HABERMAS Um Perfil Filosofico

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  Entrevista publicada ori- ginalmente pela New  Left  Review de maio/junho de 1985 e, posteriormente,  incluída no livro  Die  Neue Unuebersic htlich- keit (Suhrkamp). Na tra- dução, foram cotejados os  dois textos. As perguntas de Perry Anderson e Peter Dews foram feitas por escrito.  I O senhor poderia nos dizer alguma coisa acerca da seqüência das principais in-  fluênc ias intelect uais em sua obra? Com freqüê ncia o senhor é apresentad o como um herdeiro da Escola de Frankfurt, que deu ao seu legado uma "orientação lingüística", com um afastamento da filosofia da consciência e uma aproximação à filosofia da linguagem. Esta interpretação é correta ou o seu interesse pelo pragmatismo americano de De-  SETEMBRO DE 1987 77 Tradução: Woltgang Leo Maar

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(Perfil filosófico) Entrevista com Habermas

Transcript of HABERMAS Um Perfil Filosofico

  • Entrevista publicada ori- ginalmente pela New Left Review de maio/junho de 1985 e, posteriormente, includa no livro Die Neue Unuebersichtlich- keit (Suhrkamp). Na tra- duo, foram cotejados os dois textos. As perguntas de Perry Anderson e Peter Dews foram feitas por escrito.

    I

    O senhor poderia nos dizer alguma coisa acerca da seqncia das principais in- fluncias intelectuais em sua obra? Com freqncia o senhor apresentado como um herdeiro da Escola de Frankfurt, que deu ao seu legado uma "orientao lingstica", com um afastamento da filosofia da conscincia e uma aproximao filosofia da linguagem. Esta interpretao correta ou o seu interesse pelo pragmatismo americano de De-

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    Traduo: Woltgang Leo Maar

  • UM PERFIL FILOSFICO-POLTICO

    wey e Peirce anterior ao seu encontro com a obra de Adorno e Horkheimer? Em que poca o senhor comeou a se ocupar com a obra de Wlttgenstein e Austin? No mbito das cincias sociais, o seu interesse por Weber e Parsons seguiu-se a uma orientao ini- cialmente marxista, ou ambos coexistiram desde o incio? Em que perodo se localiza a sua relao com a tradio fenomenolgica de Schuetz ou com a psicologia gentica de Piaget e Kohlberg?

    exceo de um semestre de vero em Zurique, entre 1949 e 1954 eu estudei em Goettingen e Bonn. No que se refere s minhas reas de estudo, existia ali uma conti- nuidade ininterrupta de temas e pessoas que tinha incio na Repblica de Weimar e atra- vessava o perodo nazista. As universidades alems de modo algum se abriram a influn- cias externas logo aps a guerra. Assim, academicamente eu cresci num contexto alemo provinciano, no mundo da filosofia alem do declnio do neokantismo, da escola hist- rica alem, da fenomenologia e tambm da antropologia filosfica. A influncia sistem- tica mais forte partiu do primeiro Heidegger. Ns, estudantes, conhecamos Sartre e o existencialismo francs e eventualmente ainda algumas obras da antropologia cultural americana. Durante a elaborao de minha tese sobre Schelling eu li o jovem Marx. Von Hegel zu Nietzsche, de Loewith, estimulou-me leitura dos jovens hegelianos; tambm Histria e Conscincia de Classe, de Lukcs, provocou-me uma forte impresso. O resul- tado destas primeiras incurses pela "literatura de esquerda" foi complementar a minha tese fortemente influenciada por Heidegger com uma introduo que relacionava o idealismo alemo tardio a Marx. Logo aps meus estudos, familiarizei-me com a socio- logia industrial. Obtive ento uma bolsa para um trabalho sobre o conceito de ideologia o que me possibilitou um aprofundamento maior no marxismo hegeliano e na socio- logia do conhecimento, lendo tambm Prismen, de Adorno, e a Dialtica do Esclareci- mento. Em Frankfurt, portanto a partir de 1956, iriam se somar Bloch e Benjamin, al- guns artigos da Zeitschrift fuer Sozialforschung, os livros de Marcuse e uma discusso bastante animada na poca acerca do assim chamado Marx filosfico e antropol- gico. Um pouco mais tarde me dediquei seriamente a O Capital, lendo tambm Dobb, Sweezy e Baran. Sociologia eu aprendi tambm nestes primeiros anos em Frankfurt; eu li principalmente material emprico sobre comunicao de massa, socializao poltica, sociologia poltica. Neste momento entrei em contato pela primeira vez com Durkheim, Weber e, com muita cautela, com Parsons. Mais importantes do que isto foram os semi- nrios sobre Freud, em 1956 onde ouvi a elite internacional, de Alexander e Spitz a Erikson e Binswanger. Desde ento considero a psicanlise uma coisa sria, apesar de todos os prognsticos agourentos.

    Durante os anos em que fui assistente de Adorno, entre 1956 e 1959, comeou a se desenvolver o que posteriormente se cristalizaria nas investigaes empricas de Stu- dent und Politik e em meus primeiros dois livros (Mudana Estrutural da Esfera Pblica e Theorie und Praxis) a tentativa de continuar atravs de outros meios o marxismo hegeliano e weberiano dos anos 20. Tudo isto permaneceu no contexto de uma tradio bem germnica, ou ao menos com razes na Alemanha mesmo que nesta poca, atra- vs de meu contato com Adorno e Horkheimer, e posteriormente com Abendroth e Mits- cherlich, eu tenha vivido com a sensao de ter adentrado horizontes da experincia diferentes, decisivamente mais amplos, de ter sido libertado da estreiteza provinciana e de um mundo ingenuamente idealista.

    Em Heidelberg, a partir de 1961, Wahrheit und Methode, de Gadamer, ajudou-me a encontrar meu caminho de volta filosofia acadmica. A hermenutica me interessava, de um lado, em conexo com questes da lgica das cincias sociais, e de outro em com- parao com o ltimo Wittgenstein. Este foi o perodo de meu primeiro envolvimento mais intensivo com a filosofia da linguagem e com a filosofia analtica da cincia. Esti- mulado por meu amigo Apel, tambm estudei Peirce, bem como Mead e Dewey. Desde o incio entendi o pragmatismo americano como sendo a terceira resposta produtiva a

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  • Hegel, depois de Marx e Kierkegaard, por assim dizer como o ramo democrtico-radical do neo-hegelianismo. Desde ento me apoio nesta variante americana da filosofia da praxis, quando surge o problema de compensar a debilidade do marxismo com relao teoria democrtica. Esta inclinao tambm foi a base de minha amizade posterior com Dick Bernstein. De qualquer forma, quando retornei a Frankfurt em 1964, para assumir a ca- deira de Horkheimer, eu tinha tomado p nas discusses anglo-saxnicas com firmeza suficiente para ser capaz de me distanciar de um conceito forado de teoria, derivado de Hegel.

    Na metade dos anos 60, Cicourel e a etnometodologia levaram-me de volta a Schuetz. Nesta poca eu encarava a fenomenologia social como uma proto-sociologia, realizada sob a forma de anlises do mundo da vida (Lebenswelt). Esta idia se associava a influncias de outra direo: fascinavam-me tanto o programa de Chomski para uma teoria geral da gramtica, quanto a teoria do ato da fala de Austin, sistematizada por Sear- le. Tudo isto sugeria a idia de um pragmatismo universal com o qual eu queria enfrentar principalmente a infelicidade representada pelo fato de que as bases normativas da teo- ria crtica da sociedade careciam inteiramente de clarificao. Aps ter rejeitado a orto- doxia da filosofia da histria, eu no queria retornar ao socialismo tico ou ao cientificis- mo, ou at mesmo a ambos. O que explica por que li pouco Althusser. Na segunda meta- de dos anos 60, graas ao trabalho conjunto com competentes colaboradores, como Of- fe e Oevermann, elaborei minhas propostas em reas especficas da sociologia, sobretu- do na pesquisa da socializao e da famlia e na sociologia poltica. Neste processo co- nheci melhor Parsons. Eu j estava lendo Piaget e Kohlberg, mas foi apenas em nosso Starnberg Institute, isto , depois de 1971, que me tornei adepto do estruturalismo gen- tico. Foi tambm ali que comecei um estudo mais intensivo de Weber.

    Pode-se ver que desde o incio meus interesses tericos foram determinados con- sstentemente por aqueles problemas filosficos e scio-tericos que surgiram a partir do movimento do pensamento que vai de Kant a Marx. Minhas intenes e convices fundamentais foram cunhadas na metade dos anos 50 pelo marxismo ocidental, atravs de uma relao crtica com Lukcs, Korsch e Bloch, Sartre e Merleau-Ponty, e obviamen- te com Horkheimer, Adorno e Marcuse. Tudo o mais de que me apropriei adquire signifi- cado somente em relao ao projeto de uma renovao da teoria social fundada nesta tradio.

    Nestes 25 anos, desde a publicao de Mudana Estrutural da Esfera Pblica, o senhor produziu uma obra extremamente abrangente, de alcance e complexidade cres- centes, com uma direo de continuidade impressionante. Ao mesmo tempo, evidente- mente, seu pensamento tambm sofreu neste perodo certas mudanas de nfase ou con- vico. Qual , em sua opinio, a mais importante destas mudanas?

    Os livros que publiquei no comeo dos anos 60 expressam implicitamente a con- vico de que as coisas que eu queria fazer poderiam ser mais ou menos acomodadas nos parmetros tericos herdados e a este respeito sentia uma afinidade especial com os existencialistas, isto , a variante marcusiana da teoria crtica. Alis, o prprio Herbert Marcuse, de quem me tornei amigo nos anos 60, sentia a mesma coisa. Ainda me lembro da dedicatria feita por ele num exemplar de Ideologia da Sociedade Industrial, com uma elogiosa citao de Benjamin " esperana dos desesperados". Entretanto o envolvi- mento com a filosofia analtica bem como a discusso em torno do positivismo viriam reforar minhas dvidas sobre se conceitos de totalidade, verdade e de teoria derivados de Hegel no representavam uma hipoteca demasiado pesada para uma teoria da socie- dade que devesse satisfazer tambm exigncias empricas. Nesta poca, em Heidelberg e depois novamente em Frankfurt, acreditava que este era um problema epistemolgico. Pretendia elimin-lo mediante uma clarificao metodolgica do status de uma teoria du- plamente reflexiva (isto , tanto em relao ao seu contexto de origem, como a seu con-

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    texto de aplicao). O resultado foi Conhecimento e Interesse, escrito entre 1964 e 1968. Ainda considero corretas as diretrizes do argumento desenvolvido no livro. Mas no acre- dito mais na teoria do conhecimento como via regia. A teoria crtica da sociedade no precisa provar suas credenciais em primeira instncia em termos metodolgicos; neces- sita uma fundamentao substantiva, que permita escapar dos afunilamentos produzidos pelos parmetros conceituais da filosofia da conscincia e permita superar o paradigma da produo, sem abrir mo das intenes do marxismo ocidental. O resultado a Theorie des Kommunikativen Handelns. Em sua brilhante introduo a uma edio especial da revista Praxis International dedicada a minha obra, Dick Bernstein expe os problemas particulares que me obrigaram, imanentemente, a repetidas mudanas de posio de "conhecimento e interesse" a "sociedade e racionalidade comunicativa".

