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h ARTES, LETRAS E IDEIAS VAMOS ACABAR COM A POESIA? PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2557. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 24 de Fevereiro de 2012

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VAMOS ACABARCOM A POESIA?

PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2557. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

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I D E I A S F O R T E S

PAULO FRANCHETTIIn Sibila

WITOLD GOMBROWICZ (1904-1969) escreveu, na década de 1950, um artigo in-titu-lado “Contra os poetas”. A tese central do texto é assim resumida pelo autor:

[...] quase ninguém gosta de poemas e [...] o mundo da poesia versificada é um mundo de mentirinha, uma falsificação [...] tão ou-sada quanto leviana.[2]

Gombrowicz distingue poemas e poesia. Diz que aprecia a poesia quando ela lhe surge em Shakespeare ou na prosa de Dos-toiévski. É contra os poetas, isto é, os que escrevem poesia, e contra o produto dessa atividade, que a sua tese se ergue:

Não posso aguentar essa cantilena monó-tona, o tempo todo sublime, [...] me dão sono o ritmo e a rima, [...] a linguagem dos poetas me parece a menos interessan-te de todas as linguagens possíveis, [...] essa Beleza é para mim tão pouco seduto-ra, [...] não conheço, em termos de estilo, nada de pior, nada de mais ridículo que o jeito como os poetas falam de si mesmos e da sua poesia.

Os principais argumentos de Gombrowi-cz caminham na direção de que a poesia – isto é, a poesia em poemas – é um em-pobrecimento e não um enriquecimento da linguagem. Algumas das razões que aponta para o desinteresse da poesia são a circularidade da produção e do consu-mo (são poetas os que escrevem e são po-etas os que leem), o autocentramento do tema (poemas que falam do poema e da palavra poética ou da vocação do poeta) e a homogeneidade do estilo (“uma dúzia de ‘experiências’ sacralizadas transmitidas nas combinações impertinentes de um di-cionário mesquinho”). E, final-mente, esta razão capital: “o que tinha de ser um voo momentâneo da prosa virou pro-grama, sistema, profissão”. Ou seja, o que era para ser um modo de linguagem entre outros, um momento cujo valor vinha da situação e do contraste, passou a ser buscado em abstrato, desvinculado de um fundo, de um contexto ou situação narrativa. Daí a circularidade e a falta de comunicabilida-de da poesia dos poetas:Os Poetas tornaram-se escravos – e poderí-amos definir o poeta como o ser que já não pode expressar a si mesmo, porque precisa expressar o Poema. / E contudo talvez não possa haver na arte uma tarefa mais impor-tante do que esta: expressar a si mesmo. Não deveríamos nunca perder de vista a

CONSIDERAÇÕES SOBRE ALGUMA POESIA CONTEMPORÂNEA

verdade de que todo estilo, toda postura de-finida se forma por eliminação e no fundo é um empobrecimento.Não vou aqui discutir as ideias de Gom-browicz, nem criticá-las da forma mais fácil, acusando-o de essencialista. Pre-firo tomá-las como testemunho de um homem evidentemente culto e, mais que isso, um notável escritor, e quero acrescentar, de minha parte, outro tes-temunho: que muitas pessoas cultas que conheço (incluindo alunos de Letras – e colegas professores universitários) par-tilham, ostensiva ou secretamente, essa aversão do romancista. Mesmo que a métrica e a rima já não sejam dominan-tes e que o sublime não seja um objetivo ou dê o tom da poesia contemporânea. Ou seja, não creio que essa provocação tenha perdido interesse ao longo dos últimos 60 anos, nem que seja destitu-

ída de valor. Pelo contrário, creio que vale a pena desenvolver algumas de suas proposições, no quadro da lírica contemporânea de língua portuguesa. A questão, porém, não é simples. Porque embora possamos dizer que a poesia tem público minúsculo, quando confrontada com o romance e mesmo com o conto, é fácil constatar que continua havendo hoje leitores interessados em poesia (ain-da que a maioria deles possa ser, de fato, constituída pelos próprios poetas), mas, principalmente, pessoas interessadas em falar de poesia contemporânea. Seria interessante tentar definir qual o inte-resse da poesia para a contemporaneidade, qual o seu lugar no imaginário de nossa épo-ca. Mas, antes dessa questão, há uma outra, mais básica, que precisaria ser encarada a sério: o que é poesia hoje? Isto é: como se reconhece um texto como poesia? Em que

consiste o mínimo denominador comum que permite que afirmemos ou leiamos um texto como poesia? Ou: o que faz de um texto um poema?Há várias respostas, porque há vários tipos de poemas – já diria La Palisse. Mas creio que vale a pena tentar discutir algumas pro-posições gerais, para que possamos pensar com mais clareza o que significa para nós, hoje, no Brasil (e em Portugal), “poesia”.A resposta mais elementar é a que busca ra-dicar a diferença na apresentação formal. É o que faz, num ensaio recentemente publi-cado no Brasil, Agamben, quando escreve, a propósito de Caproni:A medida tradicional do verso passa a ser drasticamente contraída e as reticências (...) marcam a impossibilidade de levar a cabo o tema prosódico. Dessa forma o verso é reduzido a seus elementos-limite: oenjam-bement – se é verdade que este é o único critério que permite diferenciar prosa e po-esia – e a cesura (Hölderlin define-a “antir-rítmica” e aqui ela é patologicamente dila-tada até devorar completamente o ritmo).[3]

Entretanto, apesar do simplismo da formu-lação, não creio que seja exagero dizer que, para boa parte da poesia contemporânea – ao menos em português –, o  enjambe-ment – ou talvez fosse melhor dizer a que-bra da frase, ordenada de modo diferente da convenção da prosa – é de fato o elemento distintivo.De fato, basta abrir ao acaso revistas e pá-ginas de poesia para verificar que a maior parte dos poemas perde pouco se disposta no papel ou na tela como prosa. Não sendo a linha definida pelo metro, nem pelo ritmo usual da enunciação, nem pela conveniên-cia da rima, sobram, para justificar o rejet, os pequenos suspenses entre uma linha e outra, as oscilações de classe gramatical ou de sentido. E é esse pouco que se perde ao dispor o texto em linhas contínuas.Sendo assim, o leitor contemporâneo pode, muitas vezes, perguntar simplesmente: “por que ele está escrevendo assim?”. Os efeitos do rejet justificam o desinteresse do resto? Ou a quebra da linha instaura outra forma de leitura, diferente da leitura que a prosa demanda? Ou seja: a pergunta sobre a for-ma da disposição é a pergunta pela situação de um texto num determinado gênero, pela forma de ler e de avaliar o que se lê.No melhor dos casos, a quebra da linha é também a quebra da velocidade da leitura. E a quebra da velocidade da leitura permite não apenas a consideração da materialidade das palavras, mas também a valorização se-mântica de cada uma delas. Por isso, outra variante da pergunta que um poema suscita é: “quem escreve dessa forma escreve algo diferente do que quem escreve da forma usual?”. Ou ainda: “quem escreve

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dessa forma quer ser lido de modo diferente de quem escreve em linhas contínuas até o limite da mancha do papel?”. A quebra é sempre intencional, é claro, porque o poeta se ocupou de interrompê--la em determinado ponto, não deixando essa tarefa ao programa de computador ou ao acaso da largura do papel; mas a quebra também se faz de modo intencionalmente arbitrário – se podemos dizer assim – na-quele tipo de poesia cuja forma ostensiva não é o verso – isto é, não é a linha que-brada em pontos diferentes ao longo da descida da leitura –, mas uma forma geomé-trica que se impõe ao ritmo dos segmentos frasais ou mesmo à construção sintática ou à articulação dos conceitos. São os poemas em formas de blocos, retangulares ou qua-drados ou de outra geometria. Neles, não há a rigor verso. Nem há distribuição das palavras em forma de prosa. A iconicidade da não-prosa é le-vada ao máximo – o que é tanto uma reivindicação de poema quanto a linha do verso.Ou seja, nesse primeiro nível de aproxima-ção, a quebra não arbitrária da linha – que Agamben considera o único critério dife-renciador – é um ícone, uma sinalização visual, antes de ser uma maneira de produ-zir sentido. É a indicação mais evidente do registro genérico em que o autor procura que seu texto seja lido – para confirmar as expectativas associadas àquele gênero, ou para contrariá-las. Ela diz “isto é poesia” na medida em que afirma “isto não é prosa”.Entretanto, a questão da diferença da poesia e da prosa é evidentemente mais complexa. Não se reduz à questão da quebra da linha. Há textos que ocupam o lugar de poesia, que demandam leitura como poesia por conta do local de publicação (num livro de poemas, por exemplo, ou numa revista de poesia), ou da referência explícita à tradição poética. Como este, em que não é possível dizer que haja verso, embora haja repetição de células métricas tradicionais de 7 e 5 sí-labas:

Madrigalgosto quando pões a quinta porque me to-cas na perna com o nós dos dedos [4]

