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A crise geral que se abate sobre o mundo moderno e queatinge quase todas as áreas da vida humana manifesta-sediferentemente nos vários países, alargando-se a diversosdomínios e revestindo-se de diferentes formas. Na Améri-ca, um dos aspectos mais característicos e reveladores é acrise periódica da educação a qual, pelo menos na últimadécada, se converteu num problema político de primeiragrandeza de que os jornais falam quase diariamente. Naverdade, não é necessária grande imaginação _para.se ava-liarem os perigos decorrentes de uma baixa constante dospadrões elementares ao longo de todo o sistema escolar. Osvãos e inumeráveis esforços das autoridades resp0nsáveispelo controlo da situação mostram bem toda a gravidadedo problema. No entanto, quando se compara esta crise na

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1 «The crisis in Education» foi pela primeira vez publicado na Partisall Review,25, 4 (1957), pp. 493-513. Publicado em versão alemã em Fragwurdige Tradi-tiollsbestallde im Politisclzell Dellken der Gegellwart. Frankfurt: Europaische Ver-lagsanstalt. 1957, o texto veio a ser de novo reimpresso em Betweell Past alld FIl-ture: Six Exercises ill Political TlzougTlt,New York: Viking Press, 1961, pp. 173--196, de onde o traduzimos. (N. T.)

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educação com as experiências políticas de outros países noséculo XX, a onda revolucionária posterior à PrimeiraGuerra Mundial, os campos de concentração e extermínio,ou mesmo o profundo mal-estar que, sob a aparência deprosperidade, se espalhou por toda a Europa depois do fimda Segunda Guerra.Mundial, toma-se.-difíciLd~d~caràJ;ri- _se na educação toda a atenção que ela merece. Com efeito,é tentador considerá-Ia como um mero fenómeno local,desligada dos problemas mais importantes do século, fe-nómeno cuja responsabilidade seria necessário atribuir adetenninado~ aspectos particulares da vida dos EstadosUnidos,sem equivalêncianoutrospontosdo mundo.. -

Mas, se isso fosse verdade, a crise no nosso sistema es-colar não se teria transformado numa questão política e asautoridades responsáveis pela educação não teriam sido,como foram, incapazes de tratar o problema a tempo. Semdúvida que, para além da espinhosa questão de saber por-que razão o Joãozinho não sabe ler, a crise na ~ducação en-volve muitos outros aspectos. Somos sempre tentados aadmitir que estamos perante problemas específicos, perfei-tamente delimitados pela história e pelas fronteiras nacio~_nais, que só dizem respeito a quem por eles é directamen-te atingido. Ora, é precisamente essa crença que hoje emdia se revela falsa. Pelo contrário, podemos tomar comoregra geral da nossa época que tudo o que pode acontecernum país pode também, num futuro previsível, acontecerem qualquer outro país.

Para além destas razões de ordem geral que levam o ho-mem comum a interessar-se por problemas que se colocamem domínios acerca dos quais, de uma perspectiva espe-cializada, ele nada sabe (e este é sem dúvida o meu casoquando falo da crise na educação, uma vez que não soueducadora profissional), há ainda uma outra razão, porven-

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tura mais convincente, que leva o homem comuin apreocupar-se com uma situação crítica em que não se en-contra imediatamenteenvolvido. Referimo-nos à oportuni-dade, fomecida pela própria crise - a qual tem sempre co-mo efeito fazer cair máscaras e destruir pressupostos - deç~pLor.(lfeinvestigar tu_doaquilo que ficou a desc@bertonaessência do problema, essência que, na educação, é a nata-lidade, o facto de os seres humanos nascerem no mundo. Odesaparecimento dos pressupostos significa simplesmenteque se perderam as respostas que vulgarmente se aceitamsem sequer nos apercebermos de que, na sua origem, essasrespostas eram respostas a questões. Ora, a crise força-nosa regressar às próprias questões e exige de nós respostas,novas ou antigas, mas, em qualquer caso, respostas sob aforma de juízos directos. Uma crise só se torna desastrosaquando lhe pretendemos responder com ideias feitas, querdizer, com preconceitos.Atitude que não apenas agudiza acrise como faz perder a experiência da realidade e a opor-tunidade de reflexão que a crise proporciona.

Numa crise, por mais claro que um problema de ordemgeral se possa apresentar, é sempre impossível isolar com-pletamenteo elemento universaldas circunstâncias concre-tas em que ess~ problema aparece. Ainda que a crise naeducação possa afectar o mundo inteiro, é significativo queseja na Américaque ela assumea forma mais extrema.Ara-zão para tal decorre talvez do facto de, apenas na América,uma crise na educação se poder tomar verdadeiramente umfactor político. Na verdade, a educação desempenha naAmérica um papel diferente, de natureza política, incompa-ravelmente mais importante do que nos outros países.A ex-plicação técnica consiste obviamente no facto de a Améri-ca ter sido sempre uma terra de imigrantes..Nestas circuns-tâncias, é óbvio que só a escolarização, a educaçãoe a ame-

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ricanização dos filhos dos imigrantes pode realizar essa ta-refa imensamente difícil de fundir os mais variados gruposétnicos - fusão nunca completamente bem sucedida masque, para lá de todas as expectativas, está continuamente aser realizada. Na medida em que, para a maioria dessas

'-' ..eriançasrQinglês não é a..sualíngua-mãe mas a..línguaquetêm que aprender na escola, as escolas são necessariamen-te levadas a assumir funções que, em qualquer estado--nação, seriam naturalmente desempenhadasem casa.

Mais decisivo, no que respeita à nossa análise, eno en-tanto o papel que a contínua irrigração desempenha naconsciência e estrutura política do país. A América não ésimplesmente um país colonial que necessita de imigrantespara povoar o seu território mas cuja estrutura política semanteria independente deles. Na América, o factor deter-minante foi sempre a divisa impressa em cada nota de dó-lar: Novus Ordo Seculoru11l,Uma Nova Ordem do Mundo.Os imigrantes, os recém-chegados, constituem para o paísa galantia de que ele representa de facto a nova ordem. Osentido desta nova ordem, desta criação de um novo mun-do em oposição ao antigo, era, e continua a ser, abolir a po-breza e a opressão. Mas, simultaneamente, a magnificênciadesta nova ordem consiste no facto de, desde o princípio,ela se não ter desligado do mundo exterior para o confron-tar com um modelo perfeito - como sempre acontece nacriação de utopias - em se não ter arrogado pretensõesimperialistas, nem ter sido pregada como se de um evan-gelho se tratasse. Ao contrário, a relação que esta repúbli-ca, que tinha como projecto abolir a pobreza e a opressão,estabeleceu com o mundo exterior caracterizou-se, desde oinício, pelo bom acolhimento dado a todos os pobres e opri-midos da Terra. Nas palavras de John Adams em 1765, an-tes portanto da Declaraçãode Independência:«Vejo sempre

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a Constituição da América como o começo de um grandeplano ou projecto da Providência com vista à iluminação eemancipação de todos os povos oprimidos da Terra.» Foiem concordânciacom esta intenção ou lei fundamentalquea América iniciou a sua existência histórica e política.

