava en-caixar, no sol gravado em seu centro, uma moeda furada. No qualquer uma, bvio. Era preciso que fosse dotada de poderes mgicos, porm, notoriamente, existiam vrias delas e em todas as pocas. Pelo que Sam conseguira re-constituir, seu pai efetuara algumas viagens durante os trabalhos no stio arqueolgico, depois fora obrigado a desistir delas por longos anos. Em todo caso, at alguns meses atrs, pois, ao abrir uma livraria no tradicional bairro de Sainte-Mary, ele descobrira seria um acaso? outra pedra esculpida.

    E eis que, trs semanas antes, Allan desaparecera... A fim de descobrir seu paradeiro, Sam vasculhara o poro da Livraria Faulkner, encontrando ali uma pedra esculpida e o Livro do Tempo. Este ltimo era um belo livro de ca-pa vermelha e gretada, cujas pginas, todas idnticas, ilus-travam a poca de destino do usurio da pedra. Graas a

  • esse livro e a diversas viagens no tempo, Sam localizara seu pai: estava na Valquia medieval, sob o reinado de Vlad Tepes, tirano sanguinrio que servira de modelo para o personagem de Drcula! Sua misso agora era arranc-lo das garras desse monstro...

    Samuel jogou o lenol para o p da cama e se le-vantou num pulo: o rdio-relgio piscava 6h42. Teorica-mente estava de frias, porm, considerando a situao, aquilo no tinha importncia nenhuma. Em vista das cir-cunstncias, ele tambm se tornara um viajante, lan-ando mo de todos os meios para encontrar seu pai. Dessa forma, perambulara da abadia de Iona ameaada pelos vikings at as trincheiras da Primeira Guerra Mundi-al. Depois, do Egito dos faras at a cidade de Bruges da aqueles sonhos, alis bem confusos historicamente fa-lando! Ora, de acordo com sua prpria experincia e cl-culos, o tempo corria no passado sete vezes mais rpido que no presente. Em outras palavras, um dia aqui equiva-lia a uma semana l. O que representava, para Allan, h vinte dias prisioneiro de Vlad Tepes, meses mofando nu-ma masmorra em meio a ratos e percevejos. Samuel via-o nitidamente, magro de dar medo, de ccoras numa enxer-ga de palha mida, empregando suas ltimas foras para repelir roedores famintos ou recolher um pouco da gua que transpirava nas paredes. Por quanto tempo resistiria a essa condio?

    Sam esfregou energicamente os olhos e, como fazia toda manh, passou em revista os poucos elementos que

  • detinha e que, esperava, o ajudariam a encontrar uma so-luo para socorrer Allan. Ao lado do Livro do Tempo, que ele manipulava sempre com precauo, havia um sa-quinho de plstico contendo trs exemplares daquelas moedas furadas que permitiam acionar a pedra esculpida. Uma dessas moedas era antiga, exibindo uma serpente negra coleando no metal. A segunda era mais recente e estampava inscries em rabe, enquanto a terceira lem-brava uma ficha de pquer feita de plstico. Sam pegou sob o saquinho a folha branca na qual copiara o frag-mento de um velho grimrio, um livro de feitios, desco-berto por ocasio de uma precedente excurso casa do famigerado Klugg, o alquimista de Bruges. O original do texto era em latim, mas sua prima Lili com quem se entendia cada vez melhor teve a presteza de traduzi-lo:

    AQUELE QUE REUNIR AS SETE FICHAS SER O SE-NHOR DO SOL. SE CONSEGUIR FAZER BRILHAR OS SEIS RAIOS, SEU CORAO SER A CHAVE DO TEMPO. ENTO ELE CONHECER O CALOR IMORTAL.

    A primeira vista, claro, aquilo no significava muita coisa, mas, para Sam, que se tornara um perito na matria, aquele gnero de texto era promissor. O grande problema era sua incapacidade de controlar o tamanho dos saltos no tempo: cinquenta ou cinco mil anos, tudo era possvel. E, nessas condies, como salvar seu pai? Ora, o grimrio sugeria que, para obter a chave do tempo e, portan-to, escolher sua poca de chegada , bastava ter sete moedas e as encaixar adequadamente: uma, a que indicava

  • a destinao desejada, no centro do sol gravado na pedra; as seis outras nas seis fendas que desenhavam seis raios ao redor. Sete moedas. Era exatamente do que ele precisava para resgatar Allan!

    Sua pista mais recente era um livro de fotografias que Lili pegara emprestado na biblioteca de Sainte-Mary: Bran, a morada de Drcula. Era integralmente dedicado a um dos castelos de Vlad Tepes, e uma das ilustraes chamara a ateno de sua prima. Mostrava uma inscrio irregu-larmente traada em uma das paredes da priso: AJU-DE-ME, SA M. A mensagem, evidentemente, era de Al-lan. Um S. O. S desesperado lanado do fundo de sua cela seiscentos anos antes! O prprio autor do livro no dissi-mulava sua perplexidade. Sob a fotografia, acrescentara o seguinte comentrio: Essa inscrio foi revelada durante a res-taurao dos subterrneos de Bran. De acordo com certas anlises, teria vrios sculos. O fato de que esteja em ingls aumenta o mist-rio: V lad Tepes teria capturado um sdito do rei da Inglaterra du-rante uma campanha militar? E quem era esse Sam, a quem a mensagem se dirigia? Seja como for, uma prova a mais de que no devia ser fcil ser prisioneiro do prncipe da Valquia!

    Aps muito refletir, Sam, por sua vez, enxergava outra coisa naquilo. Por uma razo desconhecida, Vlad Tepes decidira no executar seu pai imediatamente: deixa-ra-o de molho numa de suas celas, restando um fio de es-perana de resgat-lo vivo. Alm disso, se Allan escrevera aquelas poucas palavras, porque via em Samuel a nica pessoa no mundo capaz de arranc-lo de l. Tinha confi-

  • ana no filho, uma confiana to exclusiva, to pungente, que dava ainda mais responsabilidade ao jovem. Num certo sentido, os papis invertiam-se bruscamente: agora era Sam quem cuidava do pai. E, apesar do tempo infinito que os separava, Sam todas as manhs renovava sua pro-messa: iria salv-lo, de um jeito ou de outro.

    Samuel arrumou cuidadosamente seus tesouros numa caixa de papelo no fundo do armrio e vestiu uma cala comprida para ir tomar o caf-da-manh. Julgava que todos ainda estivessem dormindo, mas Lili j estava na cozinha, debruada numa tigela de cereais.

    Lili? J levantou? Desde as 5h ela sussurrou, mastigando.

    Tive um pesadelo. Puxa vida! De que tipo? ele perguntou, servindo-se ge-

    nerosamente de sucrilhos de cereais. Besteira... Conhece o Nelson, irmo da Jennifer?

    Sonhei que estvamos na casa deles na beira da piscina e que ele comeava a derreter como uma pedra de gelo! Primeiro os ps, que iam ficando moles, depois as mos, e ento a cabea, que comeou a afundar. Jennifer corria de um lado para o outro atrs de gelo e chamando minha me, mas no havia nada a fazer, ele continuava a derreter! No fim, ficava apenas uma pocinha azul, da cor do calo de banho dele. ou no idiota?

  • Samuel pegou uma colher e mergulhou no leite frio, observando as ptalas brilhantes naufragarem no mar branco e agitado.

    Talvez no ele retorquiu s para chatear. Talvez voc realmente quisesse que ele se derretesse por voc!

    Lili fez uma cara sinceramente consternada. Muito obrigada! Nelson um dbil mental. No

    sabe construir uma frase com mais de quatro palavras e seu quarto uma floresta de psteres de fuzis. Consegue me ver apaixonada por um cara que decora o quarto com fuzis? E, alm do mais, ele feio.

    Samuel esboou um sorriso. Sua prima tinha 12 anos, era bonita e inteligente, mas at aquele momento ele evitara tocar no captulo delicado dos assuntos do cora-o. bvio que ela o mandaria plantar batata, e ele mesmo no tinha um currculo to excepcional nesse terreno que pudesse oferecer como modelo. A prova: durante trs longos anos, no tinha tido coragem de ir uma nica vez casa de Alicia Todds, seu nico e verdadeiro amor. E, quando finalmente encontrara com ela dois dias antes, es-tava pendurada no brao de um alto louro e metido. Que sucesso!

    E voc perguntou a prima baixinho , caiu da cama?

    No, estava pensando no meu pai. Espero... es-pero que ele esteja vivo.

    Lili balanou a cabea com convico.

  • No o que a vov sempre diz? A vov no faz idia do que est acontecendo

    replicou Sam. A nica maneira de ter certeza ir at l. E para ir at l...

    Sua colher permaneceu por um instante parada no ar.

    Tenho que encontrar outras moedas, Lili. No mnimo quatro. Ento, poderei traz-lo de volta.

    Justamente declarou sua prima fitando-o nos olhos J que est falando em moedas, pensei em algu-ma coisa. Barnbom...

    Barnbom? O sujeito a quem pertencia a livraria do papai? Corre o boato de que uma penca de gente es-tranha entrava e saa da casa dele, mas isso h cem anos! O que quer que eu faa com Barnbom hoje?

    No museu de Sainte-Mary ela continuou sem se desarmar h uma penca de objetos que ele legou cidade. Estou me lembrando disso porque, quando fize-mos a visita com a escola, o nome dele constava dos mos-trurios: Legado de G. Barnbom. Como se tratava do nome da sua rua, o negcio me impressionou. No... no posso garantir, Sam, mas acho que havia moedas.

    Furadas? At dez dias atrs, me desculpe, eu no me inte-

    ressava muito por moedas, e menos ainda por moedas fu-radas. Por que no vai l para dar uma checada?

    As moedas de Barnbom! inflamou-se Sam. O museu! Tem razo!

  • Lili ps um dedo na boca dele: Quer um megafone para acordar toda a famlia? Voc acertou na mosca, Lili! ele continuou

    mais baixinho. Se Barnbom morava na casa com a pe-dra esculpida, porque provavelmente a utilizava para vi-ajar! O que explicaria os estranhos energmenos que zan-zavam pela casa dele. possvel que algumas moedas te-nham sobrevivido sua morte e, se ele as...

    No teve tempo de concluir a frase, pois tia Evelyn fez uma apario escandalosa na porta da cozinha, num robe roxo-eltrico.

    O que foi que eu lhe disse, Lili! berrou. Est proibida de ver seu primo at nova ordem! Ser que falo chins? Esqueceu que ele roubou seu celular h me-nos de trs dias? Que passa o tempo vadiando, sabe-se l onde e com quem, sem dar a menor explicao? Quer ser igual a ele? Estou avisando, Lili, se tiver que ficar no seu p o tempo todo, mando voc agora para o acampamento de Deadlake!

    Tia Evelyn, me de Lili, manifestava uma paixo ir-reprimvel pelo confinamento e a disciplina: Deadlake era uma colnia de frias famosa pelo rigor de seus monito-res, um equivalente feminino da casa de correo com que ela ameaava Sam j havia alguns dias uma maneira como qualquer outra de arrancar a filha da influncia ne-fasta do primo.

    Mas no fiz nada de errado! protestou Lili. Estou tomando meu caf-da-manh!

  • Ento por que todos esses mexericos, hein? O que ser que ele est querendo fazer voc engolir agora? Quer seu colar? Sua pulseira? Voc ouviu o aviso de Ru-dolf... Samuel s d dor de cabea e, se bobear, anda se drogando!

    Evelyn, meu Deus! O que est dizendo? O av de Sam e Lili descia rapidamente a escada,

    alertado pela barulhada. Tinha os cabelos desgrenhados e os botes da camisa do pijama nas casas erradas alhos com bugalhos, vov teria dito.

