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GUIMARÃES ROSA E CLARICE LISPECTOR: PARA UMA ESTÉTICA DAS AMIZADES LITERÁRIAS *1 Marcos Antônio Bessa-Oliveira * [email protected] Prof. Dr. Edgar Cézar Nolasco ** Resumo: Este trabalho pretende discutir acerca da amizade literária entre os dois grandes escritores brasileiros, João Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Sabe-se que ambos não só foram amigos, como um admirava a literatura do outro. Tal discussão pautar-se-á pelo que propõe a teoria da crítica cultural biográfica, principalmente no tocante às relações de amizade. Entre outros autores, valeremo- nos do que propõe Francisco Ortega, em seus livros Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault e Amizade e estética da existência em Foucault e Jacques Derrida, em seu Políticas da amizade. Embasado no que postula os autores, discutiremos o conceito de amizade como, grosso modo, um fio condutor de mão dupla, ou seja, uma forma de troca de favores, de interesses, onde o amigo “interessado” se relaciona com o outro a fim de obter algum tipo de proveito da relação, mesmo que este proveito seja sem a intenção propriamente dita. Discutiremos, ainda, com relação aos dois autores, quem poderia estar mais interessado nas relações/influências um do outro: Clarice Lispector, uma escritora que, comparada a Rosa, se despontava na literatura, e Rosa, um astro literário, o que poderia ganhar com tal relação? Além de mostrarmos a importância e valor da referida amizade entre ambos os intelectuais para a crítica. Abstract: This work intends to discuss the literary friendship among the two great Brazilian writers, João Guimarães Rosa and Clarice Lispector. It is known that both were not only friends, in a way that one admired the literature of the other. Such discussion will be ruled by the proposes of the theory of the biographical cultural critic, mainly concerning the relationships of friendship. Among other authors, we will be worth of what Francisco Ortega proposes, in his books Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault and Amizade e estética da existência em Foucault, e Jacques Derrida, in his Políticas da amizade. Based in what these authors postule, we will discuss the concept of friendship as a conductive thread of two-way, in other words, a form of change of favors, of interests, where the interested " friend " has this relationship with the other in order to obtain some type of advantage, even if this advantage is without the intention. We will also discuss, concerning the relationship to the two authors, who could be more interested in the relation/influency of one to another: Clarice Lispector, a writer that, compared to Rosa, became a blunt in the literature, or Rose, a literary star. After all, what both could win with such relationship? We show, finally, the importance and value of the referred friendship between both intellectuals for the critic. Palavras-chave: Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Amizades Key-words: Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Friendships

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GUIMARÃES ROSA E CLARICE LISPECTOR: PARA UMA ESTÉTICA DAS AMIZADES LITERÁRIAS*1

Marcos Antônio Bessa-Oliveira * [email protected]

Prof. Dr. Edgar Cézar Nolasco **

Resumo: Este trabalho pretende discutir acerca da amizade literária entre os dois grandes escritores brasileiros, João Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Sabe-se que ambos não só foram amigos, como um admirava a literatura do outro. Tal discussão pautar-se-á pelo que propõe a teoria da crítica cultural biográfica, principalmente no tocante às relações de amizade. Entre outros autores, valeremo-nos do que propõe Francisco Ortega, em seus livros Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault e Amizade e estética da existência em Foucault e Jacques Derrida, em seu Políticas da amizade. Embasado no que postula os autores, discutiremos o conceito de amizade como, grosso modo, um fio condutor de mão dupla, ou seja, uma forma de troca de favores, de interesses, onde o amigo “interessado” se relaciona com o outro a fim de obter algum tipo de proveito da relação, mesmo que este proveito seja sem a intenção propriamente dita. Discutiremos, ainda, com relação aos dois autores, quem poderia estar mais interessado nas relações/influências um do outro: Clarice Lispector, uma escritora que, comparada a Rosa, se despontava na literatura, e Rosa, um astro literário, o que poderia ganhar com tal relação? Além de mostrarmos a importância e valor da referida amizade entre ambos os intelectuais para a crítica.