- - O.extraordinárioentusiasmo.por tudo.aquilo que é.nove,:visível em quase todosos aspectos da vida quotidiana ame-ricana, bem assim como a corresponde~te confiança numa«perfectibilidade indefinida» - aquilo que Tocquevilleconsiderou ser o credo do «fiornem vulgar não instruído» eque, enquanto tal, precede em quase uma centena de anosum desenvolvimento semelhante nos outros países ociden-tais - poderiam explicar a maior atenção que sempre foiprestada e o maior significado que, na América, sempre foiatribuído aos recém-chegados pelo nascimento, isto é, àscrianças. Crianças às quais, desde o momento em queabandonavam a infância e estavam prestes a entrar na co-munidade dos adultos enquanto jovens, os Gregos chama-vam muito simplesmente oi lleoi - osnovos.Háaindaumfacto adicional que se revelou decisivo para o significadoda educação: o facto de este palhos da novidade, se bemque consideravelmente anterior ao século XVIII, só se terdesenvolvido conceptual e politicamente no nosso século.Foi a partir desta fonte que se constituiu um ideal de edu-cação, mesclado de rousseauismo - e, de facto, influen-

ciado directamente por Rousseau --,-de acordo com o quala educação se transformou num instrumento da política e aprópria actividade política foi concebida como uma formade educação.

O papel desempenhado pela educação em todas as uto-pias políticas, desde a Antiguidade até aos nossos dias,mostra bem como pode parecer natural querer começar ummundo novo com aqueles que são novos por nascimento e

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por natureza. No que diz respeito à política há aqui, obvia-mente, uma grave incompreensão: em vez de um indivíduose juntar aos seus semelhantes assumindo o esforço de ospersuadir e correndo o risco de falhar, opta por uma inter-venção ditatorial, baseada na superioridade do adulto, pro-curando produzir o novo.como umfait accoJUpli2,Q~( 9i-zer, como se o novo já existisse. É por esta razão que, naEuropa, a crença de que é necessário começar pelas crian-ças se se pretendem produzir novas condições tem sidomonopólio principalmente dos movimentos revolucioná-rios com tendências tirânicas, movimentos esses qu~,quando chegam ao poder, retiram os filhos aos pais e, mui-to simplesmente, tratam de os endoutrinar. Ora, a educaçãonão pode desempenhar nenhum papel na política porque napolítica se lida sempre com pessoas já educadas. Aquelesque se propõem educar adultos, o que realmente preten-dem é agir como seus guardiões e afastá-Ios da actividadepolítica. Como não é possível educar adultos, a palavra«educação» tem uma ressonância perversa em política -há uma pretensão de educação quando, afinal, o propósitoreal é a coerção sem uso da força. Quem quiser seriamen-te criar uma nova ordem política através da educação, querdizer, sem usar nem a força e o constrangimento nem a per-suasão, tem que aderir à terrível conclusão platónica: banirtodos os velhos do novo estado a fundar. Mesmo no casoem que se pretendem educar as crianças para virem a sercidadãos de um amanhã utópico, o que efectivamente sepassa é que se lhes está a negar o seu papel futuro no cor-po político pois que, do ponto de vista dos novos, por maisnovidades que o mundo adulto lhes possa propor, elas se-rão sempre mais velhas que eles próprios. Faz parte da na-

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tureza da condição humana que cada nova geração cresçano interior de um mundo velho, de tal forma que, prepararuma nova geração para um mundo novo, só pode signifi-car que se deseja recusar àqueles que chegam de novo asua própria possibilidade de inovar.. Nada disto acontece na América e é justamente por TsSt)".que, aqui, é tão difícil julgar correctamente estas questões.O papel político que a educação efectivamente representanuma terra de imigrantes, o facto de que a escola não ser-ve apenas para americanizar as crianças mas tem tambémefeitos sobre os seus pais, o facto aiJ1i1~de que, aqui, seajudam efectivamente as pessoas a' abandonar um mundovelho e a entrar num novo, tudo isto dá força à ilusão deque o novo mundo está a ser efectivamente construídoatravés da educação das crianças. É claro que não é esta averdadeira situação. O mundo em que as crianças estão aser introduzidas, mesmo na América, é um mundo velho,quer dizer, um munjo pré-existente, construído pelos vi-vos e pelos mortos, um mundo que só é novo para aquelesque nele entraram recentemente pela imigração. Mas a ilu-são é aqui mais forte do que a realidade porque emerge di-rectamente de uma experiência americana básica: a de queé possível fundar uma nova ordem e, mais ainda, a de queé possível fundá-Iacom a consciência profunda de um con-linuum histórico. Na verdade, a expressão «Novo Mundo»só ganha sentido face a um Mundo Antigo, mundo que, sebem que admirável por outras razões, foi rejeitado por nãoter podido encontrar solução para os problemas da pobre-za e da opressão.

Ora, no que diz respeito à educação ela mesma, só nonosso século é que a ilusão emergente do palhos do novoproduziu as suas mais sérias consequências. Em primeirolugar, permitiu que essa mistura de modernas teorias edu-

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cativas provenientes da Europa Central, e que consiste nu-ma espantosa salganhada de coisas com sentido e sem sen-tido, revolucionasse todo o sistema de educação sob a ban-deira do progresso. Aquilo que na Europa não passou deuma experiência, testada aqui e além, em algumas escolase iastituições-ooucativas isoladas,.estendendo depois~">gra-dualmente, a sua influência a alguns sectores, produziu naAmérica, de há cerca de vinte e cinco anos a esta parte e,por assim dizer, de um ~ia para o outro, uma transforma-ção completa no que diz respeito às tradições e aos méto-

. dos estabelecidos de ensino e de aprendizagem.Não entrarei em detalhes e deixarei de lado as escolas

privadas, muito especialmeme o sistema de escolas paro-quiais católicas romanas. O facto mais significativo é que,em virtude de certas teorias, boas ou más, todas as regras dasaudável razão humana foram postas de parte. Um procedi-mento como este tem sempre uma significação grande eperniciosa, em especial num país cuja vida política repousatão fortemente no senso comum3.Quando, nas questões po-líticas, a sã razão humana falha ou desiste da tentativa deencontrar respostas,estamos frente a uma crise. Este tipo derazão é afinal o senso comum em virtude do qual nós, e os110S50Scinco sentidos individuais, nos adaptamos a ummundo único e comum a todos e aí nos movemos. O desa-parecimento do s~nsocomum que hoje se verifica é pois osinal mais seguro da actual crise. Em todas as crises é des-truída uma parcela do mundo, algo portanto que nos é co-mum a todos. Qual varinha mágica, o fracasso do senso co-mum aponta para o lugar onde se produz essa destruição.

De qualquer forma, a resposta à questão de saber porquerazão o Joãozinho não sabe ler ou à questão mais geral de

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3 Cotnmol/ SeI/se no original. (N.T.)

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saber porque é que os níveis escolares da escola america- .

na média permanecem tanto aquém dos níveis médios ac-tuais de todos os países da Europa não consiste, infeliz-mente, em dizer que este país é jovem e, por isso, não al-cançou ainda os padrões do Velho Mundo. Pelo contrário,neste domínio, este país é o mais «avançado» e o-maismo-derno do mundo. O que é verdade em dois sentidos: em I:e-nhum outro país se puseram com tanta acuidade os proble-mas de educação de uma sociedade de massas, e em ne-nhum outro foram aceites de forma tão servil e acrítica asmais modernas teorias ptJagógicas. Assim, a crise na edu-cação americana anuncia, por um lado, o fracasso da edu-cação progressista e, por outro, constitui um problema ex-tremamente difícil porque surge no seio de uma sociedadede massas e em resposta às suas exigências.