    Como o senhor avalia a conjuntura intelectual atual no Ocidente? Em Wozu noch Philosophie o senhor sugere que a intensidade e originalidade filosficas alems esto emigrando para os Estados Unidos, enquanto a Europa teria recuado a uma confortvel "suicificao". O senhor mantm este julgamento? Em termos mais gerais: a maioria dos seus posicionamentos dos ltimos anos refere-se a uma comparao Alemanha-Estados Unidos como recentemente a sua crtica s diferentes formas do neoconservadoris- mo em ambos os pases. Isto se deve a razes biogrficas, ou expressa uma convico acerca do predomnio e da relevncia destas duas culturas para todo o Ocidente, neste fim de sculo? Seria acertado supor que a Frana e a Inglaterra, por exemplo plos centrais de referncia em sua anlise da civilizao burguesa nos sculos XVIII e XIX em Mudana Estrutural , perderam o destaque em sua obra subseqente?

    Os motivos desta preocupao em relao aos desenvolvimentos nos Estados Uni- dos so certamente triviais ela tpica da gerao ps-guerra de filsofos e socilogos alemes em geral. claro que tambm h uma referncia ao poder poltico: a Alemanha se aproximou tanto de ser o 52 estado americano que a nica coisa que ainda no te- mos o direito de voto. Nunca antes esta dependncia total aparecera to claramente como aconteceu no outono de 1983, com a imposio da instalao de msseis na Ale- manha. Apesar disto eu realmente prefiro uma cultura poltica que, como a americana, data do sculo XVIII. Eu admiro a abertura e a disponibilidade intelectuais para a discus- so, esta mistura de imparcialidade e engajamento que encontro mais em estudantes ame- ricanos do que aqui na Europa. Para um alemo da minha idade e postura intelectual deve-se acrescentar o fato de que nas universidades americanas ns podamos avanar muito rapidamente nos passos de imigrantes alemes que adquiriram uma reputao con- sidervel. Alm disso tambm o Instituto de Pesquisa Social, em que trabalhei, finalmen- te transferiu-se dos Estados Unidos de volta para a Alemanha. E aqueles membros do instituto que no retornaram Marcuse, Loewenthal, Kirchheimer, Neumann contri- buram muito para a densa teia de laos acadmicos e pessoais entre a Alemanha e os EUA. Atualmente esta teia se estende at uma terceira gerao de acadmicos mais jovens.

    Falando dos cientistas mais jovens, claro que na Alemanha a influncia dos fran- ceses cresceu continuamente durante os ltimos dez anos. Em questes de teoria social, os estmulos mais inventivos provm de Paris de pessoas como Bourdieu, Castoriadis, Foucault, Gorz, Touraine, e assim por diante.

    Finalmente, no que se refere Inglaterra, os senhores mesmos admitem que fui influenciado pela filosofia analtica. Apesar disto, no quero negar que h uma certa di- ferena de clima entre a Inglaterra e o continente. No h afinidades eletivas profundas entre o esprito do empirismo, ainda dominante na Inglaterra, e o idealismo alemo. No metabolismo filosfico falta um agente fermentador que poderia servir de mediador en- tre as duas mentalidades, tal como faz o pragmatismo na Amrica, por exemplo. Creio poder detectar esta estranheza em convices filosficas bsicas. Por exemplo, observo uma certa incompreenso no modo pelo qual colegas importantes, como Quentin Skin- ner ou W.G. Runciman e at meu amigo Steven Lukes, escrevem sobre minhas coisas.

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  • No que diz respeito a eles, a ontologia do empirismo se tornou uma segunda natureza. Certamente existem tambm contra-exemplos, como Tony Giddens.

    Recentemente o senhor defendeu a tese de que Horkheimer e Adorno somente podem contrapor a uma racionalidade teleolgica totalizada as foras mimticas irracio- nais da arte e do amor, ou a "ferocidade impotente da natureza em revolta". Embora estas consideraes crticas correspondam a uma determinada tendncia da Teoria Crtica, discutvel se elas podem ser aplicadas indistintamente ao pensamento de Adorno, sem- pre consciente do perigo de um apelo a uma natureza sem mediao. possvel que, em seu desejo de se distanciar de um negativismo renitente e para reabilitar as concep- es de construo e de colaborao caractersticas da Teoria Crtica dos anos 30, o se- nhor tenha sido levado a exageros polmicos, subestimando em que medida Adorno per- manece fundamentalmente comprometido com os ideais da autonomia e do Iluminismo?

    Concordo: em nenhum momento a crtica de Adorno e Horkheimer razo se obscurece, na renncia ao que a grande tradio filosfica, e em particular o Iluminis- mo, concebia pelo conceito de razo, da forma mais v que seja. Como Nietzsche, am- bos radicalizam a crtica da razo at sua auto-referncia, ou seja, at o ponto em que a crtica desmonta seus prprios fundamentos. Mas Adorno se distingue dos seguidores de Nietzsche, de Heidegger por um lado e Foucault pelo outro, justamente pelo fato de que no pretende mais sair dos paradoxos desta crtica razo, agora tornada sem sujeito ele quer permanecer na contradio atuante de uma dialtica negativa que dirige os inevitveis meios do pensamento identificador e objetivador contra si mesmo. Ele acredita que, pelo exerccio da persistncia, permaneceria o mais fiel possvel a uma razo no instrumental perdida. A razo perdida, pertencente pr-histria, encontra eco unica- mente nas foras de uma mmese sem palavras. Este mimtico pode ser circunscrito pela dialtica negativa, mas no pode como sugere Heidegger ser revelado. O mimtico permite que se perceba por que ele assume o papel de representante, mas no d a co- nhecer nenhuma estrutura que poderia ser caracterizada como racional. Neste sentido Adorno no pode se referir a nenhuma estrutura heterognea razo instrumental, con- tra a qual dever colidir a fora da racionalidade teleolgica totalizada. Na passagem men- cionada estou procurando captar uma tal estrutura resistente precisamente aquela da racionalidade imanente prtica comunicativa cotidiana, que valoriza o sentido prprio das formas da vida frente s exigncias funcionais dos sistemas econmicos e adminis- trativos autonomizados.

    procedente acusar Adorno, em sua evocao da reconciliao, de empregar sub- repticiamente categorias de intersubjetividade que filosoficamente ele recusa? poss- vel simplesmente reformular em termos de comunicao no distorcida o que ele cha- ma de "amor pelas coisas"? Considere-se, por exemplo, a seguinte passagem da Aesthe- tische Theorie, em que Adorno procura esboar uma relao recproca entre natureza e tecnologia humana, sem sugerir de nenhuma maneira que a natureza possa ser encara- da legitimamente como sujeito: "A libertao das foras produtivas poderia, aps a eli- minao da escassez, desenvolver-se em outra direo que no unicamente a do incre- mento quantitativo da produo. H indcios disto nas construes funcionais que se adaptam a formas e linhas da paisagem; isto certamente ocorre onde os materiais de que so feitos os artefatos provm do meio ambiente e se adaptavam ao mesmo, como no caso de muitos castelos e palcios. O que na Alemanha chamado de 'paisagem cultural' belo enquanto esquema desta possibilidade. Uma racionalidade que colhesse tais moti- vos poderia ajudar a cicatrizar as feridas da racionalidade". luz de passagens como esta no seria plausvel supor que h uma relao de complementaridade mais do que de excluso entre a explorao da relao sujeito-objeto de Adorno e a sua prpria teoria da comunicao?

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  • UM PERFIL FILOSFICO-POLTICO

    Se me permitem, considero um pouco ingnua demais a sua sugesto de com- preender apenas como complementares a Aesthetische Theorie e a minha teoria da co- municao. Alm disto, uma no pode simplesmente substituir a outra, inclusive porque me manifestei muito pouco sobre assuntos de esttica.

    Albrecht Wellmer, que possui um conhecimento muito maior destas questes, ex- ps em uma excelente discusso sobre Wahrheit, Schein und Versoehnung como a uto- pia esttica de Adorno "aderna" to logo se dissolve sua conexo com a filosofia da his- tria de Dialtica do Esclarecimento. Pois deste modo as intuies estticas de Adorno se tornariam independentes da tese metafsica de que a humanidade, a cada novo avano da subjetivao, se aprofunda progressivamente nas malhas da reificao. Faz parte desta viso negativa a perspectiva, prolongada em algo positivo, de uma reconciliao da pro- dutividade humana com a natureza, tal como os senhores lembraram em sua citao. Adorno apela ao "amor pelas coisas" no sem ironia, embora com seriedade. Este amor uma contra-imagem utpica frente ao desespero decorrente do fato de que a subjetivi- dade, "por fora de sua prpria lgica, trabalha para sua prpria extino", Uma teoria da comunicao que rompe com a referncia conceitual filosofia da subjetividade mi- na os fundamentos desta "lgica", desta relao interna aparentemente indissolvel en- tre emancipao e submisso. Mais especificamente, revela que j existe um momento mimtico nas prticas cotidianas de comunicao, e no apenas na arte. Permitam-me diz-lo com as palavras de Wellmer: "Isto precisa permanecer oculto a uma filosofia que, como a de Adorno, compreende a funo dos conceitos em termos da polaridade entre sujeito e objeto. Por trs das funes objetivadoras da linguagem, ela no pode reconhe- cer as performances comunicativas enquanto condies de sua prpria possibilidade. Por isto ela somente pode compreender a mmese como alteridade da racionalidade ... Para se conhecer a unidade prvia do momento mimtico e do momento racional nos fundamentos da linguagem, h necessidade de uma mudana de paradigma filosfico ... Entretanto, se a intersubjetividade do entendimento, a ao comunicativa, constitu- tiva para a esfera do esprito, da mesma forma que a objetivao da realidade nos contex- tos da ao instrumental, ento a perspectiva utpica que Adorno procura esclarecer atravs do conceito de uma sntese informe, proveniente da filosofia da conscincia, migra por si mesma para a esfera da razo discursiva: intersubjetividade inalterada, a reunio no forada da multiplicidade, que possibilitaria ao mesmo tempo a proximidade e a distn- cia, a identidade e a diferena dos indivduos, designam uma projeo utpica cujos ele- mentos a razo discursiva obtm a partir das condies de sua prpria capacidade lingstica.

    Em vrios ensaios recentes o senhor emitiu juzos incisivos acerca do ps- estruturalismo, sugerindo que os ps-estruturalistas franceses devem ser encarados co- mo "neoconservadores" que "com atitudes modernistas fundamentam um antimoder- nismo irreconcilivel". O senhor poderia desenvolver mais esta afirmao, mostrando, quando for necessrio, as distines entre diferentes pensadores ps-estruturalistas? O senhor poderia tambm explicitar a discrepncia entre a sua condenao do ps- estruturalismo e a sua recepo relativamente simptica da obra de Richard Rorty, que no s apresenta paralelos com temas ps-estruturalistas, mas em alguns casos foi direta- mente influenciada pelos mesmos?

