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7 Há um dom em você or essa razão, lembro-te de que despertes o dom de Deus, que há em ti mediante a imposição das minhas mãos. Porque Deus não nos deu espírito de covardia [timi- dez], mas de poder, de amor e de moderação. Portanto, não te envergonhes do testemunho de nosso Senhor nem de mim, dele prisioneiro; pelo contrário participa comigo dos sofrimentos do evangelho segundo o poder de Deus. Ele nos salvou e nos chamou com uma santa vocação, não por causa das nossas obras, mas devido ao seu próprio propósito e à graça que nos foi concedida em Cristo Jesus antes dos tempos eternos, e que agora se manifestou pelo aparecimento de nosso Salvador 1 P

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Há um dom em você

or essa razão, lembro-te de que despertes o dom de Deus, que há em ti mediante a imposição das minhas mãos.

Porque Deus não nos deu espírito de covardia [timi-dez], mas de poder, de amor e de moderação.

Portanto, não te envergonhes do testemunho de nosso Senhor nem de mim, dele prisioneiro; pelo contrário participa comigo dos sofrimentos do evangelho segundo o poder de Deus. Ele nos salvou e nos chamou com uma santa vocação, não por causa das nossas obras, mas devido ao seu próprio propósito e à graça que nos foi concedida em Cristo Jesus antes dos tempos eternos, e que agora se manifestou pelo aparecimento de nosso Salvador

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Cristo Jesus, que destruiu a morte e trouxe à luz a vida e a imortalidade pelo evangelho, do qual fui constituído pregador, apóstolo e mestre (2Timóteo 1.6-11).

Este texto integra a última obra de Paulo. Nele, o apóstolo faz um resumo do evangelho e recomenda a Timóteo manter-se forte numa civilização em co-lapso. Em certo sentido, nosso contexto é o mesmo. Temos o privilégio de viver numa sociedade na qual convivem tensamente o velho, que se esgotou, e o novo, que nos assusta por não sabermos em que vai dar.

Timóteo era uma pessoa de saúde fraca, física e emocionalmente. Ele sofria de dores no estômago (talvez uma gastrite ou algo mais grave) e de desâ-nimo (talvez por sua pouca idade e pela enormidade dos desafios).

Os cristãos não são super-homem, mas têm pro-blemas. Estamos sujeitos às mesmas dificuldades que os outros. Em nome da defesa do evangelho, vendemos uma imagem de felicidade que não con-diz com a realidade da nossa vida e muito menos com a natureza do evangelho. Há muitas pessoas que sofrem por causa desse estoicismo estranho à

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Bíblia. Paulo mesmo, ao longo de suas cartas, fala naturalmente de seus sofrimentos. Jesus não escon-deu sua angústia diante da iminência da morte.

Questões como essas produzem gente cansada de igreja. Gente que esqueceu o primeiro amor. Gente que não sabe para onde vai, nem mesmo se ainda quer ir. Timóteo estava cansado, bem como outras comunidades cristãs da época de Paulo. Para eles, esse grande apóstolo havia ensinado em vários momentos sobre igreja e sua caminhada pelo mundo. Durante as próximas páginas, vamos estudar três desses momentos. Nossa busca é por revigoramento. Das pessoas e das próprias igrejas.

O que hOuve cOm TimóTeO?O que estava acontecendo com Timóteo?Paulo não apresenta detalhes, mas estava preo-

cupado. Pelo que sentia, Timóteo precisava reavivar o dom que recebera de Deus. O verbo aqui empre-gado (despertar/reavivar; desperte/reavives) significa manter a chama do fogo incandescente.

Para despertar seu dom, Timóteo precisava rea-cender o fogo. Por alguma razão, ele estava se esque-cendo de que o Espírito Santo habitava nele (verso

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14). O dom de Deus, simbolicamente transmitido pela imposição de mãos, estava sendo esquecido.