Neste sentido,devemos ter presente um outro factor maisgeral que, se não constituiu a causa da crise, a agravou emelevado grau: refiro-me ao papel que o conceito de igualda-de desempenhae sempre desempenhou na vida americana.Trata-sede uma noção na qual está envolvidamuito mais doque a igualdadeperantea lei; mais também do que o nivela-mento das distinções de classe; mais mesmo-do..que".aquiloque a expressão«igualdadede oportunidades»designa,em-bora esta tenha aqui grande significado uma vez que, naperspectivaamericana,o direito à educação é um direitoci-vil inalienáveI.Este últimoponto foi aliásdecisivo-paraa es-truturaçãodo sistema escolar público no qual, só excepcio-nalmente,existem escolas secundáriasde tipo europeu.Por-que a escolaridade obrigatória se estende até aos dezasseisanos, todas as crianças devem frequentar a escola secUI:3á-ria a qual, portanto,surgecomo uma espécie de continuaçãoda escola primária. Ora, a falta de um ensino verdadeira-mentesecundáriotem uma sériede efeitos em cadeia:a pre-

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paração para a universidade tem que ser dada pelas própriasuniversidades, o que faz com que os curricula destas so-fram, por essa razão, de uma sobrecargacrónica, o que, porsua vez, afecta a qualidade do trabalhoque aí se faz.

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À primeira vista, pode parecer que esta anomalia reside Ina natureza mesma de uma sociedade de massas na qual a ~,

educação deixou de ser privilégio das classes favorecidas.Mas, se olharmos para Inglaterra, onde, como se sa~e, aeducação secundária foi também recentemente estendida atodas as classes sociais, percebemos que-riãopode ser essaa explicação. Em Inglaterra, foi instituído um exame difí-cil no fim dã escola primária, ou seja, para alunos de onze :<

anos, exame esse que permite seleccionar cerca de dez por;~cento de alunos considerados capazes de prosseguir estu-dos secundários. Ainda que, mesmo em Inglaterra, o rigor ,.'

desta se1ecçãotenha sido aceite com protestos, na Améri- tca, isso seria completamente impossível. Em Inglaterra, ol.que se pretende é instaurar uma «meritocracia», mais uma ',~

vez claramente correspondente a uma oligarquia, não ago-ra de riqueza ou nascimento, mas de talento. Ainda que em "

Inglaterrase não estejadisso plenamenteconsciente,isso <~

significa que o país, mesmo sob um regime socialista, con-tinuará a ser governado como desde sempre tem sido, ouseja, não como uma monarquia ou como uma democracia, "

mas como uma oligarquia ou aristocracia - esta últimaentendida como sendo melhores os mais.dotados, o que es-tá longe de constituir uma certeza. Na América, uma divi-são quase física deste tipo, entre crianças dotadas e não do-tadas, seria intolerável. A meritocracia não contradiz me-nos o princípio da igualdade, de uma democracia igualitá-ria, do que qualquer outra oligarquia.,

Deste modo, o que faz com que a crise da educação sejatão especialmente aguda entre nós é o temperamento polí-

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tico do país, o qual luta, por si próprio, por igualar ou apa-gar tanto quanto possível a diferença entre novos e velhos,entre dotados e não dotados, enfim, entre crianças e adul-tos, em particular, entre alunos e professores. É óbvio queeste nivelamento só pode ser efectivamente alcançado àcusta da autoridade do professor e em detrimento dos estu-dantes mais dotados. No entanto, é igualmente óbvio paraquem alguma vez esteve em contacto com o sistema edu-cativo americano que esta dificuldade, enraizada na atitu-de política do país, tem também grandes vantagens, nãoapenas do ponto de vista hu~ano, mas no plano da educa-ção. De qualquer forma, estes factores gerais não podemexplicar a crise em que nos encontramos no presente nemjustificar as medidas que a precipitaram.

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Estas medidas catastróficas podem ser esquematicamen-te explicadas por intermédio de três ideias-base, porventu-ra demasiado familiares. A primeira é a de que existe ummundo da criança e uma sociedade formada.pelas cr.ianças;que estas são seres autónomos e que, na medida do possí-vel, se devem deixar governar por si próprias. O papel dosadultos deve então consistir em limitar-se a assistir a esseprocesso. É o grupo das crianças ele mesmo que detém aautoridade que vai permitir dizer a cada criança o que eladeve e não deve fazer.Entre outras consequências, isto criauma situação na qual o adulto, não só se encontra desam-parado face à criança tomada individualmente, como ficaprivado de todo o contacto com ela. Quanto muito, podedizer-lheque faça o que lhe apetecer e, depois, impedir queaconteça o pior. As relações reais e normais entre crianças

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e adultos - relaçõesque decorremdo factode, no mundo,viverem em conjunto e simultaneamente pessoas de todasas idades- estão portanto hoje quebradas.

Faz também parte da essência desta primeira ideia-basetomar em consideração unicamente o grupo e não a crian-ça enquanto,indivíduo. No interior do grupo, a criança es- _tá, bem entendido, numa situaçãopior do que a anterior.Naverdade, a autoridade de um grupo, ainda que seja a de umgrupo de crianças, é sempre consideravelmentemais forte emuito mais tirânica que a de um único indivíduo, por mais.severo que este possa ser. Se nos colocarmos no ponto devista da criança tomada individualmente, apercebemo-nosde como são praticamente nulas as hipóteses que ela tem dese revoltar, ou de fazer qualquer coisa por sua própria ini-ciativa. A criançajá não se encontra na situação de uma lu-ta desigual com alguém que, sem dúvida, tinha sobre elauma superioridade absoluta - situação na qual, no entan-to, ela podia contar com a solidariedadedas outras crianças,quer dizer, dos seus pares - mas antes na situação, por de-finição sem esperança, de alguémque pertence à minoria deum só face à absoluta maioria de todos os outros. São bempoucos os adultos que conseguem suportar uma tal situa-ção, mesmo quando ela não é reforçada por constrangi-mentos exteriores. Quanto às crianças, elas são simples edefinitivamente incapazes.

Emancipadal"ace à autoridade dos adultos, a criança nãofoi portanto libertada mas antes submetida a uma autorida-de muito mais feroz e verdadeiramente tirânica: a tiraniada maioria. Em qualquer caso, o que daí resulta é que ascrianças são, por assim dizer, banidas do mundo dos adul-tos. Elas ficam, ou entregues a si mesmas, ou à tirania doseu grupo, grupo contra o qual, tendo em vista a sua supe-rioridade numérica, se não podem revoltar; grupo com o

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qual, porque são crianças, não podem discutir; enfim, gru~po do qual não podem escapar-se para qualquer outro mun-do porque o mundo dos adultos lhes está vedado. A reac-ção das crianças a esta pressão tende a ser ou o conformis-mo ou a delinquênciajuvenil e, na maior parte das vezes,uma mistura-dasduas coisas.

