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Renata Torres Schittino Hannah Arendt, a política e a história TESE DE DOUTORADO Orientador: Prof. Marcelo Gantus Jasmin Rio de Janeiro Julho de 2009 Tese apresentada ao Programa de Pós- graduação em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutor em História Social da Cultura.

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Renata Torres Schittino

Hannah Arendt, a política e a história

TESE DE DOUTORADO

Orientador: Prof. Marcelo Gantus Jasmin

Rio de Janeiro

Julho de 2009

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura do Departamento de História da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção do título de Doutor em História Social da Cultura.

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Renata Torres Schittino

Hannah Arendt, a política e a história

Prof. Marcelo Gantus Jasmin Orientador

Departamento de História PUC-Rio

Prof. Antonio Edmilson Martins Rodrigues Departamento de História

PUC-Rio

Prof. Eduardo Jardim de Moraes Departamento de Filosofia

PUC-Rio

Prof. Paulo César Nascimento Departamento de História

UNB

Prof. Pedro Spínola Pereira Caldas Instituto de História

UFUB/MG

Profº Nizar Messari Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais

PUC-Rio

Rio de Janeiro, 06 de julho de 2009.

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio.Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a autorização da Universidade, do autor e do orientador.

Renata Torres Schittino

Formou-se em História pela Universidade Federal Fluminense, tendo exercido atividade de iniciação científica sob orientação do prof. Daniel Aarão Reis, especializando-se em história do terrorismo. (2002) Concluiu curso de mestrado na PUC-Rio em 2004, onde defendeu a dissertação Terrorismo: violência política como espetáculo, sob orientação do prof. Marcelo Gantus Jasmin. Atualmente, atua como professora no curso de graduação de história da PUC-Rio, modalidade à distância.

Ficha Catalográfica

CDD:900

Schittino, Renata Torres Hannah Arendt: a política e a história / Renata Torres Schittino; orientador: Marcelo Gantus Jasmin. – 2009. 243 f.; 30 cm Tese (Doutorado em História)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. Inclui bibliografia 1. História – Teses. 2. História social da cultura. 3. Política. 4. Filosofia da história. 5. Totalitarismo. I. Arendt, Hannah. II. Jasmin, Marcelo Gantus. III. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História. IV. Título.

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À Leopoldina (in memoriam)

À Maria Bela, Iago e Danrlei, pelas

alegrias do mundo nosso.

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Agradecimentos

Ao meu orientador Marcelo Gantus Jasmin devo um agradecimento especial por

todos esses anos de atenção e apoio. Por suas leituras cuidadosas e suas críticas

generosas.

Ao professor Eduardo Jardim Moraes, pelos cursos estimulantes sobre Hannah

Arendt que freqüentei durante muitos anos, pelas contribuições que fez ao

trabalho no exame de qualificação e pela presença nessa banca.

Ao professor Antonio Edmilson Martins Rodrigues, pela participação nessa

banca, pelos diversos cursos e pelo apoio e generosidade desde os tempos da

graduação na UFF.

Ao professor Paulo Nascimento e ao professor Pedro Caldas, que gentilmente

aceitaram compor essa banca e abriram a possibilidade para um proveitoso

diálogo.

Ao professor Ricardo Benzaquen de Araújo, pela solicitude em compor o quadro

da banca e pela excelente formação que concede em suas aulas. À professora

Janaína Pereira de Oliveira pelo apoio e gentileza.

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Aos professores do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura.

Em especial à professora Cecília Cotrim, que trouxe contribuições generosas no

processo de qualificação e seleção do doutorado, ao professor Marco Antonio

Pamplona e ao professor Luiz Resnik. Agradeço ainda àqueles com quem tive a

oportunidade de estudar: a professora e atual coordenadora do Programa,

Margarida de Souza Neves, e o professor Ronaldo Brito.

Ao professor Luiz Costa Lima que leu algumas vezes a proposta deste trabalho

nos cursos do início do doutorado e contribuiu com reflexões sobre o tema e com

aulas instigantes.

Ao professor Daniel Aarão Reis Filho e aos colegas do Núcleo de Estudos

Contemporâneos, pela amizade, discussões e comentários sobre a proposta deste

trabalho.

A Danrlei de Freitas Azevedo pela constante e valiosa interlocução.

A todos os amigos que conheci nesse curso de Pós-Graduação, dentre os quais

nomeio Felipe Charbel, Sérgio Xavier, Fabrina Magalhães Pinto, Gustavo Naves,

Leonardo Padilha, Marcelo Rangel e Daniel Ferreira.

Aos funcionários do Departamento de História e da Pós-Graduação de História

Social da Cultura, principalmente à Edna Maria Timbó.

Ao CNPq pela bolsa de estudos concedida.

Por fim, deixo o meu agradecimento aos familiares e amigos próximos, em

especial, a Marly, Danrlei, Alexandre, Tatiana, Ângela e Graziane. E a minha mãe

Rita, cujo apoio, estímulo e amor incondicionais foram fundamentais para a

materialização deste trabalho.

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Resumo

Schittino, Renata Torres; Jasmin, Marcelo Gantus. Hannah Arendt, a

política e a história. Rio de Janeiro, 2009, 243p. Tese de Doutorado – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

O trabalho busca refletir sobre o significado da história na obra de Hannah

Arendt, tendo como horizonte a revisão que a autora empreende acerca da

tradicional separação entre teoria e política. Nesse sentido, supomos que a

valorização da ação e a indicação da dignidade da política abrangem também a

consideração da especificidade da história. Observando a discussão sobre o caráter

nostálgico de seu pensamento e as avaliações que sugerem o viés hermenêutico da

sua abordagem do passado, analisamos a narrativa arendtiana da história

ocidental, questionando a possibilidade de se tratar de algum tipo de filosofia da

história. Buscamos compreender a noção de esquecimento do político que

sustenta essa narrativa, por um lado, examinando seus pressupostos acerca da

responsabilidade e da novidade que estão envolvidas na ação humana e, por outro,

pensando suas colocações sobre a historiografia, onde a história surge como uma

“história de muitos começos e nenhum final”.

Palavras-chave

Hannah Arendt, história, política, filosofia da história, totalitarismo.

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Abstract

Schittino, Renata Torres; Jasmin, Marcelo Gantus (Advisor). Hannah

Arendt, the politics and the history. Rio de Janeiro, 2009, 243p. Thesis – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The work searchs to reflect on the meaning of history in the work of

Hannah Arendt, having as horizon the revision that the author undertakes

concerning the traditional separation between theory and politics. In this direction,

we supose that the valuation of the action and the indication of the dignity of the

politics also enclose the consideration of the especificidade of history. Observing

the quarrel on the nostalgic character of its thought and the evaluations that

suggest the bias hermeneutic of its boarding of the past, we analyze the arendtian

narrative of history occidental, questioning the possibility of if dealing with some

type of philosophy of history. We search to understand the notion of forgetfulness

of the politics who supports this narrative, on the other hand, examining estimated

its concerning the responsibility and of the newness that are involved in the action

human being and, for another one, thinking its ranks on the historiography, where

history appears as a “history of many starts and no end”.

KeyWords

Hannah Arendt, history, politics, philosophy of history, totalitarianism.

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Sumário

1. Introdução

10

2. A condição humana e a história do ocidente 19

2.1. A arquitetura da vita activa e sua referência histórica

2.2. O esquecimento do político e o fio da história

19

33

3. O inesperado sentido da história – algumas questões de filosofia da

história

3.1. A concepção arendtiana da história segundo Luc Ferry e Jacques

Derrida

3.2. A imprevisibilidade da ação e a indeterminação da história

58

58

76

4. Totalitarismo e revolução – o aparecimento da novidade 97

4.1. O ineditismo totalitário e a realidade ficcional

4.2. Diante da novidade: o caso dos revolucionários modernos

98

122

5. O espetáculo da história

5.1.Considerações teóricas

5.2.História e historicidade

5.3.História da história

6.Conclusão

148

149

172

197

226

7. Referências Bibliográficas

234

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1 Introdução

Pode-se dizer que a obra de Hannah Arendt já compartilha hoje do devido

reconhecimento. Seus livros têm alcance mundial e suas idéias são discutidas em

diversas línguas e países. No Brasil, a maior parte de seus textos está traduzida e

publicada. O interesse crescente por seu trabalho parece dever-se à atualidade e ao

vigor de suas proposições. Conhecida por muitos como aluna de Martin

Heidegger, Arendt transforma-se num clássico contemporâneo por mérito próprio.

Nascida judia na Alemanha de 1906, Arendt acompanhou ao longo de sua

juventude a escalada progressiva de anti-semitismo, sendo obrigada a deixar seu

país e a assumir a condição de apátrida na tentativa de sobreviver ao esquema de

exclusão hitlerista. Estabelecendo-se durante pouco tempo em Paris, a autora,

como tantos outros judeus, viu-se obrigada a trocar a Europa pela América para

prosseguir com vida. Na distante Nova York, tem notícia do desenvolvimento da

guerra e descobre com pesar que os nazistas aplicaram a solução final sobre

milhões de judeus com o intuito de eliminá-los de seu território.

Ao ingressar na carreira filosófica, na qual teve contato não apenas com

Heidegger, mas com outros grandes pensadores do século XX, tais como Edmund

Husserl e Karl Jaspers, Arendt não estava envolvida com questões propriamente

políticas, as quais marcariam definitivamente sua obra, embora tenha adquirido

nesse período a formação privilegiada que lhe permitiu desenvolver suas próprias

concepções acerca da temporalidade e da história, que será aqui estudada. Sua

aproximação do sionismo e dos assuntos políticos propriamente ditos foi de certo

modo compelida pelo contexto político que se avultava. Nesse sentido, seu exílio

francês foi a época em que sua virada para a política pareceu definitiva. Por

intermédio de Heinrich Blücher, seu futuro marido, e de seu amigo Walter

Benjamin, Arendt se defrontou seriamente com o pensamento marxista. A

passagem por Paris também lhe permitiu freqüentar o famoso curso de Kojève

sobre Hegel e conhecer o jovem grupo de existencialistas, de quem só mantinha

algum entusiasmo por Albert Camus.

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Assim como muitos de sua geração, a produção arendtiana é marcada por

uma impressão hostil sobre qualquer tipo de determinismo histórico,

principalmente porque o totalitarismo, na tentativa de legitimar seu poder político,

relaciona seu desenvolvimento à realização de um projeto histórico decidido de

antemão. Do mesmo modo que Walter Benjamin, Karl Löwith, Reinhart

Koselleck e tantos outros, Arendt empenha-se em refutar a idéia de filosofia da

história.1

Nossa suposição é que o embate arendtiano contra as filosofias da história

é parte de um empreendimento mais amplo, que visa rever qualquer tipo de

determinismo teórico sobre as ações humanas. Tendo como horizonte a distinção

traçada pela autora entre pensamento e ação, que revela sua re-leitura da

tradicional hierarquia entre filosofia e política, acreditamos ser possível entrever

na sua obra proposições suficientes para se delimitar uma concepção singular da

história.

A separação entre a vida activa e a vida do espírito pode ser visualizada na

própria divisão temática de dois de seus textos mais significativos, que ora se

voltam para a consideração da Condição humana, ora para a reflexão sobre a Vida

do espírito. Tal distinção revela a diferenciação que a autora identifica entre os

domínios da ação e do pensamento. No entanto, não seria possível supor que

elabora uma teoria de dois mundos. Como se houvesse um mundo das aparências

em que se desenrola a política, e um outro, referente às idéias mesmas. Ao

contrário, é justamente contra a concepção, primordialmente platônica, da

separação entre o mundo das idéias e o mundo dos assuntos humanos, que Arendt

interpõe sua distinção como uma crítica sobre toda a tradição metafísica que

pretende, com a valorização da teoria, propor a orientação para as atividades

práticas. Sua argumentação recai sobre todos aqueles que tentaram encontrar uma

direção para a política a partir de justificativas exteriores a ela, como a idéia de

Bem, de Verdade, ou de processo histórico. Suas objeções voltam-se sobretudo

contra o citado platonismo e a modernidade instrumental, esta última representada

categoricamente pelo pensamento de Marx. Se, no primeiro caso, a autora rejeita a

concepção do rei-filósofo, que baseado no conhecimento tem o poder de reger a

1 Sobre a temática da filosofia da história as referências dos autores citados são

respectivamente: Teses de filosofia da história; O sentido da história; Futuro passado.

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política, no segundo, não aceita a possibilidade da história ser guiada por um fim

previsível, como se fosse possível fabricá-la.

Desde quando escrevia sobre o totalitarismo, Arendt acreditava que um

dos maiores problemas da política era ter sido pensada não em seu domínio

específico da contingência, mas do ponto de vista da teoria, que amarra as ações

como se elas pudessem ser completamente controladas e como se fosse possível

saber o que deve ser feito. Na perspectiva arendtiana, os impedimentos gerados

pelo encerramento do pensamento em sua torre de marfim, de onde se pode

contemplar a verdade e dirigir os caminhos do mundo, alcançam tanto a ação

quanto o próprio pensamento, pois nenhuma das duas instâncias aparece em sua

dignidade própria, em sua autonomia, quando essas esferas mantêm-se ligadas

hierarquicamente e rigidamente.

A distinção entre ação e pensamento, prevista por Arendt na

reconsideração da metafísica, por sua vez, não pode ser entendida como uma

separação definitiva. A tentativa de restituir a especificidade da vita activa e da

vida do espírito, livrando a ação de ser orientada pelo pensamento e a teoria de ser

arregimentada em prol da ação, implica reconhecer a existência de um laço entre

essas atividades. Não é tarefa simples acompanhar a delicada ligação entre

pensamento e ação vislumbrada por Arendt, pois se trata tanto de compreender

seu empenho em desarticular a tradicional dominação da teoria sobre o

pensamento, quanto de observar a conexão não hierárquica que concebe entre

esses domínios. Ao mesmo tempo em que pretende livrar o pensamento de

qualquer função de comando sobre a ação, garantindo, desse modo, a dignidade

do espírito e da política, percebe que proteger essa especificidade significa

reconhecer a existência de um laço entre essas atividades. Assim, Arendt sustenta

que não há nenhum mundo para além das aparências, mas resguarda a capacidade

de se ausentar momentaneamente da realidade pelo pensamento. Sua idéia é que o

pensamento se realiza numa brecha temporal – o hiato entre o passado e o futuro -

, que se abre como uma linha diagonal resultante do embate de forças entre o

passado e o futuro. Ao andar nessa diagonal, o ego pensante pode circular

livremente por diferentes tempos.

O que torna, a nosso ver, peculiar a leitura arendtiana é a sua insistência

em observar que essa capacidade do pensamento só existe como um afastamento

momentâneo do mundo circundante. Em outras palavras, o ego pensante, embora

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possa se ausentar rapidamente da realidade, não pode se separar definitivamente

dela. A peculiaridade que sublinhamos consiste justamente nessa insistência em

não tomar o pensamento pela ação ou a ação pelo pensamento, mas, antes, em

manter a separação entre essas instâncias de modo completamente revisado. É

nesse sentido que Arendt pode compreender a distância entre as atividades do

espírito e a condição humana menos como um divórcio definitivo e mais como

um afastamento provisório, em que o vínculo com a realidade das aparências – a

única que existe – precisa ser mantido, destacando-se daqueles tantos outros

autores que, como ela, se empenham na “desmontagem da metafísica”.

A reconsideração arendtiana da distinção entre ação e pensamento que

propiciou essa retomada dos assuntos humanos não foi avaliada como uma

equivalente reconsideração da história. Ao contrário, considerando a crítica da

autora sobre as filosofias da história, a ênfase da ação ficou marcada como a

valorização da liberdade em detrimento da necessidade. O título significativo de

um texto de Richard Bernstein “Not history, but politics” indica como a

autonomia do político constituiu-se em oposição ao histórico.2

Nosso intuito não é propor nenhuma reviravolta nos estudos sobre o

pensamento arendtiano, negando que sua obra se destaca pela atenção concedida

às temáticas políticas. A autora esteve realmente preocupada em explicar como

alguns homens conseguiram concretizar sua potencial liberdade iniciando a

novidade no mundo e outros pretenderam suprimir a própria possibilidade desse

exercício. Se formulássemos uma daquelas perguntas que representam todo

direcionamento de um filósofo, poder-se-ia dizer que a questão de Arendt gira em

torno do que é política. Não obstante, acreditamos que sua tentativa de

salvaguardar a dignidade da ação e do político está diretamente relacionada à

defesa de uma nova concepção da história, que pode fundamentar-se na

contingência sem cair no relativismo de considerar as ações humanas como mera

movimentação irracional ou casual. Acontece que para agir, ou seja, para poder

interpor a novidade no mundo, os homens precisam contar com uma história

indeterminada, que não esteja dada a priori.

O fato de Arendt não ter sistematizado sua concepção da história, apesar

da sua obra ser perpassada tematicamente e metodologicamente por essa questão,

2 BERSTEIN, R., The origins of totalitarianism: not history, but politics, Social Research,

Summer, 2002.

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pode ter contribuído para que esse assunto seja pouco enfatizado entre os seus

intérpretes, que se concentram em explicar suas análises políticas. Os trabalhos

que se propõem a tratar da história em Arendt, geralmente priorizam a reflexão

sobre o storyteller como contador de histórias e enfatizam o aspecto que

denominamos como positivo da leitura arendtiana da história ocidental. Ocorre

que a ruptura da tradição, que aparece como o ponto culminante da narrativa do

esquecimento do político traçada pela autora, surge não apenas como um “tempo

sombrio”, mas também como um novo horizonte de possibilidade para a retomada

do passado. Sob essa perspectiva, deparamo-nos com a hipótese da concepção de

história de Arendt caracterizar-se como uma noção hermenêutica, que é inclusive

relacionada às influências de Heidegger e de Benjamin.