Abstract: This work intends to discuss the literary friendship among the two great Brazilian writers, João Guimarães Rosa and Clarice Lispector. It is known that both were not only friends, in a way that one admired the literature of the other. Such discussion will be ruled by the proposes of the theory of the biographical cultural critic, mainly concerning the relationships of friendship. Among other authors, we will be worth of what Francisco Ortega proposes, in his books Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault and Amizade e estética da existência em Foucault, e Jacques Derrida, in his Políticas da amizade. Based in what these authors postule, we will discuss the concept of friendship as a conductive thread of two-way, in other words, a form of change of favors, of interests, where the interested " friend " has this relationship with the other in order to obtain some type of advantage, even if this advantage is without the intention. We will also discuss, concerning the relationship to the two authors, who could be more interested in the relation/influency of one to another: Clarice Lispector, a writer that, compared to Rosa, became a blunt in the literature, or Rose, a literary star. After all, what both could win with such relationship? We show, finally, the importance and value of the referred friendship between both intellectuals for the critic.

Palavras-chave: Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Amizades

Key-words: Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Friendships

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Essa tendência atual de elogiar as pessoas dizendo que são “muito humanas” está-me cansando. Em geral esse “humano” está querendo dizer “bonzinho”, “afável”, senão meloso. E é isso tudo o que a máquina não tem. Nem sequer a vontade de se tornar um robô sinto nela. Mantém-se na sua função, e satisfeita. O que me dá também satisfação. LISPECTOR. Gratidão à máquina. In: A descoberta do mundo, p. 82.

Acompanha-o o lendário, margeia-o o noturno. O estouvado amor e as querências guardadas. O manso migrar sem razão, trans redondeza. A sábia alternância dos malhadores. Os vultos abalroantes, remoendo as horas, ao prazo de um calor em que o solo pede mais sombras. Os bois (...). ROSA. O homem entre os bois. In: Ave, palavra, p. 147.

Para pensar acerca da amizade literária entre os dois grandes escritores brasileiros, João Guimarães Rosa e Clarice Lispector, sabe-se que ambos não só foram bons amigos, como um admirava a literatura do outro, pautaremos nossa discussão pelo que propõe a teoria da crítica cultural biográfica, principalmente no tocante às relações de amizade. Entre outros autores, valeremo-nos do que propõe Francisco Ortega, em seus livros Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault e Amizade e estética da existência em Foucault. Embasados no que postula o autor, discutiremos o conceito de amizade como, grosso modo, um fio condutor de mão dupla, ou seja, uma forma de troca de favores, de interesses, onde o amigo “interessado” se relaciona com o outro a fim de obter algum tipo de “proveito” da relação, mesmo que este proveito seja sem a intenção propriamente dita. Com relação aos dois autores, poderia existir a idéia de quem estaria mais interessado nas relações/influências um do outro? Tal resposta torna-se difícil, principalmente quando vemos que na tradição literária brasileira ambos constroem, mesmo que paralelamente, projetos sólidos e independentes.

Não se sabe, verdadeiramente, através de registros documentais de uma amizade profunda entre Clarice Lispector e João Guimarães Rosa. Um, mineiro de Cordisburgo, homem, e ela, ucraniana, mulher, radicada brasileira. Apesar dessa diferença de naturalidade entre os dois contraditórias são as semelhanças: ambos são considerados grandes escritores da literatura brasileira; escreveram e publicaram de em várias partes do mundo, tiveram relações com o corpo diplomático brasileiro, e ainda, foram amigos. Não de se freqüentarem assiduamente, ao menos não há comprovações. Mas se

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encontraram! E se considerarmos o que vaticinara Nolasco com relação aos encontros e desencontros, e mesmo que fenômenos naturais impedissem de que estes acontecessem, cabe ser valorizada [e inventada] pela política da crítica biográfica tais possibilidades, mesmo que sejam só imaginadas. “No campo da amizade, às vezes as conversas ocupam o mesmo papel das [longas] correspondências não trocadas. Não é por acaso que ambas são formas de diálogo” (NOLASCO, 2008: 39).

Se esta longa correspondência não existiu de fato entre Clarice e Rosa, propomos pensar tal amizade entre os dois a partir de uma conversa registrada pela escritora, mesmo que ficcionalmente, em sua literatura.

A parte mais difícil deste trabalho foi não começar citando a passagem da crônica “Conversas”, na qual a escritora reproduz um comentário de Guimarães Rosa sobre a literatura dela. Seria muito óbvio fazê-lo, uma vez que este trabalho pretende discutir a relação de amizade entre os dois escritores e tal comentário só confirma que de fato a relação existiu. Sendo assim, vamos começar usando como referência para tratar dessa relação as últimas frases da crônica que, na verdade, são duas perguntas da escritora para o seu leitor: “Como vão vocês? Estão na carência ou na fartura?” (LISPECTOR, 1984: 194).