    O que estou dizendo? berrou Evelyn ainda mais alto. esse garoto diablico de novo, tentou ar-rastar Lili para uma de suas confuses! Ele no para de conspirar nas minhas costas.

    Acalme-se, Evelyn ordenou o vov, num tom firme. So apenas crianas!

    Claro! Defenda-os de novo! Foi igualzinho com o Allan! Mame e voc sempre defenderam o Allan. O queridinho, no mesmo? Ele tambm podia fazer tudo! Voltar a qualquer hora, colecionar coisas pavorosas, acu-mular notas baixas, vocs no davam a mnima! Enquanto eu...

    Abafou um suspiro de raiva. Seja como for, eis no que deu curvar-se a todos

    os seus caprichos... Sumiu, de uma hora para outra! E deixando o filho com vocs, ainda por cima! Ora, o que vocs no querem compreender, mame e voc, que

  • Samuel est indo exatamente pelo mesmo caminho. E vocs fecham os olhos!

    Amarrou uma tromba e saiu da cozinha, agitando suas mangas roxas e esbarrando no velho no corredor. Samuel no sentia seno uma afeio moderada por aquela tia nervosa que parecia odiar o mundo inteiro exceto o seu Rudolf, o namorado do momento, que ela paparicava o tempo todo com olhares de devoo. Mas agora ela ti-nha realmente passado dos limites. Se tivesse esse poder, Sam os teria alegremente despachado a ela e seu rid-culo robe de chambre para o calabouo do castelo de Bran no lugar do seu pai. Afinal, quem sabe o Drcula no gos-tava de roxo?

  • II

    Furto

    interior do dinossauro baryonix exalava um forte cheiro de tinta fresca e cola. O animal media 3 m de altura por 9 m ou 10 m de com-

    primento, e, na penumbra, as protuberncias de espuma de suas paredes evocavam um turbilho de membranas enroladas em si mesmas. Samuel encolhera-se todo em sua parte traseira, onde a barriga da besta afinava at se trans-formar numa longa cauda de resina cuja ponta ele no conseguia avistar. Estava ali esperando j fazia duas horas, sentado recostado num ovo de plstico cinza, o que suge-ria que aquele baryonix era uma fmea nada atraente, por sinal, com uma cabea tipo crocodilo esmagado e pa-tas dianteiras horrivelmente curtas e cheias de garras. Provavelmente o espcime de monstro que permitia atrair ao museu os jovens moradores de Sainte-Mary vidos de sensaes.

    Para falar a verdade, o mais difcil no tinha sido arranjar aquele esconderijo, mas convencer sua av a dei-x-lo sair de casa. Depois das vociferaes da tia Evelyn, a manh transcorrera numa atmosfera modorrenta, e os

  • membros da famlia Faulkner haviam se evitado a todo custo. Durante o almoo, estranhamente silencioso apesar de Evelyn estar fora, Sam comunicara a todos que seu amigo Harold o convidara para dormir na casa dele a fim de comemorarem o incio das frias. Sua av fechou a ca-ra, mas seu av voara em seu socorro: Sammy merecia e-fetivamente uma pequena recompensa aps sua vitria no torneio de jud, categoria 14-16 anos vitria mais que inesperada, diga-se de passagem, e cujos segredos Sam fi-zera questo de guardar consigo. Acabou prevalecendo essa deciso, com Sam prometendo telefonar por volta das 23h e comentando, de passagem, que Harold e ele i-riam passar a tarde no museu de Sainte-Mary. Se para se instruir..., capitulou sua av.

    Na realidade, Sam no combinara nada com Ha-rold. Contentara-se em lhe enviar um torpedo pedindo-lhe para, no caso de sua av telefonar, fingir que simples-mente o convidara para dormir na casa dele. Em seguida, encaminhara-se at o museu de Sainte-Mary e o percorrera de ponta a ponta. De fato, Gary Barnbom fizera uma doao de um determinado nmero de objetos mais ou menos antigos cidade: faqueiros de ouro, perucas do s-culo XVIII, um dente de mamute, uma taa de cristal su-postamente pertencente ao explorador Jacques Cartier, um colar asteca... Alguns suvenires de suas viagens ao passado?

    Na sala reservada s moedas, metade de um mos-trurio era dedicada ao legado Barnbom. As moedas eram

  • de pocas e pases diferentes, mas o principal que cinco delas tinham um furo no meio e eram aproximadamente do tamanho certo. Cinco! Samuel sentiu-se dotado de a-sas: logo botaria as mos no que precisava para encontrar seu pai!

    Espreitou direita e esquerda, examinou as c-meras nos corredores e constatou que o sistema de vigi-lncia era muito rudimentar. Alis, as moedas em questo no tinham grande valor no mercado, no havia razo pa-ra que fossem particularmente protegidas. E depois, se no fosse capaz de enfrentar dois trincos e trs cmeras, como poderia um dia empreender o assalto ao castelo de Bran?

    Arrastou-se ento para o lado das cantinas e vesti-rios reservados aos guardas contou oito no total antes de voltar seo de paleontologia, onde percebera o baryonix sob uma lona. O animal estava na realidade em vias de restaurao, a direo aproveitando-se das frias escolares para recuperar uma de suas atraes fetiches: as crianas subiam por um dos lados da besta, e, atravessan-do alguns metros de sua barriga, saam do lado oposto por um pequeno tobog. Seja devorado pelo baryonix! proclama-va o cartazinho. E embaixo: Baryonix (garras poderosas); grupo: Terpodes; peso: 1,8t; altura... etc. Milhares de sapatos e mos curiosas deviam ter acabado por danificar o est-mago do monstro e uma trgua se impunha.

    Samuel aguardou o fechamento e, quando o museu ficou vazio por volta das 20h, aproveitou-se de um mo-

  • mento em que estava sozinho para se enfiar por baixo da lona. Dali a pouco os guardas fizeram a ronda das salas, mas sem se darem ao trabalho de verificar as entranhas da senhora Baryonix. Sam acabava de inventar a verso pr-histrica do Cavalo de Troia...

    Meia hora depois, uma porta bateu no recinto ao lado. Samuel recolocou precipitadamente no lugar a lona que ele erguera para respirar um pouco de oxignio. Dois guardas-noturnos acenderam a luz e passaram conver-sando a 75 cm dele.

    Isso tambm est fora do prazo... O baryonix, aqui... Parece que o pintor no quis voltar enquanto no recebesse o resto da grana.

    O caixa est vazio concordou a outra voz. O diretor disse que o municpio no vai aumentar o or-amento.

    O que eles precisam de objetos novos, para cha-mar o pblico. Mas ao preo que andam as antiguidades! Voc viu no jornal uma geringona grega que eles leiloa-ram em Londres? O Umbigo do Mundo, sei l o qu? Dez milhes de dlares em menos de dez minutos! Nosso museu no tem condies de fazer um lance desses!

    uma pena! Daqui a pouco vo comear a de-mitir pessoal para reduzir as despesas!

    Ficaram l se lamentando enquanto atravessavam a sala at chegarem outra porta e a fecharem. Sam viu-se novamente sozinho. Engoliu duas barras de caramelo com avels que ele tomara a precauo de comprar na lojinha e

  • esperou a ronda seguinte. Os guardas-noturnos voltaram a passar no fim de uma hora e quinze minutos, desta vez comparando os mritos dos seus times de hquei preferi-dos: um, torcedor fantico dos Rockets, o outro, Knights doente. Samuel conteve-se para no intervir, ainda que, para ele, nada se equivalesse aos Oceanic, desde que Sid-ney Crosby, seu zagueiro, estivesse em forma. Mas se a Madame Baryonix fosse dar sua opinio sobre o campeo-nato de hquei, certamente os dois homens teriam um ataque...

    Sam consultou seu relgio. Passava das 22h, e agora ele dispunha de cerca de cinquenta minutos para colocar seu plano em ao: ir at a sala de numismtica, descobrir um jeito de pegar as moedas, voltar para o estmago do dinossauro e esperar a reabertura no dia seguinte. Fcil, teoricamente...

    Quando se certificou de que os guardas no pode-riam mais ouvi-lo, saiu do esconderijo. Ligou seu celular e tentou orientar-se pela claridade azul da tela. Velocirptor direita; tricertops, esquerda, ele s precisava ir dire-tamente at os guichs, at a sala de histria local: as co-lees de moedas ficavam bem ao lado.

    Assim mergulhado no escuro, o museu tinha algu-ma coisa de lgubre, tipo casa velha mal-assombrada com dezenas de silhuetas ameaadoras prestes a morder voc. Vamos, pensou Sam, no tem nada vivo l dentro, a-penas velhos objetos empoeirados e inofensivos.

    Entretanto...

  • Ao empurrar a porta que dava no primeiro corre-dor, julgou perceber um barulho de chave ou metal se en-trechocando. Refugiou-se atrs da esttua de um Poseidon de tridente pontudo. Um dos guardas-noturnos talvez houvesse esquecido alguma coisa... Que fazer? Voltar atrs seria muito arriscado: reabrir a porta, desdobrar a lona... Samuel encolheu-se o mximo possvel, prendendo a res-pirao. O assoalho deu umas estaladas, o facho de um archote surgiu na sala ao lado, depois mais nada. Samuel contou mentalmente at cem antes de se levantar. Fim do alerta.

    Avanou roando nas paredes e chegou sem pro-blemas sala de Histria Local. Toda a aventura de Sain-te-Mary era ali retraada em grandes painis, em cujos in-tervalos manequins em trajes tpicos ilustravam as dife-rentes pocas da cidade. Foi ao avanar em direo a uma fazendeira que esvaziava sua tigela de leite que Sam viu uma sombra se mexer a 10 metros dele, para o lado da sa-la das moedas. A sombra estava debruada sobre um dos mostrurios e manipulava alguma coisa que produzia um rangido sutil. Samuel colou o celular na coxa para escon-der a luz, mas foi exatamente quando o aparelho escolheu para tocar. Ou melhor, vibrar, pois Sam tivera a boa idia de desativar o riff de guitarra que caracterizava seu toque. Ainda com sorte! Em todo caso, no silncio opressivo do setor de Histria Local, parecia que um dos personagens de cera acabava de acionar um barbeador eltrico!

  • A sombra fez meia-volta, iluminando com sua lan-terna o rosto bochechudo da fazendeira. Sam encolheu-se como pde atrs da tigela de leite, mas era tarde demais: o ladro o outro ladro! j pulava em cima dele. Agi-tou sua lanterna para golpear Sam, mas o rapaz esqui-vou-se na hora certa obrigado, jud , rolando at o p de Gordon Swift, primeiro e venervel prefeito de Sa-inte-Mary. Seguiu-se uma algazarra furiosa, em que Sam defendia-se como podia dos socos e joelhadas de seu ad-versrio, ambos segurando-se para no gritar ou pronun-ciar qualquer palavra a fim de no alertar os guardas. O homem era forte e aparentemente treinado naquele tipo de luta livre. Usava um conjunto de moletom preto e to-mara o cuidado de esconder o rosto e as mos com um capuz e um par de luvas. Um autntico profissional... Tentando agarrar-se a ele mesmo assim, Samuel rasgou o tecido flexvel de seu agasalho, revelando, sob claridade inquieta da lanterna, uma estranha tatuagem em seu om-bro: uma espcie de U com as pontas reviradas e um grande crculo no interior. O ladro no deve ter gostado que danificassem suas coisas, pois comeou a bater mais forte. Conseguiu inclusive deslizar as mos em torno do pescoo de Sam e soltou um suspiro de triunfo quando seus polegares apertaram o pomo-de-ado de sua vtima.

    Meu sonho, meu sonho desta noite!, pensou Sam, tentando aspirar um pouco de ar. O agressor sem rosto!