Como nos esquecemos da alegria de nossa conversão! Como nos esquecemos da felicidade do batismo! Como permitimos que essas lembranças prazerosas, feitas de risos ou lágrimas, se apaguem, às vezes completamente, de nossa memória.

Não sabemos por que isso aconteceu com Timóteo. Talvez a sua saúde frágil o tenha enfraque-cido por inteiro. De tanto lutar contra suas dores no estômago, talvez estivesse cansado de viver.

Talvez, nos momentos de crise, ele tenha orado para que Deus viesse em seu socorro e pusesse fim à sua aflição; e, como Deus não lhe respondesse como esperava, talvez estivesse desanimado, quem sabe decepcionado com Deus.

Uma adolescente brasileira foi passar um ano nos Estados Unidos como parte de um programa de intercâmbio, e sua família ficou muito feliz porque seus hospedeiros eram cristãos. Quando ela chegou lá, soube de algo trágico: a única filha deles tinha morrido. Daí em diante, aquela família brigou com Deus. Em todas as manhãs de domingo, daquele ano inteiro, a adolescente foi levada até à porta da

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igreja em que a família congregava, mas eles não entraram.

Recentemente, uma família carioca perdeu a fi-lha em circunstâncias trágicas. Uma senhora crente foi consolar o pai. Sua resposta foi:

— Eu não quero saber de Deus. Tudo o que Deus podia fazer pela minha filha, que era preservar a sua vida, ele não fez. Agora, nada mais interessa, nem mesmo ele.

Há muita gente decepcionada com Deus.Paulo estava preocupado com Timóteo, temero-

so de que seu filho adotivo estivesse entrando num processo de desânimo ou que já estivesse desanima-do. Por isso, o apóstolo pediu-lhe que não esqueces-se, fossem quais fossem as circunstâncias, de que o Espírito Santo habitava nele.

A recomendação vale para cada um de nós. O Es-pírito Santo habita em você. Por isso, você pode guar-dar o depósito da fé em Deus até o final de sua vida.

O que esTá acOnTecendO cOnOscO?E nós: por que permitimos que o dom se apague?

Por que nos esquecemos de que o Espírito Santo habita em nós?

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Certas coisas acontecem conosco — o desânimo, a descrença, a falta de compromisso com a santifica-ção, a falta de envolvimento no projeto de Deus para o mundo — porque nos esquecemos de que o Espí-rito Santo mora em nós. Ah! se nos lembrássemos! Seríamos mais felizes!

Que religião é esta em que Deus — que nas outras religiões habita lugares diferentes e exige tantas voltas para se ter acesso a ele — habita com as pessoas e nelas? Será que ele é um Deus fácil demais? Será que não estamos querendo um Deus difícil, ao qual, por exemplo, só se pode ter acesso uma vez por ano, e não a toda hora ou a todo domingo?

Então, comecemos por oferecer algumas respos-tas: o que tem feito apagar o nosso dom para que precise ser reaceso? Eis quatro respostas:

As pressões da vidaNão tem sido fácil viver. Os pobres, a classe mé-

dia e os jovens têm sido muito sacrificados.Os pobres têm sofrido com a indigência dos servi-

ços públicos básicos nas áreas da saúde, da educação e da segurança, bem como com crônicas dificuldades de alimentação e de moradia.

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Com o salário congelado, a classe média tem per-dido acesso a bens e serviços, diante da alta cons-tante dos preços em áreas que lhes são importantes. Pagar todas as contas no mês em que elas vencem é privilégio de poucos.

As maiores vítimas — e isso tem muito a ver com Timóteo — são os adolescentes e os jovens. Eles têm um mundo para conquistar, mas não conseguem emprego. Quando conseguem um estágio remunerado, o que deveria ser automático nessa fase da vida, soltam foguetes, que espantam os que ficam fora da fila. Para muitos, o horizonte é sair do país.