A segunda ideia-base a tomar em consideração na pre-sente crise tem a ver com o ensino. Sob influência da psi-cologia woderna e das doutrinas pragmáticas, a pedagogiatornou'::sê'uma ciêncià do ensino em geral ao ponto de sedesligar completamente da matéria a ensinar. O professlJi- assim nos é explicado - é aquele que é capaz de ensi-nar qualquer coisa. A formação que recebe é em ensino enão no domínio de um assunto particular. Como veremosadiante, esta atitude está, naturalmente, ligada a uma con-cepção elementar do que é aprender. Para além disso, estaatitude tem como consequência o facto de, no decurso dosúltimos decénios, a formação dos professores na sua pró-pria disciplina ter sido grandemente negligenciada, sobre-tudo nas escolas secundárias. Porque o professor não temnecessidade de conhecer a sua própria disciplina, acontecefrequentemente que ele sabe pouco mais_do .que os seusalunos. O que daqui decorre é que, não somente os alunossão abandonados aos seus próprios meios, como ao pro-fessor é retirada a fonte mais legítima da sua autoridadeenquanto professor. Pense-se o que se pensar, o professoré ainda aquele que sabe mais e que é mais competente. Emconsequência, o professor não autoritário, aquele que, con-tando com a autoridade que a sua competência lhe poderiaconferir, quereria abster-se de todo o autoritarismo, deixade poder existir.

Foi uma moderna teoria da aprendizagem que permitiu àpedagogia e às escolas normais desempenhar este perni-

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cioso papel na actnal crise da educação. Essa teoria é, mui-to simplesmente, a aplicação lógica da nossa terceira ideia--base, ideia que foi durante séculos sustentada no mundomoderno e que encontrou a sua expressão conceptual sis-temática no pragmatismo. Essa ideia-base é a de que se não

.pode saber e compreénder senão aquilo--quese faz por si ..'próprio. A aplicàç~o à educação desta ideia é tão primitivaquanto evidente: substituir, tanto quanto possível, o.apren-der pelo fazer. Considera-se pouco importante que o pro-fessor domine a sua disciplina porque se pretende compe-lir o professor ao exer~ki~ C~uma acti':idad~ de constan-te aprendizagem para que, como se diz, não transmita um«saber morto» mas, ao contrário, demonstre constante-mente como se adquire esse saber. A intenção confessadanão é a de ensinar um saber mas a de inculcar um saber--fazer. O resultado é uma espécie de transformação dasinstituições de ensino geral em institutos profissionais.Tais instirutos tiveram grande sucesso quando se tratava deaprender a conduzir uma viatura, coser à máquina ou -mais importante ainda para «a arte de viver» - comportar--se bem em sociedade ou ser popular, mas revelaram-se in-capazes de levar .as-cr1:mt;::ISa ::Ic1quinr.os conhecimentosrequeridos por um normal programa de estudos.

Esta descrição peca, não tanto pelo seu exagero eviden-te em favor da argumentação em causa, como pela sua in-suficiência em dar conta do modo como, neste processo, setem tentado iludir, tanto quanto possível, a distinção entretrabalho e jogo em benefício deste último. Considera-se ojogo como o mais vivo modo de expressão e a maneiramais apropriada p-ua a criança de se conduzir no mundo, aúnica forma de actividade que brota espontaneamente dasua existência de criança. Só aquilo que se pode aprenderatravés do jogo corresponde à sua vivacidade. Afirma-se

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que a actividade característica da criança consiste em jo- _

gar. Aprender, no velho sentido da palavra, forçando acriança a adoptar uma atitude de passividade, obrigá-Ia-iaa abandonar a sua própria iniciativa que se não manifestasenão no jogo.

- -.. O ensino das línguas ilustra directamente a estreita liga-ção entre estes dois pontos: a substituição do aprender pe-lo fazer e do trabalho pelo jogo. A criança deve aprender.falando, quer dizer, fazendo, e não pelo estud9 ~a gramáti-ca e da sintaxe. Noutros termos, a criança deve aprenderuma língua estraQgeiratal como aprendeu a sua língua ma-terna, como que jogando e na continuidade sem ruptura dasua existência habitual. Deixando de lado a questão de sa-ber se isso é ou não possível - e, em certa medida, é pos-sível desde que se mantenha a criança todo o dia num am-biente onde se não fale senão a língua estrangeira - é per-feitamente claro que este método procura deliberadamentemanter a criança mais velha, tanto quanto possível, numnível infantil.Aquilo que, precisamente, deveria preparar acriança para o mundo dos adultos, o hábito adquirido pou-co a pouco de trabalhar em vez de jogar, é suprimido emfavoLda.autonomia.do mundo.dajnfância.

Qualquer que seja a ligação existente entre o fazer e osaber, ou qualquer que seja a validade da fórmula pragmá-tica, a sua aplicação à educação, isto é, ao modo como acriança aprende, tende a fazer da infância um absoluto,exactamente de modo similar àquele que observámos apropósito da primeira ideia-base. Também aqui, sob pre-texto de respeitar a independência da criança, ela é excluí-da do mundo dos adultos para ser artificialmente mantidano seu, tanto quanto este pode ser designado um mundo.Ora, esta forma de manter a criança afastada é artificialporque, por um lado, quebra as relações naturais entre

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crianças e adultos, as quais, entre outras coisas, consistemem aprender e ensinar, e porque, ao mesmo tempo, vaicontra o facto de a criança ser um ser humano em plenaevolução c a infância ser uma fase transitória, uma prepa-ração para a idade adulta. _.

Na América, a crise.a:ctualresulta do reconhecimento docarácter destrutivo destes três pressupostos e do esforçodesesperado que está a ser feito para reformar todo o siste-ma de educação, isto é, para o transformar completamente.Mas, ao fazer isto, o que se está efectivamente a fazer -com excepção do:;planos relativos a um aumento !!!!.'X!b.-to das facilidades de ensino das ciências físicas e da tecno-logia - nada mais é do que uma restauração: o ensino se-rá outra vez conduzido com autoridade; nas horas de auladeixar-se-á de jogar e far-se-á de novo trabalho sério; dar--se-á maior importância aos conhecimentos prescritos pelocurriculum do que às actividades extracurriculares.Fala-semesmo em transformar o actual curriculum de formaçãode professores, de forma a que os próprios professores te-nham que aprender alguma coisa antes de serem colocadosjunto das crianças.

Não se justifica estarmos aqui a equacionar as.Iefonnaspropostas, aliás ainda em discussão, e que apenas têm in-teresse para a América. Acresce que não tenho capacidadepara discutir as questões mais técnicas - ainda que, a lon-go prazo, essas possam ser as as mais importantes - acer-ca de como reformar os curricula da escola primária e se-cundária em todos os países, de modo a adaptá-Ios às ne-cessidades inteiramente novas do mundo actual. Há, po-rém, uma dupla questão que é para mim importante: queaspectos do mundo actual e da sua crise se revelaram efec-tivamente na crise da educação, isto é, quais são as verda-deiras razões pelas quais, durante décadas, foi possível fa-

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lar e agir em tão flagrante contradição com o senso co-mum? E, em segundo lugar, que podemos aprender comesta crise acerca da essência da educação, não no sentidoem que podemos sempre aprender com os nossos erros oque não se deve fazer, mas no sentido da reflexão sobre o

. papel que a educação-desempenha em todas as civiliza-ções, ou seja, da obrigação que a existência de crianças co-loca a todas as sociedades humanas. Começaremos comesta segunda questão.