De fato, quando se admite a importância crucial que a análise do

totalitarismo adquire na obra da autora, concebendo a partir daí seu anseio em

pensar novas possibilidades da ligação entre passado e futuro na ausência da

tradição, com a qual os movimentos totalitários teriam rompido inevitavelmente, o

presente contemporâneo surge como época privilegiada para a retomada do

passado. Com Heidegger e Benjamin, Arendt supõe que o passado pode advir

como novidade, pois ao desprender-se o fio autoritário que amarrava a

continuidade dos tempos, “tesouros” que não foram legados pela tradição podem

ser encontrados. É nesse sentido que Arendt menciona o trecho de Shakespeare e

propõe a possibilidade da “pesca de pérolas” como uma nova intermediação entre

passado e futuro. “A cinco braças jaz teu pai/De seus ossos fez-se o coral/Essas

são pérolas que foram seus olhos/Nada dele desaparece/Mas sofre uma

transformação marinha/Em algo rico e estranho.” 3

A perspectiva histórica arendtiana também foi entendida como nostálgica

ou romântica. Na verdade, a interpretação hermenêutica sobre sua obra vem,

inclusive, questionar essa tendência. Ao contrário de conceber o retorno de Arendt

aos gregos como um aspecto nostálgico ou idealista, o viés hermenêutico pôde

vislumbrar que a retomada do aparecimento do político na pólis não supõe recriar

o contexto grego, mas, antes, trata-se de iluminar a experiência sucumbida pela

tradição. Para sistematizar, poderíamos destacar que a consideração da noção de

história arendtiana divide-se em dois tipos: 1 – a valorização das possibilidades

3 ARENDT, H., Homens em tempos sombrios, p. 165.

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advindas da ruptura da tradição, entrevendo a perspectiva hermenêutica de

Arendt; 2- a ênfase no helenismo ou nostalgia com relação à pólis grega. Essas

duas formas de abordagem indicam, de certo modo, leituras distintas acerca da

grande narrativa que a autora traça sobre a história ocidental e, mais

especificamente, sobre o esquecimento do político no desenvolvimento da

tradição ocidental.

Nosso intuito é justamente retomar essa grande narrativa que vislumbra a

continuidade da história rompida pelo totalitarismo no elo do esquecimento do

político, e como defendemos, também do histórico, para considerar sua concepção

de história. A suposição que nos orienta é, até certo ponto, uma proposição

negativa, pois não acreditamos que a compreensão arendtiana da história se feche

nem simplesmente na indicação hermenêutica e na valorização do storyteller,

nem, muito menos, na definição romântica ou nostálgica. Se não podemos rejeitar

completamente a relevância que a autora impinge sobre o espaço político grego,

nossa preocupação é considerar a ênfase no surgimento do político e do histórico,

que Arendt aí vislumbra, em seu caráter histórico, contrapondo a fixação do topos

grego com o desenvolvimento posterior da história. Pretendemos mostrar que a

irrupção do político e do histórico na Grécia clássica não funciona como um

modelo de realização do político de modo que a história exista apenas como mera

repetição dessas experiências. Assim, não se trata de negar a perspectiva

hermenêutica da autora, mas de compreender qual é o seu alcance na concepção

arendtiana de história. Temos a suposição de que a consideração hermenêutica

vale mais para a esfera do pensamento que da ação.

Nossa discussão se abre, então, em duas frentes, que se mantêm

conectadas entre si e constituem-se como a consideração da continuidade da

história ocidental narrada pela autora como o esquecimento do político e do

histórico, e a análise das suas proposições mais específicas sobre a historiografia e

o historiador, nas quais vislumbramos o caráter fragmentado da história que surge

como “uma história de muitos começos e nenhum final.”

Num primeiro momento, nossa preocupação é contrapor a narrativa da

história arendtiana à sua própria concepção histórica, dialogando com a

possibilidade de sua narrativa compor-se como algum tipo de modelo a-histórico.

O primeiro capítulo se volta para reencontrar aquilo que denominamos a narrativa

da história ocidental traçada por Arendt. Parece-nos que tal narrativa perpassa

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toda a obra arendtiana, mas é explicitamente traçada na Condição humana,

sobretudo no último capítulo desse livro. É com esse texto que indicamos a

existência de uma grande continuidade na história que se desenrola desde o

florescimento do político na pólis, concebe a decadência do espaço político desde

o fim das cidades-estado antigas e destaca o extremo esquecimento do político na

modernidade com a noção de perda do mundo. A história que a autora conta é

fundamentalmente a história do esquecimento do político que encontra sua ruptura

no totalitarismo. Não se pode perder de vista que, ao escrever a Condição

humana, Arendt já havia analisado profundamente as origens dos movimentos

totalitários do século XX. Nessa obra, a autora defendia o lugar central dos

totalitarismos na ruptura da continuidade da história ocidental.

A etapa inicial do nosso trabalho é observar como Arendt pôde contar uma

história da continuidade que, de certo modo, perpassa toda a tradição ocidental,

indagando se é possível conceber essa grande narrativa como algum tipo de

filosofia da história. Tal reflexão é abordada de modo mais específico no segundo

capítulo, onde examinamos particularmente os trabalhos de dois autores - Luc

Ferry e Jacques Derrida – que, por perspectivas bem diferenciadas, versam sobre a

questão da filosofia da história em relação à noção de história arendtiana. Em

contraste com ambos, concluímos essa parte do estudo indicando a dificuldade de

determinar a concepção de história da autora como um tipo de filosofia da

história. Para tal, buscamos compreender a diferenciação suposta por Arendt entre

a impossibilidade de controlar a ação e a responsabilidade dos homens por seus

atos. Nosso intuito é relacionar a singular percepção da ação arendtiana à sua

noção de história, sugerindo a conexão fundamental entre o político e o histórico

em seu pensamento.

No capítulo três, a análise recai sobre a temática da novidade que, como

defendemos, surge na obra arendtiana como elemento crucial da passagem do

político ao histórico. Trata-se de entender como a novidade pode advir ao mundo,

traçando a história humana. Deparamo-nos especificamente com a questão da

novidade no totalitarismo e nas revoluções, buscando explicar até que ponto a

novidade pode ser realmente interposta pelos homens.

Por fim, consideraremos as proposições mais específicas de Arendt sobre a

historiografia e o historiador. Pode-se dizer que essas suposições são mais teóricas

porque revelam indicações sobre o possível lugar da história e do historiador na

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concepção da autora. Aparecem principalmente quando a autora trata da ação na

Condição humana, no texto “Compreensão e política”, e no conhecido “Conceito

de história – antigo e moderno”. A diferença fundamental no que se refere à

abordagem histórica do esquecimento do político é que, em vez de supor a

continuidade da história, Arendt enfatiza seu aspecto fragmentado, sugerindo que

a História é mais uma pluralidade de histórias que um processo único. Mas,

mesmo para tratar do histórico, Arendt compõe, de modo semelhante ao que traça

para o político, uma narrativa do declínio desde o fim da pólis - buscando destacar

seu florescimento entre os gregos, seu eclipse na moderna versão da história e sua

radical transformação nos totalitarismos. Acompanhando essa “narrativa” do

político e do histórico, vemos que, ao contrário do que se pode imaginar,

considerando a crítica arendtiana às filosofias da história, o histórico está bem

próximo do político.

Arriscamo-nos a dizer então que o histórico por excelência só pode surgir

pari passu com a ação. Por isso, as questões que se enfrentam, ao tentar conceber

a perspectiva arendtiana da história, também estão sempre próximas daquelas

tratadas pelos que se interessam pelo seu aspecto político. Nesse sentido, é que

propomos considerar histórico e político em sua distinção e conexão. Nossa

suposição é que Arendt concebe uma separação entre ação (político) e

historiografia (histórico), entrevendo a diferenciação entre a história real e a

escrita da história. Os atores, por serem livres, não podem controlar absolutamente

as suas ações, nem identificar o sentido da história que suas ações deixarão atrás

de si. Apenas o espectador, quando uma história chega ao fim, pode conceber seu

sentido e significado. Defendemos então que um dos principais aspectos de sua

concepção da história é acreditar que não se pode superpor essas instâncias da

ação e da historiografia.

Acreditamos que tal separação entre a história real, proveniente das ações

e feitos humanos, e a escrita da história, que se compõe como artefato inspirado

pelo pensamento e produzido pelas mãos do autor da história, deve ser

compreendida como parte da argumentação mais ampla que a autora desenvolve

sobre a revisão da tradicional distinção entre ação e pensamento. Assim,

vislumbramos que, ao tentar salvaguardar a autonomia de ambas as esferas,

Arendt sugere a separação e a ligação entre elas, não pelos meios tradicionais, que

hierarquizavam teoria e prática, mas concebendo uma conexão não autoritária.

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Não há autoridade do pensamento sobre a ação, ou seja, a teoria não pode dizer

aos homens o que eles devem fazer, sob o risco de interditar a liberdade que é o

seu fundamento. Do mesmo modo, não é a ação que dita o seu significado porque

os atores não têm consciência e controle absoluto sobre o que “fazem”. Essa

distinção que não torna o pensamento uma outra instância separada da realidade,

mas deixa entrever a possibilidade da compreensão surgir como o outro lado da

ação, ilumina também, a nosso ver, a diferenciação entre história real e escrita da

história, que alicerça a concepção arendtiana da história.

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2 A condição humana e a história do ocidente 2.1. A arquitetura da vita activa e sua referência histórica

A aproximação da concepção arendtiana da história inicia-se pelo exame

da própria história ocidental traçada pela autora. Acredita-se que sua narrativa da

história revela-se mais claramente no seu livro A condição humana, onde

apresenta o aparecimento do político na Grécia e conta a história do seu declínio

desde o fim da cidade-estado ateniense, passando pela sua decadência instaurada

na modernidade, até a situação contemporânea, a qual se refere ao contexto do

segundo pós-guerra.1 Deve-se compreender, no entanto, que a intenção arendtiana

não é produzir um grande texto de história aos moldes das grandes narrativas

universais. Seu texto não é intitulado História ocidental ou História da condição

humana. O livro originalmente seria designado como Vita activa, mas o título foi

reformulado pelo editor, que achou ser mais vendável A condição humana. Se

Arendt pretendia chamar seu livro de Vita activa isso se deve ao fato de que o

núcleo central de sua obra não é traçar uma história, mas sim, estabelecer a

especificidade da vita activa para tentar restituir sua validade perdida com a

preponderância da vida contemplativa, que ao longo da tradição instituiu a

superioridade do pensamento sobre a ação. Assim, sua preocupação está mais

voltada para especificar por diferenciação as atividades fundamentais envolvidas

na condição humana. Nesse trabalho, Arendt analisa das atividades da vita activa,

mas é importante ter em mente que, numa consideração geral da obra arendtiana,

às atividades da vita activa, se juntam as atividades da vida do espírito. Em

desenvolvimento posterior, a autora incumbe-se de esclarecer tais atividades, mas

mesmo antes de começar a escrever os textos que seriam reunidos postumamente

1 ARENDT, H., A condição humana.

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como A vida do espírito, já está lançada a necessidade da revisão da vida

contemplativa diante da reconsideração da vita activa.2

As atividades da vita activa são três: labor, trabalho e ação. E as atividades

da vida do espírito também tripartida dividem-se em: pensar, querer e julgar. Com

sua súbita morte, seu projeto de esclarecer a ‘estrutura’ da condição humana ficou

prejudicado. Sobretudo no que se refere à compreensão da atividade do juízo.

Seus biógrafos contam com lamento que ao sofrer o ataque cardíaco fatal deixara

em sua máquina de escrever uma folha onde constava apenas o título de seu futuro

trabalho – Julgar. Tudo indica que sua próxima missão seria tratar dessa atividade,

que completaria a elucidação da condição humana. Apesar dessa incompletude, é

comum entre seus estudiosos tentar compreender o que Arendt entendia como

juízo a partir de fragmentos em sua obra, onde ela indica seu pensamento sobre o

tema, e, principalmente, a partir da consideração de suas aulas sobre o juízo

político em Kant.3

A história ocidental que se pode vislumbrar em Arendt aparece bem

descrita em A condição humana, sobretudo, na última parte do livro, intitulada “A

vita activa e a era moderna”. Se as atividades da vida do espírito não fazem parte

da arquitetura do livro, constituem o pressuposto dessa história. A autora escreve

primeiro sobre a vita activa porque entende que a hierarquização entre espírito e

ação, que institui a inferioridade dos assuntos humanos é um problema

fundamental da história ocidental. O início dessa história, que chama de início da

tradição, aparece com Platão e com seu desprezo pelo mundo, que seria o próprio

lugar das sombras. A opção por tratar das atividades da vita activa está

relacionada à tentativa de lançar a luz sobre esse obscurecimento do activo e das

confusões que se fizeram ao longo da história a respeito de sua importância.

Arendt entende que a tentativa moderna de valorizar a práxis e a história não tem

sucesso na reversão do processo de esquecimento do político, pois acaba

promovendo o engano segundo o qual trabalho, labor e ação – as atividades da

vita activa – não se distinguem entre si. A retomada posterior sobre a vida do

espírito também visa completar essa tarefa, buscando alocar as atividades

espirituais a partir do direcionamento tomado na vita activa. Se a vita activa não

deve ser subjugada pelo espírito, é preciso não apenas compreender o que é a vita

2 Id., A vida do espírito, p. 7. 3 Id.,, Lições de filosofia política em Kant.

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activa, mas entender qual seria o lugar da vida do espírito a partir de uma nova

concepção dos assuntos humanos. O que Arendt vislumbra é a possibilidade de se

considerar ação e pensamento (vita activa e vida do espírito) sem que sua relação

esteja marcada pela autoridade hierárquica de uma instância sobre a outra. Por

isso procura delimitar a separação das esferas e compreender a relação entre elas,

de modo a garantir a autonomia do político e do pensamento. Nesse projeto ganha

destaque a retomada da experiência histórico-política. Para fazer frente ao

tradicional apelo ao pensamento, a autora busca enfatizar a realidade histórica e a

experiência política, que designa como os assuntos humanos no mundo.

Nesse momento, importa destacar a estruturação arendtiana da vita activa,

tendo em vista a história que apresenta a sua depreciação, desenvolvendo o

argumento da ligação entre a arquitetura da condição humana e a história. Arendt

fala em condição humana em vez de trabalhar com a idéia de natureza humana.

Com isso é possível perceber uma constelação de atividades referentes à condição

humana que tem caráter variável e se difere de uma concepção de natureza

humana como alguma coisa dada, cuja alteração histórica não teria sentido. A

condição humana distingue-se da natureza humana por duas razões principais que

estão interligadas logicamente. A condição não é um simples dado natural. Não

define a natureza ou essência da espécie humana. Essa primeira característica

torna visível a outra, que indica que a condição humana permite um grau de

variação. Pode-se pensá-la pela sua possibilidade de alteração, pois o próprio

homem intervém na sua condição. Nas palavras de Arendt, “A condição humana

compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os

homens são seres condicionados. Tudo aquilo com o qual eles entram em contato

torna-se imediatamente condição de sua existência.”4 A pretensão da concepção

de natureza humana é universal e atemporal, ao passo que a imagem da condição

humana tem um caráter mais histórico. Isso não significa que cada época tenha

uma condição humana e estejamos em meio a homens completamente diferentes

entre si. Concebendo a condição humana através da arquitetura entre atividades

ativas e condições de realização dessas atividades, Arendt entrevê a possibilidade

de uma variação histórica nas relações entre as atividades e as condições. A cada

uma das atividades da vita activa corresponde uma condição: ao labor, a vida

4 Id., A condição humana, p.17.

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biológica; ao trabalho, a mundanidade; à ação, a pluralidade. De modo geral, essa

correspondência não é tão rígida, mas é a partir dessa concepção que Arendt

determina as atividades da vita activa e compreende a relação entre as atividades e

suas condições no desenrolar das épocas históricas.

A disposição entre atividades e condições é vislumbrada a partir da análise

histórica do período clássico na Grécia. A referência é a Atenas do século V e a

organização da pólis. É nesse quadro histórico que a autora enxerga as relações

primeiras da condição humana. Deve-se entender esse surgimento não

simplesmente no sentido cronológico, mas como uma espécie de referencial para

conceber a experiência do político. Se é possível entrever que a retomada

arendtiana dos gregos acaba concebendo um topos no qual se pode ver a situação

“ótima” para a realização da condição humana, não devemos perder de vista que a

noção de topos não se caracterizaria como uma abstração do pensamento, mas

revelaria uma situação histórica específica. Esse topos não é imaginado por

Arendt, mas apreendido na experiência histórica concreta.

A autora não deixou de ser criticada pela retomada da Antigüidade. Alguns

recriminaram sua nostalgia, outros censuraram seu senso histórico. Entendemos

que Arendt concede tanta importância à situação ateniense porque é nesse quadro

que, a seu ver, aparece pela primeira vez a realização do político, a qual até a

contemporaneidade nos referimos.5 Desde esse aparecimento, pode-se vislumbrar

que os homens se articulam de modo plural. Assim, vemos que a realização da

pluralidade no espaço público da pólis deve-se não apenas ao dado natural, mas,

principalmente, à delimitação histórica de um espaço de liberdade. Arendt

concorda com Aristóteles, e acredita que seu pensamento não pode ser entendido

como simples teoria, mas como um fato histórico, pois reflete a realidade da pólis,

onde “a política (...) não é de maneira nenhuma, algo natural e não se encontra de

modo algum onde os homens convivem. Ela existiu, segundo a opinião dos

gregos, apenas na Grécia e mesmo ali num espaço de tempo relativamente curto.”

5 Veja em ARENT, H., O que é política, p. 45. “A pergunta pelo sentido da política e a

desconfiança em relação à política são muito antigas, tão antigas quanto a tradição da filosofia política. Elas remontam a Platão e talvez até mesmo a Parmênides e nasceram de experiências muito reais de filósofos com a polis: significa como a forma de organização do convívio humano, que determinou, de forma tão exemplar e decisiva aquilo que entendemos hoje por política que até mesmo nossa palavra para isso em todos os idiomas europeus, deriva daí.”

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O que determina tal argumento é a idéia de que “Ser-livre e viver-numa-polis

eram, num certo sentido, a mesma e única coisa.”6

A intenção de destacar esse caráter histórico da pluralidade e da própria

condição humana deve-se à pergunta pelo histórico na obra arendtiana. No

entanto, é necessário muito cuidado ao proferir certas ilações, pois a autora não

faz essa definição específica. Não diz que a condição humana é histórica, embora

rejeite a idéia de natureza humana.

Observando mais de perto essa rejeição à concepção de natureza humana é

possível encontrar mais uma pista para entender o significado da condição

humana. O homem não é simplesmente um ser natural. Para Arendt, a remissão ao

seu aspecto biológico e à noção de espécie não revela o que está em jogo quando

se trata de compreender a humanidade do homem. O que confere ao homem a

humanidade está mais próximo daquilo que ele mesmo produz ou põe em ação do

que de qualquer dado natural. A autora não pode negar que há o aspecto do

naturalmente dado na existência humana, no entanto, valoriza no humano aquilo

que lhe é próprio, a saber, sua diferenciação do natural. Nessa gênese do humano,

a atividade da ação adquire lugar de destaque, porque é essa atividade que garante

ao homem a sua plena realização enquanto homem através da possibilidade de

singularização. Pela ação o homem distingue-se não apenas do mundo natural e

de sua determinação biológica, mas consegue individualizar-se, distinguindo-se

também entre seus pares.7

A condição humana não é apenas o dado natural. No contexto

contemporâneo, Arendt sublinha que a tecnologia permite ao homem a alteração

do próprio dado natural através da ação sobre a natureza. A autora refere-se às

explosões nucleares e experimentos genéticos a partir dos quais o homem

pretende dar início a processos que antes eram puramente naturais, ou seja, só

eram encontrados na natureza. Entenda-se que o anseio de reproduzir a criação da

vida humana seria a grande apreensão do simplesmente dado. Se o homem se

6 Ibid, p. 47. Para referência à Aristóteles, ver ARENDT, H., A condição humana, p. 33.

“Não se tratava de mera opinião ou teoria de Aristóteles, mas de simples fato histórico: precedera a fundação da polis a destruição de todas as unidades organizadas à base do parentesco.”