Nessas condições, somos chamados a dar testemunho acerca do poder de nosso Senhor (verso 8). Nós, que estamos precisando de alento, é que temos de confortar os outros. Nós, que queríamos ver esse poder, é que temos de falar dele. Parte de nosso desânimo, vem dessas circunstâncias, especialmente quando vemos o que o salmista viu: a prosperidade do ímpio (Salmos 37). Ai! Como dói ver o descrente prosperar!

Essas pressões vão além do plano material e al-cançam o plano moral. Penso, de novo, nos adoles-centes e jovens.

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Uma menina, feliz com seus pais, anda triste por-que não tem namorado. Falta algo em sua vida. Na igreja ninguém se interessa por ela, e ela não se in-teressa por ninguém. Ela tem amigos na escola, mas não participa dos seus programas. Então, resolve se aproximar um pouco mais. Os garotos também se aproximam. As conversas são um pouco estranhas, mas ela se mantém firme nas suas convicções. Um encontro aqui, outra festa ali, um passeio em outro dia. Um rapaz chega mais perto. Ela até o leva à sua casa. Ele, então, se abre: não fala em amor, mas fala em sexo. Ela se afasta, mas a história se repete com outro rapaz. Moral da história: ela não faz parte da turma. Não seria melhor fazer parte? Ficará sozinha para sempre? Está certa em manter seus valores?

A pressão é enorme e, às vezes, apaga o dom; isso se aplica aos solteiros e às solteiras que querem construir uma família; aos viúvos e às viúvas que não querem ficar sozinhos; aos separados e às separadas que querem recompor sua vida afetiva. A solidão machuca, abafa e abala.

Os sofrimentos da vidaNosso dom se apaga quando experimentamos

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aquilo que consideramos ser o silêncio de Deus, quando oramos e não ouvimos a resposta. Por algum tempo nos consolamos com o ensino de que Deus tem o seu tempo. Depois nos cansamos de esperar.

Sabemos que precisamos orar por nosso filho afastado de Deus, mas por quanto tempo?

Um dia desses, ouvi a história de uma filha que nunca desistiu de orar pelo pai, afastado da família e de Deus. Ela orou muitos anos seguidos. Posterior-mente, eu me encontrei com esse homem. Ele pediu perdão aos seus e ao seu Senhor e está sinceramente disposto a começar a viver e a permitir que sua famí-lia também viva em harmonia.

Sabemos que precisamos orar pela saúde das pes-soas queridas, mas até quando? Oramos pela saúde de pessoas, e elas morrem. Oramos pela recuperação de pessoas, e elas continuam sofrendo. Isso nos cansa e debilita. Afinal, nossa fé abarca todas as áreas da vida. Deus não é só para a vida religiosa, mas para a vida toda.

A pergunta inevitável é: vale a pena servir a um Deus desse? Paulo, que sofria a prisão, como que para testar seu filho espiritual, faz-lhe um convite: venha sofrer comigo, Timóteo (verso 8).

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O cansaço da igrejaPor vezes, na igreja sobram línguas para críticas

destrutivas, e faltam braços para a ação.Qualquer que seja a necessidade da igreja, quan-

do alguém resolve ajudar nas suas atividades, haverá aqueles que dirão que fariam diferente, os mesmos que nunca se apresentaram para fazer nada. Os que estiverem trabalhando terão de ter muita convicção para não permitir que seu dom seja apagado. Em ca-sos como esse, precisa-se de pessoas que se alistem no grupo, que usem seus braços para trabalhar, nun-ca a língua para destruir.

Por vezes, na igreja sobram dedos para apontar os erros dos outros e faltam ombros para sustentar os que querem ficar firmes.

A tendência humana de competir também se propaga na igreja, de modo que o fracasso de um é discretamente comemorado. Quando se confirmam as direções dos nossos dedos, em lugar de chorar, pre-ferimos dizer: “não falei?”.