III

Uma crise na educação suscitaria sempre graves proble-mas mesmo se não fosse; como no caso presente, o reflexode uma crise muito mais geral e da instabilidade da socie-dade moderna. E isto porque a educação é uma das activi-dades mais elementares e mais necessárias da sociedadehumana a qual não permanece nunca tal como é mas antesse renova sem cessar pelo nascimento, pela chegada de no-vos seres humanos. Acresce que, esses recém-chegadosnão atingiram a sua maturidade, estão ainda em devir. As-sim, a criança, objecto da educação, apresenta-se ao edu-cador sob um duplo aspecto: ela é nova num mundo quelhe é estranho, e ela está em devir. Ela é um novo ser hu-mano e está a caminho de devir um ser humano. Este du-plo aspecto nem é evidente nem se aplica às formas da vi-da animal. Corresponde a um duplo modo de relação - arelação ao mundo, por um lado, e, por outro, a relação à vi-da. A criança partilha o estado de devir com todos os seresvivos. Se se considera a vida e a sua evolução, a criança éum ser humano em devir, tal como o gatinho é um gato emdevir. Mas a criança só é nova em relação a um mundo que

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já existia antes dela, que continuará depois da sua morte eno qual ela deve passar a sua vida. Se a criança não fosseum recém-chegado ao mundo dos homens mas somenteuma criatura viva ainda não desenvolvida, a educação se-ria unicamente uma das funções da vida. Então, ela con-sistiria apenas n"amanutenção da vida e naquelas tarefas deensino e prática de vida que todos os animais assumem emrelação aos seus filhos.

No entanto, pela concepção e pelo nascimento, os paishumanos, nãó: apenas dão vida aos seus filhos como, aomesmo tempo, os introduzem no mundo. Pela educação, ospais assumem por isso uma dupla responsabilidade - pe-la vida e pelo desenvolvimento da criança, mas tambémpelo continuidade do mundo. Estas duas responsabilidadesnão coincidem de modo algum e podem mesmo entrar emconflito. Num certo sentido, a responsabilidade de desen- .~-volvimento da criança vai contra a responsabilidade pelomundo: a criança tem necessidade de ser especialmenteprotegida e cuidada para evitar que o mundo a possa des-truir. Mas, por outro lado, esse mundo tem necessidade deuma protecção que o impeça de ser devastado e destruídopela vaga de recém-chegados que, sobre si, se espalha a ca-da nova geração.

Porque a criança tem necessidade de ser protegida con-tra o mundo, o seu lugar tradicional é no seio da farmlia. Élá que, ao abrigo de quat:"omuros, os adultos regressam ca-da dia do mundo exterior e se unem na segurança da vidaprivada. Esses quatro muros, ao abrigo dos quais se desen-rola a vida familiar, constituem uma protecção contra omundo e, em particular, contra o aspecto público do mun-do. Delimitam um lugar seguro sem o qual nenhuma coisaviva pode prosperar. Isto é válido, não somente para a vi-da da criança, mas também para a vida em geral - por to-

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do o lado em que esta é constantemente exposta ao mundosem a protecção da intimidade e da segurança privadas, asua qualidade vital é destruída. No mundo público, comuma todos, as pessoas contam, e também conta a obra, querdizer, a obra produzida pelas nossas mãos, a obra pela qual

. c~d~ um de nós contribui para o. nosso mundo comum.Mas, aí, a vida enquant04vida não conta. O mundo não sepode inler~ssarpor ela e ela tem que se esconder e prote-ger do mundo.

Tudo o que vive, e não apenas a vida vegetativa, emergeda obscuridade. Por mais forte que seja a sua tendência pa-ra se orientar para a luz, aquilo que é vivo necessita da se-guranç:lda obscuridadepara alcançar a maturidade. Talvezesta seja a razão pela qual os filhos de pais famosos geral-mente se saem mal..Ace1ebridadepenetra nas quatro pare-des, invade o espaço privado, trazendo consigo, em espe-cial nas condições actuais, a luz implacável do domíniopúblico que invade toda a vida privada de tal fonna que ascrianças deixam de ter um lugar seguro em que possamcrescer. 5 exactamente esta mesma destruição do espaçode vida real que ocorre quando se procuram transfonnar aspróprias crianças numa espécie de mundo. Entre esses gru-pos homogêneos de crianças emerge então uma espécie devida pública e, independentemente do facto de essa vidanão ser real e de toda essa tentativa ser uma espécie defraude, pennanece o facto desastroso de as crianças - is-to é, os seres humanos em processo de devir, ainda nãocompletados - serem forçadas, por essa razão, a expor-seà luz de uma existência pública. .

Que 2 educação moderna, na medida em que tenta esta-belecer um mundo próprio das crianças, destrói as condi-

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4 Em latim no original ("Iifc qlla life"). (N.T.)

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'.ções necessárias para o seu desenvolvimento e crescimen-to, é algo que parece óbvio. Porém, é de facto estranho queesse pernicioso procedimento possa ser o resultado da edu-cação moderna, tanto mais que essa educação declarava terpor único objectivo servir a criança e se rebelava contra osmétodosJ:lo pas~J~49.justatp.ente por eles não twn;;u:emnadevida conta a natureza profunda e as necessidades dacriança. O «século da criança», como.lhe podemos chamar,pretendia emancipar a criança e libertá-Ia dos padrões devida retirados do mundo dos adultos. Como foi então-pós-sível que as mais elementares condições da vida, necessá-rias para o crescimento e desenvolvimento da criança, ti-vessem sido ignoradas ou, simplesmente, não tivessem si-do reconhecidas como tal? Como pôde acontecer que acriança fosse exposta àquilo que, mais do que qualquer ou-tra coisa, caracteriza o mundo dos adultos, quer dizer, oseu aspecto público, e isto no preciso momento em que setinha tomado consciência de que o erro de toda a educaçãopassada tinha consistido em considerar a criança como na-da mais que um pequeno adulto?

A razão para este estranho estado de coisas não tem di-rectamente a ver com a educação. Deve antes ser procura-da nosjuízOS-e'10s-,:>rejuízos-sobre-a-nalurezada vida pri-vada e do mundo público, na sua mútua relação caracterís-tica da sociedade moderna desde o início dos tempos mo-dernos e que os educadores aceitaram quando - relativa-mente tarde - decidiram modernizar a educação com ba-se nessas evidências, sem se darem conta das consequên-cias que elas teriam sobre a vida das crianças. É particula-ridade da sociedade moderna, de nenhum modo evidente,considerar a vida, quer dizer, a vida na terra dos indivíduose das famílias, como o maior dos bens. É por essa razãoque, ao contrário de todos os séculos precedentes, a socie-

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dade moderna emancipou a vida, e todas as actividadesque têm a ver com a sua preservação e enriquecimento, dosegredo da intimidade para a expor à luz do mundo públi-co. É este o verdadeiro significado da emancipação dasmulheres e dos trabalhadores, não certamente enquantopessoas, mas na medida em que preenchem uma função noprocesso vital da sociedade.