7 Id., A condição humana, p. 188. É fundamental entender que, para Arendt, os homens são iguais, porque são humanos, e são diferentes. Se fossem apenas iguais como animais de uma determinada espécie não precisariam da ação e do discurso para se diferenciar uns dos outros, pois poderiam se comunicar por sons e sinais. A teoria da ação arendtiana baseia-se nesse pressuposto segundo o qual o homem revela sua humanidade quando manifesta sua singularidade, que é individual.

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volta para essas tentativas é porque tem a intenção de dominar o dado e controlar

o natural. A novidade na contemporaneidade não é o subjugo da natureza, que já

era exercida com grande sucesso pela técnica, mas a capacidade de se produzir

natureza e se recriar o dado. Donde advém que o homem, que tanto sonha

controlar o natural, perde seu domínio porque põe em funcionamento processos

naturais inéditos, que fogem a sua autoridade. Se a concepção arendtiana da

condição humana permite todo esse trâmite sobre o natural, parece que também

indica a existência de uma constante trans-histórica, que é a própria arquitetura

das atividades invariáveis da vita activa. Limito-me, de um lado, a uma análise daquelas capacidades humanas gerais decorrentes da condição humana e que são permanentes, isto é, que não podem ser irremediavelmente perdidas enquanto não mude a própria condição humana. Por outro lado, a finalidade da análise histórica é pesquisar as origens da alienação do mundo moderno, o seu duplo vôo da Terra para o universo e do mundo para dentro do homem, a fim de que possamos chegar a uma compreensão da natureza da sociedade, tal como esta evoluíra e se apresentava no instante em que foi suplantada pelo advento de uma era nova e desconhecida.8

Dois sentidos do histórico podem ser detectados aqui, embora Arendt só se

refira literalmente ao histórico para designar seu método de “análise histórica”.

Por um lado, concebe o histórico como procedimento de pesquisa quando explica

seu empreendimento de considerar a alteração na representação da vita activa.

Essa análise histórica só é possível porque há uma variação histórica na

compreensão da vita activa. A partir dessa concepção, a autora pode visualizar

uma história de encobrimento e rejeição da vita activa, principalmente da ação,

isto é, do político. Ou seja, Arendt só pode contar a história do Ocidente como a

história do esquecimento do político porque acredita no aspecto variável da

condição humana. Por outro lado, pode-se notar que mesmo o caráter permanente

da condição humana, visível na estruturação das atividades tem sua implicação

histórica. A “estrutura” só se faz visível na situação histórica grega. Deve-se

compreender que o destaque da importância desse aspecto histórico não é mera

leitura historiográfica. É certo que o olhar do historiador pode historicizar tudo,

principalmente idéias e pensamentos. No entanto, não é esse o pressuposto

quando se intenta evidenciar a relação histórica fundamental que se pode entrever

na constituição da arquitetura da vita activa arendtiana. Entende-se que a própria

8 Ibid, 14.

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autora baseia-se nessa hipótese de apreender a vita activa na experiência de

realização. Assim, o quadro grego adquire valor histórico não apenas como um

momento da história, mas como a situação primeira onde a vita activa se realiza

“exemplarmente”.9 Apenas tendo em vista essa realização “inicial”, Arendt pode

dar sentido à história que narra. Ademais, esse “início” é o aparecimento do

humano distinto do natural. Quando o homem consegue diferenciar-se do dado

natural não apenas pelo seu trabalho, mas, sobretudo, pela ação.

Para melhor entendimento é necessário retomar o raciocínio arendtiano

sobre a vita activa. A autora apresenta o labor, o trabalho e ação como as

atividades fundamentais desse modo de vida. O labor é o trabalho biológico de

nosso corpo, do qual dependemos para sobreviver. Trata-se das necessidades

físicas que sustentam os processos mantenedores da vida. A condição humana que

se refere ao labor é a vida. O trabalho produz os artefatos que constituem o mundo

humano artificial em relação à natureza. A condição humana em jogo no trabalho

é o próprio mundo. A ação é o que se passa entre os homens quando

compartilham a condição humana da pluralidade. Essa é a atividade propriamente

política porque não está ligada a nenhuma necessidade como o labor e o trabalho.

O político, em Arendt, refere-se ao âmbito da liberdade. A autora relaciona às três

atividades as suas correspondentes condições gerais na Terra: nascimento e morte,

natalidade e mortalidade.

Para entender o caráter histórico de seu pensamento e perceber que a

arquitetura da vita activa não surge de nenhum vislumbre puramente ideal, mas se

sustenta pela análise histórica concreta, é importante destacar não apenas a

correspondência desse esquema com o mundo grego do século V, mas também a

relação temporal que relaciona essas atividades. Deve-se observar a passagem do

labor ao trabalho e à ação, que reflete a liberdade e a singularidade

especificamente humanas. Distintamente das suposições meramente materialistas,

Arendt propõe que o homem afirma-se como homem diante do mundo dado, não

simplesmente pela competência fabricadora, mas pela possibilidade de agir. Há

então um rumo que vai do labor à ação. O ciclo biológico reina no mundo natural,

atua sobre todas as espécies, inclusive sobre o homem. Nessa situação não há

9 Arendt usa essa designação da exemplaridade para falar do aparecimento extraordinário

do político em Atenas. Ver ARENDT, H. O que é política, p. 45. A passagem já foi citada aqui na nota 2.

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nada especificamente humano, já que o homem não passa de um ser natural como

os outros animais. A humanidade começa a se distinguir quando o homem se

separa da natureza e passa a erigir um mundo próprio, construído com o trabalho

de suas mãos. Quando se destaca da natureza e ergue o mundo artificial que não

está submetido ao ciclo biológico, o homem constrói para si uma morada - o

mundo. Institui um início humano donde passa a existir um mundo duradouro que

sobreviverá à vida individual de cada homem. Para ilustrar essa passagem pode-se

imaginar uma espiral cortada por uma linha reta. Essa é a primeira ruptura

produzida pelo homem no ciclo biológico. A sobreposição do labor pelo trabalho

é também a introdução do tempo humano sobre o tempo puramente biológico da

natureza. O ‘ciclo sempiterno’ é rompido pela atividade que introduz início e fim

no mundo. Segundo Arendt, o trabalho, que é marcado pelo ímpeto da

objetividade, traz ao mundo um produto que foi inteiramente visualizado do início

ao fim pelo fabricador.10

A passagem do trabalho à ação é caracterizada por uma nova ruptura. Uma

vez rompido o ciclo biológico e instaurado o mundo, o ciclo sempiterno da

natureza é desprezado em prol de um tempo especificamente humano. Apesar de

ser possível entender esse tempo do mundo como uma ruptura com o tempo

natural, que é quase uma eterna repetição do mesmo, ele também instaura um

processo baseado na repetição, que é a própria cotidianidade do mundo. Nesse

caso, a ação aparece como a atividade que vem interromper o processo cotidiano,

cuja extraordinariedade surge como o aspecto mais importante, que podemos

observar nessa consideração do ponto de vista temporal. A ação promove o

extraordinário, separando-se do comum ou cotidiano. Se no biológico os homens

estão unidos como espécie, e, no trabalho, estão separados pelo mundo de objetos;

na ação encontram-se reunidos em pluralidade. Isto é, reunidos num espaço de

liberdade onde são todos iguais como cidadãos e por isso podem distinguir-se uns

dos outros pela singularidade. A ação é a capacidade humana de singularizar-se e

de produzir o novo no mundo; de iniciar alguma coisa. Liberdade e ação são

equivalentes no que indica que o homem não está preso ou delimitado por

nenhum dado, seja ela natural ou humano - construído por ele mesmo -, mas sim

que é livre para trazer a novidade ao mundo.

10 Essa sobreposição temporal entre labor, trabalho e ação também é exposta pela autora.

ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, p. 71.

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Arendt não impõe essa arquitetura temporal ao início da vida humana no

globo e nem pretende desenvolver os aspectos antropológicos de sua perspectiva.

Ou seja, não imagina uma existência puramente natural donde o homem se

destaca pela técnica, tal como a perspectiva materialista da história. A discussão

arendtiana não aparece como uma busca pela origem histórica num quadro

evolucionista onde o natural seria suplantado pela técnica e a técnica permitiria o

aparecimento da liberdade humana desenvolvida no espaço político. Ainda que

seu esquema possa dar margem a esse tipo de interpretação, esse trabalho não

pretende explorar esse caminho. Segui-lo, talvez, extrapolasse a proposição da

autora. No entanto, se abdicamos de visualizar como Gehlen o homem primitivo,

considerando a técnica e a política como desenvolvimento do humano,11 isso não

significa que a estrutura da condição humana traçada por Arendt esteja alheia ao

problema. Sobretudo porque seu fundamento histórico, como acreditamos, é

bastante explícito.

Para compreender melhor o problema retomaremos ainda a relação entre a

arquitetura da vita activa e sua correspondência histórica na pólis grega. Ao

perguntar-se pelo político, Arendt, seguindo o exemplo heideggeriano, vê como

melhor forma de compreendê-lo, a busca pela origem da palavra ou do conceito.

O aparecimento histórico, tal como o desenvolvimento que se segue são

fundamentais para elucidação do fenômeno. A política, segundo a autora, seria

portanto uma categoria grega. O político aparece na pólis quando se organiza um

espaço onde os homens podem revelar uns aos outros sua singularidade. Um

espaço de igualdade – dada a igualdade entre os cidadãos que participam da ágora

– onde os homens podem distinguir-se entre si – revelando suas opiniões e sua

‘diferença’ de modo a destacar-se na igualdade. Nesse espaço, a autora entrevê a

condição humana da pluralidade. Pluralidade significa que o homem existe em

conjunto com outros homens, ou seja, sua condição nessa Terra é eminentemente

plural. Essa pluralidade, embora seja um fato, e não haja meios físicos de existir o

homem no singular, não é um dado. Segundo Arendt, a pluralidade está ligada à

existência do espaço de liberdade. A história da supressão dessa pluralidade é

justamente a história que a autora se põe a analisar.

11 LIMA, Luiz C., História. Ficção. Literatura, p. 141.

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Temos, então, o fio condutor que permite compreender a narrativa

arendtiana da história ocidental. Pode-se detectar um início com o aparecimento

do espaço de liberdade na pólis, onde o homem pôde pela primeira vez mostrar-se

em sua singularidade. A decadência desse espaço tem origem no fim da cidade-

estado grega e na ascensão do império romano. A autora distingue essa passagem

observando as implicações da tradução latina do político como social. A história

do obscurecimento do espaço público tem continuidade na valorização do homo

faber e os produtos de seu trabalho em detrimento da ação. Seu cume é a tentativa

totalitária de extinção completa da pluralidade pela fabricação do Uno.

Observemos mais detalhadamente alguns pontos dessa história. Arendt

fala inicialmente do florescimento do espaço público na Grécia. A existência

desse espaço deve-se, segundo ela, fundamentalmente à nítida separação entre a

esfera da liberdade e a esfera da necessidade. “O que todos os filósofos gregos

tinham como certo, por mais que se opusessem à vida na polis, é que a liberdade

situa-se exclusivamente na esfera política; que a necessidade é primordialmente

um fenômeno pré-político, característico da organização do lar privado...”12. A

divisão entre o espaço público e o privado separa o debate do âmbito político das

questões de cunho íntimo e familiar. No espaço doméstico, reina a hierarquia

entre o senhor da casa e os demais familiares, escravos e agregados. Nem mesmo

o chefe da família pode ser livre em seu lar porque não mantém relações de

liberdade com os demais. Tal espaço seria regido pela dominação que veta o

aparecimento da liberdade vislumbrada por Arendt, que só no espaço político de

iguais pode realizar-se. Apenas quando não há dominação de uns sobre outros, os

homens podem expor suas opiniões e agir revelando sua singularidade aos demais.

Só na condição da liberdade política é possível aparecer a diferença entre os

homens. Quando estão livres para agir e mostrar quem são.

A autora recebe muitas críticas por trabalhar sobre essa bifurcação entre

público e privado. A separação que Arendt entrevê na Grécia e que fundamenta

toda sua concepção de política, alguns autores julgam ser a questão

eminentemente moderna da divisão das esferas. A separação entre público e

privado indica a distinção entre político e social, é uma das marcas do pensamento

arendtiano. Com base nesse pressuposto, a autora contraria certo consenso acerca

12 ARENDT, H., A condição humana, p. 40.

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do bastião da modernidade, quando descarta o caráter político da revolução

francesa, relegando-a ao plano das questões sociais a partir da oposição com a

revolução americana, que seria política par excellence.13 Ao comentar a situação

da política de dessegregação dos negros nos Estados Unidos por ocasião do

episódio em Little Rock, quando os alunos negros precisam ser escoltados para

entrar na escola mista sob forte oposição branca, Arendt também surpreende ao

entender que a segregação é um problema social. “a discriminação é um direito

social tão indispensável quanto a igualdade é um direito político. A questão não é

como abolir a discriminação, mas como mantê-la confinada dentro da esfera

social, quando é legítima, e impedir que passe para a esfera política e pessoal,

quando é destrutiva.”14

Deve-se notar que a distinção provoca tanta indignação e surpresa

principalmente pela dificuldade de encontrar historicamente exemplo tão ‘puro’

de experiência política. A dúvida reside na delimitação da fronteira entre o

político e o social, e avulta-se com a enorme complicação de conceber um espaço

político que não serve para resolver problemas sociais. A questão levantada por

Mary McCarthy resume bem essa angústia que acomete grande parte dos leitores

de Arendt. “Qué se supone que debe hacer alguien en el estrado público, si no se

interesa por lo social? Es decir, ? qué queda? (...) se me deja com la guerra y los

discursos, pero los discursos no pueden ser solo palabras, deben ser discursos

sobre algo.”15

Se a interlocução de McCarthy revela a dificuldade de compreender o

político arendtiano fora do quadro da pólis. Para nosso contexto, vale indagar até

que ponto essa demarcação não acabaria determinando também sua própria

concepção de história? Nossa questão é se a retomada da realização do político em

Atenas não compromete a perspectiva arendtiana acerca da história? O problema é

que, diante da importância do quadro histórico grego, toda a história restante, que

lhe sucede, acaba aparecendo como um obscurecimento dessa experiência política

excepcional ou, no máximo, como uma repetição dessa experiência. Nesse

sentido, lemos em Arendt que:

13 Id., Da revolução. Voltaremos a essa discussão na análise da história sobre as revoluções. 14 Id., Responsabilidade e julgamento, p. 274. 15 Id., De la historia a la acción, p. 151. “O que deve fazer alguém no âmbito público se

não se interessa pelo social? Quer dizer, o que faz (...) se me deixa com a guerra e os discursos, mas os discursos não podem ser apenas palavras, devem ser discursos sobre algo.”

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Como tal, a coisa política existiu sempre e em toda parte tão pouco que, falando em termos históricos, apenas poucas grandes épocas a conheceram e realizaram. Esses poucos e grandes acasos felizes da História são, porém, decisivos; e só neles que se manifesta de cheio o sentido da política e, na verdade, tanto o bem quanto a desgraça da coisa política. Com isso, eles tornaram-se determinantes, mas não a ponto de poder ser copiadas as formas de organização que lhe são inerentes, e sim porque certas idéias e conceitos que se tornaram plena realidade para um curto período, também co-determinaram as épocas para as quais seja negada uma experiência plena da coisa política.16

Se ao enfatizar o florescimento político na pólis, a autora pode sugerir que

sua concepção de história está vinculada à perspectiva de realização de poucos

grandiosos momentos onde o espaço público se organiza de modo a garantir a

plena realização das atividades humanas tal como vislumbradas na estrutura da

condição humana, donde seria viável supor que sua conceituação da história surge

como uma determinação da história a partir da correspondência com a pólis, sua

réplica à McCarthy assinala outra possibilidade de compreender a ligação entre o

histórico e o político em sua obra. Na tentativa de explicar a separação entre

público e privado, Arendt distingue a esfera política pela delimitação de assuntos

que precisam ser tratados em público. Segundo ela, há questões que não precisam

ser discutidas, que se referem às necessidades básicas dos indivíduos. São

temáticas sobre as quais todos deveriam estar de acordo. No âmbito político, os

homens podem discutir e revelar suas opiniões distintas. O ‘conteúdo’ da política

não é o mesmo que aquele da esfera social. O político “em cada momento

histórico probablemente es enteramente distinto. Por ejemplo, las grandes

catedrales fueron los espacios públicos en la Edad Media. Los ayuntamientos

llegaron más tarde...”17

Nessa passagem, a autora deixa ver que compreende a possibilidade de

pensar o histórico sem uma correspondência definitiva com a experiência grega.

Ainda que se mantenha a referência ao contexto originário do político, sua

realização não está determinada a ser imitação da pólis. Os espaços públicos

delineiam-se de modo diferenciado em momentos históricos distintos. Seria essa

possibilidade a indicação de que concebe um alargamento do topos grego, sem

que isso provoque necessariamente o esquecimento do político? Esse alargamento 16 Id., O que é política, p. 51. 17 Id., De la historia a la acción, p. 151. “em cada momento histórico provavelmente é

ineiramente distinto. Por exemplo, as grandes catedrais foram os espaços públicos na Idade Média. Os ajuntamentos chegaram mais tarde...”