Sem o lugar de publicação (no caso, um li-vro de poemas) e sem a denominação, não se constitui o gesto irônico que incita a ler a frase contra o pano de fundo da lírica. Ou a buscar desentranhar da frase comum a métrica tradicional. Na verdade, sem a de-nominação e o lugar, um texto como este, que é apenas gesto – uma espécie de ready made –, não se constitui como poema.A reivindicação do lugar da poesia para os mais variados objetos é uma tônica da modernidade, aguçada no tempo corren-te. De fato, nem o mais radical dos movimen-tos de vanguarda, nem o mais destruidor ataque à tradição abdicam dos nomes po-esia/poeta/poema. O nome, assim, é não só o que mobiliza uma forma de leitura, mas também uma qualidade. Conquistar o direito ao nome é conquistar o reconheci-mento da qualidade, do pertencimento, da inclusão. O que se diz ou o que se comunica ou ainda o que se faz num poema aparece

frequentemente como algo secundário em relação à conquista do direito ao nome.O prestígio tradicional do nome, porém, está comprometido. Vivemos em tempos não modernos. Para o Modernismo, a tra-dição fraturada existia como antagonista ou como objeto de desejo: os futuristas, bus-cando liquidar os últimos alicerces do velho museu, e o esforço do período entreguerras para recuperar, inventar ou construir uma tradição são as duas faces da mesma moe-da, ou seja, do diálogo com o passado, que dava o tom da literatura e a definia como continuidade.Ezra Pound com o seu “paideuma” exem-plifica a angústia da época, na sua segunda vertente: selecionar o passado, organizar o legado do que parece bom. A auto--consciência e a postulação do lugar de charneira em que se colocava o poeta constituem a explicação para a tarefa: a não ser que aquela geração fosse decisi-va, não faria sentido selecionar o passado para que o próximo homem ou geração encontrasse logo o que contava. Porque para o próximo homem ou geração, se

fiel ao legado, o que importará será ou-tra coisa. A ser uma tarefa contínua a de construir o paideuma, cada um é produzi-do com prazo de validade curto. Aos in-ventores de paideumas logo se sucederão os mestres e os diluidores de paideumas – para usar termos do próprio Pound. E junto com os mestres, se a coisa funcio-nasse bem, já outros inventores estariam explodindo o paideuma anterior. Eliot, por sua vez, propunha outro tipo de seleção e integração do passado no presente, por meio da ordem ideal das grandes obras, continuamente alterada pela chegada de mais uma ao panteão. Para ambos, para além das diferenças, a tradição era um ob-jetivo e uma conquista; não só um patri-mônio, mas uma construção contínua. E, sobretudo, referência central para o que se produzia no presente.Agora, a tradição é um simulacro. O co-nhecimento dos  topoi  está morto ou não é compartilhado pelo leitor disponível. Ao mesmo tempo, a internet promove uma nova erudição, que altera a forma da pro-dução e da leitura, multiplicando as refe-

rências intertextuais colhidas no Google, ao sabor da bolsa de valores da cultura. No que diz respeito à técnica da composição, as questões centrais para a tradição já não fazem sentido como aplicação, nem como referência viva – a eficácia comunicativa, a exemplaridade do uso da língua, a arte do metro e da rima. Por isso, não só o hori-zonte cultural de um poeta contemporâneo pode ser bastante limitado a umas poucas referências em moda, mas ainda o seu do-mínio do idioma pode ser deficiente e suas insuficiências reais facilmente absorvidas como “procedimento”.A consciência da perda e da anomia do presente aparece em vários registros. O mais simples é o resquício modernista: o enfrentamento da tradição pela ironia ou pela agressão. É a arte de chutar cachorro morto. O soneto, por exemplo, que foi a forma lírica por excelência ao longo de sé-culos, ainda é praticado de modo pouco in-teressante pelos neoparnasianos (e também, no Brasil, por Glauco Mattoso, cuja mistura de forma “alta” e conteúdo “baixo” rapida-mente atingiu o nível da exaustão). Mas, em outros domínios do contemporâneo, conti-nua sendo um índice daquilo que falta, e é curioso observar quantos poetas produzem hoje sonetos que de sonetos, no sentido completo da palavra, têm apenas o nome ou o número de versos ou ainda apenas o simples diagrama.É o caso de Miguel-Manso (1979-...), que, no volume referido, tem, além do “Madri-gal”, um “Soneto”, composto de 18 estrofes que variam de 1 a 3 versos de tamanho ir-regular. É também o caso de um poeta mo-çambicano, Luís Carlos Patraquim (1953-...), que, em O osso côncavo (2008), publi-ca um “Des-soneto” composto de 14 versos rimados, mas de medida variável. Por fim, é o caso mais radical do livro Z a zero, publi-cado por Wilmar Silva (1965-...) em 2010.[5]  Este último é interessante porque o livro consiste de 26 “textos” distribuídos em 14 linhas. As linhas consistem de 26 repetições de uma única letra por página, a que se se-guem dois números em algarismos (que fa-zem o papel da rima), e da transcrição das consoantes que formam o nome dos núme-ros. Assim:

pppppppppppppppppppppppppppp150 159 cnt cnqnt cnt cnqnt nv O “soneto” a que pertence essa linha se cha-ma K, porque os títulos se distribuem na or-dem inversa da letra que progride ao longo do livro: o primeiro soneto se chama Z e o último A. No posfácio ao livro, Fernando Aguiar comenta as características formais e escreve:Wilmar Silva pega numa das estruturas mais tradicionais e rígidas da poesia oci-dental – o soneto – e trabalha-a com base numa linguagem contemporânea, fazendo com que não reste uma réstia de dúvida quanto à carga poética de “Z a Zero”. [...] Mas a leitura também se poderá efectivar no sentido inverso, isto é, começando pelo poema “a” e terminando no soneto “z”, constituindo um ciclo interminável de lei-turas. Nesse sentido poder-se-á considerar que “Z a Zero” não tem princípio nem fim,

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podendo ser (re)lido infinitamente, numa abordagem cíclica crescente-decrescente tanto em termos alfabéticos como nume-rais. [6]

Aqui todos os elementos estão presentes: a tradição da poesia ocidental, seu aproveita-mento numa linguagem contemporânea e a carga poética que deveria derivar da apro-priação da primeira pelo segundo. O racio-cínio é que não se explicita: não resta dúvi-da quanto à carga poética porque se trata de uma atualização contemporânea de uma estrutura tradicional? A dúvida se elimina por conta do incorporado ou do que incor-pora? Aparentemente, é a incorporação da tradição pelo contemporâneo que garante a carga poética. Mas podia ser o contrário: a destruição da tradição, assim reduzida a um mero esqueleto numérico, e sua completa dissolução na linguagem contemporânea.De qualquer forma, tanto o livro quanto o seu posfácio exemplificam bem a consciên-cia da perda, pois o que sobra, aqui como nos exemplos referidos, é o mínimo: o nome ou o número de linhas e o esquema das rimas. Do ritmo dos versos medidos e da estrutura lógica do soneto não há sinal.A passagem do prefácio também nos permi-te abordar um ponto interessante e central. Diz o autor que o livro pode ser relido infi-nitamente. Mas por quem? E por quê? Uma vez apreendido o esquema, que leitor iria “ler” infinitamente esse conjunto de linhas e números, invertendo a ordem ao chegar ao fim, ou começando em qualquer parte, como sugere o posfaciador?Pelo absurdo, esse exemplo nos conduz ao ponto que de fato interessa para dis-cutir a poesia contemporânea, mas que fica ausen-te das reflexões centradas no texto ou no autor, mas que ocupava, de modo a produ-zir escândalo, o lugar principal no texto de Gombrowicz: o leitor – isto é, o interesse e o sentido da leitura.Já vimos como ao leitor é dirigido um ape-lo, por meio da forma ou da alusão à tra-dição: “leia-me como poesia!”. Percebe-se também que essa questão logo se desdobra em outra, que é: “como você avalia o meu desempenho no que faço?”. Faz parte da nossa modernidade que o leitor ideal fosse o que atendesse à primeira demanda e, algu-mas vezes, respondesse ao último convite. Ou seja, o bom leitor é o que aceita como tal o texto que se quer poesia – é a anomia produtiva da pós-modernidade – e que, buscando o seu “projeto”, isto é, a sua for-ma de se articular na anomia que é a poesia contemporânea, avalie como ele se cumpre. Ou seja, o estético se esgota na verificação da coerência e da adequação de projeto, procedimento e produto.Mas há uma outra pergunta que raramen-te o texto contemporâneo lança ao seu leitor. Uma pergunta tão elementar para este, quanto incômoda para aquele: “o que você acha do que tenho para dizer e estou dizendo?”.A simples apresentação da possibilidade de essa questão ser importante, quando enun-ciada neste texto, já deve provocar estra-nhamento. O que é compreensível, pois ela foi seguidamente desclassificada e empurra-da para o domínio não literário, da crença ou do comércio. É certo que o leitor pode

