H. P. Lovecraft: "O Livro"

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O LivroH.P. Lovecraft

Minhas memórias estão muito confusas. Há até mesmo muita dúvida de onde elascomeçam, pois por vezes sinto que já se passaram muitos anos, enquanto que em outrosmomentos parece que o presente é um ponto isolado num infinito cinzento e sem forma. Nãoestou nem certo de como estou transmitindo esta mensagem. Minha identidade, também,encontra-se incrivelmente obscura. Parece que sofri um grande choque: talvez devido àexperiência monstruosa que eu vivi.

Essa experiência, naturalmente, teve origem com aquele livro cheio de traças. Lembro-mede quando o encontrei, naquele lugar antigo, sem janelas, onde as prateleiras estavam cheias devolumes apodrecidos. Havia muitos livros empilhados no chão também, e foi ali que encontrei acoisa.

Nunca soube o título do livro, pois faltavam algumas páginas e a capa estava destruída.Mas, quando o achei, ele caiu aberto, próximo do fim e ali havia uma espécie de lista de coisaspara fazer e dizer. Logo percebi que se tratava de algo proibido. Era um tipo de chave, um guia,que levava a descobertas que iriam além das três dimensões. O livro, ou coisa, era muito antigo,escrito a mão. Lembro-me de como o velho que ali estava me olhou, quando viu que eu levava omaldito livro. Riu e fez um curioso sinal com a mão, recusando qualquer pagamento por ele.

Enquanto eu caminhava para casa, com o livro debaixo do braço, tive a sensação de queestava sendo seguido, por passos invisíveis.

Lembro-me de como finalmente li o livro, com o rosto pálido, trancado sozinho no sótão decasa. Não sei em que ano isso aconteceu, pois a partir daí tenho conhecido tantas eras edimensões, que minha noção de tempo se dissolveu. Eu lia a luz de velas e o silêncio era total.Então, quando eu li em voz alta o nono verso daquele tratado ouvi os primeiros ruídos na janela.Em seguida um tremor. Um portal havia se aberto no sótão e, naquela noite, eu o atravessei, sempensar nas consequências. Quando acordei pela manhã, lembrava de pouca coisa. Percebi que ocenário presente havia se misturado ao cenário passado e ao cenário futuro, e todas as coisasnaquele sótão se mostravam para mim absolutamente distorcidas.

Daí em diante parecia que eu caminhava num sonho e, a cada portal que eu atravessava,mais estranhas pareciam as coisas ao meu redor. O que eu via, ninguém mais via. Os cãestinham medo de mim, pois eles sentiam que havia algo de maléfico em mim. Mas eu continuei aler o livro noite após noite e a viajar por novos portais, avançando rumo ao desconhecido.

Certa noite, depois de ler uma monstruosa litania, as paredes derreteram e fui lançado aquilômetros de distância, num tempo que não sei qual era, até que tudo se tornou a maisprofunda escuridão. Pouco depois, vi surgir uma planície verdejante bem abaixo de mim, e nelapude perceber as ruínas de uma cidade, construída num estilo arquitetônico que eu desconheço.Não observei ali nenhum ser vivo.

Ao flutuar sobre aquela cidade, vi um edifício quadrado de pedra num espaço aberto, esenti um medo odioso tomar conta de mim. Gritei, lutei e depois de um branco eu estavanovamente em meu sótão, com o livro sobre o meu peito. Depois disso não havia mais nada quepudesse me causar estranheza, mas o terror passou a dominar meus pensamentos. A partir deentão, passei a ter mais cautela e com os encantamentos do livro, pois não desejava ser cortadodo meu corpo para abismos desconhecidos dos quais eu jamais poderia retornar...