    Como se poder ver a partir das minhas conferncias sobre o discurso filosfico da modernidade, a serem publicadas em breve, "condenao" no o termo apropriado para minha atitude em relao ao ps-estruturalismo. Evidentemente, h muitas seme- lhanas entre a dialtica negativa e os procedimentos de desconstruo, de um lado, e entre a crtica da razo instrumental e a anlise das formaes do discurso e do poder, por outro. O elemento ldico-subversivo de uma crtica da razo, consciente de sua pr- pria auto-referencialidade paradoxal, e a explorao de potenciais da experincia revela-

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  • dos pela primeira vez pela vanguarda esttica ambas estas coisas caracterizam um esti- lo nietzchiano de pensamento e apresentao que fundamenta a afinidade intelectual de Adorno com Derrida, por um lado, e com Foucault, por outro. O que o separa de ambos, bem como de Nietzsche e isto me parece politicamente decisivo , apenas o se- guinte: Adorno no se retira simplesmente do contradiscurso que desde o comeo ima- nente modernidade, porm, em sua desesperada aderncia ao procedimento da nega- o determinada, permanece fiel idia de que no h cura para as feridas do Iluminis- mo a no ser o prprio Iluminismo radicalizado. Diferentemente de Nietzsche e seus dis- cpulos, Adorno no tem iluses quanto s origens genuinamente modernas da expe- rincia esttica, em cujo nome a modernidade se torna vtima de uma crtica niveladora e no dialtica.

    No que se refere a Richard Rorty, no sou menos crtico em relao a suas posi- es. Mas ao menos ele no participa do "anti-humanismo", cujas pistas recuam, na Ale- manha, a figuras politicamente to definidas como Heidegger e Gehlen. Da herana prag- mtica que em alguns casos, embora no em todos, reclama para si, Rorty retm uma intuio que nos une a convico de que uma convivncia humana depende das for- mas vulnerveis da comunicao cotidiana igualitria, recproca, espontnea e voltada inovao. Esta intuio mais estranha ainda a Foucault e Derrida do que a Adorno, que tambm permaneceu um romntico, e no apenas enquanto compositor.

    Atualmente o ps-estruturalismo adquire uma importncia crescente, medida que este estilo de pensamento progride na Alemanha. Quais as razes deste sucesso, e qual sua opinio acerca da repatriao da filosofia de Nietzsche e Heidegger sob a forma ps-estruturalista?

    A influncia do ps-estruturalismo nas universidades alems est tambm clara- mente associada situao do mercado de trabalho acadmico. O horizonte de expecta- tivas dos intelectuais mais jovens se tornou to negro que se difundiu um clima negati- vista que, em alguns casos, at mesmo se transforma em uma volta a solues apocalpti- cas. A realidade social faz o resto: ela no contribui para minorar os efeitos de todos os novos riscos que at observao mais serena aparecem como efeitos colaterais da ao racional teleolgica, isto , como riscos que devemos a ns mesmos. Por isto as teorias que compreendem o todo como o no-verdadeiro e oferecem como nica afirmao possvel a ausncia de sada no somente vo de encontro aos nimos da crtica civili- zao mas tm um progressivo contedo de realidade. Afinal, como devemos nos com- portar frente ao ltimo espetculo eleitoral americano, em que todos os planos da reali- dade se misturaram triunfalmente: em que um presidente-ator revela a um pblico fasci- nado que, apesar de todas as asseveraes de liderana e "macheza", ele age apenas re- presentando um papel de presidente, sendo ento prontamente confirmado no cargo? Em relao a isto s se pode responder com o humor cnico dos desconstrutivistas.

    A situao um pouco diferente com Heidegger, que ainda tende a inspirar um terror sagrado na Alemanha. O retorno mais recente de um Heidegger felizmente desna- zificado se baseia evidentemente em sua recepo ahistrica na Frana e na Amrica, onde, qual fnix ressurgida das cinzas, entra em cena como o autor da Carta sobre o Humanismo.

    O questionamento do pensamento sistmico na filosofia caracteriza muitas cor- rentes no sculo XX. O ceticismo frente possibilidade de uma filosofia como corpo ordenado de verdades impregna pensadores to diferentes como Wittgenstein, Merleau- Ponty e Adorno. Como o senhor defenderia a necessidade e a possibilidade de uma filo- sofia sistemtica em face destas objees to profundamente enraizadas?

    Desde a morte de Hegel no se pode mais adotar sistemas filosficos com a cons- cincia tranqila. Por isto, qualquer pensador que, no sculo XX, tenha afirmado e prati-

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  • UM PERFIL FILOSFICO-POLTICO

    cado a morte, a superao, o fim ou o abandono da filosofia, simplesmente realizou tar- diamente um decreto j estabelecido pela primeira gerao de discpulos de Hegel. Des- de ento o pensamento filosfico procura se transferir a um outro meio. Neste sentido todos ns permanecemos contemporneos dos neo-hegelianos contrariando todas as ambies ps-modernas. After Philosophy o ttulo de uma coleo de ensaios pla- nejada por Tom McCarthy caracteriza para mim uma situao que se tornou to bvia que considero bastante suprfluos os grandes gestos dos anti-sistemticos. Renuncia im- plicitamente a pensar em sistemas qualquer trabalho filosfico que se emaranha no teci- do das cincias humanas e sociais sem exigncias fundamentalistas e com conscincia da falibilidade, com o fim de contribuir de algum modo til quando se trata do proble- ma dos fundamentos gerais de conhecimento, linguagem e ao.

    Uma das mudanas mais evidentes em seu trabalho tem sido a progressiva rele- vncia de argumentos e procedimentos da filosofia analtica. O senhor poderia explicar os motivos para esta transformao? Que recursos a filosofia analtica oferece que no podem ser supridos por outras tradies, inclusive as principais tradies alems?

    Em geral o exemplo da filosofia analtica exerceu uma influncia salutar sobre a filosofia alem do ps-guerra, justamente por exigir nveis mais elevados de explicitao. Eu aprendi muito com Wittgenstein, Austin e Searle como do seu conhecimento, neles eu encontro instrumentos para a investigao e pressupostos pragmticos gerais para o uso de proposies em afirmaes.

    Na ltima dcada o desenvolvimento mais importante na filosofia de lngua ingle- sa foi o aparecimento de novos trabalhos substantivos de filosofia poltica (Rawls, No- zick, Dworkin, Walzer) e o debate em torno deles. Que importncia o senhor atribui a este desenvolvimento? O senhor considera apropriado intervir mais diretamente neste debate do que fez at agora, na medida em que os temas destes pensadores em grande parte se superpem aos seus?

    Ao lado da teoria do ato de linguagem, eu poderia tambm ter mencionado a filo- sofia moral, ao menos a linha de pensamento (de Baier e Singer a Rawls) em que a subs- tncia da tica kantiana pretende ser retomada nos termos da filosofia da linguagem. Re- centemente eu mesmo aprofundei a explicitao da abordagem tica do discurso, que privilegio juntamente com Apel. Esta abordagem a tentativa de reconstruir a tica kan- tiana com o auxlio da teoria da comunicao. As sugestes com que trabalhei neste pro- cesso procedem sobretudo de Rawls e Kohlberg. Quando, no ano passado, estimulado por acontecimentos atuais, iniciei um debate sobre desobedincia civil, os trabalhos de Rawls e Dworkin eram os pontos de referncia mais importantes. Se os senhores tm a impresso de que no estou suficientemente engajado neste front, isto pode resultar da minha compreenso limitada da tarefa da tica filosfica.

    Em minha concepo, o filsofo deve explicar o ponto de vista moral, fundamen- tando, da melhor forma possvel, a pretenso de universalidade desta explicao, mos- trando por que ela no reflete meramente as intuies morais do componente mdio, masculino, da classe mdia da moderna sociedade ocidental. Tudo o mais j assunto para o discurso moral entre os participantes. Na medida em que o filsofo pretenda jus- tificar princpios especficos de uma teoria normativa da moral e da poltica, ele deveria considerar isto como uma proposta para o discurso entre cidados. Em outras palavras: o filsofo da moral precisa deixar aos participantes as questes substanciais que ultra- passam a crtica aos fundamentos do ceticismo e do relativismo de valores, Ou ento talhar as exigncias de conhecimento da teoria normativa desde o incio de acordo com o papel de um participante. Deste modo ganhamos um espao mais amplo para as con- tribuies das teorias sociais ao diagnstico do nosso tempo. Certamente consideraes ticas so muitas vezes de grande valia metodolgica na construo destas teorias. Em

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  • Crise de Legitimao no Capitalismo Tardio, discuti esta questo a partir do problema da distino entre interesses gerais e particulares.

    Nos seus escritos mais recentes as consideraes estilsticas parecem recuar a um segundo plano, em favor de um modo de expresso mais funcional uma mudana que parece ter relao com a importncia crescente da filosofia analtica em seu traba- lho. Considerando as suas observaes em Wozu noch Philosophie? acerca do fim da "grande tradio filosfica", da transformao da filosofia em uma rea de "pesquisa" e da extemporaneidade do "estudo do pensamento filosfico associado aptido acad- mica individual e representao pessoal", o senhor consideraria como diverso ou re- gresso a preocupao com questes de estilo no trabalho de um filsofo contempor- neo? Uma posio filosfica pode sempre ser apresentada como uma proposio direta?

    O tipo de texto muda de acordo com o objetivo, o destinatrio, o lugar e a hora conforme eu esteja tratando do tema do Berufsverbot (proibio do emprego pblico a oposicionistas de esquerda) ou da desobedincia civil na esfera poltica pblica, ou se estou proferindo um discurso em homenagem a Gadamer, polemizando com Gehlen, escrevendo um obiturio para Scholem, ou se estou procurando justificar um princpio moral ou classificar atos de linguagem. Com os diferentes objetivos variam tambm os elementos constitutivos do discurso. J sabemos muito bem, no mais tardar a partir de Mary Hesse, que mesmo a linguagem das cincias permeada por metforas; isto vale muito mais ainda para a linguagem da filosofia, que jamais pode ser inteiramente absor- vida pelo seu papel de banco de testemunhas para teorias cientficas com fortes preten- ses universalistas. Entretanto, a partir do carter inevitavelmente retrico de qualquer tipo de linguagem, inclusive a filosfica, no se pode concluir, como Derrida, que tudo a mesma coisa que as categorias da vida cotidiana e da literatura, cincia e fico, poesia e filosofia se identificam umas com as outras. Para Derrida todos os gatos so par- dos na noite da "escritura". No pretendo chegar a esta concluso. O uso da linguagem na prtica cotidiana encontra restries diferentes daquelas da linguagem da teoria ou da arte, especializada para a soluo de problemas ou para uma descoberta inovadora do mundo.

    Como o senhor resumiria a sua atual concepo de verdade? Na medida em que qualquer acesso adequado ao problema da verdade deve incluir uma teoria da evidncia e uma teoria da argumentao, poder-se-ia afirmar que o seu trabalho at agora foi muito mais voltado ltima do que primeira? Ainda hoje o senhor manteria a separao cate- gorial entre "objetividade" fundada na experincia e "verdade" baseada na validade dis- cursiva, tal como expressa no posfcio de Conhecimento e Interesse?