Ora, os últimos seres a serem tocados por este processode emancipaçãoforam as crianças e aquilo que para as mu-lheres e para os trabalhadores significou uma verdadeira li-bertação - porque, neste caso, não era :1penasde traba-lhadores e de mulheres que se tratava mas também de pes-soas que, desse modo, podiam legitimamente pretenderaceder ao mundo público, isto é, passavam a ter o direitode o ver e de aí serem vistas, de falar e de serem ouvidas- constituiu um abandono e uma traição no caso dascrianças que estão ainda num estádio em que o simplesfacto de viver e crescer tem mais ~mportânciaque o factorda personalidade.Quanto mais completamente a sociedademoderna suprime a diferença encreo que é público e o queé privado, entre o que só se pode desenvolver à sombra e oque reclama ser mostrado a todos na plena luz do mundopúblico, dito de outro modo, quanto mais a sociedade mo-derna introduz, entre o privado e o público, uma esfera so-cial na qua1o privado é tornado público e vice-versa, maisdifíceis se tornam as coisas para as crianças, as quais, pornatureza, necessitam da segurança de um abrigo para po-der amadurecer sem perturbações.

Por mais grave que seja o desrespeito que a educaçãomoderna manifesta pelas condições do crescimento vital, averdade é que tal não é de modo algum intencional. O ob-jectivo central de todos os esforços da educação modernatem sido o bem-estar da criança. Facto que não passa a ser

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menos verdadeiro se, ao contrário do que se esperava, osesforços feitos nem sempre conseguiram promover o bem--estar da criança. A situação é inteiramente diferente quan-do a educação não se dirige às crianças mas aos jovens, aosr~cém-chegados e estrangeiros, àqueles que nasceram nummundo já e~~~tentemas que não conh~cem. Essas tarefassão então, primária ainda que não exclusivamente, da res-ponsabilidade das escolas. São as escolas que têm que vercom o ensino e com a aprendizagem. O fracasso nestecampo é hoje o mais grave problema na América. Procure-mos ver o que é que lhe está subjacente.

Normalmente é na escola que a criança faz a sua primei-ra entradano mundo.Ora,a esc.olanão é, de modoalgum, .,

o mundo, nem deve pretender sê-lo. A escola é antes a ins-tituiçãoque se interpõeentreo domínioprivadodo lar e o ;<

mundo, de forma a tomar possívela transiçãoda família ,~;

para o mundo. Não é a faffil1iamas o Estado, quer dizer, o ,',mundo público, que impõe a escolaridade. Desse modo, re-lativamente à criança, a escola representa de certa forma omundo, ainda que o não seja verdadeiramente. Nessa eta-pa da educação, uma vez mais, os adultos são responsáveispela criança. A sua responsabilidade, porém, não consistetanto enrzelar-para' que a ...TIançacresça em-boas condi"'ções, mas em assegurar aquilo que normalmente se desig-na por livre desenvolvimento das suas qualidades e carac-terísticas. De um ponto de vista geral e essencial, é essa aqualidade única que distingue cada ser humano de todos osoutros, qualidade essa que faz com que ele não seja apenasmais um estrangeiro no mundo, mas alguma coisa quenunca antes tinha existido.

Na medida em que a criança não conhece ainda o mun- ,;do, devemos introduzi-Ia nele gradualmente; na medida ..

em que a criança é nova, devemos zelar para que esse ser

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novo amadureça, inserindo-se no mundo tal como ele é.No entanto, face aos jovens, os educadores fazem semprefigura de representantesde um mundo do qual, embora nãotenha sido construído por eles, devem assumir a responsa-bilidade, mesmo quando, secreta ou abertamente, o dese-jam d~f~rentedo que é.Esta Iesponsabilidade.,não é arbi-trariamente imposta aos educadores. Está implícita no fac-to de os jovens serem introduzidos pelos adultos num mun-do em perpétua mudança. Qúem se recusa a assumir a res-ponsabilidade domundo não deveria ter filhos nem lhe de-veria ser permitido participar na sua educação.

No caso da educação, a responsabilidade pelo mundo to-ma a forma da autoridade. A autoridade do educador e ascompetências do professor não são a mesma coisa. Aindaque não haja autoridade sem uma certa competência, esta,por mais elevada que seja, não poderá jamais, por si só, en-gendrar a autoridade. A competência do professor consisteem conhecer o mundo e em ser capaz de transmitir esse co-nhecimento aos outros. Mas a sua autoridade funda-se noseu papel de responsávelpelo mundo. Face à criança, é umpouco como se ele fosse um representante dos habitantesadultos do mundo que lhe apontaria as coisas dizendo:«Eis aqui o nosso mundo!»

Todossabemos como as coisas hoje estão no que diz res-peito à autoridade. Seja qual for a atitude de cada um denó~relativamente a este problema, é óbvio que a autorida-de já não desempenha nenhum papel na vida pública e pri-vada - a violência e o terror exercidos pelos países totali-tários nada têm a ver com a autoridade - ou, no melhordos casos, desempenha um papel altamente constestado.No essencial, significa isto que se não pede já a ninguém,ou se não confia já a alguém, a responsabilidade do quequer que seja. É que, em todo o lado onde a verdadeira au-

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toridade existia, ela estava unida à responsabilidade pelocurso das coisas no mundo. Nesse sentido, se se retira a au-toridade da vida política e pública, isso pode querer signi-ficar que, daí em diante, passa a ser exigida a cada um umaigual responsabilidade pelo curso do mundo. Mas, isso po-de tamb~m quef.~r.~izerqu~, Gonscienteou inçQusciente-mente, as exigências do mundo e a sua necessidade de or-dem estão a ser repudiadas; que a responsabilidade pelomundo está, toda ela, a ser rejeitada, isto é, tanto a respon-sabilidade de dar ordens como a de lhes obedecer. Não hádúvida de que, na moderna perda de autoridade, estas in-tenções desempenham ambas o seu papel e têm muitas ve-zes trabalhado juntas, de forma simultânea e inextricável.

Ora, na educação esta ambiguidade relativamente à ac-tua! perda de autoridade não pode existir. As crianças nãopodem recusar a autoridade dos educadores, como se esti-vessem oprimidas por uma maioria adulta - ainda que,efectivamente, a prática educacional moderna tenha tenta-do, de forma absurda, lidar com as crianças como se se tra-tasse de uma minoria oprimida que necessita de ser liber-tada. Dizer que os adultos abandonaram a autoridade sópode portanto significar uma coisa: que os adultos se recu-sam a assumir a responsabilidade pelo mundo em que co-locaram as crianças.