A queda é uma possibilidade na vida do crente. Mas é triste saber que há pessoas que têm de trocar de igreja para recomeçar a vida. Deus já as perdoou, mas, muitas vezes, nós não perdoamos.

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Não raramente, na igreja sobram olhos para ver as brechas e falta disposição para tapar uma só delas.

Em outras palavras, por vezes, na igreja sobram pernas ligeiras para escorregar dos compromissos e falta vigor para se pôr a caminho. Somos capazes de fazer diagnósticos precisos identificando os proble-mas da igreja. No entanto, nós nos esquecemos de que, quando não nos empenhamos em solucioná-los, nós é que somos os problemas.

Precisamos de fiéis que se disponham a se pôr na brecha para serem usados por Deus e reparar a ini-quidade (Ezequiel 22.30).

Por vezes, na igreja sobra cérebro para discutir temas irrelevantes e falta inteligência e criatividade para encontrar soluções novas para um tempo novo que tem as carências de sempre.

Como perdemos tempo com coisas sem impor-tância!

Enfim, em alguns momentos, na igreja sobram pa-lavras, palavras de compreensão e entendimento, e faltam ações, ações de compreensão e entendimento.

Jesus recomenda (Mateus 18.15) que, quando ti-vermos alguma informação sobre um irmão, devemos ir a ele, para saber o que está acontecendo e ajudá-lo,

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se possível. No entanto, achamos que a maneira de ajudar um irmão é espalhar a informação que temos dele a um amigo mais íntimo, que a divulga a outro irmão mais íntimo, que pede oração a um grupo ínti-mo. Quando o irmão-vítima fica sabendo, ele esclare-ce que não é nada daquilo, mas já não é mais possível recolher as penas lançadas do alto da montanha.

Esse irmão, certamente, será um que terá de lutar muito com Deus para que seu dom não seja apaga-do por um cristianismo teórico demais em intenções boas e prático demais em realizações más.

Por isso, e por outros fatores, há muita gente cansada de igreja, gente que logo ficará cansada de Deus, gente que logo se afastará de Deus e, em mui-tos casos, irremediavelmente.

Há gente cansada porque fez muito e acabou su-focada pela incompreensão e pela crítica. Há gente cansada por não ter feito nada. Há gente que se can-sou de sua própria acomodação. Há gente cansada de esperar atitudes coerentes.

O cansaço de DeusHá gente cansada de Deus, embora raramente o

confesse, porque o acesso a ele é fácil demais.

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Nosso Deus está disponível 24 horas por dia. Não há exigência alguma e para se falar com ele. Não há um local especial em que se fale com ele. Jonas falou de dentro de um peixe. Elias falou com ele do inte-rior de uma caverna. Moisés falou com ele do centro de um deserto.

Não há uma posição para se falar com ele. Pode ser em pé. Pode ser deitado. Pode ser ajoelhado. Pode ser com as mãos para cima. Pode ser com as mãos para baixo. Podemos falar com ele olhando para o céu. Podemos falar com ele olhando para o chão.

Banalizamos Deus por ser ele gracioso demais! Que contrassenso, como se preferíssemos um deus aterrador e pavoroso!

Com o passar do tempo, isso alcança os conver-tidos em idade adulta e também os que nasceram no evangelho. É como se alguns que nasceram no Evangelho sentissem saudade de um tipo de vida que nunca tiveram. Há quarentões ou cinquentões ado-lescendo! É ridículo, mas acontece.

Há gente esquecida de sua salvação e de sua santa vocação (verso 9). Há muita gente triste com a sua salvação, por estranho que pareça. Se somos

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salvos e estamos cansados, é porque esquecemos que somos salvos ou porque a salvação produz tris-teza em nós. Na verdade, na linguagem do salmista, falta a muitos a alegria da salvação (Salmos 51.12), alegria que produz adoração vibrante, alegria que produz vida ativa cheia do dom.