recusar ou aceitar o que um poeta tem para dizer, mas essa é uma operação que o con-senso contemporâneo tenta empurrar para o foro íntimo, que fica entre o domínio da pura simpatia ou da escolha de consumo. Não é um parâmetro avaliativo em vigor, e o leitor que confessasse que se aproxima de um livro de poesia tendo, entre outras, essa pergunta em mente provavelmente seria tratado com sarcasmo, condescendência ou desaprovação. Tudo se passa como se ao li-vro que tem o direito de se apresentar como poesia, ela não se aplicasse – ou se aplicasse de modo subalterno, sem alcance público, sem espaço de exposição. Foi-se o tempo em que fazia sentido para Pound perguntar ao seu leitor se ele se in-teressaria “pela obra de homens cujas per-cepções gerais estão abaixo do nível co-mum”. Mas ainda não chegou o momento em que a avaliação literária se restrinja à contemplação do desempenho do poeta dentro das balizas por ele mesmo traça-das, nem à verificação de como um dado texto se posiciona em relação à tradição ou ao seu espectro.A reivindicação do lugar da poesia carrega consigo uma questão incômoda: qual a im-portância de dizer isso em poesia? Porque é evidente que há vários lugares para deixar algo dito. Por exemplo, afirmar uma prefe-rência sexual ou dos direitos de uma etnia ou minoria. Contar uma piada, fazer um trocadilho, etc. Fazê-lo em uma forma que se postule ou possa ser reconhecida como poesia tem um sentido, busca no final das contas um valor – ao menos o valor de um lugar tradi-cionalmente valorizado – que não pode ser tratado como se não existisse. Justamente, a reivindicação de ser lido como poesia re-afirma – para o tema ou atitude – o seu di-reito a existir nesse domínio específico, do qual não se dissocia o prestígio do nome e do gênero.Nesse ponto, vale a pena referir uma passa-gem de Michel Deguy:O texto de um poema, a unidade de contenção mínima da escrita que se de-clara poética, pretende (e tende  a) fa-zer a composição de dois impulsos: I. O da homofonia (de modo muito ge-ral), ou paronomásia, ou ainda iteração de semelhanças na sonoridade de deter-minada língua. [...] A questão do outro “Mas por que ele diz as coisas assim?”, a resposta é: as coisas vieram assim; é a sua maneira de prestar atenção [...]. II. O-que-é-dito [...] e endereçado a, ou conteúdo, é o segundo ingrediente mate--rial. Alguma coisa aspira a ser dita, dita a outros: é a “mensagem”, dizemos às vezes; verdade na garrafa que se joga ao mar... por-que quer dizer.  A definição da verdade não é que qualquer uma merece ser dita? [...] Com esses dois impulsos, reconhecemos o poema.[7]

Interessa sobretudo o segundo impulso: o que diz respeito a “o-que-é-dito” – a “men-sagem”. Não só se diz algo, mas se diz para alguém e se diz o que merece ser dito. Den-tro dos termos em que viemos equacionan-do a questão: a aspiração ao lugar da poesia é também, no final das contas, uma aspira-ção ao lugar do fazer sentido, de dizer o que

merece ser dito. Talvez mesmo, nesse senti-do específico, o lugar da verdade.Este me parece o ponto mais escuro do contemporâneo. Porque a pergunta crucial que tanto a crítica quanto a poesia contem-porânea brasileira de hoje parecem querer evitar é justamente esta: o que merece ser dito? O que, está claro, não é o mesmo que perguntar: o que precisa ser dito? Esta per-gunta pode ter uma resposta exclusivamen-te pessoal. Precisa ser dito o que eu acho do mundo, ou o que me incomoda e que, se eu não disser, continuará me incomodando – a poesia como remédio. Não há mal nisso. Mas é preciso reconhecer que é diferente perguntar “o que merece ser dito?”, pois a base desta pergunta não é apenas estética, mas sobretudo ética – no sentido de que só a ética permite sustentar a afirmação de que qualquer verdade merece ser dita.Ter uma verdade que mereça ser dita. O jul-gamento sobre o que é verdade é sempre subjetivo, mas o princípio é claro e dá dire-ção à prática. E é a forma mais elaborada da questão do leitor: “o que ele tem para me di-zer, que quer dizer em poesia?”. Ou “por que ele está me dizendo isso em poesia?”. Essas duras questões, que não só o leitor, como o crítico ou o estudioso que não queira ser apenas um catalogador servil têm direito (e mais que direito, eu diria: a obrigação) de fazer definem o que pode ficar além dos li-mites da vaidade e da diversão.  [8]

Nos domínios da herança construtivista, a resposta mais simplória é a insistência na exaustão do indivíduo, banalizada pela literatura pós-moderna: identificando ou temendo identificar a verdade com a apos-ta subjetiva, reduz-se a sua formulação ao domínio do confessional – como se o confessional fosse simples expressão e não construção. É o que se lê num poema de António Cícero, intitulado Merde de poète: “Quem gosta de poesia ‘visceral’, / ou seja, porca, preguiçosa, lerda, / que vá ao fundo e

seja literal, pedindo ao poeta, em vez de po-emas, merda”. [9] Esse poema é exemplar da vulgata cabralina. A associação do visceral – ou seja, daquilo que poderia ser descrito também como dionisíaco, lírico, confessio-nal – à porquice e, sobretudo, à preguiça é mais uma glosa dessorada da vulgarização da defesa do papel heroico do poeta cons-ciente. O quadro e a estratégia de choque não poderiam ser mais simplistas e reativos: a demanda do leitor por uma verdade indi-vidual é associada ao gosto do dejeto.Paulo Henriques Brito, por sua vez, escre-veu, na mesma linha, um poema intitulado “Um pouco de Strauss”, contra “versos ínti-mos, sinceros”. [10] Aqui também tudo o que temos é o gesto serôdio de negar o interesse da sinceridade, do intimismo, da poesia do “eu” – recorrendo para tal à palavra grossa e à associação da intimidade ao dejeto cor-poral. Mas esse poema dá um passo a mais: não há verdade na poesia de expressão por-que o eu é uma “coisa falsa que se disfarça”, nem graça nas “poesias melodiosas”, que se reduzem a lenga-lenga estúpida e sentimen-tal.Como esses dois, há dezenas, atestando os ecos do construtivismo no Brasil. Juntos fa-zem um coro que condena as duas pontas de um processo de escrita e leitura que apa-rece como desprovido de qualidade, mas não de interesse e capacidade de pressão, como mostram as formulações agressivas. E é curiosa a coincidência do tom, das ima-gens baixas nesses versos declaratórios, pro-fissões de fé – ou melhor, autos de fé em que se trucidam tanto a heresia de um leitor que demande conteúdo individual ou verdade pessoal quanto o poeta que busque ou não evite oferecê-lo.O lirismo contemporâneo brasileiro, no quadro herdado da tradição cabralina, é um lirismo culpado e regrado por tabus. Em poucos poetas e poucos poemas o eu se ofe-rece, frágil, como algo que se julga no direi-

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to de existir e buscar a palavra. De poucos poetas nos perguntamos: quem é a pessoa que escreveu isto, que vê o mundo assim? Por que ele prefere falar desta maneira? E em quantos poetas encontramos algo frente a que pensamos: isso precisava ser dito – e precisava ser dito assim, em poesia?Travado pela vergonha, pelo medo de se dirigir ao leitor comum e pela necessidade de trazer à vista os andaimes da construção – isto é, as marcas do “trabalho duro” e da especialidade – o exercício da lírica tende a desaparecer ou a ser combatido como ini-migo do contemporâneo. Embora pertença a um texto referido aqui e ali, não parece ter calado muito fundo esta formulação de Adorno: “o autoesquecimento do sujeito, que se abandona à linguagem como algo objetivo, e a imediatez e involuntariedade da sua ex-pressão são o mesmo”. No entanto, mesmo entre nós, como ates-tam autores como Ruy Belo, Herberto Hel-der, Sophia Andresen, Hilda Hilst, Daniel Faria, há formas consequentes de lidar com a tradição lírica no contemporâneo, com recurso ao ritmo da fala, ao ritmo do corpo e ao metro – no qual se consubstanciam as leituras desses ritmos, ao longo do tempo – e a outras formas de construir que não pas-sam pelo programático e pela exibição dos princípios da racionalidade construtiva.Do meu ponto de vista como leitor e críti-co, esta é a tarefa premente da contempo-raneidade brasileira: enfrentar o consenso, que se torna mais forte na medida mesma em que a tradição deixa de ser a alterida-de que nos pressiona desde o passado e não funciona mais como substrato comum de referências e expectativas entre o leitor e o autor. Consenso esse que faz hoje da tradição algo inócuo, que apenas fornece material para glosa e piada, ou algo sagrado (e perdido), só recuperável pela celebração ritual – e que promove a negatividade facili-tadora, que recusa no final das contas o con-fronto com as contradições do presente e a pujança de outras formas de produzir emo-ção e ideias (como a música, o cinema, o romance, entre outras), refugiando-se numa afirmação da distância que não consegue disfarçar a impotência. A contenção, o rigor, o controle do pro-cesso de produção do poema, a insistência no caráter estrutural do livro são apenas al-guns aspectos dessa guerra ao diferente. O desprezo pelo “fácil”, pelo “informe”, pelo “visceral” ou pelo “inspirado” decorre da necessidade não só de valorizar o poema como fruto de um trabalho, mas de afirmar a natureza objetiva, controlada e controla-dora desse trabalho. Não se trata do traba-lho que se processa no poeta, mas do tra-balho do poeta. Não se trata da forma que a linguagem assume no poeta, a partir da sua formação e experiências, mas da lingua-gem controlada pelo poeta como o metal é controlado pelo fabricante de adereços. Ou seja, trata-se da afirmação do produto. No limite, da valorização mercadoria – inven-dável, mas sempre mercadoria.Já vai longe o momento em que Bandeira podia sonhar com um poema inteiro e con-fessar que o fizera em sonho. Mesmo que os poemas possam continuar a nascer de