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significaria que a história arendtiana não se fixa definitivamente ao acontecimento

extraordinário? Se o caráter da exemplaridade da pólis parece ser um tanto

maleável, a menção à possibilidade de variação histórica do espaço público não

constitui o abandono da referência grega. O político, como Arendt insiste em

dizer, aparece na Grécia e permanece guardando seu sentido originário sempre

que se evoca a palavra político. O que não implica crer que em todos os períodos

históricos o político se organize exatamente como na pólis. Nesse sentido,

poderemos compreender como a revolução americana, saudada pela autora,

mostra-se como manifestação política inédita, que, ao mesmo tempo, encontra

referência no experimento político antigo e na realização da liberdade.18

Importa nesse momento destacar como Arendt combina diferentes

‘noções’ do histórico. Considerando os questionamentos quanto à separação entre

público e privado, que incidiram não apenas sobre sua retomada do contexto

grego, mas sobre sua própria forma de compreender o político como esfera

distinta do social, é preciso entender como a autora baseia sua concepção de ação

na visualização histórica desse espaço na pólis. Sua gênese da condição humana

entrevista pelas atividades do labor, do trabalho e da ação encontra de fato

correspondência na pólis grega. O sentido de sua arquitetura das atividades da vita

activa só aparece diante desse contexto histórico. Por isso mesmo a autora precisa

retomar a situação grega para explicar a condição humana. Arendt pretende

encontrar o político em sua realização, como se retomasse o fluxo vivo passado.

Essa correspondência com o contexto grego é importante principalmente para

conceber o político menos como uma teoria e mais em seu caráter performático,

que com os termos aristotélicos, a autora designa como energéia.

A correspondência é o que leva alguns autores a enfatizarem o caráter

nostálgico de sua obra e, por vezes, até idealista, considerando tratar-se de uma

visão pouco condizente com o mundo grego. André Duarte argumenta contra essa

forma de compreender o pensamento arendtiano como nostálgico. O autor acredita

que a intenção de Arendt não é conceber o passado como “ele realmente foi”, e,

tampouco, reviver o político nos moldes gregos. Mas empenhar-se numa leitura

hermenêutica que privilegia o diálogo entre as épocas.19 Duarte vê com bons

18 Id., Da revolução. Abordaremos essa experiência da revolução como novidade histórica

no capítulo 4. 19 DUARTE, A., A sombra da ruptura, p. 131.

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olhos a empreitada arendtiana na busca pelo passado, já que não se trata de

reproduzir um passado em si. No entanto, ao enfatizar o caráter hermenêutico do

pensamento arendtiano, não observa que destacar a correspondência histórica

entre a condição humana e o contexto grego não leva necessariamente ao

veredicto de uma Arendt nostálgica.

De certo modo, parece correto sublinhar o enaltecimento de Arendt pela

pólis. A partir da visualização do florescimento do espaço público, a autora

empreende uma fixação do momento histórico na arquitetura da condição humana

e acaba por explicar toda a história do ocidente como um contínuo

obscurecimento da política. No entanto, será preciso considerar a originalidade de

Arendt, não apenas no que se refere à possibilidade singular aberta à

contemporaneidade para a retomada do passado, mas, também, acerca da

concepção de casualidade histórica. Se há uma correspondência entre a condição

humana e a “condição do cidadão grego” na pólis, e se é a partir dessa relação,

como supomos, que a autora conta a história do ocidente, a noção de liberdade

humana daí auferida não lhe permite tratar de uma história pré-definida ou de uma

história cujo sentido não podia ser outro senão esse do obscurecimento da política.

O que se revela interessante nesse ponto é que a ‘determinação’ histórica da

condição humana, dita a análise arendtiana da história, mas não define sua

interpretação como mais uma filosofia da história no sentido hegeliano.

A perspectiva histórica em A condição humana, onde Arendt empreende

realizar uma “análise histórica” pode parecer fatalista. A autora passa grande parte

da obra explicando pormenorizadamente o significado do labor, do trabalho e da

ação. Mas o sentido de tais atividades aparece quando vem à tona o esquema

histórico subjacente. Cada época reflete de modo distinto a constelação

hierárquica da vita activa.

Assim, esquematicamente falando, a Antigüidade grega concordava em que a mais alta forma de vida humana era despendida em uma polis e em que a suprema capacidade humana era a fala – dzôon politikón e dzôon lógon ékhon, na famosa definição dupla de Aristóteles; a Filosofia medieval e romana definia o homem como animal rationale; nos estágios iniciais da Idade Moderna, o homem era primariamente concebido como homo faber até que, no século XIX, o homem foi interpretado como animal laborans cujo metabolismo com a natureza geraria a mais alta produtividade de que a vida humana é capaz. Contra o pano de fundo dessas definições esquemáticas, seria adequado para o mundo em que vivemos

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definir o homem como um ser capaz de ação; pois essa capacidade parece ter se tornado o centro de todas as demais faculdades humanas.20

Essas constelações são objeto de análise de Arendt. Se o político é a

atividade fundamental em Atenas, o mesmo não vale para a modernidade que

elevou o trabalho à atividade primordial, nem para o século XIX, marcado pela

ascensão sem precedentes do labor. Na contemporaneidade, avulta-se um

ressurgimento inusitado da ação no campo da ciência e da história, cujo caráter

diferencia-se da ação política.

2.2. O esquecimento do político e o fio da história

Para compreender a perspectiva histórica arendtiana, é preciso observar

ainda o conflito entre política e filosofia, ou entre vita activa e vida contemplativa

que perpassa a tradição ocidental. A contemplação é a atividade por excelência da

filosofia. Em Platão, se fixa definitivamente a sua superioridade diante do mundo

dos negócios humanos. Para o filósofo, a verdade não poderia ser encontrada no

espaço público. Só no mundo das idéias pode-se vislumbrá-la. “O acontecimento

que inaugurou nossa tradição de pensamento político foi o julgamento e a morte

de Sócrates, a condenação do filósofo pela polis. As perguntas que perseguiram

Platão (...) como a filosofia pode se proteger e se libertar dos assuntos

humanos.”21

Arendt retoma a leitura heideggeriana da alegoria da caverna de Platão e

entende que o problema da teoria platônica aparece principalmente no retorno do

filósofo sabedor da verdade ao mundo dos assuntos humanos, que na linguagem

platônica é o mundo das sombras. Ao retornar maravilhado do seu encontro com a

verdade, o filósofo, que deve adquirir a importância do rei-filósofo, transforma a

verdade num padrão – numa justa medida –, que passa a aplicar para orientar as

suas ações e dos outros ‘cegos’ no mundo das sombras e ignorantes da verdade. 20 ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, p. 95. Lemos ainda que “Não são as

capacidades do homem, mas é a constelação que ordena seu mútuo relacionamento que deve mudar e muda historicamente.” Ibid, p. 94.

21 Id., Compreender, p. 444.

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Trata-se do processo de adequação da verdade apontado por Heidegger. Arendt vê

nessa adequação um problema político fundamental. Toda a vita activa encontra-

se sobre o domínio da teoria. Sua desvalorização não permite sequer que se

estabeleçam as diferenças que existem dentro da própria vita activa entre as

atividades do labor, do trabalho e da ação.22

A Antigüidade que a autora busca para compreender o político e sua

submissão é a do florescimento da pólis, do espaço político em sua plena

realização. Seus exemplos não serão Platão e Aristóteles, embora esse último

tenha papel fundamental em seus estudos. A Antigüidade evocada por Arendt é a

que traz à luz a vita activa preterida pela filosofia. Por isso, acolhe Homero,

Sólon, Heródoto e Tucídides. Nesses textos, encontra a referência ao concreto e à

realidade política e histórica. Se Heidegger retoma os pré-socráticos para

contrapor à tradição metafísica, Arendt busca a realidade política e histórica na

pólis e nos autores que tratam dos assuntos humanos do ponto de vista do mundo.

Na tentativa de livrar-se da tradicional valorização da teoria e do pensamento, a

autora enfatiza a experiência histórica para revelar a autonomia do político. Mas

não estaria a autora promovendo a superioridade do político?

A história do esquecimento do político começa já na Grécia com o enlace

estabelecido pela filosofia – essa relação de determinação entre teoria e prática

caracteriza, para a autora, o início da tradição ocidental. No entanto, apesar da

supremacia do pensamento sobre a ação, os filósofos ainda associavam a

liberdade à pólis. “Com o desaparecimento da antiga cidade-estado – e Agostinho

foi, aparentemente, o último a conhecer pelo menos o que outrora significava ser

um cidadão – a expressão vita activa perdeu o seu significado especificamente

político e passou a denotar todo tipo de engajamento ativo nas coisas deste

mundo.”23 A indistinção entre as atividades da vita activa caracteriza um

obscurecimento que avança com o fim da diferenciação entre público e privado,

quando tudo se torna social na época moderna.

O fim da pólis e, sobretudo, a queda do Império romano do ocidente

revelam a precariedade das coisas desse mundo. A ascensão do cristianismo e a

sua concepção de que a alma é eterna em oposição ao mundo finito indica à 22 Id., Entre o passado e o futuro, p. 152. Sobre a leitura de Heidegger e Arendt da alegoria

da caverna ver MORAES, E., “Hannah Arendt. Filosofia e política.” In: MORAES, E; BIGNOTTO, N. (org.) Hannah Arendt. Diálogos, reflexões, memórias, pp. 35-47.

23 ARENDT, H., op cit, p. 22.

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Arendt a transposição da liberdade política para a liberdade individual e espiritual.

Os tempos soberanamente religiosos dos idos medievais são marcados pela

preocupação com o transcendente, que a rigor, está fora do mundo e não diz

respeito aos homens da Terra.

Para compreender essa transformação histórica que afeta todo o desenrolar

da relação com a vita activa é preciso sublinhar a ênfase que Arendt concede aos

assuntos humanos. Ao caracterizar a estrutura das atividades humanas, a autora

trabalha com a divisão entre vida do espírito e vita activa. Todas essas atividades

são humanas. Talvez só o labor possa ser uma atividade comum entre homem e

natureza, pois é justamente aí que o homem se encontra como espécie. No

entanto, a atividade humana, por excelência não é o pensamento, como grande

parte da tradição filosófica julga. Na perspectiva arendtiana, a grandiosidade

humana, aquilo que ‘define a humanidade do homem’ é o que aparece na esfera

política, qual seja, a liberdade. A liberdade parece ser a principal característica do

homem que vêm ao mundo. A equiparação entre liberdade e política é o que

permite a muitos autores entender que a questão mais importante da obra

arendtiana é a do político. O que se refere ao político, Arendt denomina “negócios

humanos” ou “assuntos humanos”. É tudo o que se passa entre os homens no

sentido plural vislumbrado pela autora.

Quando o cristianismo concede ao homem a liberdade da alma e a

depreciação das coisas desse mundo, isto é, do mundo público, o político passa ao

segundo plano. Arendt indica a passagem bíblica “A César o que é de César e a

Deus o que é de Deus” com o intuito de revelar essa separação entre mundo

terreno e mundo divino promovida pelo cristianismo, que, de certo modo,

consegue realizar a separação teórica entre dois mundos pressuposta pela filosofia.

Se na Grécia a política tem seu lugar assegurado, esse lugar vacila com o fim da

cidade estado e, finalmente, decai com a queda do Império romano. E mesmo

Agostinho, que ainda tem a perspectiva do que é ser um cidadão não tem

esperanças a respeito do reino terreno e entrevê A cidade de Deus. Ao mundo

terreno, subjugado, resta a vitória do social que Arendt anuncia na “substituição

inconsciente do social pelo político [que] revela até que ponto a concepção

original grega havia sido esquecida”.24

24 Id., A condição humana, p. 32.

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A história do Ocidente vista assim é eclipsada pelo obscurecimento do

político. De um momento grego de plena realização passa-se à distinta situação

romana, donde declina o político com a ascensão do cristianismo. Sob essa

perspectiva, a Idade média nada tem a oferecer. Apesar da referência à existência

de um “espaço público nas Igrejas”, não é possível, ao certo, determinar o

significado dessa formulação, considerando a ausência do tema na obra

arendtiana. O que se pode imaginar é que haja liberdade entre os homens da Igreja

ou dentro de um monastério entre os irmãos. A dificuldade de conceber um

espaço de liberdade concreta nos tempos medievais, tendo como referência a

liberdade política da pólis, se sobressai porque a própria liberdade no medievo

surge como uma questão da esfera religiosa e individual – a liberdade interior.25

O que interessa não é buscar uma correspondência histórica exata entre o

espaço público em cada momento histórico. Se nos detivermos às declarações da

autora, podemos compreender que há um esquecimento do político, mas não um

completo aniquilamento. Apenas quando fala do totalitarismo, Arendt concebe

uma organização que tenta excluir qualquer tipo de liberdade e suprimir a

possibilidade da ação. Para a história desse esquecimento é importante ver que o

momento que dá continuidade à evasão do mundo pelo cristianismo é o advento

da modernidade. Com a secularização, “os homens modernos não foram

arremessados de volta a esse mundo, mas para dentro de si mesmos.”26 Do

declínio do político pela transcendência religiosa, a autora passa a analisar o

obscurecimento do político pela moderna concepção de mundo. E observa que em

vez de voltar novamente a se preocupar com o mundo, como antes do subterfúgio

cristão, os homens arregimentam uma nova fuga do mundo. Seguindo um sentido

contrário, não alçam mais a saída pelo ‘alto’, mas preferem afastar-se do mundo,

voltando-se para si mesmos – a saída para ‘dentro’.

No texto em que fala especificamente da história e dos seus conceitos

antigo e moderno, Arendt destaca a possibilidade de uma “abertura” para o

político nessa passagem do cristianismo à modernidade. Nesse sentido, pode-se

entender sua leitura do florescimento da ciência política com Maquiavel e o

interesse que desperta nesse início da modernidade. A emergência do político e a

expressão dos pensadores políticos que tentam novamente explicar a ação trazem

25 SKINNER, Q., Liberdade antes do liberalismo. 26 ARENDT, H., A condição humana, p. 266.

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ao cenário do renascimento os exemplos da Antigüidade clássica. A preocupação

com o mundo parece ser atualizada. “E de fato, no início da época moderna tudo

apontava para uma elevação da ação e da vida política...”27

Essa tendência é, no entanto, suplantada pela concepção moderna que

coloca em primeiro plano a dúvida quanto à capacidade humana de ver o mundo e

sua realidade. É na dúvida cartesiana que se pode encontrar a modernidade

filosófica a qual a autora se refere. No entanto, segundo ela, essa dúvida advém do

evento radical que foi o aparecimento do telescópio. Note-se que a ênfase

arendtiana sempre recai no apontamento de fatos da realidade. Tal como se

empenha em buscar a experiência concreta da pólis, em vez de basear-se apenas

no pensamento filosófico, na delimitação da modernidade, também segue esse

rumo e indica o despontamento dos eventos históricos – a descoberta do novo

mundo, a contra-reforma e o invento de Galileu - como marcos fundamentais. Do

mesmo modo, a autora concebe que é o totalitarismo e sua realidade concreta que

interpõe a ruptura com a tradição, e não as teorias filosóficas que pretendem se

desvencilhar do pensamento tradicional. Marx, Kiekergaard e Nietzsche são

considerados na esteira da filosofia ocidental. Se apresentam concepções

renovadoras, elas aparecem à Arendt menos como ruptura, que como inversão da

perspectiva tradicional. Por isso, traça uma distinção entre fim da tradição e

ruptura com a tradição. O fim está relacionado à operação intelectual da inversão

dos fundamentos tradicionais da teoria, da religião e da verdade racional. Segundo

Arendt, “Kierkgaard, Marx e Nietzsche desafiaram os pressupostos básicos da

religião tradicional, do pensamento político tradicional e da Metafísica tradicional

invertendo conscientemente a hierarquia tradicional dos conceitos.” 28 Mas a

ruptura que produz a “quebra em nossa história” e interrompe sua “continuidade”

não advém da esfera do pensamento, mas sim do âmbito da realidade. Essa

diferenciação entre fim e ruptura revela a separação que a autora concebe entre

fatos da realidade e teorias do pensamento, indicando a valorização dos eventos

históricos. Fundamental nessa divisão é perceber que os fatos e eventos, por mais

que apareçam por intermédio dos atores humanos não podem ser entendidos como

produto da vontade de ninguém, enquanto que a teoria implica a empreitada de

27 Id., Entre o passado e o futuro, p. 110. 28 Ibid, p.53.

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determinados autores. “A ruptura em nossa tradição é agora um fato acabado. Não

é resultado da escolha deliberada de ninguém, nem sujeita a decisão ulterior.”29

A concepção de história de Arendt precisa ser compreendida a partir dessa

importância que a autora confere à revelação dos fatos. De certo modo, tal

importância está relacionada àquela valorização dos assuntos humanos a qual nos

referimos anteriormente. Os fatos ou eventos estão no âmbito da ação. Seu

aparecimento deve-se à atividade dos atores na esfera pública. Os fatos ou eventos

só aparecem no mundo compartilhado pelos homens. Eles constituem a realidade

e tornam-se o objeto da história. Ainda não trataremos da perspectiva arendtiana

sobre a escrita da história. O intuito nesse momento é mais elaborar a sua

narrativa a respeito da história do Ocidente. Por ora, basta ressaltar que para

Arendt nem tudo o que se refere à vita activa é necessariamente histórico. A

história é a história dos feitos e eventos; e, portanto, tem uma afinidade intrínseca

com a esfera política. Nesse sentido, acreditamos que o destaque que a autora

promove sobre a realidade ‘concreta’ dos eventos acarreta a proeminência não só

do político, mas também do histórico.

Em sua narrativa da história do ocidente sob o ponto de vista do

esquecimento do político, a autora evidencia o caráter transformador dos eventos.

Arrisca-se a dizer contra a tradição do pensamento filosófico que “não são as

idéias, mas os eventos que mudam o mundo.”30 Atribui à Galileu e à sua

descoberta do telescópio importância central quando se trata de compreender as

transformações da modernidade. Arendt também destaca a relevância de outros

eventos como a descoberta da América e a Reforma. Esses eventos mudam a

maneira de ver o mundo. A filosofia cartesiana só pode ser entendida a partir

dessas mudanças históricas. O que Descartes revela em sua filosofia é o

questionamento do mundo real pelo sujeito pensante. A dúvida que recai sobre

tudo só encontra o núcleo duro do pensamento como certeza no “penso, logo

existo”. Segundo Arendt, a dúvida cartesiana é a dúvida quanto à realidade do

mundo visto pelos sentidos. O engano dos sentidos provado pelo instrumento de

Galileu, donde se conclui que, diferentemente do que vemos a olho nu, o Sol não

gira em torno da Terra, coloca em xeque toda a realidade tal como se apresenta. A

mudança de paradigma na modernidade deve-se a essa suspeita quanto à

29 Ibid, p. 54. 30 Id., A condição humana, p. 285.

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capacidade humana de ver o real. Desde então o homem moderno passou a

‘buscar’ a verdade através dos instrumentos que fabrica para ver melhor. Arendt

mostra que a desconfiança dos sentidos e o conseqüente declínio da contemplação

provocam um deslocamento na concepção de verdade. A explicação sobre o que

uma coisa é deu lugar à compreensão do processo do que uma coisa se tornou. A

passagem do “que” para o “como” implica na substituição da contemplação da

verdade pela observação da verdade através de instrumentos específicos

fabricados pelo homem. A verdade revelada dá lugar à verdade fabricada.