    O ncleo da teoria discursiva da verdade pode ser formulado mediante trs con- ceitos bsicos: condies de validade (preenchidas quando uma afirmao vlida); exi- gncias de validade (levantadas pelos oradores em relao validade de suas afirmaes) e a verificao de uma exigncia de validade (no quadro de referncia de um discurso que se aproxima suficientemente das condies de uma situao ideal de linguagem, de forma que um consenso almejado entre os participantes pode ser obtido somente pela fora do argumento melhor, sendo neste sentido "motivado racionalmente"). A intuio bsica simples. Exigncias de validade so tematizadas explicitamente apenas em casos no triviais, mas justamente nestes casos no se dispe de regras de verificao para de- cidir diretamente se certas condies de validade so preenchidas ou no.

    Quando asseres de verdade ou justia se tornam de fato obstinadamente pro- blemticas, faltam dedues lgicas ou evidncias decisivas que poderiam obrigar a uma deciso a favor ou contra. Ento h necessidade de um jogo de argumentao em que razes motivadoras possam ocupar o lugar de argumentos finais no disponveis. Aceitando-se esta colocao, torna-se claro que a dificuldade seguinte surge na tentativa

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  • UM PERFIL FILOSFICO-POLTICO

    de explicar o que significa dizer que uma afirmao vlida. Uma afirmao vlida quando as suas condies de validade so preenchidas. De acordo com a nossa descri- o, o preenchimento ou no preenchimento das condies de validade pode ser obti- do em casos problemticos mediante a verificao argumentativa de uma exigncia de validade. Nesta medida a teoria discursiva da verdade explica o que significa verificar uma exigncia de validade por uma anlise dos pressupostos pragmticos gerais da ob- teno de um consenso racionalmente motivado. Esta teoria da verdade oferece apenas uma explicao do significado, sem providenciar um critrio; ao mesmo tempo, contu- do, solapa as bases para uma distino clara entre significado e critrio.

    At que ponto a noo de uma situao ideal de linguagem enquanto princpio regulador da verdade circular? Se a verdade definida como o consenso que seria ob- tido pelos oradores numa situao ideal de linguagem, como que a existncia de uma tal situao poderia, ela mesma, ser verdadeiramente verificada? Em outras palavras, a idia no suscetvel da mesma espcie de crtica que Hegel fez teoria do conheci- mento de Kant, e que o senhor fez em relao a Hegel em Conhecimento e Interesse a "aporia do conhecer a priori antes do conhecimento"? Formulando de outra manei- ra: de que modo poderia ser ideal uma situao de linguagem, a no ser quanto sime- tria e sinceridade de seus oradores? Mas, mesmo no caso mais perfeito, estas condies levariam apenas concordncia e no verdade isto , abstraindo-se da evidncia, para a qual as possibilidades nunca podem ser ideais, j que em certa medida dependem de tcnicas que se transformam historicamente. At mesmo a comunidade igualitria e democrtica mais perfeita na Grcia clssica no poderia ter descoberto as leis da termo- dinmica na ausncia da ptica moderna. Isto no configura um dos limites de toda teo- ria da verdade consensual?

    A teoria discursiva da verdade apenas reivindica reconstruir um conhecimento intuitivo do significado de exigncias de validade universais de que qualquer orador com- petente dispe. "Situao ideal de linguagem" uma expresso um pouco concreta de- mais para o conjunto de pressupostos gerais e inevitveis da comunicao que um sujei- to capaz de linguagem e ao precisa realizar toda vez que pretende participar seriamen- te de uma argumentao. Na resposta sua questo anterior, queria recordar o fato de que este conhecimento intuitivo de pressupostos universais da argumentao se vincula compreenso prvia da verdade proposicional e da verdade (ou correo) moral. cla- ro que sabemos, a partir da filosofia e da histria da cincia, que estas idias podem ser operacionalizadas de modos bastante diferentes; o que em cada caso conta como uma boa razo, como prova, como explicao, ou confirmao, depende evidentemente de convices historicamente transformveis, e tambm, como os senhores sugerem, das tcnicas de controle e observao da natureza a elas associadas; resumindo: de paradig- mas em mudana. A dependncia das teorias em relao a paradigmas pode ser mais fa- cilmente harmonizada com uma teoria discursiva da verdade do que com uma teoria rea- lista. A teoria discursiva da verdade incompatvel unicamente com um relativismo de paradigmas ao estilo de Feierabend, porque este parte do pressuposto de que as idias de verdade e correo dependentes de paradigmas apontam em direo a um ncleo universal de significados.

    Como o senhor concebe a relao entre asseres de verdade filosficas e cient- ficas? Asseres de verdade filosficas seriam asseres cognitivas, e um consenso ra- cional garantiria em ltima instncia a prpria verdade da teoria da verdade consensual?

    Esta uma questo interessante de que me ocupo h bastante tempo sem que, at agora, tenha uma resposta conclusiva.

    No momento, qual a sua atitude em relao psicanlise? Em Conhecimento e Interesse o senhor apresenta a psicanlise como paradigma de uma cincia crtica a

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  • servio de interesses emancipatrios. Ao mesmo tempo o senhor sustenta que a metapsi- cologia de Freud era uma compreenso deficiente do seu prprio projeto, cuja teoria do instinto conduz a proposies "que jamais foram submetidas a qualquer teste experi- mental". At que ponto esta crtica pode ser aplicada ao prprio cerne da teoria analti- ca? E mesmo que deixemos de lado esta debilidade evidente amplamente discutida da psicanlise, esta teoria no apresentaria problemas especficos para uma teoria con- sensual da verdade, na medida em que a interao entre analista e analisando confiden- cial, isto , no extensiva a outras pessoas? No existiria no fosso entre as situaes de linguagem "clnica" e "ideal" uma tentativa de recuperao de uma justificativa essen- cialmente pragmtica da teoria freudiana cujo critrio de verdade representa uma trans- formao no comportamento do paciente, uma "continuidade do processo de autofor- mao" de direo e durao indeterminveis? Isto poderia parecer com o instrumenta- lismo nos moldes de Dewey, que o senhor rejeita no posfcio de Conhecimento e Inte- resse. Mas, mesmo sob uma tal perspectiva, os resultados positivos no so muitos. Em suma: no existiriam muito mais questionamentos acerca da cientificidade de muitas das afirmaes de Freud, conforme discute uma vasta literatura, do que o senhor admitia no fim dos anos 60?

    Meu amigo Mitscherlich uma vez resumiu suas experincias como psicanalista da seguinte maneira: a terapia muitas vezes no consegue mais do que a "transformao de doena em sofrimento, mas um sofrimento que eleva o status do homo sapiens, porque no extingue sua liberdade". A partir desta afirmao, quero expressar meu ceticismo em relao a critrios baseados em estatsticas dos assim chamados resultados positivos.

    Atualmente parece que a pesquisa psicanaltica est parada, no s na Alemanha mas em escala mundial, e que os jovens inteligentes preferem outras disciplinas. Mas at que ponto isto definitivo? Muitas disciplinas sobreviveram a perodos semelhantes de estagnao. Tambm a sociologia est atravessando tempos difceis. Desde fins dos anos 60 eu prprio no me ocupei mais com a metapsicologia de Freud. Contudo, considero estimulantes e frutferas as tentativas feitas a partir de vrios ngulos, procurando reunir Freud e Piaget. De resto, continuo considerando plausvel a minha interpretao de Freud nos termos da teoria da comunicao. No posso aceitar inteiramente as suas objees. Nunca compreendi o discurso teraputico enquanto discurso ou argumentao em sen- tido estrito, por causa das assimetrias entre terapeuta e paciente nele inseridas. claro que nele habita, por assim dizer, a finalidade de remover estas assimetrias. Por esta razo o paciente adquire por fim, ao menos do ponto de vista ideal, a liberdade de dizer sim e no que o imuniza frente ao assdio sugestivo de interpretaes funcionais, que so, num sentido superficial, "a servio da vida". O que estaria em questo evidentemente a continuidade possvel atravs de um insight reflexivo de um processo de autoforma- o interrompido, neuroticamente inibido.

    O livro Theorie des Kommunikativen Handelns contm uma fascinante recons- truo e crtica da anlise weberiana da "racionalizao" como processo histrico mun- dial. Neste livro o senhor cobra de Weber o fato de ter abandonado seu prprio ponto de partida o surgimento da racionalidade substantiva com as grandes religies mun- diais em seu enfoque final, restrito racionalidade formal como matriz necessria do moderno capitalismo; alm disto o senhor aponta lacunas importantes em sua teoria re- gional do surgimento do capitalismo a omisso de Weber em relao ao desenvolvi- mento da cincia moderna e, de um modo mais geral, de seu portador social durante o Renascimento. Trata-se de demonstraes convincentes. Porm no to clara a sua aceitao do ponto central da tese weberiana sobre a importncia da prpria tica pro- testante como fora propulsora de um mundo racionalizado e, desta forma, como motor do capitalismo nascente. Muitos historiadores foram bastante cticos em relao s pro- posies weberianas acerca da importncia do calvinismo que se pense apenas no

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  • UM PERFIL FILOSFICO-POLTICO

    levantamento crtico dos fatos de Religion and Economic Action de Kurt Samuelson ou no ensaio de Trevor-Roper sobre Erasmo. Em sua opinio estes questionamentos no afe- tam o seu tratamento de Weber?

    De fato, negligenciei a ampla discusso acerca do acerto ou no da anlise do ca- pitalismo de Weber. Havia sobretudo motivos prticos para isto haveria necessidade, se no de outro livro, ao menos de um captulo adicional. Inclusive por estas razes para reduzir meus encargos , planejei a Theorie des Kommunikativen Handelns como entrelaamento de histria da teoria e investigao sistemtica. No caso de Weber isto tinha a vantagem suplementar de ilustrar uma de minhas idias favoritas: Weber percebe com muita acuidade a estreiteza da doutrina calvinista da graa e os traos repressivos das formas de vida assim cunhadas; mas Weber se recusa a compreender a tica protes- tante como explorao unilateral de um potencial elaborado na tica universalista da fra- ternidade. De fato, na tica protestante se espelha o modelo seletivo da racionalizao capitalista como um todo.

    Naturalmente tais interesses vinculados forma de apresentao no devem se tor- nar dominantes; caso contrrio nos tornaremos cnicos em relao s questes da verda- de. At onde vai meu conhecimento da literatura a respeito, creio que a tese de Weber precisa ser revista e ampliada tendo em vista outros portadores sociais do capitalismo nascente. Contudo no acredito que uma tal reviso devesse questionar a vinculao ge- ral entre tica da convico, ascetismo mundano e comportamento econmico.