maneira “inspirada” para muitos, sua apre-sentação hegemônica pressupõe que se va-lorizem o planeamento, o trabalho, o con-trole. Mas, embora o vocabulário seja apro-ximadamente o mesmo utilizado nos anos de 50 por Cabral, não é a mesma a questão para a qual hoje ele é mobilizado. Para Ca-bral, estava em pauta a função moderna da poesia – que, no seu entender, implicava a necessidade urgente de promover a comu-nicação do poeta com o público. Isto é, de reconhecer o leitor contemporâneo e falar para esse leitor. O trabalho do poeta era um antídoto ao que ele julgava ser o solipsis-mo dos integrantes da sua geração, que não enfrentariam a complexidade do mundo contemporâneo, no qual a poesia (tal como então praticada) não tinha lugar. Ou seja, era uma proposta de dissonância do que era a regra, com o objetivo de aproximar o poeta do público por meio da produção de um objeto inteligível e adequado à vida moderna.Na mesma época das conferências de Ca-bral, Gombrowicz, como vimos, apontava como causa do desinteresse da poesia con-temporânea a circularidade da produção e da recepção e a celebração da palavra poéti-ca e do estatuto poético como assuntos pre-ferenciais do poema. Em ambos, a questão do interesse público pela poesia era central.Do texto de Gombrowicz não se deduz fa-cilmente nenhum caminho para eliminar o desinteresse da poesia moderna. Já da fala de Cabral, sim.Para Cabral, a contemporaneidade estava dividida entre dois modelos de poesia, dois tipos de poeta: o “inspirado” e o “constru-tivo”.  A radicalização de qualquer desses tipos, embora Cabral tomasse o partido dos construtivos, conduzia ao isolamento e à exclusão do público. O solipsismo e o artesanato furioso, que conduziriam ao “sui-cídio da intimidade absoluta”, não são res-postas à altura do desafio de encontrar uma função para a poesia no mundo moderno. Pelo contrário, são limites, obstáculos. O ideal do poeta está claro na utopia de uma “época de equilíbrio”, já passada, que julga não recuperável, a não ser por aproxima-ção. (Aproximação essa que, no momento, pareceu-lhe ser menos agredida pela objeti-vidade construtiva do que pelo subjetivismo inspirado.) Nessa postulada idade de ouro da poesia, “o trabalho de arte inclui a inspi-ração”, as regras da composição são explíci-tas e universalmente aceitas, “a exigência da sociedade em relação aos autores é grande” e, por isso tudo, a comunicação é objetivo central da prática literária. A questão da comunicação – tão impor-tante para Cabral – parece ter afundado no esquecimento. Aceito como condição definitiva o que era diagnosticado como etapa a ser superada, parece ter havido no Brasil não apenas uma resignação à falta de público, mas inclusive uma identificação entre o desinteresse público e a qualida-de, ou entre a recusa do público (suposto) e o caráter atual de uma prática. Ou seja, não é por a poesia não buscar a comunica-ção que o seu público contemporâneo se vê constantemente reduzido aos próprios poetas. Pelo contrário, a redução do pú-blico, neste momento, é quase um com-

ponente da própria definição de poesia contemporânea. Não é um efeito, é antes um objetivo. Ante a profusão de poetas, o pequeno público seleto define o pro-dutor seleto, assim como o amplo público defi-ne o produtor “vendido” ou banalizado ou concessivo. Que essa forma de pensar não valha para a prosa, mesmo se escrita pelo mesmo autor, é um ponto que mereceria mais comentários. O curioso é que nessa recusa a dar voz ao leitor comum – a responder pela relevância do que se diz – se irmanam tanto o tardo--vanguardismo persistente, quanto a an-gustiada reivindicação de direito à poesia a qualquer custo – para não falar dos rema-nescentes parnasianos.Nesse quadro, a desconfiança em relação a alguém que se proponha a dizer algo que julgue merecer ser dito, alguém que se pro-ponha a dizer algo para alguém localizado fora do círculo fechado dos poetas-leitores--de-poetas, é esmagadora. Recusado um horizonte mais amplo de reflexão sobre o que merece e o que precisa ser dito em poe-sia, ter algo a dizer é flertar com a autoajuda ou o proselitismo, segundo o senso comum dominante. Não ter nada a dizer, ou nada querer dizer de modo convincente não é perigoso – pode mesmo ser uma segurança, num ambiente em que o repertório é baixo e a tradição é apenas uma ideia vaga, um catálogo de temas e procedimentos ou um trampolim.    A esta breve provocação, porém, não inte-ressa alongar os exemplos e questões, mas apenas, com base nesse quadro sumário, afirmar uma crença. E é esta: descobrir os caminhos para não se comprazer no pro-blema como se ele fosse a solução e, pelo contrário, enfrentá-lo com armas mais efi-cazes do que a celebração da singularidade do poeta e do seu isolamento orgulhoso (que pode facilmente descambar para o virtuosismo técnico ou para o exibicionis-

mo vulgar de cultura): essa é a difícil tarefa que se apresenta aos poetas brasileiros nes-te começo de milênio. Agora como há 60 anos, e talvez com até mais urgência nestes tempos de web e de publicações virtuais, urge pensar novamente a função da poesia.

NOTAS[1] Este texto, com poucas modificações, foi lido em 1 de setembro de 2011, no encontro “Brasil e Portugal: questões poéticas contemporâneas”, or-ganizado na UFF por Célia Pedrosa e Ida Alves.[2] Referências pela publicação na revista Poe-sia sempre, no 30. Rio de Janeiro: FBN, 2008. Tradução de Marcelo Paiva de Souza.[3] Giorgio Agamben. “Desapropriada manei-ra”. Prefácio ao volume Res Amissa, de Giorgio Ca-proni. O volume e seu prefácio foram pu-blicados no Brasil com o título algo estranho A coisa perdida - Agamben comenta Caproni. Flo-rianópolis: Editora da UFSC, 2011. A parte referida está na p. 39. O grifo é meu.[4] Miguel-Manso. Contra a manhã burra. Lis-boa: s/e, 2008, p. 55.[5] L. C. Patraquim. O osso côncavo. São Pau-lo: Escrituras, 2008.[6] W. Silva Z a zero. Belo Horizonte: Anome Livros, 2010. Não há numero de página.[7] M. Deguy. Reabertura após obras. Campi-nas: Editora da Unicamp, 2010, pp. 14-5.[8] Ou ainda da pura facilitação e oportunismo, como se vê em certa poesia de sucesso, de que não tra-tarei aqui e que conquista algum público por meio do rebaixamento do poema ao nível da tagarelice ou exibicionismo estilo Big Brother – o que nada tem a ver, está claro, com expressão ou construção de ver-dadeira subjetividade.[9] A. Miguel (org.).  Traçados diver-sos – uma antologia da poesia contempo-rânea. São Paulo Scipione, 2008, p. 28. [10] Paulo Henriques Britto. Trovar claro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Apud.http://www.blogdacompanhia.com.br/wp--content/uploads/2011/07/FLIP-2011-britto--poemas.pdf.

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ChiCo Moore

I like the way you touch me thereI like the way you pull my hairBabe, if I don’t feel it I ain’t faking, no, noI like when you tell me ‘kiss you there’I like when you tell me ‘move it there’So giddy up, time to get it upYou say you a rude boyShow me what you got now

Rihanna, Rude Boy

NA VIDA, todos temos objectivos imprescin-díveis. Há o cliché (livro, árvore, filho) ou o sonho de cada um: ver um concerto dos Rolling Stones, sentir a brisa dos Himalaias fustigar o rosto, coisas dessas.

Estabeleci cedo as minhas prioridades: per-der a virgindade, saltar de pára-quedas e visitar a Capela Sistina. Hoje, com todas cumpridas, posso dizer que morrerei tranquilo. E se a perda da virgindade e o salto de pára-quedas tiveram consequências nefastas – culpa minha, teimei em concretizar as duas coisas ao mesmo tempo -, já a visão da Capela Sistina correspondeu exactamente ao que esperava.