Ao examinar esse deslocamento para a modernidade designado pela autora

como uma “perda do mundo”, não é possível concluir que ela se mostre saudosa

do caráter contemplativo dos filósofos. Lembre-se que o esquecimento do

político, em curso desde o fim da cidade-estado antiga, é já um traço fundamental

do pensamento platônico que evidencia a contemplação e a separação dos dois

mundos – o da verdade e o das sombras. Essa perda de mundo corresponde a seu

modo ao próprio declínio do político. Assim, a mudança de paradigma traz à tona

uma nova relação de subjugo do político. Na leitura arendtiana, o que muda é a

forma da sujeição do político. A desvalorização do mundo que se faz na filosofia

e no cristianismo em prol de uma transcendência para o mundo das idéias ou para

o mundo divino é efetuada pela introspecção na modernidade. O sujeito volta-se

para dentro de si mesmo e encontra a verdade na sua própria razão.

A era moderna é também o período que corresponde à ascensão do homo

faber. Para Arendt, a alienação do mundo é visível na expropriação das classes

camponesas. O espólio do solo priva grande parte da população de um lugar no

mundo e coloca em primeira ordem a necessidade de procurar sustento com o

próprio trabalho. A autora refere-se ao momento conhecido como crise do

feudalismo quando se tornou possível ao capitalismo entrar na fase de acúmulo de

capitais. A desvalorização da propriedade e a ênfase na riqueza móvel que se

torna renovável fonte de lucro mantenedora do processo contínuo de aumento do

capital também é a ponta do iceberg onde Arendt vê surgir a modernidade. Note-

se que a passagem para a modernidade indica-lhe a perda da estabilidade e o

início do predomínio do processo devorador, onde nada vale por si mesmo, pois

tudo adquire valor através de sua imersão no processo. Trata-se do reinvestimento

constante do capital no processo progressivo e infinito do capitalismo. Na

preponderância do homo faber ainda há a importância do produto fabricado, mas,

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posteriormente, com a ascensão do animal laborans, o processo adquire

importância por si mesmo. Se a autora faz questão de distinguir esses dois

momentos da modernidade, o primeiro que se inicia no século XV e o outro que

começa no século XIX, deve-se destacar que a valorização do trabalho está ligada

à posterior promoção do labor. O trabalho fomenta a noção de processo. Através

da objetividade da produção controla o procedimento com início e fim, trazendo

ao mundo os artefatos materiais que lhe garantem a durabilidade artificial. Com a

decadência do homo faber, os produtos do trabalho importam menos que o

próprio processo de fabricação. O processo adquire valor por si mesmo, de tal

modo que o homem perde o controle sobre ele. É como se o feitiço virasse contra

o feiticeiro. O homem inicia os processos, mas eles assumem vida própria.

A primazia do homo faber na era moderna revela a inversão entre vita

activa e vita contemplativa. Arendt usa essa idéia de inversão diversas vezes.31

Em geral, refere-se a diferentes inversões entre a vita activa e a vita

contemplativa. Mas acredita que a modernidade promoveu uma inversão

inovadora quando elevou a vita activa à superioridade sobre a vita contemplativa.

Deve-se observar que a autora atribui caráter de novidade à moderna inversão da

hierarquia entre vita activa e vita contemplativa, que coloca a fabricação no ápice

das atividades humanas, sobretudo, porque considera que o subsídio de tal

inversão não vem da própria esfera do pensamento, mas sim da realidade. É o

evento do telescópio que provoca a transformação.

Com a inauguração da suspeita moderna, “o filósofo já não volta as costas

a um mundo de enganosa perecibilidade para encarar outro mundo de verdade

eterna, mas volta às costas a ambos e se recolhe dentro de si mesmo.”32 Essa volta

para si mesmo designada como a moderna perda do mundo é, portanto, mais

radical que a rejeição filosófica do mundo na Antigüidade. Se, em ambos os

casos, Arendt destaca o subjugo dos assuntos humanos, por outro lado, entrevê a

gravidade da situação moderna, que separa de uma vez por todas pensamento e

experiência. Os filósofos gregos, apesar de retirarem a verdade para um mundo

ideal, de modo a separar essência e aparência, ainda estavam vinculados à pólis.33

31 Arendt fala que a tradição do pensamento filosófico iniciada com Platão baseia-se numa

inversão da concepção homérica de vida após a morte. Ibid, p.305. 32 Ibid, p. 306. 33 Veja uma boa passagem em que Arendt esclarece essa diferença “a filosofia dos gregos

segue ainda a ordem estabelecida pela polis mesmo quando se volta contra ela.”

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Assim, também se pode compreender a desvalorização cristã do mundo. Embora a

alma eterna seja o que está realmente em jogo, há com o cristianismo uma

valorização da vida na Terra. A condenação do suicídio é uma prova disso, como

atesta a autora.

A perda de mundo na modernidade é inovadora na tradição ocidental.

Embora não acarrete exatamente uma ruptura na continuidade da história. De

certo modo, a negação dos assuntos humanos pelos filósofos na Antigüidade e

pelo cristianismo encontra ecos na perda do mundo moderna, que é também uma

rejeição da realidade fugaz que aparece aos olhos humanos. Apesar de destacar a

novidade da situação moderna, Arendt enfatiza a continuidade no que se refere ao

esquecimento do político, pois é a partir dessa perspectiva da continuidade que

traça sua história do ocidente como história do declínio do espaço público.

Apenas o advento do totalitarismo interrompe essa continuidade. Se assim o faz

não é porque constitua em si uma suspensão da negação do político. Ao contrário,

na narrativa arendtiana vemos que o totalitarismo é o ápice dessa negação. É

quando se pretende isolar completamente os homens uns dos outros e excluir a

possibilidade da pluralidade através da instituição do Uno totalitário, no qual

todos devem ter a mesma opinião. A ruptura totalitária significa que o

esquecimento do político foi levado ao extremo. A partir daí não é mais possível

pensar através dos parâmetros tradicionais. Impõe-se um evento inédito.

Esta brotou de um caos de perplexidades de massa no placo político e de opiniões de massa na esfera espiritual que os movimentos totalitários, através do terror e da ideologia, cristalizaram em uma nova forma de governo e dominação. A dominação totalitária como um fato estabelecido, que em seu ineditismo, não pode ser compreendida mediante as categorias usuais do pensamento político, e cujos ‘crimes’ não podem ser julgados por padrões morais tradicionais ou punidos dentro do quadro de referência legal de nossa civilização, quebrou a continuidade da História Ocidental.34

É importante distinguir os dois momentos mais recentes apresentados na

história arendtiana onde se visualizam as mudanças no trato da condição humana.

A ruptura da tradição só aparece com o advento do totalitarismo. Desde então se

enuncia a divisão entre a “era moderna” e o “mundo moderno”. Não é n’ A

condição humana que a autora traça a história dessa ruptura, pois não se preocupa

em referir-se ao totalitarismo. Note-se que Origens do totalitarismo é uma obra

34 Id., Entre o passado e o futuro, pp53-54.

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anterior, onde Arendt busca compreender especificamente esse fenômeno. A

distinção entre era moderna e mundo moderno já está concebida, e aparece

claramente na história do ocidente contada n’ A condição humana. Ainda no

prólogo, a autora indica que “a era moderna não coincide com o mundo moderno.

Cientificamente, a era moderna começou no século XVII e terminou no limiar do

século XX; politicamente, o mundo moderno em que vivemos surgiu com as

primeiras explosões atômicas.”35 O mundo moderno é o mundo em que vivemos

ou o mundo em que vive Arendt na década de 1950 e que, segundo ela, veio a

tornar-se realidade desde “pouco mais de uma década”, com o domínio da

tecnologia e a capacidade humana de agir a natureza, iniciando processos naturais

que não existiam na natureza como a fissão atômica. Se desejássemos traçar uma nítida linha divisória entre a era moderna e o mundo em que agora vivemos, provavelmente encontra-la-íamos na diferença entre uma ciência que vê a natureza de um ponto de vista universal, e assim consegue dominá-la completamente, e uma ciência verdadeiramente ‘universal’, que importa processos cósmicos para a natureza, mesmo ao risco óbvio de destruí-la e, com ela, destruir o seu domínio sobre ela.36

A distinção entre a era moderna e o mundo moderno – pós-totalitário,

aparece em A condição humana através da transformação da ciência moderna em

tecnologia. É com o desenvolvimento tecnológico que a ação retorna

inusitadamente ao palco da história. Torna-se uma atividade de suma importância,

embora esteja restringida ao círculo dos cientistas. Depois consideraremos as

implicações do ensaio “Verdade e política”, onde Arendt retoma essa demarcação

e observa que, desde quando se pretende criar uma realidade histórica totalmente

fictícia, recorrendo à ocultação e deturpação dos fatos – verdades factuais –

também se está agindo história.

Por ora, é importante acompanhar os desdobramentos da história conforme

a leitura arendtiana na “condição humana”, pois a estrutura geral da história do

ocidente aparece nessa obra. A distinção entre a era moderna e o mundo moderno,

que comumente operamos como a diferenciação entre o moderno e o

contemporâneo, sugere o rumo que a história toma na atualidade. Na prática, a

história traçada pela autora só vai até a ascensão do animal laborans. Ela mesma

admite “Não discuto esse mundo moderno que constitui o fundo sobre o qual este

35 Id., A condição humana, p. 13-14. 36 Ibid, p. 281.

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livro foi escrito”.37 No entanto, esse mundo moderno - “mundo no qual vivemos”

-, não deixa de se mostrar tanto na “condição humana” como em toda a sua obra.

Arendt tem uma preocupação clara com o mundo em que vive. Se pretende

restringir sua análise à compreensão do passado e da história, realizando uma

“análise histórica”; isso não significa que não esteja envolvida com os problemas

de seu século. Mesmo se quisesse de fato fazer uma análise ‘neutra’ não

conseguiria pelo simples fato de que todos estão de certo modo comprometidos

com sua época e seu lugar no mundo. A declaração da autora, no entanto, deve ser

entendida num outro sentido, pois ela não parece negar as intenções de

compreender o totalitarismo. Segundo Roviello, essa é a grande questão de sua

obra. O totalitarismo é o ponto central da vida e do pensamento arendtiano. A

própria retomada do passado e tentativa de compreensão do político e do histórico

parecem enraizadas no esforço de entender o que significa esse evento crucial do

século XX.38

Temos que entender seu ‘afastamento’ através da “análise histórica”, à luz

da separação que entrevê entre ação e pensamento. Quando empreende uma

“análise histórica” e não intenta prever ou prescrever qualquer sentença sobre o

futuro, Arendt está sendo coerente com sua idéia de que o pensamento não pode

orientar a ação. Assim, é possível entender as restrições da autora ao falar do

mundo em que vivemos. Não quer indicar um caminho para a ação. Tem muito

cuidado para não ser mal interpretada nessa questão.

Ressalvas à parte, o pretendido é destacar a separação que a autora faz

entre era moderna e mundo moderno, principalmente, porque essa distinção

parece de suma importância quando se tenta compreender não apenas a sua teoria

da história, mas a própria situação contemporânea da história. Ao apresentar um

panorama das diferentes épocas históricas visto sob a organização da condição

humana, Arendt destaca que a Antigüidade valorizava o zoon politikon, que cedeu

sua preponderância ao animal rationale, substituído em importância pelo homo

faber na era moderna, que, por sua vez, perde seu posto com a vitória do animal

laborans no século XIX. Observando esse quadro tem-se a impressão de que até

hoje persiste a preponderância do animal laborans. Se a história arendtiana

“acaba” com a vitória do animal laborans, é possível visualizar um

37 Ibid, p. 14. 38 ROVIELLO, A., Senso comum e modernidade em Hannah Arendt, p. 7.

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prolongamento desse momento, que surge como seu desenvolvimento e pode até

mesmo ser considerado como uma nova situação onde reina a tecnologia e o

homem passa a agir natureza, criando processos naturais.

De certo modo, trata-se da mesma conjuntura, considerando que a

tecnologia tem seu fundamento na ciência. A separação entre moderno e

contemporâneo, apesar de estar marcada pelo totalitarismo e pelas explosões

atômicas, comporta uma ligação que é a mesma anunciada pela autora quando

chama a atenção para o fato de que o relativismo do mundo moderno não teria

sido inaugurado por Eisntein e sua teoria da relatividade. Já na premissa de

Galileu, que se baseia na desconfiança dos sentidos, estaria em jogo a

relatividade. Ver o Sol girando em torno da Terra é uma questão relativa. Depende

de onde se vê. Tal como há uma espécie de prolongamento entre a passagem da

valorização do trabalho para o labor, donde o processo controlado adquire

importância por si mesmo, existe também o contato entre o moderno e o

contemporâneo. A situação de extrema relatividade em que parece que nos

encontramos até hoje pode deitar raízes na perda do mundo, a qual acomete o

homem moderno no voltar-se para dentro de si mesmo. O telescópio, instrumento

que marca o advento moderno aos olhos de Arendt, retira do homem sua certeza

sensível. Para ver o mundo, o homem precisa ‘olhar’ através do aparato técnico. O

instrumento, por sua vez, é um produto elaborado pelo próprio homem. Seu cerne

é mais a mente humana que a possibilidade de contato com um mundo exterior,

por isso, a técnica que propicia a capacidade de ‘ver’ como se estivesse fora do

homem, estaria levando-o para longe do mundo e para perto de si mesmo.

A noção da perda de mundo moderna é fundamental no pensamento

arendtiano não apenas para compreender a modernidade, mas ainda para entrever

as possibilidades do mundo contemporâneo. Se o mundo em que vivemos parece

bastante diferente do moderno, e se a autora fala da ruptura na continuidade da

história para revelar a separação entre esses dois momentos, é preciso considerar

que essa ruptura também aparece, de certo modo, como uma espécie de situação

extrema ou limite da perda do mundo moderna. É nesse sentido que se pode

compreender a evocação de Arendt à Heisenberg, segundo o qual no mundo

contemporâneo surge como uma perda radical de sentido, pois o homem

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“encontra apenas a si mesmo.”39 As origens desse exílio para dentro de si mesmo,

remetem à moderna perda do mundo, que acomete o homem quando desconfiado

de seus sentidos, acredita poder descobrir a verdade do mundo por intermédio de

instrumentos fabricados por sua própria mente. O que Arendt quer dizer com sua

noção de perda do mundo é que o homem perdeu a realidade do mundo,

sobretudo, a possibilidade de sua experiência sensível.

Da inversão entre vita contemplativa e vita activa, tem-se primeiramente a

valorização do homo faber, seguida da vitória do animal laborans, ou seja, uma

inversão hierárquica entre as atividades que constituem a vita activa. Com o homo

faber evidencia-se a supremacia da fabricação e do homem fabricador. Na

fabricação, o homem tem o controle do processo que inicia e finaliza com o

objetivo de alcançar um produto final. Na era moderna, o acesso à verdade passa

às mãos desse homem fabricador e torna-se ela mesma um produto. É através dos

instrumentos que o homem enxerga o mundo. Pela objetividade, concebe a

realidade. Na exaltação da competência científica do homem há a crença de que

mente (o aparelho produzido pela mente) e natureza ainda podem se conciliar. Se

o homem não pode ver a natureza, ele pode ao menos produzir instrumentos que

lhe permitem fazê-lo. Vico volta-se para a história, no afã de entender ao menos

aquilo que o homem faz. Arendt interpreta com receio essa retomada da história e

a guinada para a práxis, como se cristalizaria em Marx. Entende que nessa

concepção de Vico reside o engano, segundo o qual, o homem ‘faz’ a história, tal

como faz um objeto. Na perspectiva arendtiana, a virada para a história não

assume o atributo de um retorno ao mundo e aos assuntos humanos.

A sentença arendtiana sobre a perda do mundo na modernidade, que está

diretamente ligada ao seu julgamento acerca do obscurecimento do político na

história ocidental, encontra raízes na visualização da separação entre experiência e

pensamento. Ao voltar-se para dentro de si mesmo, o homem estaria rompendo

com a conexão entre ser e aparência. Duvidando do que lhe aparece aos sentidos,

imagina encontrar uma verdade por detrás das aparências. O problema para

Arendt é que com essa busca o homem não adentra de modo mais profundo na

realidade do mundo, ao contrário, descobre uma realidade que se torna cada vez

mais uma ‘construção’ da mente humana.

39 Ibid, p. 274.

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Com a vitória do animal laborans esse ‘controle’ que se imagina ter sobre

o mundo começa a se esvair. Quando destaca que a ênfase deixa de iluminar o

produto final e recai sobre o processo de fabricação, Arendt indica a passagem da

concepção objetiva do homo faber para a valorização do fluxo infinito que

acompanha o processo vital vigente na atividade do labor. De certo modo, essa

mudança já parecia anunciada no início do capitalismo. A autora mostra que na

expropriação das classes camponesas retira-se a estabilidade de determinada

parcela da população, que passa a viver apenas no esforço de tentar satisfazer suas

necessidades vitais. “O que foi liberado nos primórdios da primeira classe de

trabalhadores livres da história foi o ‘labor power’, isto é, a mera abundância

natural do processo biológico...”40 O estágio seguinte é o de desvalorização geral

da estabilidade, quando a propriedade em si perde seus status de riqueza e passa a

valer menos que o fluxo de capitais. Ocorre que toda a população torna-se

‘expropriada’ de um lugar no mundo. Se os camponeses realocam a estabilidade

no pertencimento à classe, a generalização da expropriação concede à sociedade o

lugar antes ocupado pela família e pela propriedade. A essa altura, os homens

consideram-se parte de uma nação e comungam dos valores sociais que

preenchem o vazio deixado pela desvalorização da propriedade e da família. O

que se segue, segundo Arendt, é a substituição das classes e nacionalidades pela

noção de universalidade. Nesse momento, a autora entrevê o pleno sucesso do

animal laborans. Os homens imaginam-se unidos pela determinação biológica da

espécie. Teria contribuído para essa vitória, a desvalorização do princípio da

utilidade. Não é o que homem faz que importa, mas a vida em si mesma que

adquire validade. A humanidade do homem é sustentada através do princípio

natural que o iguala a qualquer outra espécie animal.

Se a autora entende que o humano guarda uma especificidade, e que,

justamente, por ter a capacidade de construir um mundo humano em oposição ao

natural e por sua competência para agir, mostrando a singularidade individual e

realizando grandes feitos, o homem se diferencia do restante do universo, ela não

pode aceitar que a humanidade do homem esteja fundamentada na sua

animalidade. No mero nascer espécie humana.