    Em termos mais gerais, qual sua opinio a respeito da posio e contribuio da histria como disciplina no mbito das cincias sociais? Em Para a Reconstruo do Materialismo Histrico o senhor argumenta que a "histria como tal no capaz de teo- ria" porque ela sempre uma narrativa retrospectiva, enquanto "proposies tericas permitem a derivao de predies condicionais sobre eventos que ocorrero no futu- ro". Esta carncia de capacidade terica e preditiva o senhor contrasta com a competn- cia da sociologia e da teoria da evoluo a este respeito. Parece haver uma estreita afini- dade entre esta distino e a dicotomia neokantiana entre cincias ideogrfcas e nomo- tticas. Mas ela se justifica? difcil perceber por que historiadores como Taylor ou Hobs- bawm deveriam ser incapazes de fazer predies que deveriam ser, no mnimo para sermos cautelosos , to confiveis quanto aquelas de socilogos como Bell ou Dah- rendorf, cujos diagnsticos sobre o nosso tempo o senhor cita como vlidos. Por exem- plo: advertncias relativas ao crescente perigo de uma guerra nuclear no possuem um peso todo especial quando feitas por um historiador da autoridade de Edward Thomp- son? Os efeitos de uma separao ntida entre "histria" e "teoria", em relao ao mate- rialismo histrico, no seriam necessariamente paradoxais? no sentido de que, para reconstru-lo como teoria, ele precisa ser drasticamente limitado como histria, tal co- mo ocorre na forma evolucionria do materialismo histrico em Kommunikation und die Evolution der Gesellschaft? primeira vista seria mais plausvel imaginar que histo- riadores marxistas (e outros) poderiam contribuir mais para o empreendimento de re- construo do materialismo histrico do que estudiosos da psicologia infantil. No seria possvel usar contra o senhor mesmo o seu Mudana Estrutural da Esfera Pblica como exemplo memorvel de uma obra que simultnea e inseparavelmente tanto histrica quanto terica, tendo grande fora em seus diagnsticos em ambos os casos?

    A capacidade de prognstico da teoria social foi e muito restrita dificilmente isto poderia ser de outra maneira, dado o alto nvel de abstrao em que estas proposi- es acerca de situaes bastante complexas so formuladas. Tambm no duvido que um historiador esperto e politicamente astuto avalie, com suas intuies carregadas de experincia, tendncias de desenvolvimento atual com preciso freqentemente espan- tosa. So razes metodolgicas que me levam a insistir em uma distino no hierr- quica entre historiografia e teoria das cincias sociais. Quando se introduz na histria

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  • o ponto de vista da evoluo social sem mediao, muito fcil pensar nos moldes da filosofia da histria, grande o risco de um pensamento histrico-teleolgico, ao qual particularmente os marxistas sucumbiram com freqncia. As reflexes a que os senho- res se referem pertencem ao contexto de crtica ao objetivismo histrico e a suas infeli- zes conseqncias para a prtica poltica dos chamados partidos de vanguarda. Em ne- nhum sentido me oponho necessidade da pesquisa histrica orientada teoricamente. As teorias, em especial as de inspirao marxista, s se justificam na medida em que con- tribuem explicao de processos histricos concretos. Desafortunadamente o meu pr- prio interesse foi ocupado h duas dcadas (se abstraio pequenos textos polticos) exclu- sivamente com problemas que podem ser caracterizados num sentido amplo como de construo terica. Preciso aceitar a crtica que recentemente Tom Bottomore me diri- giu a este respeito.

    Quais so as bases metodolgicas para as homologias que o senhor postula entre crescimento individual e evoluo social? Na Theorie des Kommunikativen Handelns o senhor assinala que a maior parte dos adultos, em todas as sociedades, atinge os nveis mais elevados da competncia moral e cognitiva, tal como descritos por Piaget e Kohl- berg. Neste caso, que contribuies podem resultar da seqncia de nveis de maturao descrita por eles para a explicao das grandes diferenas entre tais sociedades, quando ordenadas conforme uma escala de racionalizao de suas vises de mundo?

    Investigaes empricas se opem fortemente idia de que todos os membros adultos de uma sociedade, inclusive nas modernas sociedades ocidentais, adquiriram a aptido para o pensamento operatrio formal (no sentido de Piaget) ou. para julgamen- tos ps-convencionais (no sentido da teoria do desenvolvimento moral de Kohlberg). Sustento apenas, por exemplo em relao a sociedades tribais, que indivduos podem desenvolver estruturas de conscincia que esto num nvel superior quelas que j se encontram incorporadas nas instituies de sua sociedade. Primariamente so os sujei- tos que aprendem, enquanto as sociedades avanam no processo de aprendizado evolu- cionrio apenas num sentido metafrico. Novas formas de integrao social e novas for- as produtivas so devidas institucionalizao e explorao de formas de conhecimen- to adquiridas individualmente mas culturalmente estocadas e tornadas transmissveis e, desta forma, acessveis ao coletivo. Entretanto o processo da implementao social so- mente se efetua em conseqncia de conflitos polticos e movimentos sociais, de inicia- tivas de grupos marginais inovadores, e assim por diante. Portanto, parto do pressuposto trivial de que sujeitos capazes de fala e ao no podem deixar de aprender, e baseio nisto a suposio de que processos de aprendizado ontogenticos adquirem funes pio- neiras. Contudo esta tese contestada por Klaus Eder em sua Habilitationsschrift sobre o desenvolvimento constitucional alemo a partir do sculo XVIII. Ele acompanha os impulsos inovadores diretamente em sua vinculao a processos de aprendizado social nos moldes de novas formas de associao, isto , a novas experincias de relaes so- ciais igualitrias, inicialmente nas lojas manicas, sociedades secretas e associaes de leitura, posteriormente nas primeiras associaes de trabalhadores socialistas.

    Uma teoria da emancipao pode evitar a idia de progresso? Em Theorie des Kom- munikativen Handelns o senhor destaca que ns no podemos julgar o valor das socie- dades a partir do grau em que seu mundo racionalizado, mesmo quando assumimos como critrio uma racionalidade abrangente, substantiva e no apenas formal, sugerin- do que, quando muito, podemos talvez falar de uma relativa "sade" ou "enfermidade" de uma dada ordem social. Anteriormente, porm, o senhor criticou o uso de tais ter- mos, tirados da biologia, como sendo fundamentalmente inaplicveis sociedade. Seu ponto de vista mudou, ou esta permanece uma questo relativamente no resolvida para o senhor? A dificuldade parece estar em resistir ao triunfalismo histrico uma auto-

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  • UM PERFIL FILOSFICO- POLTICO

    satisfao iluminista que desvaloriza todas as formas sociais anteriores ou estranhas sem cair no agnosticismo poltico. Pois se, no sentido de Ranke, todas as sociedades e pocas esto igualmente prximas de Deus, por que lutar por uma melhor? Um relativis- mo cultural consistente precisa ser conservador. Em que direo o senhor pensa que deva ser procurada uma soluo para estes dilemas?

    Eu no revi minha concepo a este respeito, mas continuo a pensar que proposi- es relativas ao nvel de desenvolvimento de uma sociedade s podem se referir a di- menses singulares e a estruturas universais: reflexividade e complexidade de sistemas sociais, por um lado, e s foras sociais de produo e s formas de integrao social, por outro. Uma sociedade pode ser superior a outra com referncia ao nvel de diferen- ciao de seu sistema econmico ou administrativo, ou com referncia a tecnologias ou instituies jurdicas. Mas no segue da que temos o direito de dar mais valor a esta so- ciedade como um todo, como uma totalidade concreta, como uma forma de vida. sa- bido que, em relao ao conhecimento objetivante e ao insight moral, defendo a posi- o de um cauteloso universalismo. Observamos tendncias em direo a uma racionali- zao "progressiva" do mundo como um fato histrico e no como uma lei, claro. Re- petidamente se confirmam aquelas tendncias que distinguem as sociedades modernas das tradicionais a crescente reflexividade da tradio cultural, a universalizao de valores e normas, a liberao da ao comunicativa de contextos normativos estreita- mente circunscritos, a difuso de modelos de socializao que promovem processos de individuao e a formao de ego-identidades abstratas, e assim por diante. Contudo to- dos estes "avanos" dizem respeito s estruturas universais de mundos da vida em geral; no afirmam nada acerca do valor de um modo de vida concreto. Este valor precisa ser medido em outras coisas, do tipo daquelas que temos em vista em julgamentos clnicos: se as pessoas nestas ou naquelas circunstncias tm uma vida "difcil", se elas so aliena- das. Para a intuio de uma vida no-fracassada, aplicamos parmetros vlidos em pri- meira instncia no contexto de nossa cultura, que so aceitveis no contexto de nossa tradio, que em todo caso no podem ser generalizados do mesmo modo que os pa- dres que utilizamos para avaliar processos de aprendizado conhecimento da nature- za ou representaes morais e jurdicas que, apesar de sua dependncia de paradigmas, no so inteiramente incomensurveis. At hoje eu no sei como se pode apreender teo- ricamente o ncleo universal desde que realmente elas o tenham destas intuies meramente clnicas.

    Uma teoria moral do esclarecimento pode evitar uma obrigao para com a felici- dade? Em caso negativo, como que uma "tica discursiva" se relaciona com a felicida- de? Em seu ensaio sobre Walter Benjamin, o senhor levanta a possibilidade de uma so- ciedade simultaneamente liberada da dominao e sem sentido a racionalidade sem felicidade. Uma tal possibilidade no contraria o argumento segundo o qual toda propo- sio verdadeira uma "antecipao de uma vida feliz"? Formulando de outro modo: na Theorie des Kommunikativen Handelns o senhor afirma que a tica uma "cincia reconstrutiva", enquanto em outro escrito o senhor define tais cincias como aquelas que, diferentemente das teorias crticas, so desprovidas de efeitos prticos sobre o com- portamento dos atores. Contudo a idia de uma tica post facto, da codificao andina de prticas existentes, no virtualmente uma contradio?

    Deixem-me comear com algumas proposies gerais. Certamente a moral tem a ver com a justia e tambm com o bem-estar de outros, at mesmo com a promoo do bem-estar geral. Mas a felicidade no pode ser conseguida intencionalmente, e s po- de ser promovida muito indiretamente. Eu prefiro um conceito de moralidade relativa- mente estreito. A moralidade se refere a questes prticas que podem ser decididas me- diante razes, ela diz respeito a conflitos nascidos da ao que so solucionveis median- te consenso. Num sentido estrito so morais unicamente questes cuja resposta adquire sentido a partir do ponto de vista kantiano da universalizao do que todos poderiam

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  • querer. Ao mesmo tempo privilegio um conceito fraco de teoria moral. J falamos disto: ela deve explicar e justificar um "ponto de vista moral", e nada mais. Teorias morais den- ticas, cognitivistas e universalistas na tradio kantiana so teorias da justia que preci- sam deixar sem resposta a questo do viver bem. Elas esto tipicamente restritas ques- to da justificao de normas e aes. Elas no oferecem resposta questo de como normas justificadas podem ser aplicadas a situaes especficas e como intuies morais podem ser realizadas. Em suma, no se deve sobrecarregar a teoria moral, mas atribuir uma parte da responsabilidade teoria social, e a maior parte aos prprios participantes seja aos seus discursos morais, seja ao seu bom senso. Este papel meramente advoca- trio estabelece limites estreitos teoria, quem assume um risco deve ter o direito de decidir por si prprio. E agora vamos s suas questes.