TOMO I – A CAPELANem a ida à Lua, nem a Grande Muralha da China, nem a Naomi Campbell – nada demonstrou o génio criativo do homem como a Capela Sisti-na. Ao longo de paredes e tectos, a simbologia cristã é arte de puro esplendor, tocando fundo a crença. Os frescos, porém, são a maior ironia – o templo supremo do catolicismo é um desfile de musculatura, trazida para primeiro plano com pingentes masculinos. É que os autores das obras também eram frescos.

Esta ironia, aliás, leva à grande questão: se Stéphanie do Mónaco fez amor com o guarda--costas, o acrobata, o domador e, enfim, o circo quase todo, por que razão é que foi Diana de Gales, saltitando entre jogadores de pólo, ci-rurgiões e milionários, a ficar conhecida como a princesa do povo?

Voltemos ao clero. Estamos no auge do Renas-cimento, início do século XVI. A altura em que o papa Júlio II chamou dois mestres para decorarem a Capela mais emblemática do Vaticano: Rafael (o artista, não a Tartaruga Ninja) e Miguel Ângelo (o artista, não a voz dos Delfins).

Encontros distintos, mas pontuados sem dúvi-da pela mesma elegância. Rafinha apresentou-se com um vestido de noite drapeado Lanvin, em fuschia, bolsa de cetim da mesma cor, bracelete Harry Winston e sapatos Jimmy Choo. Angelito, mais sóbrio, preferiu um conjunto Chanel de blusa e saia, um pouco acima do joelho, sapatos Rodger Vivier e total ausência de acessórios. O sumo pontifície, sempre comedido no primeiro encontro, levava o pálio e todas as vestes papais como manda a tradição. Apesar da diferença de cinco séculos, Júlio II era uma figura bastante similar a Bento XVI. Tirando talvez o gosto por orgias e preferir havaianas a sapatos da Prada.

TOMO II – RAFAELRaffaello Sanzio da Urbino – Rafael para o mun-do, Rafinha para os íntimos, Madame Tatiana para quem pagava bem – nasceu em 1483, filho de Giovanni Santi. Este era o pintor favorito da corte de Urbino, liderada por Federico III da Montefeltro, duque muito popular na época pela invenção de canetas de cor.

Santi era um artista multifacetado, tendo obra muito significativa nas letras. É dele o imortal

A CAPELA SISTINA COMO TEMPLOHOMO-ERÓTICO

verso “quando eu te queria, num amor sem fim; tu me trataste, ai como um brinquedo; agora queres, mas eu digo assim, chupa, chupa, chupa; chupa no dedo”. Embora em italiano as palavras tenham outro impacto, é inegável a sua intensidade.

A mãe, Màgia Antonelli, era estrela nos shows de burlesco da corte, mas um bizarro acidente quando dançava no varão culminou com a sua morte, tinha Rafael apenas oito anos. O pai casou-se de novo poucos meses depois, mas um bizarro acidente, quando dançava no varão para matar saudades da esposa desaparecida, culminou com a sua morte.

Apesar de órfão, Rafael cresceu no ambiente da corte, já que o tio paterno tomou conta dele (e da respectiva madrasta, com quem se casou). O talento do miúdo, com nove anos, era tão evidente que o tio pô-lo no atelier de Perugino, onde depressa superou o mestre. Tirando isso, teve a típica adolescência dos jovens renascentistas, feita de pincéis, livros e pósteres do Ricky Martin.

Morreu com apenas 37 anos, quando vascu-lhava os pertences dos pais e encontrou um varão, com o qual... enfim, um bizarro acidente. Apesar

de desaparecido novo, deixou obra extensa obra, onde se destaca a criada no Vaticano. Quando foi ao encontro de Júlio II, seguiu as indicações de um cardeal, mas mesmo assim perdeu o norte. Andou à deriva entre corredores, até ouvir música. Seguiu os decibéis, chegando a uma porta grossa. Bateu com força e lá a abriram, deixando à vista um espectáculo eclesiástico-funk.

As movimentações das noviças e do marinhei-ro guineense espantaram-no, mas o que mais o chocou foi ver o papa sem soutien. Em especial pela forma como se meneava ao som da música, que todo o grupo cantava:

Oo-oo who-oo-oo whooo-oo oo-ooOo-oo who-oo-oo whooo-oo oo-ooOo-oo who-oo-oo whooo-oo oo-ooOo-oo who-oo-oo whooo-ooBarbra Streisand!

Uns banhos depois, Júlio II reuniu-se com Rafael numa cama de dossel, pois apreciava guerras de almofadas antes do trabalho. Findo o aperitivo lúdico, começou a relatar desejos.

“Rafinha”, explicou enquanto cuspia duas ou três penas, “além de macramés com plantas, quero as salas que desembocam na Capela com bonecos giros, assim tipo Naruto.” Rafael abanava a cabeça enquanto o papa falando, mas pensava já como iria deixar a sua marca de génio na eternidade.

Dizer que os frescos das Salas de Rafael são tão gays que só lá faltam plumas está errado, porque tal adereço seria supérfluo – qualquer renascentista sabia bem que fazem imensas cócegas nos corpos nus. É verdade que na obra “A Escola de Atenas” as figuras aparecem quase todas com roupa, mas aquele olhar lúbrico entre Platão e Aristóteles mostra logo que a aula de filosofia vai acabar em tomatina.

Já o fresco “O Incêndio em Borgo” retrata o milagre de Leão IV, extinguindo o fogo que ameaçava o bairro de Borgo, em Roma. O papa aparece ao fundo, na varanda da antiga igreja de São Pedro, fazendo o milagre. Tão pequeno que seria preciso outro milagre para que se conseguisse ver o santo padre em condições. Isto porque para primeiro plano Rafael escolheu outras figuras. Como o jovem atlético e nu que carrega o velho atlético e nu às costas. Ou o jovem atlético e nu pendurado no muro, tentando escapar ao fogo. Também há umas crianças e umas raparigas a dançar a Macarena, mas é só para disfarçar.

TOMO III – MIGUEL ÂNGELOA estátua de David, em Florença, com mais de quatro metros de altura, deixa-nos como o ver-dadeiro David a olhar para Golias: esmagados. Ou mesmo espalmados, se estivermos desatentos, porque à volta da figura está sempre um círculo de norte-americanas paquidérmicas, vidradas

Ó barbas, já fazias uma dieta!

Alguém precisade um cremezinhopara o pé-de-atleta...

Touch me, touch me,i want to feel your body

Bilú, bilú, bilú, bilú teteia!

H I S T O R I A D O R

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na massa testicular de mármore. Arrebatadas pela pedra que o artista transformou em carne, nunca se sabe quando as baleiazitas desmaiam de comoção. Já as consequências de nos caírem em cima são fáceis de prever.

Só a sensibilidade feminina de Miguel Ângelo poderia esculpir um homem cruzando rigor e emoção de forma tão perfeita. Contudo, é difícil identificar a origem da delicadeza – a mãe morreu cedo e o pai não era de dar mimo. Desde tenra idade, quando lidava com os outros, nem sombra da sensibilidade exibida na arte. Só mau feitio, impaciência e vontade de estar sozinho. Além disso, a sua frugalidade tornou-se lendária. Era tão poupado que durante anos pintou as unhas dos pés com restos de tintas usadas nos frescos. E à noite, antes de passear nos jardins, raspava desperdícios de mármore para utilizar como pó de arroz. Até os sapatos eram criados por ele. “Sempre usei stilletos”, costumava dizer com orgulho, “feitos com as minhas próprias mãos.”

Ao contrário de gente bem resolvida como Rafael, Da Vinci e Manuel Luís Goucha, Miguel Ângelo consumia-se entre culpa cristã e desejos carnais. Numa carta enviada a Vittoria Colonna, a sua fag hag de eleição, dá-lhe conta disso mesmo. “Hoje ao acordar anseei por silêncio. Vesti a roupinha de freira em cetim lustroso que me ofereceste, para sair de casa sem ninguém perceber que era eu. Estranhamente, todos me reconheceram. Até o jovem atlético que

trabalha na estrebaria me piscou o olho. Depois chamou-me divino, o que achei cortês, até me senti mais perto de Deus. A caminhada foi longa, só parei numa clareira aprazível, onde orei largas horas. Apelei ao Senhor pela concentração ne-cessária ao meu trabalho. A reflexão deixou-me feliz e regressei a casa com grande serenidade. Só que quando cheguei estavam lá uns aprendizes a ouvir Lady Gaga e de repente dei por mim em cima da mesa a dançar, enquanto levantava a saia do hábito, num misto de samba e can can. Um escândalo - sabes que eu só uso cueca asa delta.”

Miguel Ângelo via-se antes de mais como escultor. Os outros também. Por isso, quando Júlio II quis tê-lo na Capela Sistina, os rivais trataram de afastá-lo da arte onde se mostrava insuperável. Rafael estava à cabeça do grupo de invejosos. “Aquela gordurosa não pode esculpir”, terão esganiçado em uníssono. Do guincho à acção foi um passo, convencendo o papa a pô--lo a pintar. Para azar deles, nasceriam assim os frescos que mudaram a pintura.