40 Ibid, p. 267.

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Outros autores destacam esse processo de ‘desenvolvimento’ que leva o

homem a ser definido por seu aspecto biológico. Também Michel Foucault e

Giorgio Agamben seguem essa linha de raciocínio e notam a valorização do que

Arendt denomina a atividade do labor, elaborando uma relação entre essa

ascensão do biológico, o declínio do político e a experiência totalitária na

sociedade de massas. Agamben no seu Homo Sacer destaca que Arendt foi a

primeira a notar esse problema da promoção do biológico na política. Mas

percebe que a temática fica esquecida por décadas e só é retomada por Foucault,

que por sua vez, nem menciona as idéias arendtianas.41 Se Agamben concede o

merecido crédito à Arendt isso não significa que sua obra sobre a relação entre

político e biológico esteja plenamente de acordo com o caminho seguido pela

autora. Deve-se ressaltar que, apesar da questão comum, os três autores traçam

perspectivas próprias sobre o que Arendt denomina a “vitória do labor”.

Observemos os pontos principais discutidos pelos autores. Primeiramente,

é preciso entender que nem Focault, nem Agamben falam do biológico como

labor. Foucault analisa o aparecimento do poder biopolítico. Tal estudo insere-se

no conjunto de sua obra como uma continuidade de suas pesquisas sobre o

controle do corpo pelo poder disciplinador nos séculos XVI e XVII. O autor

constata o aparecimento de um novo tipo de poder no fim do século XVIII, cuja

política se volta para o controle não apenas dos indivíduos e dos “homens-corpo”,

mas pretende envolver a massa de indivíduos que se constitui desde então.

Foucault entrevê a valorização do biológico através do crescimento da biopolítica

– das políticas de controle de nascimentos, mortes e doenças. Observa que a

preocupação da política volta-se para as relações entre a espécie humana, isto é,

para o homem enquanto espécie. No curso de 1976, reunido no livro intitulado Em

defesa da sociedade, o autor relaciona o crescimento do biopoder e o

aparecimento do nazismo. “Tem-se, pois, na sociedade nazista, esta coisa, apesar

de tudo, extraordinária: é uma sociedade que generalizou absolutamente o

biopoder, mas que generalizou, ao mesmo tempo, o direito soberano de matar.”42

Deve-se destacar que o importante nessa referência à Foucault é mais

explicitar a ‘continuidade’ do argumento arendtiano, segundo o qual é possível

enxergar a ascensão do labor na modernidade desde o século XIX, que aprofundar

41 AGAMBEN, Giorgio, Homo sacer, p.11-12. 42 FOUCAULT, M., Em defesa da sociedade, p. 311.

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a comparação entre os dois autores. Até porque esse seria um trabalho à parte.

Apesar de existir alguns pontos comuns entre eles, não é fácil fazer uma

equiparação, sobretudo, no que se refere à questão do poder. Foucault busca

desmistificar os discursos de poder, de modo a tornar visíveis as relações

históricas concretas que lhes são subjacentes. No entanto, mesmo quando se refere

aos meandros pelos quais se efetiva o poder, retirando a exclusividade do enfoque

político sobre o Estado como detentor único e exclusivo do poder, Foucault ainda

fala de um poder que oprime e subjuga. Se o autor inova ao analisar as formas

pelas quais o controle se efetiva, estabelecendo a Microfísica do poder, parece que

ainda concebe o poder nos moldes do controle, como instâncias controladoras.

Em Arendt, o poder não tem a tradicional característica de coerção. Sua

definição indica que a máxima do poder é o “Todos contra um”, enquanto seu

exato oposto é o “Um contra todos”.43 O totalitarismo que surge, a seu ver, como

o extremo Uno não deve ser compreendido como poder, mas, ao contrário, como

ausência absoluta dele. Para Arendt, o poder emana da esfera política onde os

homens se relacionam como iguais e diferentes, ou seja, daquele espaço onde

podem ser livres e agir em concerto. Também é necessário mencionar que a

soberania em Arendt não é parâmetro para o totalitarismo, pois essa ausência

máxima de poder é uma novidade radical. Esse é um ponto importante a ser

destacado quando se trata de pensar essa vitória do animal laborans e a

compreensão arendtiana da história. Foucault e Agamben estabelecem uma

relação direta entre essa ascensão do biológico e o totalitarismo. Agamben vê até

um problema na ausência dessa conexão definitiva na perspectiva de Arendt.

Por outro lado, se as penetrantes indagações que Hannah Arendt dedicou no segundo pós-guerra à estrutura dos Estados totalitários têm um limite, este é justamente a falta de qualquer perspectiva biopolítica. (...) o que ela deixa escapar é que o processo é de alguma maneira, inverso, e que precisamente a radical transformação da política em espaço da vida nua (ou seja, em um campo) legitimou e tornou necessário o domínio total.44

43 ARENDT, H., Sobre a violência, p. 35. 44AGAMBEN, G., op cit., p.125-26. Ainda sobre essa crítica pode-se ler que “essas

dificuldades devem-se provavelmente tanto ao fato de que, em The Human Condition, a autora curiosamente não estabeleça nenhuma conexão com as penetrantes análises que precedentemente havia dedicado ao poder totalitário (das quais está ausente toda e qualquer perspectiva biopolítica)”. p.12.

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Para compreender a crítica de Agamben é necessário esclarecer que a

vitória do labor significa para o autor que o político é tomado pela liberação da

vida nua. Liberação é mesmo uma libertação de uma forma de vida que estava

excluída e subjugada anteriormente. Agamben destaca que a política se funda a

partir da oposição entre bíos e zoé na Antigüidade. Mas acredita que a zoé – vida

da espécie, que ele chama de vida nua – sempre esteve na base do político,

incluída na exclusão que se lhe impunha.45 A exclusão da vida nua da política

baseia-se na idéia, que aparece claramente em Aristóteles, segundo a qual a

política é uma forma de vida (bíos) especificamente humana. A cisão estaria

fundada na discriminação entre homem e natureza. Deve-se observar que essa

separação que Agamben entende como metafísica é também parâmetro para

Arendt, embora o italiano trabalhe apenas com a oposição dual entre bíos e zóe,

cultura e natureza, política e vida nua; enquanto a autora apresenta a ruptura

tripartite entre mundo natural, mundo humano – construído pelo homem, e mundo

político, designando as atividades do labor, do trabalho e da ação. Essa diferença

parece ser determinante para os caminhos distintos que tomam os autores. Se

ambos concordam acerca da ascensão do biológico, não se pode dizer o mesmo

quanto aos precedentes desse fato. Agambem entende que a política se caracteriza

pela exclusão da vida nua, mas defende que essa exclusão é mesmo uma inclusão

através da qual a política “tolhe e conserva a vida nua”. Por isso, pretende refazer

a concepção de Foucault, segundo a qual o biológico passa a fazer parte da

política moderna. Para Agamben, a zoé faz parte da política, pelo menos, desde a

antigüidade. O que ocorre na modernidade é a liberação dessa vida nua, antes

restrita a um espaço de exceção.

(...) decisivo, é, sobretudo, o fato de que lado a lado com o processo pelo qual a exceção se torna em todos os lugares a regra, o espaço da vida nua, situado originariamente à margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espaço político, e exclusão e inclusão, externo e interno, bíos e zoé, direito e fato entram em uma zona de irredutível indistinção. O estado de exceção no qual a vida nua era, ao mesmo tempo, excluída e capturada pelo ordenamento, constituía, na verdade, em seu apartamento, o fundamento oculto sobre o qual repousava o inteiro sistema político; quando as suas fronteiras se esfumam e se indeterminam, a vida nua que o habitava libera-se na cidade e torna-se simultaneamente sujeito e objeto do ordenamento político e dos seus conflitos, o ponto comum tanto da organização do poder estatal quanto da emancipação dele.46

45 Para uma análise sobre a teoria da exceção ver SCHIMITT, C., Teologia política. 46 AGAMBEM, G., Homo sacer, p. 16-17.

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A partir de sua ‘descoberta’ de que a separação entre bíos e zoé funda o

aparecimento do político na Grécia, Agamben imagina estar desvelando o

fundamento oculto do político que, por sua vez, teria se rompido na modernidade.

Donde se faria visível a vida nua no político. Sua análise de Foucault tem

relevância quando mostra que a vida nua é o ponto de contato que une os estudos

do autor, que parecem divididos entre o exame do biopoder e a pesquisa sobre a

formação do sujeito moderno. A valorização do biológico não se faz presente

apenas do lado das políticas de controle das relações do homem como espécie,

mas aparece também como sustentáculo da democracia, conforme se pode ver na

concepção de direitos naturais do homem. Ao biopoder corresponde o cidadão

moderno.

Para desvelar o lugar de exceção oculto na fundação da política, Agamben

trata de analisar as teorias contratualistas da política moderna. Entende que o

soberano é o lugar oculto da exceção, pois ele está ao mesmo tempo dentro e fora

do espaço do direito. Mostra que o estado de direito baseia-se no topos da

exceção, e indica que sua sustentação “já contém, portanto, desde sempre em seu

ulterior sua própria ruptura virtual na forma de uma ‘suspensão de todo

direito’.”47 Quando a limitação se rompe, todo o direito cai por terra.

Agamben apóia-se em dois argumentos principais. Primeiro defende que a

ascensão do biológico está relacionada ao fim da metafísica da política. Para

compreendê-la deve-se entrever a dissolução do fundamento da política que é a

exclusão-inclusão da vida nua. Em segundo lugar, pretende conceber a

valorização do biológico em sua relação tanto com o totalitarismo quanto com a

democracia. Revelando a "íntima solidariedade” entre democracia e

totalitarismo.48 A liberação da vida nua define ambos os regimes. Forma tanto a

política de controle total, quanto à cidadania que se baseia no nascimento da

espécie. Se o raciocínio funciona para entender Foucault, o mesmo não se pode

dizer sobre a sua compreensão de Arendt. O problema não é que Arendt não tenha

entrevisto a biopolítica. Como o próprio Agamben observou é ela quem abre os

olhos para essa questão da ascensão do biológico. O que Arendt denomina vitória

do animal laborans perpassa a época moderna desde o século XIX em todas as

47 Ibid, p. 43. 48 Ibid, p.18.

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esferas. A valorização do labor, que é a promoção do processo sobre o produto

fabricado pelo homem aparece na elevação da vida a supremo bem. Na concepção

arendtiana, a vitória do labor está implicada tanto nos totalitarismos quanto nas

democracias. Isso fica claro quando lemos A condição humana à luz de Origens

do totalitarismo. O comentário de Agamben se esclarece quando entendemos que,

de modo distinto da sua concepção, Arendt não acredita que totalitarismo é o

mesmo que democracia ou que soberania. Ao contrário, para ela, o totalitarismo

se destaca por sua novidade radical. Se reconhece a existência de “elementos

totalitários” na sociedade democrática e entrevê semelhanças com a fabricação da

imagem americana na época de Nixon e na preocupante caça às bruxas no período

do pós-guerra, Arendt não desterra uma equiparação entre as duas formas de

governo.

A autora tampouco poderia concordar com o fio condutor que Agamben

lança sobre a história. A exclusão da vida nua, na qual o filósofo vislumbra o

fundamento oculto da política, aparece na perspectiva arendtiana como a

separação entre público e privado que garante ao político a criação de uma esfera

distinta da necessidade. O “abismo” que os gregos percorriam entre a casa e a

cidade todos os dias era de suma importância para garantir a liberdade entre

iguais. Arendt entrevê uma liberdade positiva que se baseia na possibilidade de

expor opiniões distintas, manifestar a singularidade e agir em concerto com os

outros. Essa separação não era oculta. Devia aparecer claramente. A política

sempre soube que precisava manter-se diferenciada dos assuntos domésticos.

Onde Arendt vê o esquecimento dessa distinção, Agamben enxerga a ocultação

voluntária da exclusão inclusiva da vida nua. Por isso, as histórias que os autores

contam são tão diferentes, apesar de culminarem no ponto comum da vitória do

biológico. Deve-se notar que a perspectiva de Agamben lhe leva a concluir que a

dominação total era “necessária”. Inclusive, acredita que era isso que Arendt não

entendia. A introdução desse caráter da necessidade na história de Agamben não

encontraremos em Arendt. Para ela, o totalitarismo não estava definido desde o

esquecimento da política. Não é isso que ela quer dizer com a sua remissão à

história desse declínio do mundo público. Essa diferença crucial nos permite

destacar um aspecto fundamental da concepção histórica arendtiana, a saber, que a

história não está definida de antemão. A história trata da realização da liberdade

do homem – da sua capacidade para agir. A distinção entre democracia e

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totalitarismo mostra como a ação humana é superior a qualquer tentativa de

determinação. Até mesmo aquela imposta pela vitória do animal laborans.

A diferença entre democracia e totalitarismo é que na democracia a

valorização da vida é ratificada pela cidadania, ou seja, a humanidade é garantida

ainda pela instituição estatal. Não há, segundo Arendt, a continuidade entre o

nascimento e a cidadania. Apesar da promoção da vida, a democracia não se

sustenta na plena realização do homem natural – essa é uma falácia na qual se

funda o Estado e a igualdade moderna. O totalitarismo, por sua vez, torna suas

vítimas matáveis justamente quando lhes retira a cidadania. Torna os homens

realmente naturais. Na perspectiva arendtiana, o totalitarismo deixa ver que o

direito literalmente natural é um perigo. Agamben refere-se ao resíduo que

aparece na passagem da vida natural à cidadania. O autor também acredita que

esse é um problema fundamental, pois entende que esse ‘resíduo’ torna possível e

até necessário o totalitarismo. Ao fundamentar-se nesse resíduo, o estado de

direito permite que as pessoas que não se encontram sob sua tutela sejam

matáveis. Tal como Arendt, Agamben sublinha que o nazismo precisou

desnacionalizar suas vítimas antes de levá-las aos campos. Desse modo, tornava-

as simplesmente vida nua; membros da espécie, que podiam ser executadas como

“piolhos”. No entanto, o filósofo italiano acredita na possibilidade de eliminação

do resíduo. Entende que na radicalização da indistinção entre político e vida nua

isso poderia se resolver.

Segundo Agamben, o retorno à política clássica, intentado por Arendt e

Strauss, só pode ter um sentido crítico, mas não pode ser a solução para conceber

uma nova política tomada pela vida nua. Agamben não vê qualquer possibilidade

de voltar atrás na indistinção entre político e biológico. Não visualiza meios de

remontar a exclusão metafísica. Divisa em Flamen Dialeb de Dumézil e Kerényi a

possibilidade de uma vida onde “esfera privada e esfera pública identificam-se

sem resíduos.”49 De uma política definida pela exclusão da vida nua, que segue

como espaço de exceção oculto, o autor vislumbra ‘no fim’ a situação da

reconciliação, que é a própria indistinção. Talvez fique mais clara a influência

hegeliana se apresentarmos o ponto em outros termos, observando que, fundada

na negação da vida nua, que torna e invade a política temos a situação

49 Ibid, p. 189.

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contemporânea da indistinção entre política e vida nua. Situação que é a própria

negação da negação, e, de certo modo, a realização da reconciliação. Quando se

descobre o que há por trás do político; seu fundamento oculto, a metafísica fica

para trás e já não é mais possível conceber a distinção. Em Arendt, a reconciliação

também assume papel importante. Aparece como um sentido da história, mas não

como realização da negação. Até porque a autora, embora tenha alguma ligação

com Hegel, esse contato é sempre crítico. Sua ‘coruja de minerva’ anuncia fim e

início como veremos adiante.

Por ora, é preciso destacar que, mesmo a contragosto, a autora insiste na

separação de político e biológico. O pressuposto do ‘puro’ político, como o lugar

livre das necessidades da vida, acarretou à leitura arendtiana a famosa

problemática sobre a separação entre político e social. Na verdade, sua concepção

foge um pouco dessa dualidade e introduz a feliz perspectiva tripartite,

concebendo a ruptura com o biológico através da atividade humana do trabalho,

que instaura o mundo humano dos artefatos, além da separação do mundo

cotidiano pela ação, propriamente política. Assim, não há a oposição direta entre

labor e ação; e a decadência da ação não leva diretamente à promoção do labor,

mas, antes, à ascensão do homo faber. O que indica que não seria possível pensar

na inclusão do biológico no político. Segundo Arendt, a decadência do político

esfumaça a separação entre público e privado e torna tudo uma única esfera do

social. A análise interessante de Agamben pode ser compreendida a partir dessa

dificuldade que temos em conceber a dita separação imaginada por Arendt. A

dificuldade, que nós, modernos, enfrentamos para entender a separação entre

público e privado, como explicitada pela angústia de Mary McCarthy. Agamben

não acredita na possibilidade de qualquer retorno à separação, e traça suas

perspectivas baseando-se numa aceitação desse fato da impossibilidade de

distinção. Assume a tarefa de pensar uma nova política a partir daí. No entanto,

deixa de compreender que Arendt não quer o restabelecimento do mundo grego e

que sua demarcação sobre a distinção das esferas é imbuída de forte consciência

histórica.

A divergência entre os autores pode ser pensada tomando-se a questão da

“crise dos limites”, que se refere à dificuldade de indicação de parâmetros seguros

após a desconstrução da metafísica. Seria o caso de observar que para Agamben,

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a situação contemporânea revela a impossibilidade da distinção; enquanto Arendt

ainda considera possível estabelecer determinados limites?

Roviello acredita que a “A preocupação arendtiana pelo político é

simultânea e indissociavelmente, a preocupação com o que transcende o político e

cuja formulação mais simples é a questão: ‘o que é o homem?’”50 Assim, defende

que Arendt está tratando de pensar o político e o humano dentro de certos limites.

O totalitarismo aparece como o extremo oposto do grego porque é a experiência

que tenta subverter, não apenas o político, mas a própria condição humana.

Mesmo que seja possível perceber que há em Arendt o intuito de fixar

determinados parâmetros que sugerem a especificidade do homem, sobretudo

quando apresenta a arquitetura estável da condição humana, não parece correta a

afirmação de Roviello que infere a delimitação do humano.

Quando se refere à condição humana como condição e não como essência,

Arendt quer justamente distinguir a possibilidade de variação que existe na

condição humana. Com isso, reconhece a alteração da hierarquia entre as

atividades da vita activa nos diferentes momentos históricos. Se há alguma

correspondência entre a experiência grega e a condição humana, isso não impede

a concepção de outras formas de realização do político em situações históricas

distintas. Ocorre que a delimitação arendtiana apresenta uma arquitetura que

permite demarcar limites entre o político e o não-político, mas não comporta uma

sujeição do homem à rigidez da definição “o que é o homem”. É nesse sentido que

podemos entender como Arendt rejeita essa pergunta e se atém à questão sobre

“quem é o homem”.