    A teoria moral procede de forma reconstrutiva, isto , aps o evento. Aristteles tinha razo quando afirmava que as intuies morais que a teoria esclarece devem ter sido adquiridas em outra parte, isto , em processos de socializao mais ou menos bem- sucedidos. Porm tenho tambm a expectativa de atribuir a uma teoria crtica da socie- dade a tarefa de possibilitar interpretaes esclarecedoras de situaes referentes a nossa autocompreenso e que orientam nossa ao. Entretanto tambm a teoria social ultra- passaria os limites de sua competncia se tomasse como tarefa a projeo de formas de vida desejveis no futuro, em vez de criticar as formas de vida existentes. Assim pode referir-se a represses historicamente suprfluas e queles potenciais de racionalidade no esgotados que podem ser obtidos a partir do respectivo estado das foras produti- vas, do nvel das representaes jurdicas e morais, do grau de individuao etc. Por este motivo a teoria marxista no pode apresentar a expresso "socialismo" em termos de uma forma de vida concreta. No melhor dos casos ela pode indicar as condies neces- srias sob as quais formas emancipadas de vida seriam possveis hoje.

    Para o senhor, at que ponto necessidades de "natureza interior "constituem uma fonte de valores possveis? O senhor escreveu acerca de uma "fluidificao" necessria desta natureza em qualquer moral ou sociedade ps-convencional, sugerindo que a arte desempenha um papel particularmente significativo numa tal reestruturao. O senhor poderia fornecer alguns exemplos do tipo de processo que imagina?

    Nossas necessidades sempre nos so acessveis apenas sob forma interpretada. Em outras palavras, a linguagem constitutiva para as necessidades cuja luz se desvendam situaes que tambm so sempre providas de tinturas afetivas. At agora a transforma- o das linguagens avaliativas, de interpretao de necessidades, se desenvolveu de uma maneira natural; a mudana deste vocabulrio se desenvolveu como parte da mudana dos quadros dos universos lingsticos. Na medida em que arte e literatura se diferencia- ram numa esfera com uma lgica prpria, tornando-se neste sentido autnomas, estabeleceu-se uma crtica da arte e da literatura que trabalha com o objetivo de reinte- grar as experincias estticas inovadoras na linguagem ordinria, e desta forma na prti- ca comunicativa cotidiana. No mbito desta crtica, o processo, anteriormente natural, de reavaliao do nosso vocabulrio avaliativo, da nossa linguagem de desvendamento do mundo, de interpretao das necessidades, se torna cada vez mais reflexivo; todo o processo se torna discursivamente fluido. Conceitos centrais como felicidade, dignida- de, integridade da pessoa transformam-se agora nossa vista. Experincias difusas, que cristalizam sob circunstncias de vida produzidas por mudanas na estrutura social, en- contram sua expresso esclarecedora, sugestiva, visvel, atravs da produtividade cultu- ral. o que para Castoriadis significa a "imaginao". Benjamin, por exemplo, investigou atravs de Baudelaire aquelas experincias de um mundo da vida concentrado metropo- litanamente que veio tona como um novo continente na Paris do sculo passado, a "capital do sculo XIX", como ele dizia. Kafka e Musil podem ser vistos como exemplos literrios do espao vivencial da decadncia da monarquia imperial austraca, Celan e Beckett, de um mundo transformado por Auschwitz. Nossos discursos e reflexes prtico-

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  • UM PERFIL FILOSFICO-POLTICO

    morais so afetados por esta produtividade, justamente na medida em que apenas luz de tais inovaes que ns podemos dizer o que realmente queremos, e sobretudo o que no podemos querer. Unicamente sob esta luz encontramos uma expresso preci- sa para nossos interesses.

    H poucos anos o senhor polemizou com as teorias da ps-modernidade, associando-as a conceitos de ps-histria e s implicaes neoconservadoras do ps- estruturalismo. Contudo no ficou bem claro se o senhor pretende negar a existncia de desenvolvimentos a que corresponde o conceito de ps-moderno, ou se est contes- tando meramente a adequao da designao. Por exemplo, o senhor negaria que o aban- dono do esoterismo da alta cultura e a aproximao de uma fuso entre alta cultura e cultura de massas representam um desenvolvimento ao qual se poderia aplicar o concei- to de "ps-modernismo"? Em sua Theorie des Kommunikativen Handelns o senhor assi- nala o surgimento de uma "arte de ps-vanguarda" que "caracterizada pela simultanei- dade de orientaes realistas e engajadas com a continuidade autntica daquela moder- nidade clssica que destacou o sentido distinto prprio do esttico". Quais seriam, em sua opinio, exemplos de obras de arte que se movimentam nesta direo? A partir de sua recusa em negar qualquer potencial de progresso cultura de massas, seria a fuso entre alta cultura e cultura de massas um aspecto de uma tal "arte ps-vanguardista"?

    Peter Buerger v a arte de ps-vanguarda, a arte aps a falncia da revolta surrea- lista, o ambiente cultural contemporneo de um modo geral, como sendo caracterizada pela justaposio de estilos que se nutrem seja da linguagem formalista da vanguarda, seja da herana de estilos e literaturas realistas ou poltico-didticos. Exemplos podem ser encontrados no museu de qualquer grande cidade. Esta justaposio inclui tambm as agora ritualizadas formas da Aufhebung da arte esotrica. Eu no interpretaria o am- biente cultural contemporneo no sentido do assim chamado ps-modernismo, como sinal de esgotamento ou "fim" do modernismo na arte ou na arquitetura. No mximo a nossa situao permite concluir que as experincias estticas reveladas pelas vanguar- das do sculo XX no conseguem acesso a uma prtica cotidiana racionalizada unilate- ralmente, frente a cujas portas elas circulam interminavelmente, em culturas cindidas de especialistas. Compartilho as reservas de Adorno em relao cultura de massas, frente apressada esperana de Benjamin na sua "iluminao profana", mas apenas em consi- derao ao fato de que, at agora, a fuso entre alta cultura e cultura de massas errou o seu alvo. A arte de massas dessublimada no interfere de um modo transformador, es- clarecedor e emancipador nas formas de vida reificadas pelo capitalismo, deformadas e distorcidas pelo consumismo e pela burocracia, mas, ao contrrio, estimula estas ten- dncias. No foram as esperanas dos surrealistas que se revelaram erradas, mas o seu caminho Aufhebung das iluses estticas era contraproducente.

    Uma das mudanas mais significativas em sua obra nesta ltima dcada foi a ate- nuao progressiva das afirmaes acerca da "situao ideal de linguagem". Na Theorie des Kommunikativen Handelns, o senhor admite a natureza utpica do projeto de uma comunidade ideal de linguagem, enfatizando que a racionalidade de conduta da funda- mentao argumentativa no pode ser contedo de uma forma de vida enquanto tal. Con- tudo, mesmo aps ter feito tais concesses, poderia existir ainda uma tenso entre o te- los do consenso universal e o valor humano (e epistemolgico) do conflito e diversidade de opinies. MIlI, cuja concepo de verdade de algum modo lembra a sua, revela sensi- bilidade em relao a este tipo de tenso, quando escreve em Sobre a Liberdade.- "A per- da de um meio auxiliar to importante para a apreenso inteligente e viva da verdade, como a necessidade de explic-la ou defend-la frente a oponentes, embora no sufi- ciente para se impor, no um obstculo insignificante em relao vantagem do seu reconhecimento universal". Em Mudana Estrutural da Esfera Pblica o senhor afirma

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  • que MIlI disfara a sua "resignao frente insolubilidade racional dos interesses con- correntes na esfera pblica" mediante uma "teoria do conhecimento perspectivista". Con- tudo, como revela a citao acima, isto no inteiramente correto. Mill no duvida que a verdade em ltima anlise implica o consenso, mas para ele a concordncia realizada s custas de outros valores humanos. O senhor suscetvel a este tipo de considerao?

    Penso que sim apesar de tudo meus amigos marxistas no esto inteiramente desprovidos de razo quando me acusam de ser um liberal radical. Posso apenas repetir o que j acentuei em outra parte. "Nada me deixa mais nervoso do que a imputao de que a teoria da ao comunicativa, porque ela focaliza a facticidade social de exigncias de validade reconhecidas, prope, ou ao menos sugere, uma sociedade utpica raciona- lista. Eu no considero como um ideal a sociedade totalmente transparente neste con- texto, gostaria de acrescentar: ou mesmo uma sociedade homogeneizada e unificada , nem quero sugerir qualquer outro ideal Marx no foi o nico a se atemorizar com os vestgios do socialismo utpico." Como j disse, a situao ideal de linguagem uma descrio das condies sob as quais exigncias de verdade e certeza podem ser resolvi- das discursivamente. Na ao comunicativa estas exigncias de validade permanecem em sua maioria implcitas e no problemticas, porque o mundo da vida, partilhado inter- subjetivamente, mantm disposio uma slida reserva de verdades culturalmente auto- evidentes, assumidas em princpio. O papel de coordenao da ao de processos de obteno do entendimento, desenvolvidos mediante a crtica de exigncias de validade, no conflita com o pluralismo das formas de vida e interesses. O fato de as sociedades modernas serem diferenciadas e se diferenciarem cada vez mais em relao s formas de vida e s posies de interesse constitui um fato que no elimina a ao voltada ao entendimento; obviamente a necessidade de entendimento, que cresce paralelamente a este processo, precisa ser suprida em nveis de abstrao sempre superiores. Por isto as normas e princpios do consenso se tornam sempre mais gerais.

    Existe ainda um outro caminho para se encontrar a necessidade de entendimento que ultrapassa as possibilidades disponveis de alcanar o consenso; de fato esta necessi- dade desaparece to logo domnios de ao socialmente integrados so transformados em integrao de sistemas. Isto aconteceu com muitas reas da vida no curso da moder- nizao capitalista. O dinheiro e o poder mais concretamente, os mercados e as admi- nistraes assumem as funes integrativas antes formalmente realizadas por valores e normas consensuais, ou at por processos voltados ao entendimento. Minha tese, de- senvolvida mediante uma discusso com a teoria da mdia de Parsons no segundo volu- me de Theorie des Kommunikativen Handelns, que estes domnios de ao, especiali- zados na transmisso de cultura, integrao social ou socializao de jovens, dependem do meio da ao comunicativa, e no podem ser integrados atravs de dinheiro ou po- der. Uma comercializao ou burocratizao deve, portanto, gerar nestes domnios e esta a tese distrbios, efeitos colaterais patolgicos. Mas agora eu me desviei de sua questo acerca dos direitos do pluralismo.

    Em sua discusso das estruturas de dominao tpicas do capitalismo, o senhor acentua o modo pelo qual elas eliminam ou oprimem "interesses generalizveis", em opo- sio aos "interesses particulares" que elas mesmas disfaradamente representam. Con- forme sua argumentao, a diferena entre estas duas espcies de interesses pode, em princpio, ser estabelecida por uma espcie de experincia de pensamento que o senhor denomina "discurso simulado". Qual seria um exemplo deste discurso? Um dos proble- mas que esta distino parece trazer consigo consiste no status daqueles interesses que no podem ser generalizados, mas que so inteiramente justificados em outras pala- vras, a questo da heterogeneidade "natural" de interesses, mesmo na sociedade socia- lista, em que diferentes agentes ou grupos tero uma multiplicidade de exigncias ou necessidades especficas, todas inteiramente legtimas em seus prprios termos por

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  • UM PERFIL FILOSFICO-POLTICO

    exemplo, de ordem regional, ocupacional, de geraes etc. Como o modelo proposto pelo senhor, de uma "formao discursiva da vontade", que parece privilegiar o consen- so em torno de interesses generalizveis, contribuir para arbitrar conflitos deste tipo?