Diríamos que não só naquele momento mas para o resto de sua vida a escritora ia muito bem, obrigado, com a sua literatura, e que estava completamente na fartura não só na literatura, mas na vida, mesmo que esta tenha passado pelo problema do acidente com o incêndio mais ou menos na mesma época. Afinal, não era um fã qualquer que assumira que a lia para a vida. Se algum dia Clarice Lispector desejou, ou mesmo esperou, um reconhecimento maior vindo de uma personalidade muito importante do meio literário, (lembramos que a escritora nunca fora convidada para assumir uma cadeira na ABL), esse acontecera naquela noite no encontro na festa em casa dos Bloch. Guimarães Rosa acabava de assumir publicamente, na frente de outras personalidades, a importância da obra literária da escritora para a sua vida.

Era um “avalista” da tradicional literatura brasileira do qual talvez a escritora não precisasse mais àquela época, principalmente se fosse para comprovar o seu talento intelectual. Se a escritora, por um lado, esbarrava numa subalternidade por conta de sua condição de mulher-escritora, por outro, tal amizade, mesmo que só metaforicamente, angariava louros da tradição por meio da amizade com Rosa. Nessa época a tradição da literatura brasileira ainda era formada por escritores como Machado de Assis e o próprio Guimarães Rosa.

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Ainda sobre o que dissera Guimarães Rosa, podemos dizer que o escritor não fora totalmente feliz, pois que a amiga poderia muito bem ter entendido que sua literatura, para o amigo, servia apenas para a vida dele e não para a sua literatura, ou seja, que Rosa poderia e talvez preferisse considerar escritores já consagrados para a sua literatura e não para a vida há muito tempo inscritos na tradição literária mundial. Por isso, podemos até pensar se talvez a recíproca não era verdadeira? Sabe-se que Clarice lera e admirava a literatura do amigo Guimarães Rosa e de tantos outros escritores, mas, há considerá-los “inspiração” para as suas, ela nunca o fez. Neste sentido, é ilustrador o que diz Nolasco em texto que fala sobre as amizades gauches entre Clarice e Drummond:

[Clarice] diz não saber estar citando o referido verso de forma certa, [em sua própria obra] e justifica-se estar “escrevendo de cor”. Escrever de cor é de uma delicadeza de leitora amiga que não tem medo de correr o risco da falha de memória, [ou para não incorrer no erro da “inspiração”] desde que faça uma homenagem ao amigo lembrado. Pelo contrário, escrever de memória é um gesto que torna pública a confirmação de amizade entre Clarice e Drummond, além de externalizar a admiração pela poesia do poeta (NOLASCO, 2008: 41).

E consequentemente pela prosa de Rosa.

Nesse sentido diríamos que Clarice Lispector atuou espertamente, aceitando as falas do amigo mais como elogios para a sua obra literária e não no sentido aqui tangenciado. Isso é possível de se pensar porque, com base em Francisco Ortega que discute os conceitos de amizade para Foucault, no livro Amizade e estética da existência em Foucault antes mencionado, (1999), o sujeito se vale de uma espécie de redoma/armadura para se proteger e só se beneficiar do que for importante para ele no mundo que o cerca. Sobre isso, Ortega afirma:

O indivíduo possui a capacidade de efetuar determinadas operações sobre si para se transformar e constituir para si uma forma desejada de existência (Foucault denomina este processo ascese ou tecnologias de si). (...), (...). A relação consigo oferece uma alternativa a Foucault, uma forma de resistência diante do poder moderno. A ascese representa uma arma uma possibilidade de “se equipar”. A política, entendida nestes termos é uma política espiritual, uma revolução da alma (ORTEGA, 1999: 23-24).

Com base no que postula Ortega, afirmamos que Clarice Lispector de fato atuou espertamente quanto ao que dissera Rosa sobre sua obra, preferindo aceitar como elogio e não como crítica, porque, afinal, os “elogios” partiam do escritor que “substituía” Machado de Assis na qualidade de maior ficcionista do cânone literário brasileiro. Até então, nenhuma mulher havia sido posta no lugar ou ao lado dos dois

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escritores. Ou seja, podemos dizer que Clarice efetua o que Foucault chama de ascese, ou seja, a escritora fecha-se na condição de literata para a vida para não perder a condição de admirada pelo amigo. Neste sentido podemos dizer que a recíproca era verdadeira: Clarice Lispector também lia Guimarães Rosa para a vida e não para a literatura. Daí podermos inferir que os amigos se aproximam na amizade intelectual pela diferença, ou melhor, pela distância.