Há evidentemente uma estreita conexão entre a perda deautoridade na vida pública e privada e.o seu desapareci-mento nos domínios pré-políticos da família e da escola.Quanto mais, na esfera pública, a desconfiança na autori-dade se toma radical, maior é naturalmente a probabilida-de de que a esfera privada pennaneça imune. A isto se jun-ta um facto adicional - e provavelmente decisivo. O fac-to de que, desde tempos imemoriais, fornoshabituados, pe-la nossa tradição de pensamento político, a ver a autorida-

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de dos pais sobre os filhos e dos professores sobre os alu-nos como o modelo para compreender a autoridade políti-ca. Ora, é precisamente nesse modelo, cujas raízes se es-tendem até Platão e Aristóteles, que reside a origem da ex-traordináriaambiguidade do conceito de autoridade em po-

,.'lítica. Em primeiro lúgat; um tal conceitõ"'tem por-báseuma superioridade absoluta, superioridade essa que nuncapode existir entre adultos e que, do ponto de vista da dig-nidade humana, nunca deveria existir. Em segun€lolugar,esse modelo infantil de autoridade está fundado numa su-perioridade puramente temporCiio que, portanto, o tomaautocontraditório se aplicado a relações que, por natureza,não são temporais, como é o caso das relações entre go-vernantes e governados. Assim, a natureza desta questão- quer dizer, tanto da présente crise de autoridade comodo nosso pensamento político tradicional - implica que aperda de autoridade que se desencadeou na esfera políticanão alastre para a esfera privada. Não é certamente poracaso que o lugar no qual a autoridade política foi pela pri-meira vez posta em causa, isto é, a América, seja o lugaronde a moderna crise da educação se faça sentir mais for-temente.

Na verdade, esta perda geral da autoridade dificilmentepoderia encontrar uma expressão mais radical do que noseu alastramento para a esfera pré-política, instância naqual a autoridade parece ser ditada pela própria natureza,independente de todas as mudanças históricas e condicio-nalismos políticos. Por outro lado, a forma mais clara queo homem moderno tem ao seu dispor para manifestar o seudescontentamento em relação ao mundo e o seu desagradorelativamente às coisas tal como elas são consiste na recu-sa de, relativamente aos seus filhos, assumir a responsabi-lidade pelo mundo. No fundo, é como se os pais dissessem

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diariamente aos seus filhos: «Neste mundo, nem mesmonós estamos seguros em nossa casa. Como devemos mo-ver-nos no mundo, que devemos saber, que competênciasdevemos adquirir, são mistérios também para nós. Vocêsdevem pois procurar desenvencilhar-se o melhor possível

-por vós próprios:''Emcircunstância algumàifos podem pe-dir contas. Somos inocentes e lavamos as mãos quanto aovosso destino.»

Como é óbvio, esta atitude nada tem a ver com o desejorevolucionário de uma nova ordem no mundo - NovusOrdo Spcloru11l- que, em tempos, animou a América. Éantes um sintoma dessa indiferença moderna relativamen-te ao mundo que se pode observar diariamente em toda aparte mas que, de forma especialmente radical e desespe-rada, se manifesta nas actuais condições da nossa socieda-, .~

de de massas. E verdade que não foi apenas na Américaque as modernas experiências educativas atingiram dimen-sões verdadeiramente revolucionárias, o que, até certoponto, veio aumentar a dificuldade de reconhecer a situa-ção com clareza e está na origem de um certo grau de con-fusão na discussão do problema. É que, contrariamente atodos os comportamentos de tipo revolucionário,-.hLum~~,-facto que permanece indiscutível: nunca a América, en-quanto realmente animada por esse espírito, sonhou iniciara nova ordem por intermédio da educação mantendo-se,pelo contrário, conservadora nessa matéria. -

Evitemos os mal-entendidos: penso que o conservadoris-mo, tomado enquanto conservação, faz parte da essênciamesma da actividade educativa cuja tarefa é sempre acari-nhar e proteger alguma coisa - a criança contra o mundo,o mundo contra a criança, o novo contra o antigo, o antigocontra o novo. A própria responsabilidade alargada pelomundo que a educação assume implica, como é óbvio, uma

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atitude conservadora. Mas, isto só é valido para o dOllÚnioda educação, ou melhor, para as relações entre crescidos ecrianças e, de modo algum para o dOITÚniopolítico, ondeagimos sempre entre e com adultos ou iguais. Em política,a atitude conservadora - que aceita o mundo tal COlIlOele-

é-eúiiicaniênte'luta por prese~~-~--;tatus quo5- .sópodelevar à destruição. E isto porque, nas suas grandes linhascomo nos seus detalhes, o mundo está irrevogavelmentecondenadoà acção destrutiva do tempo, a menosque os hu-manos estejam determinados a intervir, a alterar, a criar onovo. As palavras de Hamlet, «o tempo está fora dos gon-zos. Oh! sorte maldita, que nos fez nascer para restabeler oseu curso», são verdadeiras para cada nova geração, aindaque, desde o início do noss~ século, porventura tenham ad-quirido uma ainda validade maior do que anteriormente.

No fundo, estamos sempre a educar para um mundo quejá está, ou está a ficar, fora dos seus gonzos. Esta é a si-tuação básica do homem. O mundo é criado por mãos hu-manas para servir de casa aos humanos durante um tempomuito limitado. Porque o mundo é feito por mortais, ele éperecível. Porque os seus habitantes estão continuamente amudar, o mundo cvue o risco de se tomar tão mortal comoeles. Para preservar o mundo contra a mortalidade dos seuscriadores e habitantes, é necessário constantementerestabelecê-Io de novo. O problema é saber como educarde forma a que essa recolocação continue a ser possível,ainda que, de forma absoluta, nunca possa ser assegurada.A nossa esperança reside sempre na novidade que cada no-va geração traz consigo. Mas, precisamente porque só nis-so podemos basear a nossa esperança, destruímos tudo setentarmos controlar o novo que nós, os velhos, pretende-

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5 Em latim no original. (N.T.)

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mos desse modo decidir como deverá ser. É justamente pa-ra preservar o que é novo e revolucionário em cada crian-ça que a educação deve ser conservadora. Ela deve prote-ger a novidade e introduzi-Ia como uma coisa nova nummundo velho, mundo que, por mais revolucionáriasque se-jam as suas-acções,-doponto-de vista da geração seguinte,é sempre demasiado velho e está sempre demasiado próxi-mo da destruição.

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IV

A verdadeira dificuldade da educação moderna residepois no facto de, para lá de todas as considerações da mo-da sobre um novo conservadorismo, ser hoje extremamen-te difícil garantir esse mínimo de conservação e de atitudede conservação sem a qual a educação não é simplesmen-te possível. E há ~oas razões para isso. A crise de autori-dade na educação está intimamente ligada com a crise datradição, isto é, com a crise da nossa atitude face a tudo oque é passado. Para o educador, este aspecto é especial-mente difícil uma vez que é a ele que compete estabelecera mediação entre o antigo e o novo, razão pela qual a suaprofissão exige de si um extraordinário respeito pelo pas-sado. Ao longo dos séculos, isto é, durante o período da ci-vilização romano-cristã, o educador nunca teve necessida-de de tomar consciência desta sua qualidade especial. A re-verência relativamente ao passado era parte essencial daestrutura romana de pensamento, estrutura essa que o cris-tianismo não aiterou nem suprimiu antes estabeleceu sobrediferentes fundamentos.

Pertencia à essência da atitude romana (ainda que o mes-mo se não possa dizer de todas as civilizações ou sequer da

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civilização ocidental no seu conjunto) considerar o passa-do enquant06passado como um modelo; em qualquer ca-so, tomar os antepassadoscomo exemplos orientadorespa-ra os seus descendentes; acreditar que toda a grandeza re-side no que foi e, portanto,que a velhice é a idade da maiorrealização humana; que ()~elho, na medida em que~é,já.quase um antepassado, pode servir como modelo para osvivos. Ora, tudo isto está em contradição, não apenas como nosso mundo e com os tempos modernos a partir do Re-nascimento, mas também, por exemplo, com a atitudegre-ga relativamente à vida. Quando Goethe diz que envelhe-cer é «afastar-se gradualmente do mundo das aparências»,o seu comentário está imbuído do espírito dos Gregos, pa-ra quem ser e aparecer coincidem. A atitude romana seriaa de que é precisamente ao envelhecer e ao desaparecerlentamente da comunidade dos mortais que o homem al-cança a sua forma de ser mais característica, mesmo se, emrelação ao mundo das aparências, estiver em processo dedesaparecimento. É que, para o espírito romano, só então ohomem se aproxima desse modo de existência em que po-de passar a ser uma autoridade para outros.