    Naturalmente o modelo dos interesses generalizveis reprimidos apenas uma pro- posta de como se pode criticar interesses que se apresentam injustamente como interes- ses generalizveis. Este tambm o objetivo de Marx em sua crtica das formas jurdicas burguesas, ou em sua crtica das doutrinas de Smith e Ricardo. O modelo que proponho adequado para comprovar a no generalizabilidade de interesses presuntivamente ge- neralizveis. Por exemplo, um argumento hoje passvel desta suspeita freqentemente apa- rece em declaraes social-democratas: devem se dar tais e tais estmulos aos investimentos "com o objetivo de assegurar empregos".

    Suas objees se voltam contra uma assertiva que eu no fao. De maneira ne- nhuma parto da constatao de que em todas, ou mesmo na maior parte, as decises polticas, regulamentos legais ou administrativos, est em jogo um interesse geral. Socie- dades modernas no so assim. Freqentemente, ou talvez na maior parte dos casos, as questes sociais que hoje so regulamentadas atravs da interveno do Estado referem- se somente a grupos de interesses particulares. Em tais casos o discurso moral pode ter apenas a finalidade de negar legitimidade ao privilgio de uma parte que pretende falsa- mente representar um interesse geral. Quando esto em jogo apenas interesses particula- res, os conflitos nascidos da ao no podem ser solucionados mediante argumentao, mesmo em casos ideais, mas apenas atravs da negociao ou do compromisso. claro que os procedimentos para chegar a um compromisso devem por sua vez ser julgados a partir de um ponto de vista normativo. No se pode, por exemplo, esperar um com- promisso leal quando os partidos envolvidos no dispem de posies de poder ou po- tenciais de retaliao iguais. Para dar um exemplo drstico: quando se trata da questo complexa dos efeitos dos direitos constitucionais sobre terceiros, pode-se esperar que a deciso jurdica se fundamente na argumentao; quando se trata da questo simples, porm politicamente delicada, da localizao de uma usina nuclear, o mximo que se pode esperar um compromisso leal. Os compromissos no s so amplamente difun- didos como fatos, mas tambm ocupam do ponto de vista normativo uma posio que no deve ser desprezada. por isto que eu tambm no tenho qualquer dificuldade com o pluralismo de interesses. Afinal ns temos a expectativa de que o pluralismo das for- mas de vida e o individualismo dos estilos de vida devem crescer exponencialmente nu- ma sociedade que merea a denominao de "socialista".

    Uma das novidades de sua obra como um todo, quando vista em relao com as formas clssicas do marxismo, uma transio da "produo" "comunicao", tanto enquanto foco analtico, quanto como fonte de valores. Ao mesmo tempo o senhor sem- pre enfatiza que se considera um materialista. O senhor poderia especificar melhor os termos do materialismo que defende?

    Desde as minhas primeiras publicaes, entendi "materialismo" no sentido mar- xista como uma abordagem terica que no simplesmente afirma a dependncia da su- perestrutura em relao base, do mundo da vida em relao aos imperativos do pro- cesso de acumulao, como uma constante ontolgica, mas ao mesmo tempo a explica e denuncia como funo latente de uma formao social particular e historicamente tran- sitria. A transio de um paradigma ligado produo para um paradigma ligado co- municao, que advogo, significa naturalmente que a teoria crtica da sociedade no precisa mais se fiar nos contedos normativos do modelo expressivista da alienao e reapro- priao de foras essenciais. Este modelo o jovem Marx emprestou da esttica produtiva de Kant, Schiller e Hegel. A mudana de paradigmas, de uma atividade voltada a um fim a uma ao comunicativa, no significa, porm, que eu abandono a reproduo material do mundo da vida como referncia privilegiada de anlise. Continuo a explicar o mode-

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  • lo seletivo da modernizao capitalista e as correspondentes patologias de um mundo da vida unilateralmente racionalizado nos termos de um processo de acumulao capita- lista amplamente desvinculado de qualquer orientao por valores de uso.

    At que ponto a emergncia da ecologia como teoria e como movimento restrin- ge sua viso anterior de que "h apenas uma atitude teoricamente frutfera em relao natureza" aquela interessada em seu controle tcnico?

    A preocupao com ciclos ecolgicos, com biotipos e com sistemas ambientais certamente suscitou novos temas, novos problemas, talvez at novas disciplinas. Contu- do, at onde eu posso ver, estas investigaes de inspirao ecolgica se movem inteira- mente, do ponto de vista metodolgico, no quadro de referncia usual. At agora nada parece indicar que cincias naturais alternativas possam ser desenvolvidas com uma pos- tura no-objetivante, por exemplo, com uma postura de um parceiro da comunicao teorias na tradio das filosofias da natureza romnticas ou alquimistas.

    II

    Qual o balano de sua avaliao sobre a evoluo poltica que o senhor teste- munhou e viveu na sociedade ocidental, dos anos 50 aos anos 80? A concluso de Mu- dana Estrutural da Esfera Pblica contm uma certa ambigidade. A sua anlise da "mu- dana estrutural" na esfera pblica dos pases capitalistas avanados profundamente pessimista esboando um inesquecvel quadro de uma vida pblica degradada, em que a substncia da democracia liberal se dissolveu em uma combinao de manipula- o plebiscitria e apatia privatizada, na medida em que qualquer coletividade de cida- dania desaparece. Entretanto o senhor tambm evoca embora com mais brevidade a possibilidade de uma "restaurao" da esfera pblica mediante uma democratizao dos partidos, associaes voluntrias e meios de comunicao mas sem muitos moti- vos para esperar que isto possa ocorrer. Em sua opinio, nestes ltimos 25 anos as coisas pioraram, melhoraram ou continuaram na mesma?

    Traduzir as experincias de vida intuitivas de um contemporneo poltico em ter- mos de clculo de ganhos e perdas um empreendimento arriscado. Por outro lado, preciso admitir que uma teoria apropriada da sociedade, e um diagnstico do presente baseado nela, no tem nenhum outro sentido seno o de aguar a percepo para o po- tencial ambivalente dos desenvolvimentos contemporneos. Tentarei falar da perspecti- va da Alemanha. De um lado, tenho a impresso de que as tendncias de desintegrao de uma esfera pblica do tipo liberal uma formao de opinio num corte discursivo mediatizado pela leitura, pelo raciocnio e pela informao se intensificaram desde o final dos anos 50. O modo de funcionamento da mdia eletrnica aponta nesta dire- o, sobretudo a centralizao de organizaes que privilegiam fluxos verticais e de di- reo nica de informaes de segunda e terceira mo, consumidas privadamente. Esta- mos observando uma incrvel substituio de palavras por imagens, e tambm esta mis- tura de categorias como publicidade, poltica, diverso, informao, j criticada por Ador- no. A crtica da cultura de massas de Adorno deveria ser continuada e reescrita. O lado exibicionista dos nossos centros metropolitanos absorveu elementos do surrealismo de um modo irnico, promovendo o reencantamento, ao brilho de non, de uma realidade desrealizada. O banal funde-se com o irreal, hbitos helenisticamente indiferenciados se misturam com um estilo high-tech, os escombros das culturas populares se mesclam com o bizarro de polimento consumista e altamente personalizado. O entulho da civili- zao disfarado com plstico. A substncia do universal se dissolve num narcisismo que perdeu tudo o que individual e se tornou um esteretipo. Como j sugeri, Derrida

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  • UM PERFIL FILOSFICO-POLTICO

    e um desconstrutivismo volvel fornecem a nica resposta apropriada a este surrealis- mo realmente existente. E a isto se combina, agora mais seriamente, uma outra tendn- cia, que tambm avanou: uma manipulao da lealdade das massas ao mesmo tempo aperfeioada e apresentada como respeitvel, administrada por partidos polticos que migraram do mundo da vida ao sistema poltico. Antigamente dizia-se que os partidos e os seus expoentes procuravam a aclamao do pblico votante. Esta uma maneira tocante e antiquada de expressar as encenaes fechadas a qualquer espontaneidade, que se desenvolvem estritamente de acordo com o roteiro e que literalmente tomam tudo sob seu controle. Em todos os casos, esta foi a nova qualidade que a ltima eleio ame- ricana conseguiu com um ator-presidente cuja funo se restringe mais e mais a apre- sentar o seu ofcio ao pblico externo como uma realidade ficcional. A realidade est assumindo a descrio terico-sistemtica que Luhmann fornece dela: o sistema poltico extrai da esfera pblica a legitimao de que necessita. Este um lado.

    De outro lado se fortalecem as reaes a um tal esvaziamento da esfera pblico- poltica. Afinal no so inteiramente equivocadas nossas observaes de como a procu- ra de legitimao encontra dificuldades, nem o so as lamentaes especulares dos neo- conservadores acerca da "ingovernabilidade". Mudana Estrutural foi escrito antes dos movimentos de protesto dos anos 60 alis sem a menor previso dos mesmos. Atual- mente se multiplicam na Alemanha indicaes de resistncias subculturas, localmente fragmentadas, de movimentos defensivos de "base", assim como de espetaculares demons- traes de massa que de repente ascendem para se extinguirem logo em seguida. As de- monstraes pacifistas no outono de 1983, imediatamente antes da instalao dos ms- seis, atingiram dimenses antes inimaginveis na histria da Alemanha; elas tambm ti- nham uma qualidade previamente desconhecida, digamos uma agressividade disciplina- da. A sensibilidade em relao proteo da informao pessoal, manifestada na bem- sucedida resistncia ao censo planejado, introduo de carteiras de identidade " pro- va de falsificao", e assim por diante, constitui um sintoma a mais, embora menos dra- mtico. Neste contexto cabem tambm observaes de sociologia eleitoral acerca da eroso dos vnculos partidrios tradicionais e do crescente nmero de eleitores flutuantes. No apenas o sucesso dos "verdes" que fornece um sinal do que chamamos de "perplexi- dade partidria". Parece ser uma observao geral de que o terreno se torna escorrega- dio. Configuram-se potenciais de reao mais ou menos imprevisveis, que se mobilizam a partir de acontecimentos casuais.

    Estas duas tendncias contrrias, de que ofereci alguns exemplos, testemunham uma polarizao da esfera pblica em setores oficiais ressecados, dirigidos do alto, e em subculturas locais, difceis de definir em termos scio-estruturais, em parte ligadas ve- lha classe mdia, em parte alinhadas de um modo "ps-materialista", mas em todo caso resistentes, que se tornaram o ncleo de esferas contrapblicas autnomas velhos e jovens, feministas e homossexuais, deficientes e desempregados ativos, profissionais ra- dicais, donas-de-casa suburbanas etc.