  • Aquela viso de pesadelo eletrizou-o: o meliante tentava estrangul-lo pela segunda vez no dia! Com um brusco movimento lateral, desequilibrou-o o suficiente para o empurrar at a panturrilha do excelente Gordon Swift, que, diante do choque, teve a boa idia de se jogar para trs. Ouviu-se ento um forte rudo de vidro que-brado e o alarme do museu comeou a uivar como se a cidade fosse alvo de um ataque nuclear.

    As luzes do corredor se acenderam e o ladro sol-tou Sam na mesma hora. Aturdido, quase sem ar, este s conseguiu perceber a forma negra e encapuzada fugindo para o fundo aps uma breve parada na sala adjacente. O mugido da sirene enfraqueceu ligeiramente e ouviram-se gritos:

    Est indo em direo aos guichs! Corra! Os guardas passaram sem se deter diante da sala de

    histria local e Sam obrigou-se a ficar de p: talvez tivesse uma chance de inverter a situao a seu favor. Precipi-tou-se para as colees de moedas: o mostrurio dedicado ao legado de Barnbom estava escancarado, o trinco for-ado...

    Porcaria! silvou. Fez um balano do local: todas as moedas furadas

    haviam sumido, exceto uma que devia ter escapado vigi-lncia do gatuno. Evidentemente, o homem de preto tambm viera pelas peas: havia dois ladres para o mes-mo butim!

  • Est indo para a entrada de servio! excla-mou um dos guardas do outro lado da divisria.

    Iam voltar, ruminou Sam, iam necessariamente voltar. O museu seria vasculhado em seus menores re-cantos e o ventre do baryonix no o ajudaria muito. Preci-sava ir embora. Imediatamente. Ora, a nica sada poss-vel...

    Samuel lanou um olhar para o corredor. Vazio. Colocou no bolso a ltima moeda, ficou de ccoras e se-guiu a direo tomada pelo fugitivo, mantendo-se alerta. O alarme emudecera e as vozes agora chegavam a ele a-bafadas, como se ningum mais estivesse no saguo. Ao alcanar os guichs, Sam girou a cabea em todos os sen-tidos. A porta de servio ficava ao lado dos vestirios. A-bria-se para uma galeria escura varrida por uma corrente de ar: a sada! Do lado de fora, os guardas esgoelavam-se:

    Alerta! Um ladro! Esto arrombando o museu! Samuel enveredou pela galeria e acabou percebendo

    uma maaneta na parede direita. Girou-a: pelo cheiro, um depsito de lixo. Enfiou-se ali derrubando um carri-nho de vassouras. Seu corao parecia um tambor enlou-quecido, batucando espasmodicamente: bum-bum, bum-bum, bum-bum... Quanto ao resto dele, tinha a im-presso de que um trem tinha-lhe passado por cima!

    Ao fim de trs minutos, os guardas voltaram no sentido inverso, sem flego: no haviam pego o homem de preto.

  • Vou... vou telefonar para a polcia ofegava um deles. Fique aqui e verifique o que ele roubou...

    Atravessaram a galeria sem manifestar o menor in-teresse pelas latas de lixo. Sam pde ento sair de seu es-conderijo e transpor os ltimos metros que o separavam da liberdade. Ar! Desceu alucinado por uma escadinha de pedra, atravessou rastejando um montinho de grama e correu sem olhar para trs at o cruzamento mais prxi-mo. Perambulou ao acaso pelas ruas e s parou de correr depois de haver colocado vrios quarteires de casas entre o museu e ele.

    Foi apenas nesse momento que se deu conta de que estava sem o seu celular.

  • III

    As sete moedas

    amuel fechou as cortinas da Livraria Faulkner re-primindo uma careta: assim que levantava um bra-o, algum mal-intencionado desferia-lhe uma ma-

    chadada nas costas. Era muito desagradvel... Por sorte, embora seu corpo no passasse de uma bola de dor, seu rosto fora relativamente poupado, exceto por um grande roxo agora quase amarelo no olho direito. O sufi-ciente para deixar sua av superpreocupada e bombarde--lo com perguntas: por que no dormira na casa do Ha-rold, afinal? Por que no telefonara s 23h como promete-ra? O que aprontara para voltar naquele estado? Etc. Sam explicou que tinham ido sesso noturna da pista de ska-te, que no haviam sentido a hora passar e que levara um tombo ao executar um boardslide um pouco mais a-crobtico. Mas estava tudo bem, vov, estava tudo timo! Fala srio!

    No dia seguinte, assim que conseguiu escapar, cor-rera at a rua Barnbom, mais decidido que nunca a levar sua investigao adiante. A primeira coisa a fazer era des-cobrir o lao existente entre o ladro da vspera, sua tatu-

  • agem misteriosa e a moeda que ele largara para trs. Sa-muel deu um peteleco e ela caiu na palma de sua mo: uma moeda velha e carcomida, praticamente lisa, na qual ainda se distinguia, dos dois lados do furo central, uma forma de U com as pontas reviradas.

    Bem parecido, no fim das contas, com o desenho tatuado no ombro do homem de preto. Um acaso? bvio que no.

    Sam pesquisara ento na internet a que correspon-dia esse smbolo, mas sem poder formular uma busca pre-cisa, no obtivera resposta satisfatria. Entretanto, estava convencido de que precisava pesquisar para o lado do E-gito antigo. Um tipo de hierglifo, por exemplo... Ora, justamente, a Livraria Faulkner era muito bem servida nesse ponto. Seria uma oportunidade de ir bisbilhotar um pouco por l, o que nunca se dera ao trabalho de fazer antes. Vantagem extra, estaria no local para a sequncia dos acontecimentos.

    Uma vez ao abrigo de olhares indiscretos, Sam examinou minuciosamente as prateleiras dedicadas his-tria. Trs estantes eram reservadas ao Egito, todas exi-bindo uma grande quantidade de calhamaos, dicionrios e livros de arte. Aps tatear por um momento, foi premi-ado com uma Enciclopdia dos faras, do sculo XIX. De

  • acordo com o captulo intitulado Panteo egpcio, o U bizarro com um crculo ilustrava na realidade um par de chifres com um disco solar inscrito em seu bojo. O con-junto servia de atributo para diversos deuses ou deusas, dentre os quais sis ou Hathor, que o usavam guisa de chapu. A obra no dava outros detalhes, mas Samuel ti-nha a confirmao do que pressentia: o Egito antigo, os deuses, o sol, tudo aquilo batia direitinho com a pedra es-culpida!

    Ao deixar de lado a enciclopdia, Sam percebeu um livrinho de capa preta que estava ostensivamente fora do lugar. Tratava-se de um romance, cujo autor, claro, no lhe era desconhecido: William Faulkner, um dos maiores escritores americanos do sculo anterior. Faulkner... Allan dedicava-lhe um verdadeiro culto, lamentando no ter la-o de parentesco com aquele a quem chamava de uma das sete maravilhas da literatura mundial. Quanto ao t-tulo, vinha bem a calhar: O intruso. Como aquele romance podia estar numa prateleira de histria?

    Samuel abriu o livro ao acaso: a encadernao dis-simulava na realidade um caderno, cujas primeiras pginas haviam sido arrancadas. Umas boas cinquenta a julgar pe-los picotes de papel ainda agarrados na lombada. Espan-toso! Um livro que no era um livro, mas um caderno cu-jas pginas haviam sido recortadas! Com a curiosidade aguada, continuou a inspecionar o alfarrbio: folhas brancas, mais folhas brancas e, ocupando toda a ltima

  • pgina, algumas palavras rabiscadas pelo seu pai, tipo lembretes ou lista de compras:

    Merwoser = 0 Califa Al-Hakim, 1010

    $ 1. 000. 000! Xerxes, 484 a. C.

    Local de origem abre o caminho V. = 0

    Izmit, por volta de 1400? Isfah, 1386

    Mais abaixo, sublinhado duas vezes:

    Bran

    Bran, o castelo de Vlad Tepes! Ento era de fato l que seu pai estava! E, tudo indicava, voluntariamente, uma vez que se dera ao trabalho de informar claramente seu paradeiro no caderno!

    Alvoroado, Samuel leu e releu as poucas linhas, fazendo de tudo para adivinhar seu sentido oculto. Parecia uma mensagem codificada ou etapas de uma pesquisa obscura lanadas aleatoriamente no papel. Datas, nomes exticos, algarismos... Mas em vo ele queimava a mufa, pois nada lhe ocorria.

  • Puxa, papai deixou escapar, exasperado , ser que, uma vez na vida, voc no podia ser um pou-quinho mais claro?

    Est falando sozinho? soou uma voz familiar atrs dele.

    Samuel teve um sobressalto. Lili! Voc... estava a? Tnhamos um encontro marcado, lembra? So

    11h, para o seu governo. Onze horas, mesmo! Eu estava perdido nos

    meus pensamentos e... Tem certeza de que ningum a se-guiu?

    Entrei pela janela do jardim, como voc pediu no e-mail. O que h?... Voc est com uma cara estranha! Est assim por que foi capa do jornal?

    Passou-lhe A Tribuna de Sainte-Mary, o jornaleco lo-cal, que ela dobrara em oito para faz-lo caber no bolso do jeans. Uma manchete enorme atravessava a primeira pgina: Estranho furto no museu de Sainte-Mary. Sa-muel percorreu a matria, que no lhe disse nada que ele no soubesse e que, para grande alvio dele, no mencio-nava o seu celular.

    Ser que durante a luta cara num canto escuro e ningum o recolhera? Permanece a questo do motivo, conclua a jornalista. O ou os ladres tiveram trabalho demais para no final levar apenas algumas moedas sem valor.

  • Sem valor para uma jornalista da Tribuna, claro rosnou Sam.

    Bom, Sammy, agora posso ouvir sua verso? Sentaram-se num dos sofs, ali instalados para oferecer aos clientes da Livraria Faulkner quando por milagre aparecia algum! o conforto de uma saleta particular e Samuel narrou minuciosamente suas aventuras nas ltimas doze horas. Sua prima escutou-o atentamente, balanando a cabea, com uma expresso muito sria quando ele ter-minou.

    E voc faz idia do que pode ser? , bem... No tenho certeza, mas, sim, tenho

    uma teoria. Uma teoria? Sim, sim... Lembra-se do que descobrimos a

    respeito daquela expedio ao Egito de vinte anos atrs, quando meu pai encontrou a pedra pela primeira vez? Ha-via outro estagirio da idade dele participando das esca-vaes no tmulo de Setni. Pelo que entendi, esse estagi-rio tambm ficou sumido por vrios dias sem a menor ra-zo.

    E da? E da que estou convencido de que esse cara e o

    meu pai descobriram juntos a pedra esculpida e de que ambos a utilizaram.

    Isso foi h vinte anos... , mas quando meu pai desapareceu h trs se-

    manas havia uma mensagem estranha na secretria da li-

  • vraria. Uma voz metlica, quase misteriosa: Allan? Allan, est me ouvindo? No banque o idiota, Allan, responda, miservel! Em seguida, como ningum atendia: OK, es-t avisado. O tom era nitidamente ameaador.

    E voc deduz o que disso? Que o homem em questo estava atrs do papai

    e com certeza no para lhe vender um aspirador de p ou um seguro de vida. Alm disso, usava um tom ntimo...

    E seria esse misterioso estagirio do Egito, que estava reaparecendo hoje?

    apenas uma suposio, concordo, mas no tenho outra melhor. Esse cara conhece toda a histria desde o incio e, o principal, j fez uso da pedra. No acha que ele conseguiu o endereo da livraria e est tentando entrar em contato com meu pai? Deve ter ouvido falar de Barnbom e resolveu fazer uma busca no museu de Sain-te-Mary... Ou, pior, estava me espionando.