Devemos parar de banalizar Deus. Precisamos vivê-lo como um Deus compassivo e zeloso da sua santidade e da santidade dos seus seguidores.

a naTureza dO dOm Que dom é esse, de que fala o preocupado após-

tolo Paulo? Essa é uma pergunta que não pode ficar sem resposta.

Dom e espíritoHá aqui duas palavras essenciais no texto: dom

e espírito. O dom (carisma) é uma concessão (dádiva) de

Deus ao homem. É a transferência de parte do seu caráter ao ser humano. Nós temos o carisma de Deus.

Esse dom nos capacita com o espírito de poder, amor e moderação.

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Espírito, aqui, sempre no singular, nada tem a ver com um certo uso em que se fala em “espírito da pre-guiça” ou “espírito da doença”.

A palavra espírito (pneuma) refere-se ao sopro de Deus sobre nossas vidas, capacitando-nos a fazer o que o dom de Deus necessita para se exercitar em nós.

O apóstolo Paulo fala também em imposição de mãos, experiência pela qual Timóteo passou havia alguns anos. Não foi um gesto mágico, a partir do qual o rapaz passou a ser outra pessoa. Ao contrário, mesmo tendo recebido o dom, esse dom precisava ser reavivado. Os gestos formais são apenas símbolos do que acontece no interior. Todos quantos aceitaram Cristo como Senhor e Salvador têm o dom de Deus, dom que pode ter se transformado em carvão apaga-do ou fogo incandescente.

O dom que queremosHá certa contradição entre o poder, o amor e

a moderação que o dom de Deus sopra sobre nós (pneuma) e o poder, o amor e a moderação que nós queremos que ele sopre.

O poder que naturalmente queremos é o poder de levar Deus a fazer o que nós queremos, não o de

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fazermos o que ele quer. Religião não é magia. Nós podemos orar, mas não podemos fazer o que só Deus pode fazer.

Um dia desses, fui procurado por uma pessoa com um sério problema de saúde. Ela queria que eu o curasse. Chegou a oferecer dinheiro, quanto fos-se necessário, para que ficasse bom. Eu, então, lhe disse:

— Eu não posso curá-lo. Posso pedir a Deus que o cure. Eu não tenho poder para curá-lo. O poder é de Deus. É ele quem decide.

Já pensaram se eu tivesse esse poder? No domin-go seguinte, eu chegaria à minha igreja, todo falsa-mente humilde, e diria:

— Devemos dar graças a Deus porque ele operou na vida de uma pessoa que me procurou. Eu orei, e a pessoa foi curada. Louvado seja Deus, irmãos.

Ao dizer isso, no fundo eu estaria pensando: “Como eu tenho poder!”. Os irmãos pensariam de mim: “Como eu gostaria de ter este poder que o nos-so pastor tem!” Se eu tivesse esse poder, minha igreja iria transbordar de gente.

Mas, graças a Deus, eu não tenho o poder de fa-zer Deus fazer.

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O amor que nós naturalmente queremos é o amor centrado em nós, não aquele de Jesus, auto-esva ziado de si mesmo.

Pensamos no dom do amor como o dom de ser-mos amados, nunca como o dom de amar. Sempre pensamos no amor como flecha que vem em nossa direção.

Como é bom saber que somos amados por Deus. Essa é uma verdade que ninguém nos pode tirar, nem mesmo a tristeza. Ele nos amou tanto que tomou a decisão de morrer por nós numa ridícu-la cruz mal trançada de madeira vagabunda, sobre um morrinho de nada. A morte dele não foi, como deveria ser, uma superprodução. Ele não contratou Steven Spielberg para produzir sua morte. Jesus morreu longe dos holofotes, para poder alcançar nosso coração.

Como é bom saber que somos amados por Deus, que nos dá o seu Espírito para ser nosso intérprete e consolador. Por causa desse amor, podemos até não saber pedir, pois ele transforma nossos pedidos mal formulados em pedidos claros. É por causa desse amor que o Espírito habita em nosso coração. Que verdades cheias de calor!