O mestre conhecia bem o Vaticano, demo-rando pouco a ir ao encontro de Júlio II, que lhe daria as directivas para a obra. Foi andando pelos corredores, até ouvir música ao longe. Adivinhou logo que ia encontrar festança eclesiástico-funk.

As noviças a fazerem o comboio com um leitão de Negrais espantaram-no, mas o que mais o chocou foi ver o papa com uma malha caída nos collants. Em especial pela forma como abanava a pélvis ao som da música, que todo o grupo cantava em coro:

Ponho o carro, tiro o carro, à hora que eu quiserQue garagem apertadinha, que doçura de mulherTiro cedo e ponho à noite, e às vezes à tardinhaEstou até mudando o óleo na garagem da vizinha!

Perante o olhar crispado do visitante, o papa tentou acalmá-lo. “Angelito, relaxa, andas sempre tão tenso. Junta-te a nós, vais ver que isso passa.” Miguel Ângelo deixou o sobrolho desfranzir. Suspirou duas ou três vezes. Lá cedeu. “Hmm, está bem, mas só se puserem a tocar qualquer coisa dos Communards.”

O que ficou pintado na Capela Sistina, nas duas longas intervenções que o mestre dos mestres fez, extasiou papas e reis, nobres e plebeus. Alguns, porém, queriam destruir tudo. Num movimento conhecido como “campanha das folhas de figuei-

ra”, meia dúzia de padrecas, frustrados por não conseguirem o extermínio dos frescos de Miguel Ângelo – que apelidavam de “inventor delle por-cherie” – tanto andaram que deixaram-nos tapar as genitálias com folhas de figueira pintadas por cima. Valeu-lhes a ausência de escravos núbios entre as figuras, porque desenhar folhas de pal-meira é muito mais trabalhoso.

Mas suaram um bocado, porque realmente abundavam ali sexos masculinos, uma predilecção do mestre. Pode mesmo dizer-se que, da estátua de David às figuras da Capela Sistina, ele é o artista com maior rácio de pilinhas ao léu por obra. Só Elton John andou perto, mas a média dele caiu muito quando deixou de compor durante as massagens.

A carga homo-erótica da pintura principal do tecto da Capela, em que Deus e Adão fazem fosquinhas um ao outro com os dedos, já foi alvo de várias interpretações. A mais correcta diz ser um auto-retrato de Miguel Ângelo (como Deus) com o namorado. Este rapaz bem apessoado seria Tommaso dei Cavalieri, jovem de 23 anos quando conheceu o artista, então com 57 primaveras. Além da pintura, o mancebo foi homenageado com 300 poemas de Miguel Ângelo (também poeta lírico afamado) enquanto com ele partilhou a vida. Não foi coisa pouca, pois o génio renascentista teve grande longevidade, vivendo até aos 88 anos. Escusado será dizer, Cavalieri teve que fazer muita justiça ao sobrenome.

TOMO IV – LEONARDO DA VINCIDe Leonardo chegaram aos nossos dias relatos mais completos sobre a sua homossexualidade do que se sabe sobre Rafael e Miguel Ângelo. Aos 24 anos, foi preso com outros joviais rapazes da sua idade, acusado de sodomia. Como nunca apareceram testemunhas, as acusações foram retiradas. Cá fora, os fãs receberam-no com eu-foria, oferecendo-lhe abraços e amostras de K-Y.

O seu aprendiz favorito, de alcunha Salai (qualquer coisa como “filho do Diabo”), ganhou o apelido por roubar e mentir compulsivamente, entre outras tropelias. Era o que pior pintava, mas tinha cabelo sedoso e cútis delicada, além de es-tourar o dinheiro roubado nas lojas da Victoria’s Secret. O mestre babava-se tanto por este bem mais jovem rapaz que o utilizou como modelo da Mona Lisa (quadro que lhe deixou de herança) e do João Baptista de A Última Ceia. A mesma

figura que Dan Brown, em O Código Da Vinci, apontou de forma abusivamente heterossexual como Maria Madalena.

A tríade de génios renascentistas que interveio na Capela Sistina ficaria completa com Leonardo Da Vinci. O que quase aconteceu. Quando ele foi ter com Júlio II, apanhou-o surpreendentemente numa animada festa eclesiástico-funk.

As noviças a saltarem ao eixo com o Macaulay Culkin – que então ainda era uma criança ado-rável - espantaram-no, mas o que mais o chocou foi ver o papa com a depilação nas virilhas por fazer. Em especial pela forma como tentava o moonwalk ao som da música, que todo o grupo cantava em coro:

Just about half-past tenFor the first time in historyIt’s gonna start raining men.It’s raining men! Hallelujah!

Mal abriram a porta, Leonardo entrou no espírito feérico, dançando de braço dado com Júlio II. Até que foram os dois ter com o monge DJ de serviço, para pedir a próxima canção. O papa quis a Cher, Leonardo insistiu na Shirley Bassey. A teima subiu de tom, com o sumo pontífice a puxar dos galões – expulsou o outro da festa, no meio de acesa troca de insultos. O afastamento, claro, estendeu-se à participação de Da Vinci na decoração da Capela Sistina.

De Leonardo fica-nos também uma ideia a merecer profunda reflexão: se era ambidestro, perfeccionista e gay, isso quer dizer que o maior génio da Humanidade tinha um ponto em comum com Marco Paulo.

TOMO V – CONCLUSÃOPerante o exposto, é inegável que a Capela Sistina é um templo gay. Não que, por isso, seja menos católica, simplesmente a sua grandeza é de tal ordem que engloba toda a Humanidade, dos crentes aos cépticos, dos que adoram sexo aos que brincam com videojogos. É a obra de arte perfeita, que toca todos os sentidos. O cristão sente-se privilegiado. O gay sente-se em casa. O ateu sente-se no Céu.

A Capela é por isso a lição que a Igreja ainda não conseguiu aprender. Numa época em que o matrimónio passa por tanta dificuldade, aceitar que os homossexuais católicos pudessem contraí-

-lo seria, para lá da superação dogmática, uma dádiva. Entre os que ignoram o ca-tolicismo e os que desconhecem a capa-cidade de fazer um casamento durar mais do que três meses, sobra pouca gente. Os gays, com o entusiasmo recém-adquirido de poderem casar-se e o gosto perene pelo kitsch do eixo Lola Flores-Nossa Senhora de Fátima-Astrologia, têm tudo para salvar as famílias sólidas e, por consequência, o próprio fervor católico.

Se muitas ovelhinhas do Senhor torcem o nariz à ideia, Cristo adoraria. Afinal, ele criou a mensagem do amor e da integração (e o look ideal para curtir em raves de trance, uma história para outras núpcias). Falta agora que Bento XVI se chegue à frente, permitindo que pessoas do mesmo sexo se unam com a bênção do cristianismo. E que bonito seria ouvir o papa fazer esse anúncio na Capela Sistina, sob os corpos nus de toda aquela rapaziada enxuta.

Bibliografia: Absolut Citron,Bailey’s, Amarguinha e Ginja de Óbidos.

Jovem actor secundário que roubou a cena

Pai Natal e o seu gnomo favorito

Papa a fazer o milagre, amuado por ninguém o ver

Bocadinho da tela aproveitado para despir mais um homem

A Criação de Adão, Miguel Ângelo

O Incêndio em Borgo, Rafael

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luz de inverno Boi Luxo

Quando se vê muito cinema há uma curva a que dificilmente se consegue escapar. É uma curva que se assemelha a um movimen-to orbital e que nos leva, periodicamente, a voltar aos mesmos filmes e aos mesmos realizadores e a estabelecer estes como ter-mo de comparação. É a curva que nos leva a confirmar que há autores que são mesmo inevitáveis. Bergman e Kurosawa, Resnais e Buñuel, Imamura e Pasolini, entre outros.Um de esses outros é Satyajit Ray, o realiza-dor indiano que até hoje mais atenção inter-nacional tem coleccionado. Há uma razão precisa, para além da qualidade intrínseca da sua obra, para que este reconhecimento tenha acontecido. Ray ficou muito conhe-cido imediatamente a partir de alguns dos seus primeiros filmes, a Trilogia de Apu, data-dos de uma altura em que outras cinemato-grafias não ocidentais começavam, através da exibição em festivais, a despertar um interesse generalizado (Rashomon, de Kuro-sawa, é de 1950). Depois destes 3 filmes de Ray o cinema indiano, e muito especialmente o cinema indiano em bengali, seria sempre visto com uma dose imensa de curiosidade. Se Ritwik Ghatak ou Mrinal Sen, ambos bengali, não atingiram a sua notoriedade além frontei-ras, é também porque os olhos do mundo já estavam fixamente postos naquele. Os fil-mes de Ray, que são muitos, são uma longa história e vê-los, ou revê-los, continua a ser uma aventura aliciante. É difícil de imaginar

A PROPÓSITO DE SATYAJIT RAY E DE MAHANAGAR (THE BIG CITY), 1963.