    Espionando? Faz duas semanas que venho aqui quase diaria-

    mente, nada mais fcil do que me localizar e seguir! Foi por isso que voc fechou as cortinas e me

    aconselhou a passar pelo jardim? Simples precauo. Mas, se a livraria est vigiada, por que ento

    marcar encontro aqui? H lugares mais discretos! Samuel sorriu sem entusiasmo. Porque decidi viajar de novo, naturalmente. Est brincando!

  • Parece? Preciso ir, Lili, e preciso de voc... Mas eu achava que, sem as sete moedas, voc

    no tinha a menor chance de encontrar seu pai! Voc tem apenas quatro, ao que eu saiba!

    Quatro, , com a do museu. Mas estou pensan-do em Barnbom. Ele deixou meia dzia de moedas ao morrer. E, depois, tem o sumo sacerdote Setni... Em suas escavaes no sarcfago de Tebas, os arquelogos recu-peraram moedas cunhadas dois ou trs anos aps o fe-chamento do tmulo. Existe inclusive uma polmica quanto a isso: como livros medievais de Tours foram pa-rar numa tumba to antiga? Ora, todas essas moedas de diferentes perodos, Setni deve t-las conseguido em al-gum lugar! Tenho certeza de que, viajando no tempo, eu tambm poderia conseguir algumas.

    Espere, espere exaltou-se Lili. Voc mesmo me disse que precisava de uma moeda para acio-nar a pedra no retorno. E se, contrariando sua expectativa, voc no arranjar uma por l, como ir voltar? Imagine o risco! Foi quase o que aconteceu em Bruges, no foi?

    Vou reforar a retaguarda desta vez. Colocarei uma moeda de emergncia na cavidade da pedra, a que permite transportar objetos. Assim, acontea o que acon-tecer, terei sempre uma comigo e poderei voltar. Isso, claro, se voc se dispuser a cuidar do Livro do Tempo e se concentrar um pouco.

    Lili assentiu lentamente com a cabea, resignada. Pegou o calhamao de capa vermelha que aflorava da

  • mochila do seu primo e o abriu ao acaso. Todas as pginas mostravam as mesmas gravuras da cidade de Bruges em 1430, com suas muralhas e seus campanrios pontiagudos. O que ela podia fazer para segur-lo? Denunci-lo aos a-vs? No fundo, desconfiava que no tinha outra escolha... Tambm sabia que, para garantir seu retorno, Sam preci-sava de algum no presente que pensasse nele o mais fre-quentemente possvel. Devido a qual elo sobrenatural, is-so, em contrapartida, ela ignorava. Mas toda aquela hist-ria j era to louca! Ora, em quem Sammy podia confiar, a no ser nela?

    Se tiver que usar a moeda sobressalente l, ir perd-la, no ?

    , mas, se ficar mofando aqui, meu pai vai aca-bar morrendo. Preciso dessas sete moedas, Lili, custe o que custar.

    Tudo bem ela disse, decidindo-se rapida-mente , v pegar suas coisas, nos encontramos l.

    Samuel foi ao andar de cima mudar de roupa e, minutos depois, juntou-se prima, vestindo uma cala comprida e uma tnica de linho na cor creme e de corte estranho. No era muito fashion, mas, diferentemente dos tecidos modernos, aqueles trajes moda antiga permitiam que ele se deslocasse no tempo sem perder suas roupas.

    Quanto a Lili, ela j se encontrava na rea secreta do poro, que Allan Faulkner montara atrs de uma divi-sria para ali guardar a pedra com segurana. A menina equilibrava-se num banquinho amarelo-limo, nico matiz

  • de cor um pouco alegre naquele lugar sinistro, mobiliado com um simples leito de campanha e iluminado por uma lamparina anacrnica.

    Se Alicia Todds vir voc com seu pijama novo ela se escangalhou , vai ter um choque!

    Ria! Tome, deixo essas duas moedas com voc. Enfiou na mo dela a ficha de plstico e a moeda com a serpente negra.

    Quando a operao se concluir acrescentou , voc a pegar de volta perto da pedra. Guarde-a em local seguro at a minha volta, com o Livro e o caderno.

    Sem problema ela o tranquilizou , j estou me acostumando. Mas, e quanto a voc, promete ser pru-dente? Evite principalmente os campos de batalha e os alquimistas agressivos. Se voc ficar preso no passado, no vai resolver em nada os problemas do seu pai.

    Juro por tudo que mais sagrado, Lili res-pondeu Sam com segurana. O primeiro viking que aparecer, fao meia-volta!

    Exagerava um pouco no papel do garoto seguro de si, mas para que preocupar a prima?

    Bom, quando estiver tudo pronto... encora-jou-se.

    Avanou para a parte mais escura do quartinho, onde estava a pedra. Era quase impossvel perceb-la na claridade plida do poro, uma forma vagamente oval de 50 cm de altura, tudo que havia de mais banal. Ajoelhan-do-se diante dela, Sam experimentou uma mistura com-

  • plexa de apreenso e atrao, a segunda prevalecendo so-bre a primeira. Sentiu ento as duas moedas que carregava consigo esquentarem, como aquecidas por uma corrente invisvel. O processo deflagrava-se...

    Preferiu colocar a do museu na cavidade de carga e aplicar aquela que trazia a escrita rabe no centro do sol. Esta se encaixa perfeitamente com um imperceptvel cli-que: um m poderoso ou alguma coisa desse tipo deve ter sido acionado no interior. Do corao da pedra comeou a emanar um zumbido seco e o cho do poro estremeceu levemente. Samuel voltou-se para Lili, mas um vu de bruma j embaava seus olhos e ele s distinguia os con-tornos de sua silhueta. Apoiou a mo na parte de cima da pedra, e seu brao e todo seu corpo ficaram em brasa.

  • IV

    O pastor de Delfos

    amuel se achava agachado sobre o capim ralo, com a dolorosa impresso de ter sido transformado em tocha humana e depois catapultado no vazio velo-

    cidade da luz. Seus dedos, entretanto, suas mos, a manga imaculada de sua tnica, nada apresentava sinais de quei-madura. Conhecers o calor imortal, dizia em substncia o ve-lho livro de sortilgios do alquimista de Bruges. E ficars com as tripas reviradas, poderia ter acrescentado, pois Samuel sentia os cereais do seu caf-da-manh debaten-do-se em seu estmago com a firme inteno de sarem de l. Respirou fundo e fez o que pde para conter o enjo.

    Ah, at que enfim! A voz vinha de trs dele, e Sam voltou-se to rapi-

    damente quanto permitia sua desconfortvel posio. U, no voc! disse a voz, com uma ponta

    de decepo. A dez metros, um rapaz de uns 20 anos de cabelos

    pretos e encaracolados observava-o com curiosidade. Ves-tia uma tnica suja e feita de retalhos, presa na cintura por

  • um simples barbante. Tinha um cajado comprido e nodo-so na mo e parecia descalo.

    Voc filho dele? acrescentou, franzindo os olhos como se fizesse um grande esforo de memria.

    Samuel no reagiu imediatamente. Seu primeiro re-flexo foi dar uma olhadela para a pedra esculpida que es-tava perto dele.

    Ela estava ali, felizmente, e a moeda do museu atu-ava como um pequeno crculo de luz no interior da cavi-dade. Samuel resgatou-a e se levantou lentamente. Sua cabea rodava. Tinha aterrissado num lugar deserto e montanhoso, onde uma vegetao de moitas e magros arbustos crescia por entre as pedras. Embaixo, o mar. Que mar?

    Ei! Comeu a prpria lngua? A voz do desconhecido demonstrava irritao, mas

    Sam precisava de uns segundos para pr a cabea no lu-gar. Ouviu balidos prximos, bem do outro lado da coli-na. Um pastor?

    Desculpe, eu... comeou Sam. Hesitou em prosseguir, surpreso com a tonalidade

    inusitadamente quente e melodiosa das palavras em os ou em o que lhe vinham naturalmente boca. Uma outra faceta, inexplicvel, da poderosa magia da pedra es-culpida.

    Ehh... estou um pouco perdido. O pastor dardejou-lhe um olhar desconfiado. Foi seu pai que lhe disse para vir, no foi?

  • Meu pai, repetiu consigo Sam. Seria aquela a poca de Vlad Tepes?

    Apesar da vertigem que sentia, deu dois passos na direo do moo.

    Meu pai? Voc... voc conhece meu pai? Conheci-o outro dia, e ele fez igualzinho a voc. Apontava a pedra esculpida, praticamente encober-

    ta pelas ervas daninhas. Ento pode me dizer onde ele est? Se ele disse para voc vir, voc deve saber, no

    acha? Ehh, sim, claro concordou Sam prudente-

    mente. Quer dizer, mais ou menos... O que no sei onde ele est precisamente.

    O rapaz cruzou os braos no peito com uma ex-presso tinhosa.

    Se no sabe, porque ele no lhe contou. Se ele no lhe contou, porque voc no filho dele. Se no filho dele...

    Hesitou um instante antes de emendar: Me d duas cabeas de carneiro e pode ser que

    eu fale. Duas cabeas de carneiro! reagiu Sam, estu-

    pefato. Mas eu no tenho duas cabeas de carneiro! Pois saiba que ele me deu as duas cabeas de

    carneiro! Se voc no me der, porque do mal. Se do mal, porque no do bem. Se no do bem, no falo com voc.

  • Samuel tomou ento conscincia de que aquele ga-roto mais velho exprimia-se como uma criana de 7 anos. Sem avisar, este virou as costas e se afastou, cantarolando:

    Sim, sim, ele veio! Oh, sim, ele veio! Tinha um assunto para tratar, oh, sim, um assunto para tratar! E du-as cabeas de carneiro quis me dar!

    Apesar das pernas dormentes, Samuel foi obrigado a ir em seu encalo.

    Ei, espere! Tenho que encontrar meu pai de qualquer maneira, muito importante!

    Mas o pastor escapulia com agilidade por entre as pedras e Samuel, que no estava acostumado a caminhar descalo, logo o viu desaparecer atrs das moitas. Ao che-gar ao topo da colina, descortinou um vale com uma en-costa ngreme, na qual pastavam umas trinta cabras. Estas levantaram o focinho ao verem precipitar-se para elas seu pastor, que continuava a cantar:

    Fez brincos esplndidos com os lindos carnei-rinhos! Foi ele quem me deu, pois ele tinha um assunto a tratar!

    O co que vigiava o rebanho percebeu Sam por sua vez e comeou a latir, correndo na direo dele. Samuel diminuiu o passo, gritando ao mesmo tempo:

    Ei! Preciso falar com voc! O cachorro, um animal grande e assustador de pelo

    pardo, estacou a um metro de Sam e se ps a rosnar en-quanto seu dono o aplaudia.

  • Ah! Argos, cuide do malvado que se nega a en-tregar suas cabeas de carneiro! Cachorro esperto, o Ar-gos, cachorro esperto!

    Porm, ao contrrio do que Sam esperava, o animal no pulou em cima dele. Aproximou lentamente o foci-nho farejando sua canela, enquanto Sam apresentou-lhe sua mo guisa de boas-vindas e recebeu uma pequena lambida.

    O comportamento do pastor mudou da gua para o vinho.

    Ah! Muito bem, cachorro esperto! Se Argos e voc so amigos, porque voc no do mal! Talvez no seja filho do seu pai, mas em todo caso no mau! Bicho esperto, o Argos!

    Samuel pde ento acabar de descer tranquilamente a encosta com o animal balanando o rabo ao seu lado. Tudo aquilo no fazia o menor sentido... A atmosfera es-tava amena, o cu de um azul intenso, as cabras haviam recomeado a pastar e aquilo parecia um programa qual-quer no campo em um belo dia de primavera. Com a di-ferena que Samuel no fazia idia de em que parte do mundo ele estava, e, o principal, em que poca.