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Esse é o amor que queremos, mas esse amor só vai funcionar quando for uma usina que gere energia para fora de nós. A retenção desse amor faz com que ele vá se apagando, às vezes na velocidade da luz de uma estrela.

A moderação que naturalmente queremos é a mo-deração com o qual somos julgados pelos outros, não a de os julgar. Queremos ser julgados como amigos, mas queremos julgar como se julgam inimigos. Para nós, exigimos moderação. Em relação aos outros, nós nos sentimos livres para exercer juízo sem moderação.

Agimos como na frase de um político mineiro:— Para os amigos, tudo; para os adversários, a lei.O espírito de poder (dunamis) que Deus nos dá

é o poder para viver, apesar das adversidades, e para testemunhar, apesar das pressões e de nós mesmos.

O dom de Deus capacita-nos com o poder de en-frentar as ondas de dificuldades da vida. O poder de Deus não se manifesta necessariamente em tirar os problemas da nossa frente, mas principalmente em nos fazer triunfar sobre eles.

O dom de Deus capacita-nos com o poder de superar nossas próprias limitações, principalmente a limitação da covardia, do medo e da timidez. Os

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tímidos, até mesmo no plano psicológico, precisam receber o poder de Deus para explodir. Enquanto não receberem esta dinamite espiritual, não vão sair das cavernas que são sua vida, para os montes que deve-riam ser.

O dom de Deus capacita-nos com o poder da co-ragem para ousar o que deve ser ousado, tanto no plano espiritual quanto no plano profissional. Não tenhamos medo. Isso não provém de Deus. Muitos crentes têm medo de usar seus dons e assim testemu-nhar de Deus, porque receiam o ridículo, a zombaria, a crítica, a oposição e a violência. Deus equipa-nos e seu equipamento não inclui o medo. Se estamos ansiosos e apavorados, esses sentimentos não vêm do Deus a quem chamamos “Pai”.

O Espírito Santo infunde-nos o espírito do poder quando começamos a testemunhar (viver por Cristo ou para ele), nunca antes. Para que serviria o poder, se não há o testemunho de Cristo? O poder chega à medida que o nosso silêncio acerca de Cristo é inter-rompido.

O espírito de amor que Deus nos dá é o amor ága-pe, que surge na mente e na vontade e que se realiza nas emoções. Esse tipo de amor é um dom de Deus.

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Porque só ele o tem naturalmente, nós o recebemos dele sobrenaturalmente. Só ele o tem, mas ele no-lo dá.

Sua primeira manifestação, portanto, é recepti-va. Deus nos dá o espírito de ser amado por ele. A timidez age aqui também sobre nós, impedindo que aceitemos esse amor.

Esse amor em nós é produtivo, no sentido que nos impulsiona para fora de nós mesmos, em direção a Deus e ao outro. O amor que Deus nos dá é o amor que se esvazia de si mesmo, como seu Filho fez. É o amor que não existe na relação dar-receber. Esse tipo de amor não faz parte da nossa natureza. É contrário aos nossos genes.

É o amor-entrega a Deus que faz o servo de Deus dispor-se a sofrer as consequências do poder do evangelho em sua vida.

É o amor auto-esvaziado que nos impulsiona a amar as pessoas, mesmo os inimigos.

Se alguém pudesse me interromper, gritaria:— Alto lá. Você está sendo teórico demais, poé-

tico demais.Pois eu respondo que, apesar de não amarmos

desse modo, nós temos o poder de amar assim, por-que Deus o deu a nós. Ele não é teórico: nós somos.

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Só não somos práticos porque temos medo, embora saibamos que o Pai não nos legou o espírito da covardia. Não precisamos ter medo de amar, porque temos o dom de amar como o Pai nos ama, como seu Filho nos ama, como seu Espírito nos ama.