Em outras palavras, se temos uma natureza humana ou essência, então certamente só um deus pode conhecê-la e defini-la; e a condição prévia é que ele possa falar de um ‘quem’ como se fosse um ‘quê’. (...) as condições da existência humana – a própria vida, a natalidade e a mortalidade, a mundanidade, a pluralidade e o planeta Terra – jamais podem ‘explicar’ o que somos ou responder a perguntas sobre o que somos, pela simples razão de que jamais nos condicionam de modo absoluto.51

Se não é possível determinar “o que o homem é”, pode-se dizer que o

humano não é o animal, e tudo o que o restringe ao âmbito do labor o aproxima da

sua animalidade, ou seja, limita-o a ser membro da espécie. O trabalho como

50 ROVIELLO, A., op cit, p. 7. 51 ARENDT, H., A condição humana, p.18-19.

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competência para instaurar um mundo de artefatos humanos, e, principalmente, a

ação como possibilidade de iniciar o novo no mundo e revelar a singularidade do

homem individual são atividades que discriminam a humanidade do homem,

embora não definam “o que é o homem”. Os limites traçados pela arquitetura da

condição humana não indicam “o que o homem é”, mas sugerem que o homem

não pode ser simplesmente um animal; um mero membro da espécie. Os limites

não aparecem como fundamentação última, para determinar “o que o homem é”,

mas surgem para demarcar a diferenciação entre o mundo humano e o natural,

mais especificamente, entre o biológico e o político.

Por isso, o esquecimento do político não destrói a humanidade dos

homens, embora produza certos homens-espécie. O mundo contemporâneo não é

um mundo apenas de animais humanos. A dificuldade para singularizar-se

enquanto homem está relacionada à vitória do animal laborans e à decadência de

um espaço autenticamente político, mas isso não significa que não seja possível

encontrar homens e que a ação esteja irremediavelmente perdida. Ela mesma traça

o perfil biográfico de alguns ‘homens’ que mesmo em “Tempos Sombrios”

puderam revelar sua ‘humanitas’.52

A análise arendtiana da ação mostra que a humanidade do homem liga-se à

sua possibilidade de se singularizar e instaurar novos começos no mundo. A

possibilidade de tornar-se uma pessoa é dada pelo nascimento, mas não é sua

continuidade direta, tal como o direito natural gostaria que fosse ao conectar vida

natural e cidadania. Para Arendt, a modernidade reduz o espaço no qual as pessoas

podem agir, pois se funda na idéia segundo a qual todos são iguais. É a igualdade

natural dos homens que está na base do direito natural. Na sociedade de massas,

reina o geral e não o particular. A singularidade está menos ligada ao espaço

público que à vida privada. Poderíamos visualizar essa perspectiva com um

exemplo simples. A princípio, todas as pessoas parecem iguais se olharmos um

grupo desconhecido. Apenas quando conversam ou agem de alguma maneira

singular essas pessoas passam a ser “tal” ou “qual”, e saem de um anonimato a

priori. O espaço público na Antigüidade é um lugar especialmente próprio ao

aparecimento das pessoas. Nesse âmbito, elas se distinguem e se singularizam

como pessoas. Deve-se notar que a decadência desse espaço não elimina

52 Id., Homens em tempos sombrios.

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completamente a possibilidade das pessoas aparecerem umas às outras. Não joga

tudo numa zona de indistinção. O cristianismo torna essa etapa do aparecimento

público sem sentido porque faz crer que ao nascer a pessoa já é singular; é uma

alma única e intransferível. Essa projeção da vida como valor transcendental

legou à modernidade o apego à vida natural.

Se o contemporâneo é a época da indistinção, a possibilidade de distinção

por si mesma encontra-se afetada, mas não é irrealizável. Mesmo no totalitarismo,

que, na versão arendtiana, tentou ao máximo eliminar o espaço público, ainda se

pode encontrar exemplos de pessoas que se distinguiram por sua singularidade.

Arendt refere-se aqueles que enfrentaram o nazismo e da sua capacidade de agir.

E mostra a disseminação da indistinção entre os bons alemães que não souberam

diferenciar entre o certo e o errado no momento crucial do nazismo.53 A separação

entre distinção e indistinção indica a realização da capacidade de ação. Distinguir-

se é revelar a singularidade.

Assim, sempre que alguém se diferencia de seus iguais pela sua

capacidade de ação está traçando limites. Está promovendo distinção onde só

parecia haver indistinção. Note-se que, conforme a perspectiva arendtiana, a

indistinção completa é própria da esfera biológica. Os animais de uma mesma

espécie são indistinguíveis entre si. Nesse sentido, sua narrativa da história

ocidental indica como a humanidade caminha progressivamente rumo à

indistinção e à valorização do biológico, embora não seja completamente fatalista.

Arendt não desconsidera a possibilidade da ação humana em nenhum momento

histórico. Nem mesmo sob a tentativa de extirpação total da pluralidade

promovida por Hitler. Parece ser essa crença na capacidade humana de agir que

não permite que a teoria arendtiana da história seja simplesmente mais uma

filosofia da história.

Enquanto Agamben se socorre em Heidegger para defender a aceitação do

destino da indistinção, Arendt situa-se de modo distinto em meio aos autores que

pretendem acrescer a ‘desmontagem’ da metafísica.54 Entende que é preciso

considerar a possibilidade da distinção, não apenas dos homens entre si, mas

53Agamben também menciona essa conseqüência da indistinção quando discute a

incapacidade de distinguir entre forma e conteúdo da lei. A referência de ambos os autores para compreender essa incapacidade de distinção é a Segunda Crítica kantiana. AGAMBEN. G., Homo sacer, pp.65-66.

54 Ibid, p. 159.

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também a distinção das esferas – entre o político e o biológico; entre a ação e o

pensamento. Sua resposta à metafísica não parte da fórmula da indistinção.

Rejeita os preconceitos tradicionais que impõem a hierarquia entre as esferas,

subjugando a ação ao pensamento, e defende que há uma distinção fundamental

entre pensamento e ação. A separação que vislumbra não concebe um lugar fora

do mundo (extratemporal), cuja superioridade poderia orientar as ações dos

homens. Ao contrário, quer estabelecer um bom termo para a distinção.

Segundo a autora, as ‘falácias metafísicas’ não são simples imposturas.

Remetem a questões que continuam valendo. A dualidade do mundo entrevista

pelos filósofos gregos, consagrada na separação platônica entre o mundo

verdadeiro e o mundo das sombras, pretende solucionar o problema da terrível

casualidade do aparecimento do homem na Terra e da imprevisibilidade de suas

ações, e responder ao enigma da abstração do pensamento. O que perde sentido na

desmontagem da metafísica são as respostas que foram dadas a essas dúvidas.

Arendt acredita que quando as explicações tradicionais perdem a validade, os

homens se deparam novamente com os anseios originais que as motivaram.55

É nesse sentido que a temática da história assume aspecto essencial na

obra arendtiana. Partindo do pressuposto de que o pensamento não pode orientar a

ação, pois estão fundamentalmente separados, Arendt entrevê a autonomia de

ambas as esferas e traz à tona o caráter casual da ação humana. Com isso ressalta

a contingência que subjaz na base da história. Se a ação, cuja característica

principal é ser correlata da liberdade, não é orientada pelo pensamento, não é

controlada pelo ator que age, e não é dirigida a qualquer fim específico, a história

também não caminha em nenhuma direção pré-determinada. A equivalência entre

liberdade e ação indica a conexão entre contingência e história. Como é possível

compreender a narrativa arendtiana da história ocidental, que pressupõe o

esquecimento do político, a partir dessa consideração da ação? Seria o caso de

concluir que Arendt traça uma história fatalista da trajetória da humanidade

ocidental, mas acredita na liberdade do homem? Para responder a essas perguntas

pretendemos analisar de que modo sua concepção de ação está conectada a sua

compreensão da história e do histórico.

55 ARENDT, H., A vida do espírito, p. 12.

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3 O inesperado sentido da história - algumas questões de filosofia da história

3.1. A concepção arendtiana da história segundo Luc Ferry e Jacques Derrida

Detendo-se à análise da história que Arendt conta sobre o declínio do

político é possível entender que há o desenrolar de um inevitável destino selado

pelo fim da cidade-estado grega. Como se com a decadência dessa experiência

singular onde a condição humana se realiza em sua plenitude não restasse aos

homens senão o definhamento. Desse ponto de vista, a história arendtiana estaria

muito próxima daquelas narrativas que ela mesma criticava. As histórias que

seguiam um rumo como o do desenvolvimento biológico contando a ascensão e

queda dos impérios. Seria possível entender que a autora está narrando a história

do florescimento e do declínio da própria humanidade? E desse modo não estaria

concebendo uma filosofia da história, entrevendo um sentido único para a história

humana?

Luc Ferry estabelece a distinção entre pelo menos dois tipos de filosofia da

história. O primeiro tipo, que pode ser considerado como o exemplo clássico de

filosofia da história é o desenvolvido por Kant e Hegel, que concebe um sentido

subjacente à história – o ardil da natureza ou a astúcia da razão – como o motor

racional que se move às escondidas por trás da ‘melancólica casualidade’ dos

fatos. O segundo modelo de filosofia da história aparece no irracionalismo de

Heidegger e Arendt.

A discussão de Ferry tem como pressuposto o intuito de rechaçar as

interpretações fenomenológicas que entendem que o totalitarismo está

intrinsecamente ligado ao sucesso da filosofia da história hegeliana.1 Nesse

1 Nesse sentido também há o questionamento de Maurice Lagueux sobre a relação entre o

descrédito das filosofias da história e a associação entre as filosofias da história e os totalitarismos.

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sentido, o filósofo francês traça um questionamento da interpretação arendtiana do

totalitarismo. Segundo Ferry, a acusação fenomenológica contra a filosofia da

história baseia-se principalmente na rejeição da perspectiva hegeliana que, apesar

de voltar-se para a história, concebe a totalidade do processo histórico como

racional, promovendo a idéia de que há uma necessidade causal no

desenvolvimento histórico.

La afirmación ilimitada de este principio según el cual ningún acontecimiento en el mundo ocurriría sin razón y por ende sería inexplicable. La afirmación ilimitada de este principio o, en termos hegelianos, la afirmación de la perfecta racionalidad de lo real (todo es inteligible, al menos en si) fue denunciada en sus consecuencias, sobretodo porque conducía infaliblemente a pensar la historia como um proceso continuo, excluyendo por esencia todo misterio, toda possibilidad de aparición de la novidad radical, puesto que cada acontecimiento, cada ‘etapa’, se relacionaba necessariamente com lo precedente por um nexo causal.2

A condenação da concepção racionalista estende-se às suas implicações

sobre a noção de liberdade do homem. A encarnação da astúcia da razão promove

a visão idealista da história, que a compreende a partir de uma instância exterior –

superior - a ela, acarretando o esvaziamento da autonomia do homem, que perde a

capacidade de agir por si mesmo. A crítica recai também, como descreve Ferry,

sobre a possibilidade de conceber uma realidade completamente manipulável

quando se toma como pressuposto a racionalidade do real. Na verdade, essa

última questão refere-se mais ao marxismo, que ao próprio hegelianismo, já que a

astúcia da razão não deixa tanta margem para o activismo e voluntarismo

vislumbrado por Marx, embora esse autor pretenda combinar a necessidade

histórica, que determina o processo, com o imperativo revolucionário, segundo o

qual, a classe trabalhadora deve ‘fazer’ a história com suas próprias mãos.

A crítica de base fenomenológica à filosofia da história de cunho

racionalista é vislumbrada por Ferry na obra de diferentes autores. O filósofo

Ver: LAGUEUX, M. Actualité de la philosophie de l’histoire: l’ histoire aux mains dês philosophes.

2 FERRY, Luc, Filosofia política II. El sistema de las filosofias de la historia. p.12. “A afirmação ilimitada desse princípio segundo o qual nenhum acontecimento no mundo ocorreria sem razão e por fim seria inexplicável. A afirmação ilimitada desse princípio ou, em termos hegelianos, a afirmação da perfeita racionalidade do real (tudo é inteligível, ao menos em si) foi denunciada em suas conseqüências, sobretudo porque conduzia infalivelmente a pensar a história como um processo contínuo excluindo por essência de todo mistério, toda possibilidade de aparição da novidade radical, posto que cada acontecimento, cada ‘etapa’ se relacionava necessariamente com o precedente pelo nexo causal.” Tradução livre.

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francês destaca que o fundamental nessa crítica que se encontra tanto em

Heidegger e Arendt, como em Merleau-Ponty e Sartre, é que daí surge a

necessidade de defender uma “nova idéia de história” que venha a contrapor-se à

determinação hegeliana da história. À defesa de Hegel, Ferry quer destacar que

por trás da crítica à filosofia da história subjaz outra matriz filosófica, a saber, a

própria fenomenologia. Desse modo, a nova idéia de história aparece com a idéia

de historicidade a partir da “desconstrução” da metafísica empenhada por

Heidegger. Tal suposição se alicerça na concepção de que seria impossível

alcançar a verdade última ou apontar com clareza as estruturas ontológicas na qual

o homem se insere porque sempre está enredado nelas. Não seria viável contar

com um ponto extratemporal, de onde se poderia entrever o desenvolvimento da

razão. O máximo que se poderia perceber é a circularidade hermenêutica da qual

não se pode sair.

A crítica heideggeriana indica a fragilidade da perspectiva racionalista, e,

incide-se sobre as filosofias da história. Não é o caso de aprofundarmos aqui a

complexidade da argumentação heideggeriana, nem de acompanharmos mais

demoradamente a descrição de Ferry. Para o nosso problema da história basta

compreendermos essa oposição que aparentemente, como quer o filósofo francês,

pode-se sugerir a antinomia entre a perspectiva racionalista da história e a

irracionalista.

Na verdade, Ferry não pretende salvaguardar a filosofia da história

hegeliana. Sua intenção de retirar a culpabilidade dessa filosofia sobre ligações

com o totalitarismo associa-se à tentativa de apreender a questão das filosofias da

história num plano mais geral, referindo-se à problemática fundamental da

filosofia e da história, a saber, à controvérsia a respeito da adequação entre a

ontologia, “como estructura vacía” e o real histórico.3 Nesse sentido, o modelo

hegeliano aparece como a possibilidade de compreender o histórico a partir da

estrutura ontológica, que indica de fora da história – no fim da história - o próprio

desenvolvimento da razão no mundo, de modo que a totalidade do real adéqua-se

ao racional. A contraposição heideggeriana evoca a impossibilidade humana de

conceber qualquer ontologia, pois apenas Deus poderia fazê-lo. Ferry destaca o

uso heideggeriano do termo “onto-teo-logía”, que se refere à relação, também

3 Ibid, p. 20.

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entrevista por Kant, entre a ontologia e a teologia. “consiste em denunciar la

ontoteología como circular e mostrar cómo, para fundar la ontologia, se vê

obligada a utilizar ya princípios de la ontologia, de modo que la fundamentación

sigue siendo puramente subjetiva y paradójica.”4

A temática de Ferry importa não apenas por suas referências específicas à

Arendt. O contexto discursivo retomado pelo autor suscita questões pertinentes ao

nosso trabalho sobre a teoria arendtiana da história. Entendemos que a conexão

entre pensamento e ação na obra da autora pode ser compreendida à luz dessa

contenda acerca da relação entre ideal e real, ontologia e histórico. A opção

arendtiana de contar a história da vita activa e buscar compreender a autonomia

do político frente ao teórico é o passo através do qual busca re-traçar o tradicional

vínculo entre ontologia e real histórico. Assim, acreditamos que é fundamental

para explicitar a teoria arendtiana da história, mostrar como a autora livra-se da

abordagem tradicional e abre caminho para vislumbrar a liberdade do homem e a

contingência histórica nos meandros da ligação entre teoria e ação. Arendt não

parece ir ao extremo de descolar completamente “real e ideal”, estabelecendo a

irracionalidade da história. Como se fosse possível contentar-se apenas com a

“melancólica casualidade” dos fatos. Sua teoria da história toma forma justamente

quando pretende rever a ligação tradicional entre pensamento e ação – que supõe a

superioridade do pensamento e descarta a realidade dos eventos –, e erigir um

novo laço entre essas instâncias, que permita salvaguardar a autonomia de ambas.

Daí surge a possibilidade de entrever sentido na história sem atá-la à absoluta

racionalidade ou irracionalidade.

Luc Ferry, no entanto, não vê a tomada arendtiana da história desse modo,

como a possibilidade de bom termo entre real e ideal. Segundo ele, Arendt é mais

uma a impingir a crítica fenomenológica sobre a filosofia da história, associando-a

ao terror totalitário. O autor acredita que essa nova versão da história, cunhada por

ela, sustenta-se na concepção da ação como um milagre, donde toda a história

aparece como algo extraordinário diante do qual o sujeito nada tem a fazer a não

ser esperar que se realize o milagre do Ser. Para o filósofo francês, essa concepção

4 Ibid, p. 19. “consiste em denunciar a ontoteleologia como circular e mostrar como, para

fundar, a ontologia, se vê obrigada a utilizar já princípios da ontologia, de modo que a fundamentação segue sendo puramente subjetiva e paradoxal.” Lacourt-Labarthe aplica o mesmo tipo de raciocínio sobre o próprio Heidegger e acusa-o de estabelecer uma onto-tipologia. Ver LACOURT-LABARTHE, P., A imitação dos modernos.

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arendtiana, tal como a heideggeriana, pretende retirar os vestígios racionalistas da

história para visualizá-la como manifestação da irracionalidade. Numa oposição

clara à perspectiva hegeliana que concebe a astúcia da razão como o fio condutor

por trás da contingência, Arendt, que na visão de Ferry, deve ser alocada ao lado

de Heidegger nessa compreensão da história, desenvolveria sua concepção

irracionalista, baseada na exclusão do princípio de causalidade e na exaltação do

extraordinário. Ferry vê essa abordagem irracionalista como a derrocada da visão

ética do mundo. Entende que, se o sujeito não pode atrelar intenções e ações, e se

a história não tem nenhuma ‘razão’ de ser ou sentido causal, exclui-se a

possibilidade de pensar em sujeitos éticos e responsáveis. A Carta sobre o

humanismo de Heidegger seria o exemplo claro dessa perspectiva.