    Ao chegar altura do rebanho, o rapaz abriu os braos para Sam e apertou sua mo com entusiasmo, co-mo se estivessem se reencontrando aps longos anos de ausncia.

    Meu nome Metaxos e eu no tinha certeza se voc vinha como amigo. Mas Argos sabia, no mesmo?

  • Agora venha comigo, vou lhe dar leite e mel e dividiremos a cabana. Concorda? Parece que voc veio atrs de alguma coisa, certo? E parece...

    Seus olhos chispavam fogo e Samuel ruminava se valia a pena ter atravessado uma enfiada de sculos para acabar topando com o idiota da aldeia! Metaxos lembra-va-lhe um mendigo com quem esbarrara diversas vezes na rua Barnbom e que, segundo seu humor volvel, xingava os passantes ou tentava beij-los. Um dia, a prefeitura deu um sumio nele e ningum mais o viu. Um caso sinistro.

    Estou procura do meu pai. Por acaso sabe onde ele est?

    Seu pai? indagou o pastor abrindo um sorri-so. E se no fosse seu pai? Porque, se fosse seu pai, ele lhe teria dito onde estava!

    Vlad Tepes insistiu Sam. Esse nome lhe diz alguma coisa?

    Vladtepes? Pelos chifres de um carneiro, que nome esquisito! Em todo caso, no um nome daqui. E voc, como se chama? Eu lhe disse o meu nome, tem que me dizer o seu.

    Ehh, Sam... Sua resposta pareceu alegr-lo. Ah! Sam! Sam da pedra! Samos, sim, pronto,

    Samos! Est com fome, Samos? Vamos para a cabana, j lhe disse, vou lhe dar po e mel!

  • Sem dar tempo de Sam reagir, assobiou com os dedos para chamar seus animais e comeou a correr para o fundo do vale, berrando palavras incompreensveis:

    Oldilo! Oldilo, ei! Oldilo! Argos zanzava ladrando em torno do rebanho e

    todo aquele mundinho desembestou-se colina abaixo a uma velocidade incrvel. Eram todos doidos, o pastor, a carneirada e o cachorro!

    Em poucos segundos Samuel ficou para trs, obri-gado a esfolar os ps no solo irregular para no perd-los de vista. No fim de vinte minutos dessa travessia estafan-te, chegou orla de um campo de oliveiras perto do qual erguia-se uma cabana de madeira rudimentar. As cabras espalhavam-se por entre as rvores e Metaxos acendia um fogo. Nenhuma outra casa no horizonte.

    Puxa, onde voc estava, Samos? interpelou-o. Achei que tinha voltado para dentro da sua pedra!

    que ofegou Sam voc anda um pouco rpido para mim.

    Ah! Claro. Sou o melhor pastor de Delfos! L, eles dizem: Metaxos corre como o vento!

    Delfos, pensou Sam. Esse nome evocava-lhe algu-ma coisa, mas o qu? Ano que vem, promessa, prestaria mais ateno aula de histria.

    O jovem pastor limpou as mos encardidas pelo carvo de lenha e avaliou seu convidado da cabea aos ps.

    Fale a verdade, no trouxe nada?

  • Eu no trouxe nada? Metaxos balanou a cabea com um olhar entriste-

    cido. Pelo visto, no, voc no sabe o bastante para

    ser filho dele! O que veio fazer aqui, se no trouxe nada? Encontr-lo! Repito que estou atrs do meu pai! Apesar de tudo, ele estava vestido como voc, e

    tinha umas trs vezes a sua idade, juro! Sabia que no te-nho pai?

    Sinto muito, eu... Mas o pastor continuava seu raciocnio, a expresso

    consternada: Alis, nem me. , me tampouco. Eu... Perdi minha me tambm confessou

    Sam, que comeava a perder a esperana de obter as in-formaes de que precisava.

    Perdeu sua me? Como? Bom... Difcil explicar que ela sofrera um acidente de carro

    trs anos antes e que sucumbira aos ferimentos depois de vrias capotadas na ribanceira. Ainda mais se tivesse de-sembarcado numa poca em que talvez ainda no hou-vessem inventado a roda, como pressentia! Carro, ento...

    Ela sofreu uma queda. Do alto de uma colina. Uma colina parecida com essa.

    Por Apolo! exclamou o rapaz horrorizado. Colinas foram feitas para nelas colhermos flores e le-varmos os rebanhos para passear! No para morrer! Voc

  • deve ter sofrido muito, Samos! Comigo diferente, no tenho nem para quem olhar: nunca vi meus pais. Eles me abandonaram no dcimo segundo dia do ms de Bsios nos degraus do grande templo. Foram os sacerdotes que me recolheram.

    Sacerdotes, templo, Apoio... Samuel estava em al-gum lugar na Antiguidade. Pena que nunca tivesse conse-guido distinguir os deuses gregos dos romanos...

    Mas acho que no fui feito para viver na cidade suspirou Metaxos. Bem que os sacerdotes me avi-saram: sou igualzinho aos meus animais. Para mim bastam o cu, as plantas e o meu cachorro ao meu lado. Mas sou um timo pastor, pode acreditar! O melhor de Delfos! E reservo sempre minhas cabras mais bonitas para o templo!

    Samuel sentiu-se invadido por uma onda de com-paixo. Metaxos no era louco: era infinitamente solitrio.

    Tenho que encontrar meu pai Sam murmu-rou bem baixinho.

    O pastor pareceu compreender de repente. Claro, Samos, voc tem que encontrar seu pai.

    J perdeu sua me, logo... Venha, venha para a cabana. Pegou um galho no fogo e acendeu perto da porta

    uma lamparina de barro cozido. Penetraram na modesta construo, feita de galhos e de uma espcie de taipa grosseira. Havia dois cmodos no total. Um cujo centro era ocupado por uma lareira de pedra; o outro, usado pelo pastor para abrigar os animais doentes ou prestes a parir. Se a tia Evelyn passasse por ali, certamente iria usar o seu

  • spray: o perfume reinante lembrava o da jaula de macacos do zoolgico de Sainte-Mary.

    Bem ao fundo, Metaxos iluminou um conjunto de objetos que, embora primeira vista parecesse lixo conchinhas, pedaos de ferro retorcidos, retalhos de pa-no... , ele prezava mais que tudo.

    aqui que guardo meus tesouros! Olhe! De-bruou-se e tirou da baguna fragmentos pontiagudos de um material duro e verde.

    Est vendo, Samos, foi seu pai que deixou isto aqui! Sim, sim, seu pai!

    Samuel manipulou-os diante da chama: plstico, aparentemente. Pedaos de plstico verde.

    Havia muito disso? Mais que os dedos que tenho nas mos. Foi

    mais tarde, quando ele voltou aqui, que pisoteou e esma-gou tudo. Mas eu vi, oh, oh, sim, vi tudinho! Inclusive o que no deveria ter visto!

    E o que voc viu, Metaxos? Pode me dizer? A fisionomia do pastor contraiu-se. No, no, prometi no falar. Mudo como a

    morte, caso contrrio... Deu uma olhada para o lado de fora, temendo que

    algum o observasse. Em seguida, apontou novamente para os pedaos de plstico.

    Mas isso eu posso lhe mostrar, Samos, no mesmo? No a mesma coisa, certo?

  • Foi este objeto que meu pai trouxe com ele na pedra, isso?

    Isso mesmo. Voc deve ser realmente filho dele para saber! Ele chegou com esse objeto todo verde!

    E havia mais alguma coisa? Metaxos hesitou; em seguida, sem deixar de vigiar

    as oliveiras do lado de fora, mergulhou a mo em seu bri-cabraque. Retirou uma haste de metal, que lhe estendeu com uma espcie de deferncia.

    Ouvi o barulho claramente, sabe? Oh, sim, com meus dois ouvidos! Um barulho daqueles s podia vir dos deuses, por certo!

    Samuel fez a coisa rolar na concavidade de sua mo. Uma broca de uma furadeira... Um modelo sem fio, provavelmente. Que, uma vez carregado, no exigia eletri-cidade. Que diabos seu pai teria encasquetado de fazer naquele mundo com uma broca?

    Ele lhe deu duas cabeas de carneiro para voc segurar a lngua, no ?

    Metaxos ps a mo na frente da boca como se lhe proibissem de responder. No podia ser mais claro.

    E foi esse objeto verde que ele trouxe que fazia tanto barulho?... Ser que... Ser que recolheu mais alguma coisa do meu pai?

    O pastor desviou dissimuladamente o olhar para o lado oposto do recinto. Sobre um ba de madeira carco-mida como resgatado de um naufrgio, pensou Sam havia uma espcie de boneca com uma roupa cinza. Sa-

  • muel pegou a lamparina e se aproximou. Tratava-se de fato de uma esttua de cermica de uns 15 cm de altura, de formas aproximadamente femininas em todo caso, estilo lutador de luta livre bem desenvolvida e de rosto apenas esboado.

    Fui eu que esculpi declarou Metaxos orgu-lhosamente.

    ... muito bonita, parabns. uma mulher? Oh, sim, mas mais que uma mulher. a minha

    me! Sua me? Eu achava que seus pais o haviam a-

    bandonado... a minha nova me, sabe, aquela que me pro-

    tege. Quer dizer, minha me de Delfos. s vezes tento vi-sit-la, mas no tenho verdadeiramente esse direito... Argos que cuida dos animais quando no estou aqui.

    Suas frases eram cada vez mais descosidas, como se a sua me de Delfos o deixasse transtornado.

    Qual o nome dela? No a chamamos... enfim, pelo nome dela. ...

    o orculo, entende? O orculo? No conhece o orculo, Samos? O orculo de

    Delfos? Engraado, seu pai conhecia. Claro, o orculo recobrou-se Sam, sem fazer

    a menor idia do que estava falando. natural meu espanto. O orculo no qualquer um!

  • isso a! Mas a verdade que ela me ama mui-to. E essa tnica acrescentou, acariciando a estatueta foi seu pai que a confeccionou. Ele soube mesmo fa-zer, hein?

    Seu pai devia ter visto naquilo um meio para cativar o pastor sem falar nas duas cabeas de carneiro que ele arranjara Deus sabe onde: pois, francamente, quem pas-seava pelo tempo com cabeas de carneiro?

    Pode peg-la, se quiser acrescentou Metaxos. Ela ser boa para voc tambm.

    Samuel pegou delicadamente a pequena persona-gem de formas avantajadas. Sua tnica era cortada num linho grosseiro, muito parecido com o que ele mesmo u-sava. Mais um indcio. Ao virar o orculo do outro lado, observou riscas e pontos no tecido.

    Foi meu pai que desenhou isso? Ah, foi, ele habilidoso com as mos, muito

    habilidoso. Quer que eu lhe mostre? Desatou o lao que prendia a tnica nas costas da

    esttua e a estendeu a Sam. Uma vez desdobrado, o ves-tido compunha uma espcie de retngulo formato A4 com buracos para a cabea e os braos. Uma srie de quadra-dinhos estava traada a grafite, mas com pontos e letras que Sam no conseguia decifrar.

    Sabe o que significa? Infelizmente, no, no sei ler. Os sacerdotes

    bem que tentaram me ensinar uma vez, mas...

  • Eram como casas alinhadas uma ao lado das outras com flechas e indicaes intraduzveis. Sim, devia tratar-se de um mapa, com referncias similares a nomes de ruas. Samuel preparava-se para perguntar se existia um bairro como aquele em Delfos, quando Argos comeou a latir ruidosamente. Metaxos correu para a porta: um grupo de homens usando cajados subia o caminho em direo cabana.