    Nos trabalhos posteriores a Mudana Estrutural emerge o que se poderia chamar de um contratema o da "crise de legitimao" da ordem existente, com um declnio, no da esfera pblica, mas do "programa alternativo" para a mesma ou ento doprivatis- mo civil e da "ideologia da competncia". Estas consideraes mais otimistas esto em Tcnica e Cincia como Ideologia e em A Crise de Legitimao no Capitalismo Tardio. Como o senhor encara este diagnstico atualmente, numa poca de forte recesso e da correspondente onda neoconservadora?

    Digamos que a esta altura eu j reagia s experincias dos movimentos de protes-to estudantis.

    No ensaio que empresta o nome a Tcnica e Cincia como Ideologia, o senhor

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  • defende a tese de que a ideologia dominante no Ocidente retira seu lxico a partir de "tecnologia e cincia" a ordem scio-poltica legitimada fundamentalmente em no- me da eficincia e da necessidade tecnocrticas. No se poderia argumentar que, ao con- trrio, o cdigo de legitimao fundamental do capitalismo ocidental "democracia"? A anlise dos discursos de Reagan, Thatcher, Kohl ou Mitterrand no mostraria que, em- bora o discurso de "eficincia e prosperidade" seja muito importante, ele estrutural- mente subordinado quele de "liberdade e democracia"? De que outra maneira se justi- ficariam a instalao de msseis, a reduo de programas sociais, a represso aos sindicatos? De qualquer forma, poder-se-ia defender a tese de que Reagan ganhou sua ltima eleio como animador de um sentimento de "eficincia e progresso". Por outro lado, certamente verdade que uma prtica tecnocrtica contnua sob o signo de estmulos e slogans neoconservadores no se justifica mais com ideologias tecnocrticas. Como programa ideolgico, tcnica e cincia perderam grande parte de sua eficincia pblica. Minha anlise de 1968 no pode ser simplesmente transferida para hoje em dia; j em 1973, em Crise de Legitimao, comecei a complement-la. Na Theorie des Kommunika- tiven Handelns, exploro a "crise do welfare state" que se desenvolveu neste nterim. O projeto do welfare state se tornou problemtico na conscincia pblica tambm na me- dida em que os meios burocrticos, mediante os quais o Estado intervencionista preten- dia realizar a "domesticao social do capitalismo", perderam sua ingenuidade. J no somente a monetarizao da fora de trabalho, mas tambm a burocratizao do mun- do da vida que sentida como um perigo por amplos setores da populao. O poder poltico-administrativo perdeu a aparncia de neutralidade para a experincia cotidiana dos clientes das burocracias do welfare state. Estas novas atitudes so exploradas pelos neoconservadores, com o fim de vender a bem conhecida poltica do deslocamento dos problemas do Estado para o mercado, sob o manto das palavras de ordem "liberdade e democracia" uma poltica que, sabe Deus, nada tem a ver com democratizao, que, ao contrrio, promove uma crescente desvinculao da atividade do Estado da presso legitimadora da esfera pblica, e que entende por liberdade no a autonomia do mundo da vida, mas a liberdade de ao dos investidores privados.

    Como o senhor compararia os "novos movimentos sociais" dos anos 80 com o movimento estudantil dos anos 60, em termos de direo e durabilidade e dos resulta- dos de seu protesto contra a ordem estabelecida?

    Mais uma vez, s posso procurar responder a esta questo em relao Alema- nha. O nosso movimento estudantil, sob as condies do boom econmico, com um falso entendimento da situao em grande parte proveniente do marxismo ortodoxo, e em reas de influncia restritas universidade, j expressou uma mudana de viso par- cialmente realizada sob a forma de uma revoluo cultural, e que continua a se manifes- tar nos novos movimentos sociais, desde os anos 70. Sob as condies de recesso per- sistente e desemprego crescente, estes movimentos so de natureza mais defensiva, me- nos articulados do que eram os dos estudantes; talvez sejam mais realistas em sua inter- pretao das situaes; sobretudo so recrutados a partir de reas sociais mais abrangen- tes. Por exemplo, as diferenas entre trabalhadores mais jovens, aprendizes, estudantes e desempregados foram eliminadas no quadro de uma cultura jovem cuja unidade no apenas uma questo de imagens e aparncias. A base social mais ampla ainda no basta, contudo, para um poder de veto bem fundamentado em estruturas sociais. No momento esta aliana "antiprodutivista" est demonstrando ter um certo poder de contgio scio- psicolgico, embora no ocupe qualquer rea funcional vital da sociedade industrial. Con- tudo, polticas neoconservadoras so a melhor maneira de assegurar um fluxo continua- do a esta aliana. Mesmo que na manifestao destes potenciais de resistncia haja subi- das e descidas imprevisveis, considero falso o prognstico segundo o qual a raiva das pessoas logo ir se esvaecer. A raiva produzida estruturalmente.

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  • UM PERFIL FILOSFICO-POLTICO

    O senhor ainda mantm a opinio de que foi um erro dos verdes constituir um partido poltico na Alemanha e participar da disputa eleitoral? Como o senhor avaliaria suas perspectivas de sucesso hoje?

    Talvez o meu alerta, na poca, tenha sido desanimador, mas no injustificado. A luta previsvel entre as alas fundamentalista e reformista ainda pode destruir o partido dos verdes. A experincia tem uma perspectiva de sucesso somente enquanto esta ten- so dialtica no for resolvida para um dos lados. Sobretudo internamente, nas relaes entre si, os verdes precisam evoluir em sua capacidade de realizar compromissos. Este precisamente o problema que precisaria ser resolvido: como pode ser assegurada a relativa capacidade de ao e at mesmo a simples existncia de um partido poltico obri- gado a resolver internamente a contradio entre movimento social e sistema poltico? Permitam-me uma pequena digresso para esclarecer esta contradio.

    Recentemente a Alemanha foi atingida pelo escndalo financeiro da empresa Flick. O escndalo no consiste na corrupo de parlamentares, lideranas partidrias e minis- tros que embolsaram contribuies ilegais para seu partido em troca de favorecimento dos interesses do grande capital. A influncia privilegiada dos proprietrios do capital sobre o aparelho de Estado assegurada atravs de vnculos e estruturas funcionais, de tal maneira que estes mtodos arriscados e antiquados de corromper indivduos no so necessrios. O mtodo Flick ultrapassado e atpico. Este procedimento revela outra coisa, alis bastante trivial: os partidos polticos no tm mais condio de serem financiados a partir das contribuies dos seus membros e no entanto podem suprir apenas a meta- de de suas necessidades a partir de impostos, pois caso contrrio seriam obrigados a ad- mitir publicamente o quanto j se distanciaram de sua base e se tornaram autnomos como rgos do Estado. Assim o verdadeiro escndalo, se que ainda tomado como tal, nos termos do nosso prprio entendimento normativo, consiste no seguinte: os par- tidos se engajam no processo de legitimao com a conscincia tranqila e quase unica- mente a partir de cima isto , a partir da perspectiva de serem parte integral do apare- lho de Estado. Em qualquer situao eles agem to pouco a partir da perspectiva de um simples mediador no processo de formao da opinio pblica que se sobrepem es- fera poltico-pblica com suas intervenes, em vez de reproduzirem-se a partir dela.

    Declaradamente os verdes no pretendem ser nem tornar-se um partido deste ti- po. Por outro lado, no podem tambm submergir nas ondas das vrias esferas subcultu- rais e contrapolticas locais. Enquanto partido, eles precisam levar em frente o particula- rismo autoconfiante de dissidentes no preocupados com normas da igualdade civil da- das atravs do filtro da generalizao, do respeito igualitrio a interesses. Talvez esta ex- perincia devesse ter sido iniciada somente aps um desenvolvimento mais vigoroso da capacidade de auto-organizao em diferentes esferas pblicas autnomas. Talvez mes- mo assim a experincia seja bem-sucedida ela j exerce efeitos salutares, por exemplo, sobre a vida interna do Partido Social Democrata, sem o qual, realisticamente, nada po- de ser mudado.

    Qual a sua opinio sobre a questo nacional alem e as relaes entre as duas Alemanhas? O problema da "reunificao", ou da "confederao", pode ser tematizado pela esquerda hoje?

    Willy Brandt acaba de proferir um discurso marcante sobre este assunto em Mu- nique. O tom central era: o problema alemo j no est em aberto. A meu ver falar de um novo nacionalismo alemo no faz sentido corresponde muito mais a invenes do New York Times do que a sentimentos da Alemanha. A nostalgia de alguns intelec- tuais por uma identidade alem perdida to kitsch quanto mentirosa a retrica da reunificao dos oradores domingueiros do CSU (Partido Social Cristo). H bastante tem- po, Kurt Schumacher, ao retornar do campo de concentrao, foi obcecado pela idia de ter cometido um erro no fim da Repblica de Weimar por isto, enquanto oposio

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  • a Adenauer, ele queria incorporar, preventivamente, sentimentos de direita que de fato j no mais existiam. A esquerda alem no deveria repetir hoje o equvoco de Schumacher.

    Em Mudana Estrutural, o senhor assinala o insucesso de Kant em desenvolver uma teoria de como se poderia obter um poder poltico capaz de institucionalizar a uni- dade moral de uma sociedade civil livre em outras palavras, Kant ignora (como est citado em seu livro) a "dura luta contra o antigo poder" do absolutismo, que era o preo da vitria de um estado de direito soberano. Mutatis mutandis, algo de semelhante pode- ria ser dito, ao menos parcialmente, a respeito de sua prpria teoria de uma "comunica- o livre da dominao"? Como transformar o prprio poder proveniente da revoluo burguesa, que foi deixado de lado por Kant mediante que tipo de lutas materiais?

    "Liberdade em relao dominao" constitui um pressuposto para aqueles que se engajam em uma argumentao. Seria uma falcia dizer que uma sociedade emancipa- da poderia consistir em nada mais do que em uma "comunicao livre da dominao". As pessoas que me imputam isto esto facilitando demais as coisas para elas mesmas. A liberao de um potencial racional contido na ao comunicativa um processo histri- co mundial, iniciado com a "verbalizao do sagrado"; na modernidade ele conduz a uma racionalizao dos mundos da vida, diferenciao de suas estruturas simblicas, expressa principalmente na crescente reflexividade das tradies culturais, em proces- sos de individuao, na generalizao de valores, na imposio de normas mais abstratas e mais gerais etc. Estas so tendncias que, em si mesmas, no significam algo de bom, mas que afinal indicam que se est desfazendo o consenso de base prejudicial assumido para o mundo da vida, que se amplia o nmero de casos em que a interao precisa ser coordenada atravs de um consenso alcanado pelos prprios participantes. Caso con- trrio eles precisam ser adaptados a meios como dinheiro ou poder, ou dirigidos atravs de um pseudoconsenso. Este, por sua vez, pode ser obtido cada vez menos a partir de ideologias, sendo muito mais assegurado pela fragmentao da conscincia e por barrei- ras de comunicao que distorcem a prtica cotidiana de um modo inconspcuo.

    Estou recordando estas consideraes sociolgicas, desenvolvidas no segundo vo- lume de Theorie des Kommunikativen Handelns, para deixar claro que no sou um fil- sofo transcendental. Eu no falaria em "racionalizao comunicativa" se, nos ltimos du- zentos anos de histria da Europa e da Amri