O espírito de moderação (sofronismou) que Deus nos dá pode ser pensado em muitas direções. Temos a força e temos o amor. O que nos falta? Será a sa-bedoria, para pôr em ação o poder e o amor? Não falta mais, porque Deus também nos deu o espírito de sabedoria, moderação, equilíbrio.

Ser moderado é controlar as emoções, quando devem ser controladas; é liberar as emoções, quando devem ser liberadas.

Ser moderado não é ser contido, mas equilibrado. Ser equilibrado não é ser fechado, fleumático, para dentro; é ser aberto, capaz de caminhar por entre os extremos.

Moderação também é a capacidade que Deus nos dá para julgar os outros do mesmo modo que queremos ser julgados. Como gostamos de julgar! Como achamos corretos os nossos julgamentos! Como gostamos de não ser julgados! Como achamos que os julgamentos alheios a nosso respeito não são

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corretos! Por isso, precisamos do espírito de mode-ração.

Moderação é ainda a capacidade que Deus nos dá para discernir o tempo e as coisas, de modo que possamos decidir e agir com prudência, na hora cer-ta e sem precipitação. Como é difícil a moderação! Como é fácil falar na hora de calar! Como é fácil calar na hora de falar! Como é fácil comprar na hora de poupar! Como é fácil guardar na hora de gastar! Precisamos do espírito de moderação.

Moderação é também a capacidade que Deus nos dá para persistir nas causas que abraçamos, quer profissionais, quer familiares, quer eclesiásticas. Na cultura do fácil, desistimos quando o bom é difícil e duro, esquecidos de que o melhor é sempre o mais difícil. Precisamos de disciplina própria, que nos faça ter método e paciência para alcançar os alvos que elegemos para a vida. Graças a Deus que ele nos dá o espírito da moderação.

Assim, quem tem poder (força), amor (que é der-ramamento) e moderação (que é sabedoria de vida), do que mais precisa?

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cOmO reavivar O dOm

Em relação aos dons, há três tipos de cristãos:

• Osquemantêmoentusiasmododom(noori-ginal antigo, significa ter Deus dentro de si). Esses cristãos têm o dom, sabem que o têm e vivem segundo o poder desse dom.

• Os que diminuíram a força do dom. Essescristãos têm o dom, sabem que o têm, mas têm mantido em chama branda a sua combustão. Seu calor é o calor de uma estrela distante, da Lua noturna, nunca do Sol radiante.

• Osquepermitiramqueoseudomfosseapaga-do. Esses cristãos têm o dom, mas já não sabem que o têm. É como se não mais o tivessem.

Quem está com o dom aceso ore para que Deus mantenha o seu calor, como uma usina que gera energia e luz.

Quem está com o dom em banho-maria ou apa-gado peça a Deus que ele seja reaceso. O crente não pode deixar que o fogo do Espírito se apague.

Como reavivar o dom? Há dois tipos de compro-missos para a manutenção do nosso dom. Um no pla-no da memória e outro no plano da disposição.

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Projeto-memóriaNo plano da memória, precisamos:

• Lembrar-nosdequeumdiarecebemosodomde Deus (verso 6).

Quando nos salvou, Deus nos deu parte do seu caráter. Na conversão, fomos separados para viver segundo a vontade de Deus, não mais segundo a nos-sa. Isso não aconteceu por causa das nossas ações, mas apesar delas. O dom foi-nos concedido segundo o propósito e a graça de Jesus Cristo (verso 9). Não foi algo que conquistamos e de que podemos abrir mão. Nós é que fomos conquistados por quem não abre mão de nós. Deus se manifestou em nossa vida pelo aparecimento de nosso Salvador, Cristo Jesus, o qual destruiu a morte e trouxe à luz a vida e a imor-talidade pelo evangelho.

Não podemos nos esquecer disso. Se esquecemos, permitimos que o dom se apague. Se lembramos, per-mitimos que o dom continue aceso.

• Lembrar-nos do conteúdo desse dom, que éde poder, amor e moderação (verso 7).