    Ol, Metaxos, est em casa? No tenha medo, garoto, no lhe queremos mal! Temos umas perguntas a lhe fazer...

    o bondoso sacerdote sussurrou o rapaz. Est minha procura! Ele acha... ele acha que...

    Tremia de corpo inteiro, incapaz de concluir. O que que ele acha? tentou Sam. Mas o pastor contentou-se em recuar para o fundo

    de sua cabana enquanto o grupo se aproximava. Ei, Metaxos! Sabemos que est a! Estamos

    vendo os animais e seu cachorro. No banque a criana! Samuel julgou mais prudente interpor-se: Ele est aqui, no est se escondendo! Meia dzia de homens, todos barbudos e morenos,

    vestindo tnicas parecidas com a de Metaxos a no ser pelo fato de estarem limpas , atravessava o campo de oliveiras. O mais velho, cujos cabelos brancos caam nos ombros, era provavelmente o bondoso sacerdote, que avanou em direo porta fitando Sam.

    Quem voc?

  • Sou um amigo de Metaxos. Ele est para chegar. Nunca o vi por aqui. Como o seu nome? Samos interveio o pastor, aparecendo su-

    bitamente. Um amigo dos meus amigos, oh, sim! Sa-mos de Samos!

    Samos de Samos! repetiu o velho. Que falta de imaginao! Mas com Metaxos que tenho que falar. Aproxime-se um pouco, mocinho.

    Ele parecia contrariado por alguma coisa, enquanto os demais estampavam uma fisionomia severa. O sacer-dote ps a mo no ombro do pastor, que abaixou os o-lhos.

    Metaxos, voc esteve na cidade trs dias atrs? O rapaz tinha os olhos grudados em seus ps des-

    calos, balanando levemente para trs e para frente. Metaxos, muito importante eu saber. Voc es-

    teve na cidade trs dias atrs? Seu silncio pareceu eternizar-se. Ouviam-se apenas

    o zumbido dos insetos, as cabras pastando um pouco a-diante e o discreto arfar de Argos, deitado debaixo de uma rvore.

    Acho que voc tinha razo, Ldias suspirou o velho. Ele devia estar em Delfos nesse dia.

    Claro que eu tinha razo exclamou um mo-reno baixinho, agitando seu cajado. Eu o vi com meus olhos, rondando o Tesouro dos Atenienses e...

    Metaxos abaixou-se de repente e tentou desvenci-lhar-se do grupo escapulindo pela direita. Mas todo mun-

  • do pulou em cima dele ao mesmo tempo e ele logo se viu imobilizado por uma correia e jogado no cho.

    Eu no fiz nada, bondoso sacerdote! ele ex-clamou, enquanto dois dos homens o levantavam e segu-ravam solidamente. Sou um pastor pacfico!

    Viram s?! gritou Ldias. Tentou escapar! a prova!

    Metaxos continuou o sacerdote, fazendo um esforo para no ficar nervoso. Metaxos, oua e pare de choramingar. Foi voc, sim ou no, que roubou o Um-bigo do Mundo no Tesouro dos Atenienses? Fale a ver-dade, Metaxos, sua nica chance!

    O pastor fitou-o com os olhos embaados pelas l-grimas.

    No fiz nada, bondoso sacerdote! Juro que no fiz nada! O sacerdote teve um gesto de despeito.

    O arconte vai querer interrog-los, isso certo. Pacincia, preciso lev-los para a priso de Delfos!

  • V

    O forasteiro

    cidade de Delfos era um ninho de guia majes-toso instalado no corao das montanhas divinas, uma prola branca num escrnio de pedra. Ao

    descortin-la de uma curva do vale adjacente, Samuel perdeu o flego: uma profuso de casas de telhado de ti-jolo espremia-se em torno de construes reluzentes cujos amplos frontes triangulares refletiam o sol. E era ainda mais impressionante porque a cidade parecia perdida num mundo de escarpas e precipcios: nenhuma aldeia nos ar-redores, nenhuma fazenda, apenas a rocha rasgada e o cu.

    Mas embora fosse isolada, nem por isso Delfos era deserta: uma multido compacta espremia-se nas ruas e o caminhozinho ocre que serpenteava a seus ps estava cheio de veculos e peregrinos.

    Aps 45 minutos de caminhada silenciosa, os dois prisioneiros foram levados sob escolta para um prdio protegido por lanceiros e instalados num recinto nos fundos, sem janelas nem mveis, com apenas umas estei-ras jogadas no cho.

  • Vou chamar o arconte disse o sacerdote. Enquanto isso, reflita bem acerca do que vai lhe dizer.

    Fechou a porta e os dois jovens mergulharam na escurido. Metaxos encolheu-se num canto fungando e Samuel desabou numa das esteiras de palha. Agora tinha certeza: estava na Grcia. Atenas, Apoio, as tnicas, os templos, as colunas, tudo combinava. Mas em que sculo? Mistrio... Delfos possua uma espcie de santurio, cujo orculo os gregos consultavam a fim de que ele a fim de que ela! desse-lhes sua opinio sobre os mais varia-dos problemas tipo Matrix, mas na verso original. Pe-lo menos foi o que ele induziu de uma conversa nas por-tas da cidade, quando o sacerdote descrevera a um solda-do empoleirado num burro como algum devia se dirigir Ptia e as formalidades que devia cumprir previamente. P-tia, orculo... Ainda que Sam estivesse por fora, aquilo soava grego.

    O mais importante no era isso, porm. O mais importante referia-se a seu pai. Allan estivera em Delfos. Mais que isso, estivera em Delfos havia apenas trs dias. Trs dias de Delfos, claro, o que no absoluto significava muita coisa: seu pai podia muito bem ter empreendido essa via-gem a vrios meses dali em sua poca de origem. Ainda assim, fora por muito pouco, pouco mesmo que Sam no esbarrara com ele por ali. Se, por felicidade, o milagre ti-vesse acontecido, teriam cado nos braos um do outro, derramado algumas lgrimas, depois, uma vez recuperados de suas emoes, arranjado um cantinho tranquilo em

  • frente cabana de Metaxos, por exemplo para conta-rem um ao outro suas respectivas aventuras. Allan teria esclarecido o importante motivo que o levara a Delfos e Sam o teria advertido a respeito dos perigos que o esprei-tavam no castelo de Bran. Ambos teriam concordado que o melhor seria voltar sensatamente para o presente e re-gressado para Sainte-Mary sem percalos. Retorno ao ponto de partida e retorno vida normal!

    Na realidade, claro, as coisas no haviam se desen-rolado dessa maneira... Por outro lado, a passagem de Al-lan por Delfos abria novas perspectivas. E se, ao longo de seus deslocamentos temporais, Sam encontrasse efetiva-mente seu pai? No precisaria mais correr atrs das sete moedas e arriscar a vida na Valquia! Bastaria preveni-lo onde quer que viessem a se encontrar! Uma prova suple-mentar de que Sam agira bem ao utilizar a pedra...

    Mas havia tambm uma m notcia: chamava-se Umbigo do Mundo. Sam ignorava do que se tratava pre-cisamente, mas se lembrava muito bem da reflexo de um dos guardas do museu de Sainte-Mary naquela outra noite: voc viu no jornal uma geringona grega que eles leiloa-ram em Londres? O Umbigo do Mundo, um treco assim? Dez milhes de dlares em poucos minutos! Nosso mu-seu no tem condies de fazer um lance desses!

    O Umbigo do Mundo fora ento recentemente roubado em Delfos e vendido no menos recentemente a alguns milhares de anos dali, de toda forma na In-glaterra. Entre os dois, seu pai... Seu pai, que chegara ali

  • munido de uma furadeira. Seu pai, que Metaxos surpre-endera cometendo um ato to repreensvel que no ousa-va revel-lo. Seu pai, que provavelmente no se contenta-va em viajar em busca de livros, cobiando tambm obje-tos preciosos. A menos... a menos que ele tivesse outro motivo...

    Samos! Samos! sussurrou Metaxos. Voc continua a?

    Claro que continuo respondeu Sam, irritado. Estou com medo, Samos. Eles vo me matar. No diga besteira, eles s querem saber onde

    enfiaram o Umbigo do Mundo. Alis, voc faria a gentile-za de me dizer com que ele se parece?

    Voc sabe menos que seu pai observou Me-taxos. Ele, pelo menos...

    Tudo bem, tudo bem interrompeu-o Sam. Sei menos que o meu pai, j entendi! Apenas explique-me, por favor.

    a pedra que mostra o mago de tudo, Samos! Quando Zeus quis saber onde ficava o centro do mundo, lanou duas guias de cada extremidade da Terra. Essas duas guias encontraram-se em cima de Delfos, largaram a pedra, e assim que sabemos que Delfos o umbigo do mundo!

    E essa pedra, onde estava, exatamente? A verdadeira est no templo de Apoio. Mas os

    atenienses esculpiram sua prpria pedra e a revestiram de ouro. Iam oferec-la ao deus para a grande festa e, en-

  • quanto isso, guardaram-na no Tesouro. Foi quando seu pai...

    Fungou de novo e Sam procurou instintivamente um leno em seu bolso. S encontrou a moeda do museu e a roupa de boneca da estatueta.

    Pode me dizer o que aconteceu h trs dias, Metaxos? Se meu pai lhe contou alguma coisa? O que ele pretendia fazer com o Umbigo do Mundo ou seja l o que for?

    No, no! protestou o pastor. Se eu falar, nunca mais voltarei colina, nunca mais! Nunca mais ve-rei minhas cabras nem meu cachorro! Falar do seu pai, de jeito nenhum!

    A porta foi aberta com violncia. Terminaram os gemidos? Venham por aqui to-

    dos os dois, o arconte chegou. O lanceiro conduziu-os at um recinto oval cujo

    teto formava uma cpula. Um homem gorducho com rosto de beb estava sentado a uma mesa de mrmore, seus braos indo e vindo mecanicamente entre sua boca e uma tigela de frutas transbordante de uvas. Atrs dele, o sacerdote andava de um lado para o outro, fisionomia zangada.

    Ah! este exclamou ao v-los aproximar-se. E ento, Metaxos, refletiu? Se voc o ladro, mocinho, o melhor dizer tudo agora, assim poderemos recuperar o objeto mais rapidamente.

    O pastor atirou-se de joelhos, implorando.

  • No fui eu, bondoso sacerdote! Por Apoio e por Hermes, no fui eu!

    Quem foi, ento? irritou-se o velho. V-rias pessoas viram voc rondando os tesouros aquele dia. Depois, sair da cidade noite apertando alguma coisa nos braos. Pode me explicar o que carregava com tanto cui-dado?

    Na... no balbuciou Metaxos. Eu... eu... Mas no conseguiu formular nada inteligvel.

    Faz idia do que fizemos por voc durante to-dos esses anos? explodiu o sacerdote. Quem o re-colheu quando voc no passava de um bebzinho ber-rando ao p dos degraus do templo? Quem o educou e alimentou? Quem lhe deu seu rebanho? E assim que nos agradece? Pilhando o tesouro dos nossos melhores alia-dos?

    Suspendeu-o pelas axilas para obrig-lo a se reer-guer.

    Sabe o que vai acontecer, Metaxos, se no en-contrarmos o Umbigo do Mundo? Os atenienses pegaro as coisas deles e deixaro a cidade antes de trs meses. E, depois deles, os tebanos, os becios, os corntios... E, por fim, todos os demais! Delfos ficar deserta, o orculo re-duzido ao silncio e voc levar suas cabras para pastar em meio a runas!

    Bondoso sacerdote, bondoso sacerdote... No me mate, no fiz nada!

  • Quem esse garoto que o acompanha? in-terveio o arconte sem parar de engolir as sementes de uva uma atrs da outra.