Podemos dizer, também, que a amizade entre os dois intelectuais não era uma amizade fraternal, e sim uma amizade da “boa distância”. Pensamos nessa direção porque acreditamos que mesmo que ambos os escritores admirassem um a obra do outro, e mesmo que com elas não dialogassem literariamente, entendemos, conforme já dissemos, que os estilos e o trato com a linguagem de ambos são praticamente opostos. Tal gesto pessoal, por sua vez, só reitera e reforça não a relação fraternal entre os dois, mas a relação política, que caracteriza toda boa amizade.

Mas apesar da diferença entre os projetos intelectuais, os escritores mantiveram uma cumplicidade de amigos baseada no respeito. Ou seja, cultivaram uma amizade de “boa distância”, principalmente no tocante aos projetos intelectuais, pautada por uma ética “(...) não ligada a nenhum sistema social, jurídico ou institucional” (ORTEGA, 1999: 153). Daí podermos dizer que a vida diplomática de ambos (Rosa , como diplomata; Clarice, como embaixatriz) não interferiu na política da “boa amizade” que os escritores fizeram questão de preservar na literatura.

Ainda na crônica “Conversas” a escritora diz ter assustado o círculo de amigos daquela noite ao dizer que “(...) detesto reler minhas coisas” (LISPECTOR, 1984: 193); ao contrário do amigo, Clarice conta que “Guimarães Rosa disse que, quando não estava se sentindo bem relia trechos do que já havia escrito.” (LISPECTOR, 1984: 193). Está-se ai mais uma prova da boa relação entre os amigos, ou seja, mesmo que ambos agissem opostamente frente a seus livros já publicados ou escritos, ambos acabam por respeitar as atitudes um do outro. Se Guimarães Rosa relia sua própria obra “(...) quando não estava se sentindo bem (...)” (LISPECTOR, 1984: 193) e dizia “(...) que lia a amiga para a vida e não para a literatura (...)” (LISPECTOR, 1984: 193), pensamos que o escritor se sentia totalmente à vontade frente à produção da amiga quanto a dele própria. Já com relação à Clarice Lispector, que dissera que detestava reler suas próprias coisas depois de escritas, pensamos que podia ser para não incorrer no “erro” de assumir que lia escritores brasileiros como forma de inspiração. Ao agir assim, escamoteava suas atitudes frente às obras lidas, como deve ter agido com relação à obra do amigo. Corrobora o

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que estamos dizendo, o que Nolasco já observara a respeito dos livros das estantes da escritora:

Na verdade, [Clarice] zomba diante da falta de ambos os escritores fundadores em sua “biblioteca”, e, com isso, procura como que apagar a literatura anterior à sua própria. Se afirma a saudade que sente de Machado, [podemos incluir aqui o próprio Rosa], sobre Alencar o esquecimento — “eu nem me lembro se li alguma vez” — soa como indiferença “construída”, negação da referência canônica, como a afirmar que sua escrita não reconhece o texto fundador de Alencar (NOLASCO, 2004: 127).

Tomando também outras leituras como referência, parece-nos que é meio consenso entre tal visada crítica dos estudos culturais que as relações de amizade devem ser “(...) entendidas como experimentação de novas formas de sociabilidade” (ORTEGA, 2000: 11). Entendemos, como já dissemos antes, que a amizade passa por um fio condutor de mão dupla, ou seja, ela é uma forma de troca de favores, de interesses, onde o amigo “interessado” se relaciona com o outro a fim de obter algum tipo de proveito/favor da relação, mesmo que este proveito seja sem a intenção propriamente dita. É nesse sentido que também entendemos quando Ortega diz que

Existem imagens dominantes tanto no pensamento e na política quanto nas relações de amizade. Tais imagens monopolizam nosso imaginário e condicionam nossa maneira de pensar, amar, agir e de nos relacionar afetivamente (ORTEGA, 2000: 12).