Com o imperturbado fundo de uma tal tradição, na quala educação tem uma função política (o que constitui umcaso único), é de facto relativamente fácil fazer o que de-ve ser feito em matéria de educação sem sequer parar parareflectir sobre o que se está realmente a.fazer. O ethos es-pecífico do princípio educativo está então em completoacordo com as convicções éticas e morais da sociedade noseu conjunto. Educar, nas palavras de Políbio, é apenas«pennitir a alguém ser digno dos seus antepassados», tare-fa na qual o educador pode ser um «par na discussão» e um

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6 Em latim no original ("past qua past"). (N.T.) ,

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«par no trabalho» porque, também ele, ainda que num ní-vel diferente, passou a sua vida com os olhos postos nopassado. Camaradagem e autoridade são assim, neste caso,dois lados de uma mesma realidade.e a autoridade do pro-fessor está firmemente fundada na autoridade mais ampla

,_.,. ...-" do passadoenquantotal. Hoje,no entanto;já não estamosnesta situação. Faz por isso pouco sentido agir como seainda aí estivéssemos, ou como se nos tivéssemos afasta- "do, por assim dizer, acidentalmente, da direcçã~.correctaefôssemos livres de a ela regressar em qualquer "momento.Isto significa que, no mundo moderno, onde quer que a r.n-se tenha eclodido~não podemos contentar-nos com conti-nuar ou simplesmente voltar atrás. Um tal retrocesso sónos faria regressar à situação em que a crise emergiu.Alémdisso esse retrocesso seria simplesmente uma repetição -ainda que talvez diferente na forma - uma vez que o nú-mero de possíveis noções absurdas e caprichosas que po-dem ser apresentadas como a última palavra em ciência éilimitado. Por outro lado, a simples e irreflectida perserve-rança, quer actue no sentido da cnse, quer adira à rotinaque acredita ingenuamente que a crise não vai fazer sub-mergir a sua esfera particular de vida, apenas pode, porquese rende ao curso do tempo, levar à ruína. Mais precisa-mente, apenas pode fazer crescer a estranheza face aomundo que nos ameça já de todos os lados. A reflexão so-bre os princípios da educação deve ter em conta este pro-cesso de estranheza face ao mundo. Pode-se mesmo admi-tir que se está aqui face a um processo automático, desdeque se não esqueça que o pensamento e a acção humanostêm o poder de interromper e fazer parar este processo.

No mundo moderno, o problema da educação resultapois do facto de, pela sua própria natureza, a educação nãopoder fazer economia nem da autoridade nem da tradição,

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sendo que, no entanto, essa mesma educação se deve efec-tuar num mundo que deixou de ser estruturadopela autori-dade e unido pela tradição. Daqui resulta que, não apenasos professores e os educadores mas também cada um denós, na medida em que vivemos em conjunto num únicomundo com-as-criançase os-jovens,-devemosadoptar rela-tivamente a eles uma atitude radicalmentediferente daque-la que temos uns com os outros. O domínio da educaçãodeve ser radicalmente separado dos outros dOlIÚnios,emespecial da vida política pública. Dessa forma, podemosaplicar exclusivamente ao dOlIÚnioda educação o concei-to de autoridade e a atitude relativamente ao passado quelhe são apropriadas mas que, no mundo dos adultos, dei-xaram de ter validade geral e já não podem pretender vol-tar a tê-Ia.

Na prática, a primeira consequência que daqui decorre éa compreensãoclara de que a função da escola é ensinar àscrianças o que o mundo é e não iniciá-Iasna arte de viver.Uma vez que o mundo é velho, sempre mais velho do quenós, aprender implica, inevitavelmente, voltar-se para opassado, sem ter em conta quanto da nossa vida será con-sagrada ao presente. Em segundo lugar, há que perceberque o significado da linha traçada entre crianças e adultosé que não é possível educar adultos e que não se devem tra-tar as crianças como se fossem adultos. Porém, em cir-cunstância alguma se deve permitir que esta linha se trans-forme num muro que isole as crianças da comunidade dosadultos, como se elas não vivessem no mesmo mundo e co-mo se a infância fosse um estado humano autónomo, capazde viver segundo as suas próprias leis. Não há uma regrageral que, em cada caso, permita determinar o momentoem que desaparece a linha de demarcação entre a infânciae a adultez. Essa linha varia muitas vezes em função da

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Page 17: Hannah Arendtabdet.com.br/site/wp-content/uploads/2014/11/A-crise-na-educação.pdf · 22 Hannah Arendt educação com as experiências políticas de outros países no século XX,

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idade, de país para país, de uma civilização para outra emesmo de um para outro indivíduo. Mas, diversamente doque acontece com a aprendizagem, a educação deve poderter um tenno previsível. Na nossa civilização, esse mo-mento final coincide, na maior parte dos casos, com a aqui-sição de um primeiro .diploma de grau supeoot (mais doque com um diploma de fim dos estudos secundários), umavez que a preparação para a yida profissional nas universi-dades e institutos técnicos, ainda que tendo a ver com aeducação, é no entanto uma espécie de especialização. En-quanto tal, ela não aspira já a intr:"0duziro jovem no mun-do como um todo, mas apenas num sector particular e"li-mitado do mundo. Não é possível educar sem ao mesmotempoensinar: uma educaçãosem ensinoé vaziae dege- .~:"

nera comgrandefacilidadenumaretóricaemocionale mo- .?!raloMas podemosfacilmenteensinarsem educare pode- .-s~mos continuara aprenderaté ao fim dos nossosdias sem :~que, por essa razão, nos tomemos mais educados. Tudo is-to são detalhes que devem ser deixados à atenção dos es-pecialistas e dos pedagogos.

O que nos diz respeito a todos e, consequentemente, nãopode ser confiado à pedagogia enquanto ciência especiali-zada, é a relação entre adultos e crianças em geral ou, emtermos ainda mais gerais e exactos, a nossa relação com ofacto da natalidade: o facto de que todos chegamos aomundo pelo nas~imento e que é pelo nascimento que estemundo constantemente se renova. A educação é assim oponto em que se decide se se ama suficientemente o mun-do para assumir responsabilidade por ele e, mais ainda, pa-ra o salvarda ruína que seria inevitávelsem a renovação, '.,.....

sem a chegada dos novos e dos jovens. A educação é tam- .,'E;bém o lugar em que se decide se se amam suficientementeas nossas crianças para não as expulsar do nosso mundo

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deixando-as entregues a si próprias, para não lhes retirar apossibilidade de realizar qualquer coisa de novo, qualquercoisa que não tínhamos previsto, para, ao invés, antecipa-damente as. preparar para a tarefa de renovação de ummundo comum.

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