a impressão que os 3 filmes sobre Apu, in-suportavelmente certos e definitivos na sua depuração suave, nunca agressiva, possam ter causado nos seus primeiros, incautos, es-pectadores ocidentais. Se há filmes que são clássicos, no sentido de serem peças funda-doras e fundamentais, são estes 3 filmes que contam a história de Apu. A partir daqui houve coisas que já não se pu-deram fazer da mesma maneira porque Ray definira uma bitola. A morte de Harihar, pai de Apu, no segundo destes filmes, é um desses momentos definidores, assim como o são as cenas do último dos três filmes em que Apu e Aparna revelam o amor que entre os dois, improvavelmente, se insinuou.O que eu talvez nunca tivesse percebido muito bem é a que ponto Ray é, como Mi-zoguchi, Imamura ou Bergman (mesmo que este as trate mal), um realizador de mulhe-res (Buñuel pode ser um realizador do dese-jo mas não necessariamente do seu objec-to), mesmo que não saiba muito bem o que é que isto quer dizer.Não é a primeira vez que um filme de Sa-tyajit Ray é aqui alvo de atenção. Mas, da primeira vez, foi-o a propósito de Jalsaghar, um filme que se intercala na trilogia inicial, e onde se trata do elogio a um passado e de um apelo irrecusável (e não há dúvida que se trata de um elogio, mesmo que não pas-sadista). O apelo é o da sugestão nostálgica da queda de uma era guerreira e culta em vias de se ver substituída por outra mais me-

cânica, mais moderna e com menos tempo para a música – por outras palavras, a nossa. Esta última exibe-se, feia, através da figura de um parvenu vizinho, tolo e sem elefantes mas com automóvel, um parvenu sem gosto mas com dinheiro. Se o Il Gattopardo, de Vis-conti, vem de imediato à memória é porque trata do mesmo tipo de impulso. Abhijan, de 1962, partirá de um princípio semelhante mesmo que tenha uma veloci-dade muito diferente e muito mecânica. No filme que aqui aparentemente nos traz (cada vez duvido mais desta empresa), Mahanagar, trata-se de algo completamente diferente. Trata-se de um motivo progressista e mui-to urbano, um retrato da afirmação de uma mulher. Quem lembrar o muito conhecido Ghare-Baire (A Casa e o Mundo, 1984), pen-sará, com toda a razão, que este é um moti-vo que Ray explorou vezes suficientes para que marque a sua obra. Há muitas outras instalações em que tal acontece e começo a sentir-me envolvido pela tentação, que pode ser uma tentação fluvial indiana, de falar de outros filmes e de certas figuras de Ray, da mulher de Charulata, da jornalista de Nayak (The Hero) ou da Bimala de A Casa e o Mundo (cuja caminhada triunfal em direc-ção ao “Mundo” é muito difícil de esquecer pelas promessas que exibe) ou mesmo de me deixar abandonar à memória de alguns dos seus momentos mais marcantes e recu-sar preguiçosa e aristocraticamente ater-me ao filme que aqui nos traz.

Começo a sentir-me envolvido pela ten-tação de recuperar o tempo antigo de Jal-saghar e recusar com arrogância, como em Abhijan, um filme casmurro e masculino, o que quer que não nos sirva. Apenas umas fumaças mais. Um pouco mais daquele tempo indiano antigo, fluvial e imenso, tão hipnótico na perplexidade que suscita. Não me percorre também aqui, e esta certeza só vem sublinhar a tranqui-lidade para que a memória de Ray inexo-ravelmente me envia, qualquer receio “das pesadas derrotas da memória” para me apropriar de uma expressão feliz do crítico italiano Cesare Garboli que António Mega Ferreira recupera numa crónica a propósi-to dos perigos da releitura. Não me tenho confrontado, na re-visão de qualquer filme de Ray, com o esmorecimento de qualquer anterior entusiasmo.Talvez se adie o propósito de lembrar esses filmes mais urbanos e que nos deixam, nos seus exemplos mais solares, excitados por uma promessa optimista. Em Jalsaghar, um filme a que não resisto voltar sempre e cujo poder hipnótico distorceu a vontade inicial de dedicar estas linhas a Mahanagar, não há promessas. Só há música e umas mortes que acontecem um pouco longe, no horizonte, e, no fim, acaba tudo porque tudo pode aca-bar depois de Krishnabai.

(continuará)

P R I M E I R O B A L C Ã O

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metrópolis Tiago Quadros*

SERPENTINE, 2012NO PASSADO DIA 7 DE FE-

VEREIRO, A SERPENTINE GALLERY ANUNCIOU OS AR-QUITECTOS SUÍÇOS HERZOG & DE MEURON, E O ARTISTA CHINÊS AI WEIWEI, COMO A EQUIPA QUE IRÁ PROJECTAR A DÉCIMA SEGUNDA EDIÇÃO DO PAVILHÃO DA SERPENTI-NE GALLERY, ENTRE JUNHO E OUTUBRO DE 2012, NUMA EDIÇÃO ESPECIAL QUE FARÁ PARTE DO FESTIVAL DE LON-DRES 2012, O CULMINAR DA OLIMPÍADA CULTURAL.

Todos os anos, a Serpentine Gallery convida arquitectos de renome interna-cional, ainda sem obra no Reino Unido, a projectar um pavilhão temporário que alberga actividades públicas no relvado da Serpentine Gallery, nos jardins de Kensington, no Hyde Park de Londres. A lista de arquitectos convidados em edições passadas inclui vários Pritzkers, entre eles os portugueses Álvaro Siza Vieira e Eduardo Souto de Moura que participaram na edição de 2005.

A dupla de arquitectos suíços Her-zog & de Meuron e o artista chinês Ai Weiwei trabalharam em conjunto em projectos como o Ordos 100 no deser-to da Mongólia, e o Estádio Nacional de Pequim para os Jogos Olímpicos de 2008. Segundo a equipa convidada, a proposta criada vai explorar a história oculta das instalações anteriores, com onze colunas sob o relvado do Serpenti-ne, representando os últimos pavilhões e uma décima segunda coluna de supor-te a uma cobertura flutuante colocada a 1,5 metros acima do solo. Ao escolhe-rem uma abordagem arqueológica, os arquitectos desenvolveram um concei-to que irá inspirar os visitantes a olhar para baixo da superfície do parque, bem como voltar atrás no tempo através dos fantasmas das estruturas anteriores.

Julia Peyton-Jones, directora, e Hans Ulrich Obrist, co-director, da Serpentine Gallery, referem: “É uma grande honra trabalhar com Herzog & de Meuron e Ai Weiwei. Estamos muito felizes que a nossa comissão anual te-nha escolhido trazer esta colaboração arquitectónica única para a Europa com vista a marcar a continuidade entre os jogos de Pequim 2008 e os jogos de Londres 2012.” Ao descreverem o con-ceito da sua intervenção, Herzog & de Meuron e Ai Weiwei, afirmam: “Todos os anos desde 2000, um arquitecto di-ferente tem sido responsável pela cria-ção do pavilhão da Serpentine Gallery de Verão para os jardins de Kensington, em Hyde park, Londres. Isso totaliza um conjunto de onze pavilhões até ao momento. A nossa contribuição será a décima segunda. Tantos pavilhões com tantas formas e materiais diferen-tes foram concebidos e construídos que procurámos instintivamente contor-nar o problema inevitável de criar um

objecto, uma forma concreta. O nosso caminho para uma solução alternativa envolve escavar cerca de 1,5 metros no solo do parque até chegar ao lençol freático, sendo necessário construir um poço para recolher toda a chuva que cai em Londres na área do pavilhão. Desse modo, ser-nos-á possível incorporar um aspecto realístico, doutra forma invisí-vel no parque – a água sob o solo – no nosso pavilhão. Ao escavarmos a terra deparamo-nos com uma diversidade de realidades construídas, tais como cabos de telefone e fundações antigas. Como uma equipa de arqueólogos, identifi-cámos esses fragmentos físicos como restos dos onze pavilhões construídos entre 2000 e 2011. Os registos de for-ma variam: circulares, longos e estrei-tos, pontos e também grandes buracos construídos que foram preenchidos. Es-tes restos testemunham a existência dos pavilhões antigos e, consequentemente, a sua maior ou menor intervenção no ambiente natural do parque. Todas essas bases serão agora descobertas e recons-truídas. As antigas fundações formam um emaranhado de linhas curvas, como um padrão de costura. Uma paisagem diferente emerge das bases reconstru-ídas, diferente de qualquer coisa que poderíamos ter inventado. A sua forma é realmente uma surpresa inesperada. A realidade tridimensional da paisagem é surpreendente e é também o lugar per-feito para nos sentarmos, deitarmos ou apenas olharmos e nos deixarmos sur-preender. Noutras palavras, o ambiente ideal para continuar a fazer o que os vi-sitantes têm vindo a fazer nos pavilhões da Serpentine Gallery, nos últimos onze anos. E uma descoberta para os novos visitantes previstos para o Jogos Olím-picos de Londres 2012.”