Ou seja, nós não conseguimos controlar o nosso imaginário no sentido da busca da recepção de favor das relações estabelecidas na amizade. Entendemos, por conseguinte, que toda e qualquer amizade é baseada nesta troca, e que a amizade, por sua vez, não pode deixar de ser “(...) um apelo a experimentar formas de sociabilidade e comunidade, a procurar alternativas às formas tradicionais de relacionamento” (ORTEGA, 2000: 23-24). É salutar dizer que Clarice Lispector e Guimarães Rosa se valem dessas novas formas de sociabilidade e comunidade como maneira de distanciamento e manutenção da relação de amigos literários que são.

Desde que se lançou como escritora (seu livro de estréia é de 1943), Clarice Lispector teve dos mais variados tipos de amigos, entre eles escritores, pintores, músicos, políticos, intelectuais e porque não as diversas empregadas que eram suas confidentes, principalmente quando não se sentia bem para receber ou falar com outras pessoas e até mesmo quando fingia não entender certas coisas? Isso nos remete diretamente mais uma vez à crônica “Conversas”, onde a escritora diz que “(...) adoro ouvir coisas que dão a medida de minha ignorância” (LISPECTOR, 1984: 193). De acordo com Ortega, “(...) o

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silêncio também faz parte de uma ética [e estética] da amizade, silêncio do talvez de uma amizade que não precisa dizer nada, pois às vezes a palavra corrompe a amizade, e o silêncio a preserva” (ORTEGA, 2000: 112). No caso do silêncio e do esquecimento da escritora frente ao comentário do amigo, já que ela garante que o escritor citara de cor frases e frases e que ela não reconhecera nenhuma, parece-nos uma forma de ela manter a amizade pautada pela estética e pela ética através do seu próprio silêncio.

Como já é sabido, desde que se casou com um diplomata, Clarice se viu “obrigada” a viver viajando e morando em vários lugares do mundo. E foi durante este período (1943 – 1959), o do casamento, que fez várias amizades; não diferentemente, Guimarães Rosa, como diplomata brasileiro, viajou por várias partes do mundo. Desse modo, ambos os escritores tiveram das mais variadas relações de amizade com pessoas de todos os tipos. Todavia, é na literatura que Rosa e Clarice vão confirmar a amizade sem interferência das relações sociais, comerciais ou fraternais. Mais uma vez recorremo-nos à uma passagem de Ortega, quando este afirma que

A amizade caracterizar-se-ia pelo seu caráter eletivo, aristocrático e anti-social, acentuando assim sua natureza desigual e hierárquica. A amizade opõe-se aos princípios democráticos que conduziram à sua codificação. Ela encontra-se além do direito, das leis, da família e das instâncias sociais, representando uma alternativa às formas de relacionamento prescritas e institucionalizadas (ORTEGA, 2000: 89).

Por fim, deste contato de amizade entre Clarice Lispector e Guimarães Rosa, mesmo que um lesse o outro para a vida e não para a literatura, para, grosso modo, um não se influenciar pela produção do outro, podemos dizer que tais influências perduram mesmo sem a vontade ou negação de ambos. O contato na amizade ou através das obras, ou ainda pelas relações sociais, acaba por influenciar e borrar a vida de um intelectual, mesmo que este negue até à sua morte tais influências. Inscreve-se no sujeito parte do viver/fazer da vida e da escrita do outro, pois estas relações passam a dar uma contribuição significativa para entender vida e obra dos mesmos, diluindo-se como parte integrante na vida de cada um, uma vez que: “o sujeito, ao mesmo tempo presente e ausente, se dilui nos sujeitos que reproduz, constituindo, com eles, textos e discursos que se entrecruzam e se esvaem na cena da intertextualidade” (SOUZA, 1993: 29-30).

Nesse sentido, podemos dizer que o diálogo mantido entre Clarice e Rosa naquela noite da festa da casa dos Bolch faz com que leiamos as produções posteriores e também as anteriores dos dois escritores de modo diferente, uma vez que o amigo assume publicamente que lia a amiga “(...) para a vida e não para a literatura” (LISPECTOR,

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1984: 193). O mesmo, ressalvadas as diferenças, poderia ter sido dito também por Clarice Lispector, com relação à obra de Guimarães Rosa. Na esteira do que postula Eneida Maria de Souza, podemos dizer que os processos de escrita de ambos os intelectuais sofrem alterações por conta de encontros, “conversas” e “troca de intimidades” que devem ser observados pela crítica. Para Souza,

Tais personagens, desde o momento em que passam a ser relidas, produzem a realidade ficcional do texto segundo, atingindo fidelidade em relação a esse texto, ou infidelidade em relação ao modelo no qual foram inspiradas. Esse processo de simbiose resulta, ainda, na criação de outro cenário, que, não se desvinculando do primeiro, assume vida própria e imprópria, ao se inscrever como representação da representação. Considerando o papel dos autores citados, observa-se que eles compõem o rol de personagens que desfilam nas cartas [e nas conversas], sendo confundidos com os autores de suas próprias obras. Filiados à teia da criação imaginária, contribuem para uma maior legitimação das armadilhas desse jogo ambíguo de mascaramentos e confissões (SOUZA, 1993: 30-31).