    Um amigo de Metaxos respondeu o sacer-dote. Samos de Samos, acho. Estavam ambos na ca-bana quando os agarramos.

    Ele sabe de alguma coisa? Metaxos afirma que ele chegou de manh. verdade, Samos de Samos? perguntou o

    arconte sem erguer os olhos. verdade deixou escapar Sam com uma voz

    que teria preferido mais firme. E no sabe de nada? Samuel tomou coragem. Era arriscado, mas no ha-

    via outra soluo se quisesse sair dali rapidamente. Acho que Metaxos descobriu alguma coisa e que

    est com medo disse de supeto. No, Samos! protestou o pastor. Cale-se

    ou nunca mais voltarei para as minhas colinas! Sem o escutar, Samuel mostrou a roupa de boneca

    que trazia no bolso. Metaxos achou isso quando vinha para Delfos.

    Pela primeira vez o arconte dignou-se a fit-lo. Do que se trata? De uma espcie de mapa, suponho. A um sinal de cabea, um dos guardas avanou para

    levar o pedao de tecido at a mesa de mrmore. O ar-conte examinou-o sob todas as costuras produzindo um

  • silvo de suco como se tivesse alguma coisa presa entre os dentes. Educadssimo... Finalmente, cuspiu uma se-mente antes de retomar a palavra.

    um mapa da cidade, de fato. Sumariamente desenhado... Tambm h nomes: teatro, templo, Tesouro dos Atenienses. Este ltimo est assinalado com uma cruz. Voc disse que Metaxos encontrou isso no caminho de Delfos? Samuel fez sinal de que sim.

    E se, em vez de o ter encontrado, tivesse ele mesmo feito o desenho?

    O sacerdote, que se aproximara, balanou negati-vamente a cabea.

    Impossvel: nunca conseguimos ensinar Meta-xos a ler. E menos ainda a escrever, naturalmente. Alm disso, pela maneira como esto delineadas, essas letras apontam mais para o grego como escrito nas cidades distantes.

    Cidades mais distantes que a ilha de Samos? indagou o arconte e lanando um olhar de suspeita para Sam.

    Muito mais distantes. O ladro seria ento um forasteiro, isso? Ao que parece. Quem mais pode ser? Metaxos

    no tinha nenhuma necessidade de um desenho para se dirigir ao Tesouro dos Atenienses: passou a infncia intei-ra naquele bairro!

  • No deixa de ser verdade admitiu o arconte. Nesse caso... Diga-me, Samos de Samos, faz idia do que pode ter assustado tanto o seu amigo?

    Samuel limpou a garganta o mais discretamente possvel. Devia ao mesmo tempo produzir uma mentira convincente e evitar que Metaxos o contradissesse. Fac-limo...

    Fitou intensamente o pastor como para lhe trans-mitir suas ondas mentais: Tenha confiana em mim, meu velho! Repita tudo que eu disser!

    Pelo que me explicou comeou , Metaxos desconfiou do teor do mapa e dirigiu-se ao Tesouro dos Atenienses. Porm, ao chegar l, topou com algum que ameaou mat-lo se ele abrisse o bico.

    Algum? Encontrou algum no Tesouro dos Atenienses, Metaxos?

    O pastor arregalava olhos perplexos e vazios, como se o seu crebro estivesse momentaneamente indispon-vel. O arconte levantou-se com a mo espalmada, pronta para esbofete-lo.

    Viu o ladro? Poderia descrev-lo? Fale! Era um homem gritou Sam para deter seu

    gesto. Cinquenta anos aproximadamente, cabelos cur-tos e grisalhos, maxilar quadrado, olhos azuis!

    A descrio ocorrera-lhe de repente. Era suficien-temente distante da de seu pai para que este no tivesse muitos aborrecimentos se um dia voltasse quelas plagas.

  • Metaxos no foi capaz de me dar outras infor-maes, pois foi tudo muito rpido acrescentou. Acho que o sujeito estava com uma faca e quase o feriu.

    verdade? perguntou o arconte, com o pu-nho a alguns centmetros do rosto do pastor. Foi real-mente esse forasteiro que o surpreendeu?

    Foram necessrios alguns segundos para que o o-lhar de Metaxos ganhasse vida novamente. Concordou, hesitante:

    Sim, foi... foi ele que vi. E por que teimou em permanecer calado? Per-

    demos um tempo precioso! Estou... estou com medo. A faca do forasteiro,

    . Samuel respirou profundamente: Apoio e Hermes esta-vam do seu lado.

    Quando isso aconteceu exatamente? Ehh... Depois... depois da consulta ao orculo

    murmurou o pastor como sob efeito de uma droga poderosa.

    O arconte recuou e o sacerdote esboou um sorri-so:

    Aparentemente isso bate. A fechadura nos fun-dos do prdio foi quebrada mais ou menos a essa hora, durante a troca dos guardas. Bastou alguns instantes para o ladro penetrar no Tesouro e se apoderar do Umbigo do Mundo.

    Sem que saibamos, alis, como ele conseguiu quebrar o ferrolho observou o arconte esticando o

  • brao para pegar outra uva. Em todo caso, nada nos prova que Metaxos no tenha sido, apesar de tudo, seu cmplice... Ora, os atenienses no iro contentar-se com seu jeito bem-comportado e suas maneiras de tolo. Vo querer provas de sua inocncia ou exigiro seu castigo.

    Metaxos recomeou a gemer baixinho, como um co injustamente repreendido pelos donos.

    Talvez haja um meio de arranjar essa prova sugeriu o sacerdote. Uma prova que os prprios ateni-enses no possam contestar.

    E qual seria? Se o menino no for mesmo o culpado de-

    clarou , o orculo ir inocent-lo. Caso contrrio...

  • VI

    O orculo

    hegar at o orculo no era simples. Havia em primeiro lugar a multido, que se espremia em fi-leiras cerradas ao p do templo, no meio de uma

    aleia ladeada por trofus, vasos e escudos de 2 m de altura, colunas brancas com inscries, uma esttua de leo dou-rada, uma palmeira de bronze que acolhia uma coruja ru-tilante em sua folhagem etc. Parecia um cortejo de figu-rantes esperando a filmagem de uma cena cult de Ulisses contra Hrcules.

    Diante daquela aglomerao, a chegada de Sam e Metaxos, cercados pelo arconte, o sacerdote e dois guar-das, no passou desapercebida.

    No empurre! disse um homem. Em nome de Apoio indignou-se seu vizinho

    , o senhor no tem nenhum direito de passar nossa frente!

    Faz duas horas que estamos plantados aqui concordou o primeiro. H uma ordem de atendimento e...

  • o arconte interrompeu uma mulher logo atrs. Cale-se!

    Subiram assim a trilha sagrada, abrindo passagem na medida do possvel por entre os fiis que rosnavam os organizadores visivelmente haviam se esquecido de providenciar um acesso VIR

    Quando alcanaram os primeiros degraus do tem-plo, o sacerdote debruou-se no ouvido de Sam:

    Os dois homens ali, com capacete na mos, so atenienses. Esto aqui para nos vigiar. Cuidado com suas palavras ou Metaxos corre o risco de pagar por elas. Pegue isto. Ao entrar, entregue como oferenda.

    Ps em sua mo duas moedas de bronze tosca-mente redondas. No eram furadas, mas Samuel no pde conter um calafrio: ambas estampavam uma cabea de carneiro com grandes chifres revirados. As duas cabeas de carneiro! Era o que seu pai dera a Metaxos para com-prar seu silncio: duas moedas locais, incrvel!

    Preciso negociar com eles disse o arconte. Foi ento conversar com os representantes de Ate-

    nas, enquanto, do lado esquerdo, dois servidores do tem-plo aspergiam gua numa cabra, espreitando suas reaes para saber se novos visitantes podiam ou no ser admiti-dos. O animal resfolegou vigorosamente, e o pressgio deve ter parecido favorvel, pois lhes fizeram sinal para se aproximar. Um dos auxiliares reconheceu ento o sacer-dote e se precipitou a seu encontro:

  • O senhor, mestre! Puxa, se soubssemos! Venha por aqui, vamos...

    No, Selenos, importante respeitarmos as eta-pas. Estamos sendo observados acrescentou, na dire-o dos atenienses.

    O criado seguiu seu olhar e pareceu compreender. Ah, nesse caso... Muito bem, se quiserem depo-

    sitar seu bolo... Seria a viso da cabra? Metaxos recuperou um

    pouco de bom humor e comeou a cantarolar, atirando num pano as duas moedas que o sacerdote tambm lhe entregara.

    Tambm doei minhas duas cabeas de carneiro! No so mais bonitas que meus lindos brincos, mas vou ver o orculo!

    Problema de sade mental, aquilo no tinha cura... Penetraram sob um prtico, um vasto alpendre de

    mrmore decorado com esculturas e sustentado por po-derosas colunas, depois enveredaram pelo templo pro-priamente dito. O arconte, seguido pelos atenienses, no demorou a encontr-los.

    Entramos num acordo. Nenhum de ns quatro dever aproximar-se dos garotos enquanto o orculo der seu veredicto. Ficaremos dez passos atrs e manteremos o silncio mais absoluto. Todos escutaro a resposta e se submetero ao julgamento. Se o sentido das palavras no for claro, consultaremos os intrpretes de praxe.

  • Quem deve falar diretamente com Apoio? perguntou o sacerdote.

    Nossos amigos atenienses queriam que fosse o prprio Metaxos. Ele o primeiro ru, deve ser confron-tado com o deus.

    E o outro? Samos de Samos? Nossos amigos no acreditam

    muito em sua verso dos fatos. Questionam seus laos com o forasteiro. indispensvel que ele tambm seja apresentado.

    Temos a garantia de que eles no sero impor-tunados depois?

    O ateniense mais jovem, cujos olhos inquisidores apontavam para Sam, avanou, fazendo retinir o seu ca-pacete.

    Os representantes da mais gloriosa das cidades gregas tm apenas uma palavra. Se os dois suspeitos no roubaram o Umbigo do Mundo, sero libertados. Assim decidiu Atenas!

    Os dois meninos foram intimados a avanar at o fundo do templo, onde reinava um cheiro de lenha quei-mada e ervas aromticas. Um servo obrigou-os a sentar num banco de madeira em frente a uma cortina branca, como se fossem assistir a um espetculo de marionetes.

    Ela vir sussurrou Metaxos subitamente a-nimado Ela vir!

    E voc sabe o que deve fazer? indagou Sam. Claro! Nunca tive medo do orculo!

  • Samuel gostaria de partilhar seu entusiasmo. Em-bora se soubesse inocente, temia que a Ptia de repente desse para contar que o verdadeiro ladro era seu pai. Nesse caso, o melhor meio de recuperar o butim era pro-vavelmente agarrar o filho...

    Ouviu-se um som de frico atrs da cortina e o servo balanou lentamente a cabea.

    Apoio est disposto a ouvi-los, jovens. Srio? perguntou o pastor. O orculo est

    aqui? Ali atrs? Metax...? Silvou uma voz cava do outro lado

    do vu. A cortina abriu-se ligeiramente e Sam percebeu

    uma mulher de certa idade, vestindo um vestido cinza e que os estudava com espanto. Ela descera de uma espcie de assento de metal de trs ps e se mantinha na beirada de uma grande fissura no solo, talvez cicatriz de um antigo terremoto. A parte do santurio por ela ocupada era ilu-minada por archotes e era possvel distinguir uma rvore num canto, uma pedra espiralada e em forma de obus o original do Umbigo do Mundo? e diversos elementos que se perdiam na penumbra. Ao perceber o arconte e o sacerdote a alguns metros dali, ela fechou precipitada-mente a cortina. Estava claro que, por tradio, o orculo no se mostrava a visitantes. De toda forma, o servo fez como se nada tivesse acontecido e se retirou na ponta dos ps.