Em torno das fundações de cada pa-vilhão, serão levantadas novas estrutu-ras, (constituídas por suportes, paredes) como suporte de carga para os elemen-tos da cobertura do pavilhão – onze su-portes ao todo, mais a décima segunda coluna que pode ser colocada onde se desejar. A cobertura assemelha-se à de um sítio arqueológico, flutuando cerca de 1,5 metros acima do solo do parque, de modo a que todos os visitantes pos-sam ver a água sobre ela, a superfície reflectindo os infinitamente variados, céus atmosféricos de Londres. Segundo a equipa de arquitectos, para eventos es-peciais a água poderá ser drenada para fora do telhado, de onde fluirá de vol-ta para o ponto de água, o ponto mais profundo na paisagem do pavilhão. O telhado seco poderá ser então usado como uma pista de dança ou simples-mente como uma plataforma suspensa acima do parque.

*Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universida-de Técnica de Lisboa

Todos os anos, a Serpentine Gallery convida arquitectos de renome internacional, ainda sem obra no Reino Unido, a projectar um pavilhão temporário que alberga actividades públicas no relvado da Serpentine Gallery, nos jardins de Kensington, no Hyde Park de Londres. A lista de arquitectos convidados em edições passadas inclui vários Pritzkers, entre eles os portugueses Álvaro Siza Vieira e Eduardo Souto de Moura que participaram na edição de 2005.

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gente sagrada José simões morais

C I D A D E S I N V I S Í V E I S

Li Xiuyuan (1130-1207) nas-ceu e cresceu na montanha de Tiantai, na província de Zhe-jiang, durante a dinastia Song do Sul. Após os seus pais se finarem e de ter passado três anos em vi-gília em frente aos seus túmulos, entrou com 18 anos no templo Lingyin, em Hangzhou, um dos dez mais importantes templos de Budismo Chan na China. Aí se tornou monge, com o nome Daoji. Bebia vinho e comia car-ne mas, segundo ele, entravam e saíam e nele não ficavam, res-tando apenas o coração de Buda. Devido ao seu carácter excêntri-co e comportamento pouco or-todoxo foi expulso do Templo do Recolhimento das Almas (como é conhecido Lingyin si) pelo Superior do templo, que ti-nha inveja dos mágicos poderes e talentos do mestre Ji. Então mudou-se para o templo Jing Ci, junto ao lago Oeste, também na cidade capital de Zhejiang. Aí Daoji faleceu no décimo quarto dia da quinta Lua, 17 de Junho de 1207, sendo pouco depois re-verenciado tanto pelos budistas, como pelos tauistas.

Como pessoa sempre pron-ta para ajudar o próximo e pela sua compaixão era tido por um Bodhisattva, ou a reincarnação de um Arhat. Tinha poderes má-gicos e de curar pessoas, para além de ser poeta. Segundo a lenda, transmitida por via oral e cuja história foi adaptada por uma telenovela chinesa, quando Ji, o Excêntrico, percebia que alguém com quem se cruzava estava doente, ia-lhe falar e per-guntava se nele confiava para a curar. Se a resposta era afirmati-va, costumava-lhe dar ervas me-dicinais, ou escrevia algo numa folha de papel que dobrava e entregava com o conselho de a queimar e deitar as cinzas num copo de água para serem bebi-das, ou esfregando no seu braço daí fazia uma pequena bola e entregava-a para a pessoa engo-lir. Ganhou assim grande fama de curar pessoas.

Outro dos seus mágicos po-deres era num instante viajar longas distâncias. Um dia, Jing Ci si foi devorado pelo fogo e o Superior do templo ficou deses-perado pois não tinha dinheiro, nem as esmolas de muitos anos conseguiriam ser suficientes para a reconstrução. O monge Daoji não se mostrou preocupado, o que perturbou profundamente

o Superior, mas logo o despre-ocupado monge se prontificou a arranjar madeira para reedificar o templo.

Rapidamente o mestre Ji apareceu na montanha de Emei, em Sichuan, onde conseguiu convencer um proprietário de um extenso terreno a deixar-lhe recolher madeira para encher o seu pequeno saco. Mas esse saco magicamente foi aumentando e muitos toros de madeira nele couberam. Depois, para fazer a viagem de regresso, colocou os troncos no rio Yangtzé. Num posto de portagem, o guarda queria taxar a sua mercadoria, já que tudo o que por aí flutuasse tinha que pagar direitos ao co-fre do imperador. Então, Daoji perguntou-lhe se o que passava submerso era taxado e como o guarda sabia que a madeira ape-nas flutuava disse-lhe, que se assim fosse nada teria a pagar. Para espanto, os toros submer-giram e continuando rio abaixo passaram para o Grande Canal e assim chegaram a Hangzhou. Após uma viagem de dois dias e meio apareceu de novo ao Su-perior do templo a anunciar o seu regresso. Este, não vendo a madeira, ia começar a resmun-gar, mas Daoji levou-o até ao poço do templo onde os troncos se encontravam. Assim se pôde construir o novo templo.

Segundo a imagem com que é representado, este excêntrico budista da doutrina Chan an-dava vestido com um traje de monge muito gasto e rasgado, tal como o barrete e os sapatos que usava e até o leque estava quebrado, tendo ainda um can-til de vinho que o acompanhava sempre.

Foi só na dinastia Ming que o culto a Jigong passou para o resto da China. A sua estátua encontra-se em muitos templos de Macau e no segundo dia da segunda Lua comemora-se a sua deificação.

Assim, quando vir na rua uma pessoa com as roupas já muito gastas e rotas, com um ar excêntrico, creia que pode ser um ser de uma grande generosi-dade, gentileza e bondade, que tenha recebido os poderes de Jigong e sempre pronto para o ajudar num momento de grande aflição. Muitos são os existentes na China, aparecendo por vezes em Macau o senhor Lam Tong, onde tem uma legião de crentes.

Jigong

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L E T R A S S Í N I C A S

A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOSWEN ZI 文子

O ouro é minado à exaustão, as pedras preciosas são todas extraídas.

O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expres-são “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conheci-do e estudado desde pelo menos qua-tro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo mui-to do seu conteúdo atribuído ao pró-prio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” compostos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han.

A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabe-doria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão por-tuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Ta-oist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publica-da online.

CAPÍTULO 178

Lao Tzu disse: Quando a sociedade está prestes a perder a sua vida essencial, tal se assemelha ao surgir de energia negativa: os líderes são ignorantes, a Via é negligencia-da, a virtude fenece. Realizam-se projectos sem harmonia com a natureza, dão-se or-dens que violam as quatro estações. Verão e Outono diminuem a sua harmonia, céu e terra esvaziam-se da sua virtude. Nos seus tronos, os soberanos sentem-se pouco à vontade, os grandes escondem-se e não fa-lam, os ministros promovem as ideias dos seus superiores mesmo em detrimento da normalidade. As pessoas estranham os seus familiares, mas albergam vilões e usam o elogio para esquemas secretos; digladiam--se para apoiar dirigentes de má conduta, aproveitando o caos que trazem para atin-girem os seus próprios fins. E, assim, soberanos e súbditos se fazem ini-migos, se estranham e mantêm à distância os familiares. Nos campos não se erguem rebentos, nas ruas não há transeuntes. O ouro é minado à exaustão, as pedras pre-

ciosas são todas extraídas, as tartarugas são capturadas pela sua casca e são esventra-das. Todos os dias se praticam as artes di-vinatórias; o mundo inteiro está desunido. Os dirigentes locais criam leis que são to-das diferentes e cultivam costumes que são mutuamente antagónicos.Arrancam a raiz e abandonam a base, ela-borando códigos penais que são duros e estritos, lutando com armas, destroem o povo e massacram a maioria. Juntam exér-citos e criam problemas, atacando cidades e matando ao acaso, destronando os jus-tos e pondo em perigo os seguros. Fazem grandes carros de assalto e reforçam as fortificações para repelir tropas de choque e enviam os seus batalhões em missões mortíferas. Contra um inimigo formidável, se forem cem, regressa um; aqueles que se destacam podem vir a possuir algum do território anexado, mas ao custo de cem mil mortos em batalha e incontáveis idosos e crianças que morrem de fome e frio.Depois disto, nunca mais o mundo poderá estar em paz na sua vida essencial, ou des-frutar dos seus hábitos de sempre. Assim,

os homens de consciência e os sábios se erguem para o apoiar com a virtude da Via e o ajudar com humanidade e justiça. Os que estão perto promovem a sua sabedoria, os que estão à distancia tomam a peito a sua virtude. O mundo funde-se num só e os descendentes se entre ajudam ao longo das gerações para se livrarem do despontar da traição, para pararem a persuasão ilógica, para eliminar as leis cruéis, para se livra-rem de deveres problemáticos e duros, para porem fim aos efeitos de rumores e má lín-gua, para fecharem as portas do sectarismo, para apagarem quocientes de inteligência de modo a se conformarem com a norma-lidade geral, para ignorarem o corpo e o intelecto de modo a inteiramente comun-garem com o desconhecido indiferencia-do, pois tudo torna à sua raiz.Nem mesmo os sábios podem criar um tempo; aquilo que fazem, é evitar perde-rem o tempo quando este chega. É por isso que não fenecem.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

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