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Quando nos sentirmos fracos, lembremos que te-mos o espírito de poder (força) de Deus, apesar dos escombros dentro de nós e ao nosso lado.

Quando nos sentirmos sós, lembremos que temos o amor desinteressado de Deus por nós a nos fazer companhia. Quando nos sentirmos desorientados, lembremos que temos o espírito de moderação, que nos capacita à caminhada na vida, em meio a tantas decisões necessárias e urgentes.

Projeto-disposiçãoNo plano da disposição, precisamos:

• Dispor-nosaviverintensamenteavidacristã,pois essa é a nossa santa vocação (verso 9).

Todos somos chamados ao testemunho. Timóteo era pastor. Paulo era pregador, apóstolo e mestre (verso 11). E você, é o quê?

A maioria dos cristãos não conhece os seus dons. Por isso, precisam ler e praticar o ensino de Paulo, como indicado em Romanos 12.3-8, 1Coríntios 12.4-11 e Efésios 4.7-16. Nesses textos, temos várias listas, nunca exaustivas nem conclusivas, para lembrar que

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sem o exercício dos dons não há dons. No Novo Testamento, aprendemos que os dons espirituais são os instrumentos com que o Espírito Santo equipa o crente para seu ministério no mundo.

Qual é o seu dom? Quais são os seus dons? O que você tem feito com ele? Se você é cristão, você tem pelo menos um dom. Trate de descobri-lo e aceitá-lo, como dever e privilégio.

• Dispor-nosatrabalharpeloevangelho,queéa forma de experimentarmos o poder de Deus.

O convite do apóstolo ao seu filho na fé foi pre-ciso: Timóteo, “participa comigo dos sofrimentos do evangelho segundo o poder de Deus” (verso 8). É como se Paulo lhe estivesse passando a tocha olím-pica. Por isso, posso perguntar aos mais velhos: Que cristianismo estamos passando aos mais jovens? Pos-so também perguntar aos mais jovens: Que disposi-ção têm vocês para levar a tocha do evangelho de Cristo?

• Dispor-nosamudardeumestiloapagadoparaum estilo vibrante; de um estilo dependente

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de si mesmo, para um estilo dependente de Deus.

Como escreveu C. S. Lewis, não existe felicidade e paz independentes de Deus. A vida cristã tem de ser um brado de vitória. Ela começa com o brado de vitória sobre as trevas, trazendo-nos a luz; com o bra-do de vitória sobre a morte, trazendo-nos a imortali-dade (verso 10). Não podemos permitir que as trevas e a morte cantem vitória sobre nós.

Ser cristão significa que somos pregadores de Deus, isto é, mensageiros de uma mensagem que não é nos-sa, mas divina. Anulamos o nosso dom, quando pas-samos a proclamar um evangelho, não o evangelho. Nosso fracasso decorre de esquecermos que somos portadores do poder de Deus, não do nosso. Nossa vi-tória decorre de dependermos de Deus, nunca de nós mesmos, jamais dos valores correntes do nosso tempo.

Ser cristão significa que somos enviados a pessoas que não escolhemos, mas que Deus escolheu. A igreja fracassa quando se envia a si mesma, ao passo que foi constituída para ser enviada por Deus ao mundo. Uma igreja cujos membros trocam gentilezas e servem uns aos outros não é igreja. É um clube.

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Ser cristão significa que somos comissionados como mestres, prontos a ensinar com dedicação, nunca com superficialidade, acerca do poder de Deus. Um evangelho superficial que não incomoda os crentes e não desafia os descrentes não é um evangelho. É uma filosofia. E filosofia ruim, porque desviada de sua rota e longe de sua raiz.

Permita-se incomodar pelo Espírito Santo, seja para ser convencido do pecado, seja para ser capaci-tado por ele a ser testemunha do poder de Deus. Se você não está usando o dom de Deus, está desperdi-çando a própria vida.