    Metaxos ento se levantou.

  • Orculo! Orculo de Delfos! Sopro do deus Apoio! Metaxos roubou a pedra dourada dos atenienses?

    E voltou a sentar-se, dando uma piscadela para Sam.

    No incio, no aconteceu nada a no ser pequenos estalos de dentes como se a Ptia mastigasse alguma coisa. Em seguida ouviu-se um barulho incongruente de deglu-tio e ela deve ter cuspido no cho um hbito, por aqui! Aps um breve silncio, imps-se uma voz rouca, a qual dificilmente imaginaramos sair da boca de uma mu-lher:

    Apoio, deus mais amado dos deuses, ouviu tua pergunta, Metaxos. Eis a sua resposta... O cordeiro rouba da montanha o capim que ele come? O pssaro rouba do peixe a gua que o refresca? Metaxos nunca roubou nada a no ser o ar que respira e o leite que goteja do bere de seus animais! Apoio, em virtude disso, lhos oferece com grande satisfao.

    Em seguida o orculo se calou. Um segundo, dez segundos... Samuel no tinha certeza de ter percebido o sentido oculto da mensagem, porm, no geral, a coisa pa-recia bem encaminhada. O bondoso sacerdote, por sinal, foi o primeiro a se regozijar com isso.

    Melhor assim exclamou. Eis a prova de que... Mas a ptia atrs da cortina interrompeu-o:

    O sopro de Apoio no se esgotou! H outra coisa que os homens devem saber!

  • Samuel remexeu-se no banco: no ia dar outra, iam acusar seu pai!

    Apoio, filho de Zeus, percorreu muitas vezes o cu em sua carruagem de fogo emendou a voz rouca. Ele segue o curso do sol e o ritmo do dia. Ele sabe o valor do tempo e das horas que se escoam... Homens de Delfos, deixem o amigo do pastor partir. Deixem-no par-tir agora. Que ele retorne pela porta dos dias que o trouxe at aqui. Mas que ele se apresse: um dos seus est que-rendo fech-la... Assim falou Apoio.

    Samuel no teve oportunidade de meditar acerca da advertncia, pois o mais desconfiado dos atenienses logo deu trs passos em sua direo.

    Seja l quem voc for, Samos de Samos, parece que os deuses decidiram a seu favor. Mas no se alegre muito: uma manh dessas acabaremos agarrando o foras-teiro. E, quando isso acontecer, acredite em mim, ele no roubar mais nada de ningum.

    Argos e Metaxos no paravam de correr um atrs do outro pelas oliveiras, comemorando o reencontro. Me-taxos colocava as mos na testa para imitar chifres uma espcie de Minotauro? e investia de cabea baixa con-tra o co, que latia feliz da vida.

    No quer brincar, Samos? Estou refletindo. Sam estava recostado numa parede na penumbra da

    cabana, tentando enxergar mais claro na advertncia da Ptia. Alguns dos seus tentava fechar a porta dos dias...

  • Aparentemente, os deuses gregos pelo menos aqueles que passeavam com o sol e que eram especialistas no es-coar do tempo sabiam alguma coisa a respeito da ma-gia do sumo sacerdote Setni. Deuses egpcios e gregos na mesma luta? Um dos meus repetia consigo Sam... Al-gum da sua poca, provavelmente. Quem procurava fe-char a porta dos dias... para impedi-lo de viajar? Para evitar que seu pai voltasse? E, a propsito, como se fe-chava a porta dos dias?

    No fique a sentado, Samos, venha brincar com a gente!

    No, obrigado. Tenho que partir. Fazia quase uma hora que Sam virava e revirava a

    moeda em seu bolso sem conseguir se levantar. E se pas-sasse ali uma noite extra? O Tesouro dos Atenienses fica-va pertinho... No era plausvel que contivesse pelo menos uma moeda furada?

    Seu pai fizera metade do trabalho arrebentando o ferrolho com sua furadeira... Se agisse da maneira certa...

    De repente Argos pulou como um louco para den-tro da cabana, seguido por seu dono, que desabou no cho, rindo.

    Metaxos vai devorar voc, co dos Infernos! Havia tambm aquela reflexo do representante de

    Atenas a respeito do forasteiro: Vamos acabar agarran-do-o, e, acredite em mim, ele no roubar mais nada de ningum. Significaria isso que, alm do Umbigo do Mundo, seu pai j cometera outros roubos nessa poca? E

  • que seu pai podia voltar ali em breve? Quem sabe se, co-locando-se perto da pedra, Sam no o veria reaparecer no fim de um certo tempo?

    Pegue esse po, Samos, para voc. Metaxos entrara novamente em sua msera cabana

    molhado de suor, sobraando po redondo. Estendeu-lhe uma fatia do tamanho de sua mo.

    Eis o Umbigo do Mundo acrescentou com um ar malicioso.

    Samuel aceitou sem compreender. Perdo? Era isso que eu estava escondendo a outra noite,

    quando os guardas me viram sair da cidade. Um belo po que minha me de Delfos tinha me dado, um belo po, assado para mim! Mas ningum pode saber que o orculo protege Metaxos, certo? Seria uma vergonha para ela, eu no passo de um pastor! Eis por que eu tinha que me ca-lar!

    Os atenienses poderiam exigir sua morte! disse Sam impressionado. Arriscou a vida para no tra-ir sua me de Delfos?

    Fiz bem, uma vez que Sam chegou ele res-pondeu candidamente. Os deuses me recompensaram! A propsito...

    Enfiou sua mo livre no bolso. Voc tambm merece uma recompensa. Devol-

    va isso ao seu pai.

  • Agitava entre os dedos duas pequenas hastes de metal, no fim das quais pendiam duas moedas furadas. Duas moedas furadas!

    So os bonitos brincos que seu pai confeccio-nou com as cabeas de carneiro. Ele me deu de presente antes que a pedra o engolisse.

    Samuel recolheu-os com precauo na palma da mo. Duas moedas visivelmente furadas e do tamanho certo, podendo ser usadas como pingentes e cunhadas com o carneiro de Delfos! Provavelmente seu pai surru-piou-as ao visitar o Tesouro de Atenas...

    Vou... vou deixar uma com voc, de todo modo articulou Sam, buscando conter a emoo. Voc s ter que peg-la ao lado da pedra quando eu tiver ido embora.

    Ficarei ento com uma recordao de vocs dois!

    Sim, e eu tambm ficarei com uma recordao sua! S restava a Sam partir de vez. Metaxos deu a enten-der que no queria acompanh-lo at a pedra esculpida e que recolheria a jia um pouco mais tarde. O pastor pare-cia quase aliviado ao v-lo partir, como se a ameaa de ser arrancado de suas colinas e tragado pelo nada desapare-cesse junto com Samos de Samos. Inclusive mal o cum-primentou, dando-lhe simplesmente as costas para ir cui-dar de seus animais. Ou seria uma maneira de tornar a despedida mais fcil?

  • Samuel subiu novamente a colina em direo pradaria na qual aportara ainda de manh uma eterni-dade! Ao longe, o sol morria sobre o mar avermelhado e lhe parecia que um ponto preto projetava-se a toda velo-cidade por cima das ondas. O carro de Apoio percorrendo o cu no ocaso? Afinal de contas, nada era impossvel.

  • VII

    Um coelho hidrfobo

    amuel ficou por um momento de ccoras no ci-mento do poro para respirar um pouco melhor. Alm das nuseas, um dos efeitos mais incmodos

    das viagens era aquela sensao de eco que acompa-nhava o retorno, como se cada barulho ou movimento prximo se repetisse duas vezes com uma ligeira defasa-gem. Se esse efeito de dj-vu revelara-se de grande va-lia face ao gordo Monk por ocasio do torneio de Sain-te-Mary permitindo-lhe antecipar os ataques de seu adversrio , no deixava de ser bastante desconfortvel, e Sam precisava de alguns minutos para que ele se dissi-passe. Em seguida, saiu da salinha secreta, sem se esquecer de recolocar no lugar o mural de tecido que dissimulava seu acesso. A livraria estava vazia, e ele pde mudar de roupa tranquilamente nada melhor que um jeans antes de engolir metade de uma barra de chocolate que deixara especificamente num dos armrios da cozinha. Saiu ento por uma das janelas do trreo e atravessou su-cessivamente o jardim da Sra. Bombardier e o dos Foster, cujo cachorro, em geral amistoso, comeou a mostrar os

  • dentes, talvez farejando o remoto cheiro de seu ancestral grego.

    Depois de se haver certificado de que a rua Barnbom estava deserta, Samuel pulou a cerca e se dirigiu casa de sua av, rezando para que a tia Evelyn no fi-zesse parte do comit de recepo. Infelizmente, Apoio deve t-lo abandonado no meio do caminho: assim que chegou ao ponto de nibus, um Porsche 4x4 reluzente de novo avanou contra ele trepando na calada e parou, cantando pneu, a meros 30 cm de seus sapatos. Rudolf, o noivo da tia Evelyn era assim que ela o chamava, Meu Noivo, embora ele j fosse cinquento e tivesse passado da idade dos primeiros namoricos , saiu como um de-mnio do carro.

    Samuel, ora, ora. Pode-se saber de onde vem desse jeito?

    da sua conta? O vidro do lado do passageiro desceu fazendo um

    rudo agradvel e uma lufada de ar condicionado saiu do carro.

    Claro que da conta dele! grasnou a tia E-velyn. Algum precisa se preocupar com o que voc anda fazendo por a! Se o seu pai no tivesse desaparecido e obrigado seus avs a...

    Deixe, querida, deixe que eu cuido dele. Rudolf avanou num passo decidido, como se fosse

    premiar Samuel com a sova do milnio. Desde que Allan Faulkner evaporara na natureza, Rudolf tinha efetivamen-

  • te uma aborrecida tendncia a se tomar pelo chefe da fa-mlia, vendo em Sam um futuro delinquente particular-mente ardiloso. A propsito, a idia do internato nos Es-tados Unidos era coisa dele.

    Quer dizer que no almoou com sua av? Ela acaba de sair para o bridge e estava perguntando onde voc podia ter se enfiado.

    Ela estava avisada replicou Sam. Passei a tarde com Harold.

    Harold, hein! Amigo esse Harold... Seus olhos azuis faiscavam um brilho metlico, na-

    dinha simptico. Alis, o que aprontou com sua tia ontem de

    manh? Ontem de manh? , ontem. Parece que voc tentou envolver Lili

    nos seus negcios sujos e, como se no bastasse, colocou seu av contra a tia Evelyn.

    O qu? revoltou-se Sam. Mas foi ela que ficou histrica! Estvamos comendo nossos cereais quan-do...

    Rudolf levantou a mo fazendo meno de bater. No fale assim da sua tia! Samuel estava preparado para se defender, mas

    percebeu sua prima fazendo-lhe sinais veementes na tra-seira do veculo. No compreendia o que ela queria dizer, mas sups que uma briga com Rudolf lhe traria problemas

  • suplementares. Contentou-se ento em se afastar, abai-xando os braos.

    Prefiro assim cuspiu Rudolf, que tomou sua reao como submisso. Sua tia tem os nervos frgeis, sabia? Alm disso, seu pai nem sempre se comportou di-reito com ela. inclusive culpa dele se ela est nesse es-tado. Portanto, se estiver pensando em seguir suas pega-das, vai ter de se ver comigo.

    Samuel balanou os ombros e negou-se a respon-der.

    Vamos passar a noite no parque aqutico. Que seus avs no venham me dizer quando chegarmos que voc fez das suas de novo... Estamos combinados?

    Samuel balanou frouxamente a cabea. No es