Se a escritora diz não ter lido Machado nem Alencar, e se nem assume, como faz na crônica que lera Guimarães Rosa, mesmo que não tenhamos dúvida que os lera, talvez para que a sua escrita não fosse por eles influenciada, podemos concluir que tal negação de leituras não passe de uma atuação estratégica dela, porque hoje tais leituras só vêm contribuir com o seu projeto intelectual dentro do contexto da tradição literária brasileira. Cabe à crítica agora ler as obras de Clarice e de Rosa também considerando a relação de amizade pautada pela ética que ambos os escritores mantiveram entre si. Porque se um a lia para a vida e a outra o lia, mas não assumia que lia, como parte de seu próprio processo de criação, o fato verdadeiro é que tal relação estabelecida a partir da crônica da escritora, mesmo que ficcionalmente como já dissemos, corrobora e engrandece o projeto intelectual, a vida e as obras dos dois escritores.

REFERÊNCIAS

GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Editora Ática, 1995.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

_____. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Editora Artenova S. A., 1974.

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NOLASCO, Edgar Cézar. Restos de ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector. São Paulo: Annablume, 2004.

NOLASCO, Edgar Cézar. Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector: amizades gauches. In Discutindo literatura. Ed. n. 20. n. 2. Rio de Janeiro: Criativo Mercado Editorial, 2008. p. 38-43.

ORTEGA, Francisco. Amizade e estética da existência em Foucault. Rio de Janeiro: Edições Graal Ltda, 1999.

_____. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.

ROSA, João Guimarães. Ave, palavra. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

SOUZA, Eneida Maria de. Traço crítico: ensaios. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Belo Horizonte: Editora UFMG, 1993.

*Marcos Antônio Bessa-Oliveira é acadêmico do 4° ano do Curso de Artes Visuais (UFMS / CCHS / DAC) e Bolsista de Iniciação Científica pelo PIBIC/CNPq desde 2006 até o presente momento. É membro do NECC – Núcleo de Estudos Culturais Comparados – UFMS e coordenador do NECC-ENTREVISTAS: intelectuais em foco. Desenvolve uma pesquisa atualmente sobre as produções em Artes Plásticas no Estado de Mato Grosso do Sul. Tem artigos publicados em Anais de eventos, na Revista Ângulo (Tereza D’Ávila), na Revista Eletrônica TxT (UFMG), na Revista Travessias (UNIOESTE), na Revista Rabiscos de primeira (UFMS), na Revista Eletrônica Interletras (UNIGRAN) e capítulo de livro em Espectros de Clarice: uma homenagem, O objeto de desejo em tempo de pesquisa: Projetos críticos na Pós-Graduação.

**Edgar Cézar Nolasco é doutor em Estudos Literários pela UFMG, professor da Graduação em Letras e dos Programas de Pós-Graduação – Mestrado em Estudos de Linguagens (Câmpus de Campo Grande) e Mestrado em Letras (Câmpus de Três Lagoas) da UFMS. É pesquisador do CNPq e é coordenador do NECC – Núcleo de Estudos Culturais Comparados – UFMS.

* Este trabalho foi apresentado na Mesa de Comunicação Coordenada – A política da amizade em Guimarães Rosa, Machado de Assis e outros amigos I – coordenada pelo Prof. Dr. Edgar Cézar Nolasco – UFMS durante o CONGRESSO INTERNACIONAL CENTENÁRIO DE DOIS IMORTAIS: Machado de Assis e Guimarães Rosa – no dia 30 de setembro de 2008.

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1 Este trabalho é parte de uma pesquisa maior que o autor desenvolve como Bolsista da Iniciação Científica PIBIC/CNPq – sob o título ENTRE A PINTURA E A LITERATURA: negociatas claricianas no período de agosto/2008 – julho/2009. Sob orientação do Prof. Dr. Edgar Cézar Nolasco.