Ferry não fecha o seu esquema apenas na contraposição entre racionalismo

e irracionalismo, mas pretende definir cinco tipos de filosofia da história a partir

do idealismo alemão. A oposição entre a filosofia da história hegeliana e a

filosofia da história concebida pela nova abordagem histórica da fenomenologia é

a chave de leitura de seu quadro das filosofias da história. Esses dois tipos

radicalmente opostos, segundo a concepção de Ferry, constituem a antinomia

fundamental que está em jogo quando a questão é pensar a articulação entre a

teoria e o real histórico. De um lado, a totalidade racional do real, e, de outro, a

irracionalidade completa. Entre esses dois extremos o autor vislumbra ainda uma

filosofia da história a partir de Fichte, que concebe a história como resultado

práxis e acredita ser possível intervir na realidade a fim de realizar um ideal

exterior à história, qual seja, um ideal teórico. Nesse tipo de filosofia da história,

“la visión moral de la historia a consecuencia de la encarnación de la ontologia

práctica y que apunta, ya hemos visto cómo, a transformar lo real desde fuera en

nombre de um ideal universal de la razón práctica, implica ciertamiente por

esencia certa violência respecto a que lo resiste a la realización del ideal moral.”5

Pela afinidade com a violência, esse seria o tipo de filosofia da história mais

próximo do Terror, mas não do totalitarismo. A vertente que mais sugere

proximidade com o totalitarismo constitui-se como um “misto monstruoso” da

filosofia da história hegeliana e da filosofia da história fichteana. Não é apenas 5 FERRY, Luc, Op Cit, p. 23. “A visão moral da história a conseqüência desse tipo de

encarnação da ontologia pratica e que aponta, já vimos como, a transformar o real desde fora em nome de um ideal universal da razão prática, implica certamente por essência certa violência a respeito de que defende a realização de um ideal moral.”

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teoria, como em Hegel, onde o sentido da história só pode ser visto no final; nem

simplesmente uma filosofia prática com indicação moral como em Fichte, mas “se

basa en el fantasma de una unidad de la teoria y la práxis.”6 A racionalidade do

real histórico está nas mãos de uns poucos espertos, que dirão qual é o sentido da

história. Essa é a filosofia da história marxista, que Ferry associa ao totalitarismo.

Considerando a distinção entre esses quatro tipos de filosofia da história, o autor

propõe a leitura de uma quinta possibilidade baseando-se na terceira crítica

kantiana. Trata-se da vertente aberta pela epistemologia de matriz neo-kantiana.

Ferry concebe sua última representação da historicidade a partir da combinação

pressuposta em autores como Dilthey e Weber. Tal perspectiva toma o

fundamento racionalista, não como uma lei do real, mas como um método de

análise, articulando, a seu ver, teoria e realidade de modo satisfatório. O real

histórico não tem um sentido intrínseco e rígido, ao contrário, como supõe Weber,

parece mesmo estar mais próximo de uma irracionalidade. No entanto, pode-se

auferir o sentido da história e traçar uma explicação através da racionalidade

metodológica. O sentido é atribuído a posteriori pelo estudioso.7

À luz do quadro oferecido por Ferry, pode-se entender a perspectiva

histórica arendtiana através da oposição à filosofia da história hegeliana,

constituindo-se juntamente com Heidegger como uma filosofia da história

irracionalista? Ao analisar a história traçada pela autora em A condição humana

não apareceu exatamente o contrário, qual seja, que o esquecimento da política

desenrola-se como um fio condutor, mantendo a continuidade da história narrada

por Arendt? Em que sentido seria possível coligar a perspectiva histórica

aredtiana à historicidade tal como Heidegger a concebe?

A leitura de Ferry que determina a irracionalidade da história em Arendt e

Heidegger baseia-se no pressuposto de que não há para o mestre alemão, nem para

sua aluna qualquer responsabilidade humana pela história. Sendo a história um

dado do destino, resta ao homem a possibilidade de aceitá-lo. No entanto, pode-se

notar que na antinomia concebida pelo filósofo francês, apesar da diferença

crucial entre a filosofia da história hegeliana, que apreende a totalidade do real

como racional, e a matriz heideggeriana, que se funda no irracionalismo, em

6 Ibid, p. 25. “se baseia no fantasma da unidade entre teoria e prática”. 7 WEBER, M., A objetividade do conhecimento nas Ciências Sociais. In:____ WEBER,

pp.79-127.

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ambos os casos, a ação humana, como possibilidade de intervir na história, está

fora de cogitação. Tratar-se-ia, nas duas concepções, de negar a liberdade do

homem, ao invalidar sua capacidade de ação. Em Hegel, apesar da realização da

história ser a própria realização da liberdade do homem no Estado de Direito, não

há indicação de que a liberdade de ação esteja por trás dessa façanha. Ao

contrário, ao longo da história, Hegel observa que os homens agem por instinto e

paixões. É a astúcia da razão quem atua por trás dos interesses e torna possível a

realização da liberdade no fim da história. Em Heidegger, a ação é mais a

atividade do pensamento que a possibilidade de intervir no curso do destino

humano.

Para mostrar a dificuldade de conceber ação como práxis na perspectiva

fenomenológica, Ferry recorre à apresentação da noção arendtiana de ação e de

negação da causalidade. Arendt estaria arregimentando a idéia de novidade radical

para opor à concepção hegeliana da história, em que há uma continuidade causal

entre os diferentes momentos da história, cuja ligação seria possível pela

racionalidade subjacente ao processo histórico. Para Ferry, a defesa arendtiana da

novidade seria, portanto, um subsídio para negar o sentido da história.

Digamos solo por ahora que en H. Arendt, alumna y discípula de Heidegger (el que este hecho se rechace o no en razón de las opciones políticas de Heidegger, no impide que siga siendo dificilmente recusable), esta nueva idea de la historicidad, cristalizada en torno al concepto de ‘acción’, debía pasar por una verdadera destrucción del concepto de causalidad...8

Ao negar a causalidade, Arendt estaria imaginando uma nova concepção

da história baseada na valorização da descontinuidade e do extraordinário. A

história apareceria como uma “cadeia de milagres”, cujo pressuposto seria a

concepção de milagre do Ser. A principal preocupação de Ferry acerca dessa

crítica fenomenológica gira em torno da validade epistemológica e ética. Segundo

ele, desse ponto de vista da irracionalidade da história desestrutura-se não apenas

a causalidade e a concepção de sentido único e racional na história, mas a própria

possibilidade da ciência e da ética.

8 FERRY, L., op cit, p.14. “Digamos por hora que em H. Arendt, aluna e discípula de

Heidegger (que esse fato se rechaça ou não em razão das opções políticas de Heidegger, não permite que seja negado), esta nova idéia de historicidade, cristalizada em toro do conceito de ‘ação’, devia passar por uma verdadeira destruição do conceito de causalidade...” Tradução livre.

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Uma série de questões está implicada nas considerações de Ferry. Importa

retomar algumas delas para tratar da teoria da história arendtiana. Antes, porém,

na tentativa de introduzir outra perspectiva sobre a problemática da história em

Arendt, segue-se o trajeto percorrido por Jacques Derrida, especialmente, quando

evoca a obra arendtiana como caminho para se pensar a possibilidade de uma

história da mentira, cuja possibilidade refere-se à própria possibilidade da história.

O interesse de Derrida por uma história da mentira, e, sobretudo, pelo

texto arendtiano “Verdade e política”, deve-se, não apenas ao mérito nietzscheano

da “História de um erro”, subtítulo do tópico “Como o mundo verdadeiro acaba se

tornando uma fábula”, que no Crepúsculo dos ídolos apresenta a história do

mundo verdadeiro. Qual seja, a história de como o mundo verdadeiro se tornou

fábula. Nessa narrativa, introduz-se a questão sobre a possibilidade de contar a

história verdadeira da afabulação do mundo. Para Derrida, “Vai se proceder como

se houvesse a possibilidade de uma narrativa verdadeira a respeito da história

dessa afabulação, e de uma afabulação que nada produz senão, precisamente, a

idéia de um mundo verdadeiro – o que ameaça acabar com a pretensa verdade da

narrativa.”9 Por isso, Derrida destaca o tom fabuloso de Nietzsche ao escrever

essa história, apresentando sua questão: seria possível escrever uma história da

mentira sem contar com a história da verdade? A proposição se refere, numa

consideração geral, à própria possibilidade de escrever história. Seria a história,

sempre a história da verdade?

A mentira a qual Derrida se refere não pode ser considerada simplesmente

como um erro diante do correto ou do verdadeiro. O autor alude à tradição

clássica sobre o assunto. Retoma Agostinho e Kant. Do primeiro, apreende que

mentir não é tão somente estar em erro, pois a mentira pressupõe a intenção de

enganar a outrem. De modo que há uma verdade preservada pelo mentiroso para

si mesmo, que está por trás da mentira. A mentira seria, portanto, mais subjetiva

que objetiva. O ponto é o mesmo no qual Kant funda sua razão moral. A mentira é

uma questão de consciência, e só cada um pode saber quais são as suas intenções.

Derrida sublinha com Agostinho, mas não com a segunda crítica kantiana, a

dificuldade de entendermos a mentira a si mesmo como mentira. “por razões

estruturais, será sempre impossível provar, em sentido estrito que alguém mentiu,

9 DERRIDA, J., História da mentira: prolegômenos.

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mesmo se podendo provar que não disse a verdade.”10 O que conta na mentira é a

intenção de enganar a outrem. No sentido tradicional, o mentiroso guarda a

verdade consigo, enquanto tapeia os demais. Com Kant, Derrida busca ainda

esboçar a história do conceito de mentira na sua consideração clássica. Observa

que, o dever de dizer a verdade passa a ser formal e refere-se à humanidade como

um todo, garantindo-lhe a sociabilidade.

À evocação do sentido clássico da mentira, Derrida vincula a historicidade

da mentira, entendendo que uma história da mentira precisa considerar as

transformações e os usos do conceito. É para tratar dessa questão da historicidade

da mentira que o autor refere-se à obra arendtiana e, mais, especificamente, ao seu

trabalho “Verdade e política”, num sentido oposto à perspectiva formal e ‘a-

histórica’ de Kant. Com Arendt, Derrida destaca a transformação do conceito

clássico de mentira na modernidade, e sublinha não apenas a mutação do conceito

‘mentir’, mas a mudança na prática de mentir. Percebe que a abordagem

arendtiana sobre a mentira volta-se para a análise do mundo político. Sua tese é

que a mentira sempre foi instrumento da política, mas, na modernidade ela deixa

de ser exceção e passa a ser a regra. De modo que a intenção de mentir que se

sustenta no conhecimento da verdade dissolve-se numa mentira que não engana

apenas a outrem, mas ao próprio mentiroso. Na modernidade, o mentir é mais do

que nunca mentir a si mesmo.

Derrida observa como Arendt traça o percurso da mentira até a

modernidade, onde teria alcançado seu limite absoluto e se tornado ‘completa e

definitiva’. Esse limite absoluto da mentira não aparece como “no caso do saber

absoluto como fim da história, mas da história como conversão à mentira

absoluta.”11 Não é difícil reconhecer nessa passagem a interpretação arendtiana da

história. A mesma história que se ‘inicia’ na decadência da pólis e tem sua

culminância no totalitarismo. Interessante perceber com Derrida que o

totalitarismo não aparece como um fim da história em Arendt, tal como na versão

hegeliana da filosofia da história, mesmo que haja certa semelhança no que se

refere à continuidade da história traçada por Arendt quando conta o esquecimento

do político, que aparece como uma continuidade da decadência. Enquanto em

Hegel, surge uma continuidade do saber absoluto promovida pela astúcia da

10 Ibid, p. 9. 11 Ibid, p. 12.

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razão, a culminância da história em sua versão arendtiana não é o último estágio

de desenvolvimento como se pudesse equivaler a realização da perfeição. Como

destacado por Derrida, essa culminância seria uma etapa limite onde a mentira

alcança sua realização, tornando-se absoluta. Nesse sentido, teria Luc Ferry certa

razão em acreditar na versão irracionalista da história arendtiana? A realização da

mentira absoluta não parece cumprir exatamente essa irracionalidade? Mas se

assim fosse a irracionalidade não seria mais o fim da história que o seu percurso?

A mesma questão que salta aos olhos quando se dedica a explicar a análise

histórica traçada por Arendt em A condição humana novamente se impõe: pode-se

compreender a teoria da história arendtiana como uma filosofia da história?

Ainda que a idéia de “conversão da história à mentira absoluta” possa

sugerir que Derrida não equipara a narrativa arendtiana ao desenvolvimento da

história em Hegel, ao acompanhar a argumentação do autor, percebe-se que, se há

a impressão de um “fim” da história na narrativa arendtiana, só é possível

compreendê-lo a partir da relação com o hegeliano “saber absoluto como fim da

história”. É quando considera a oposição entre a perspectiva arendtiana e

hegeliana, que o autor sublinha a ligação entre esses “dois fins da História, o

conceito negativo deste mal, a mentira absoluta, à positividade do saber absoluto –

seja em modo maior (Hegel), seja em modo menor (Fukuyama)”. Com a oposição

desses dois “fins” da história, o autor sugere que a versão arendtiana da história

mantém-se conectada à expectativa da verdade. “Se a mentira absoluta tem de se

exercer em consciência e no seu conceito, ela corre o risco de continuar sendo a

outra face do saber absoluto.”12 Assim, a história da mentira narrada por Arendt

permanece atrelada à concepção do “dizer a verdade”. Poder-se-ia concluir que,

para Derrida, a história da mentira está então sempre atrelada à história da verdade

porque a mentira pressupõe a noção de consciência da verdade? Ou que, tal como

os antigos supunham, a história não pode abdicar do légein tá eónta – dizer o que

é?13

Podemos ainda observar que a leitura derridiana da narrativa histórica em

Arendt traz à tona, por outro ângulo, a questão dos limites subjacentes à obra da

autora. A concepção segundo a qual o totalitarismo é o limite absoluto da mentira

revela a vinculação e a fronteira entre verdade e mentira. A negação arendtiana do

12 Ibid, p. 13. 13 Id., Os fins do homem, In:___. As margens da filosofia. p. 147.

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totalitarismo estaria fundada na sustentação da verdade? E nesse caso qual seria o

significado dessa sustentação da verdade na perspectiva da história arendtiana?

A importância que Derrida concede ao trabalho de Arendt sobre a

transformação da concepção de mentira deve-se ao seu próprio intento de

questionar a possibilidade de escrever uma história da mentira. Seu propósito

implica perguntar pela legitimidade de contar a história da mentira. Ao levantar

esse problema com relação à história da mentira, o autor tem em vista a

dificuldade concernente a toda escrita da história. Se vislumbra na obra arendtiana

a possibilidade de conceber uma história da mentira é porque entrevê as

perspectivas de seu conceito de ação, tal como sua ligação com o conceito de

mentira. Na verdade, acredita que, caso seja possível uma história da mentira, é

prudente levar em conta não apenas a concepção arendtiana de mentira e de ação,

mas toda a sua obra.

A rigor, Derrida interessa-se pelo lado mais “desconstrutivista” de Arendt,

onde encontra pontos em comum entre seu trabalho e o da autora. Na teoria

arendtiana, parece reconhecer a tentativa de pensar a atualidade do político,

considerando o que entende como o aspecto “tecnológico-midiático” da

contemporaneidade. O que significa pensar o político em nosso tempo sem os

recursos comumente aceitos, sobretudo, aqueles que se baseiam na existência da

verdade filosófica e em preceitos morais tradicionais. O entusiasmo de Derrida

por Arendt explica-se pela existência de uma afinidade entre os autores. A questão

da mentira surge como o ponto principal desse vínculo. É na sua análise sobre a

mentira que o autor vislumbra a própria possibilidade da história. Não sem razão,

ele destaca a relação entre mentir e agir. Para Arendt, o mentiroso é um homem de

ação. Tanto agir, quanto mentir têm afinidade com a capacidade de imaginação.14

Essa é sua raiz comum que permite ao homem a criação de um mundo novo. A

mentira tal como a ação aparecem, a princípio, com um futuro aberto diante de si,

e, cada uma a seu modo, intervém no curso das coisas. Por isso, ambas têm

relação com a liberdade do homem, que baseada na contingência permite ao

homem “mudar o mundo”.

14 Derrida lembra que tanto Kant, quanto Hegel compreende a imaginação como

“imaginação produtora como experiência do tempo”. Também em Arendt, a mentira e a ação têm sua relação específica com o tempo.

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O que Derrida não observa é que a mentira, e, especificamente, a mentira

moderna, no sentido que Arendt a concebe, acaba enredando a liberdade que lhe é

original numa teia que fecha o futuro como possibilidade do novo. A imagem

construída pelo totalitarismo no âmbito da mentira absoluta conduz a uma

situação tal que toda novidade deve ser convertida à imagem definida

previamente. Com isso, o sistema totalitário, embora fundado na mentira, que é a

princípio saída da imaginação, inibe a possibilidade de se criar um mundo

diferente desse concebido pela mentira, isto é, bloqueia a própria capacidade da

mentira e da ação, que precisam contar com um futuro aberto para existirem.

Assim, se a ação e a mentira se voltam para o futuro, ao passo que a verdade

refere-se ao passado, a mentira perde sua ligação com a novidade quando se vê

presa à imagem que cria. A questão é que a mentira precisa funcionar como se

fosse verdade, e, uma vez inventada, acaba restringindo o contato com o novo que

não condiz com sua validade. Como adverte o dito popular, para sustentar uma

mentira é preciso continuar mentindo. Arendt observa que, para sustentar uma

imagem, é preciso manipular os fatos novos, e com os totalitarismos, essa

alteração dos fatos alcança patamares inéditos.

O problema deles é que precisavam alterar constantemente as falsificações que ofereciam em substituição à história real; as circunstâncias, ao se modificarem, exigem a substituição de um compêndio de história por outro, a troca de páginas em enciclopédias e obras de consulta, o desaparecimento de certos nomes em favor de outros, ignorados ou pouco conhecidos até então. (...) Só o mentiroso ocasional achará possível aferrar-se a uma falsidade determinada com coerência inabalável; aqueles que ajustam as imagens e estórias às circunstâncias em mudança permanente se verão flutuando sobre o largo horizonte da potencialidade, à deriva, de uma possibilidade para outra, incapazes de sustentar qualquer uma de suas invencionices. Longe de conseguir um sucedâneo adequado para a realidade e a fatualidade, eles transformaram os fatos e ocorrências novamente na potencialidade da qual haviam saído anteriormente.15

Ao perder esse limite da mentira e salientar apenas sua semelhança com a

ação, qual seja, o impulso criativo para mudar o mundo, Derrida acaba exaltando

a potencialidade do mentir, e se desvencilhando da ligação arendtiana com a

verdade factual. Interessa-lhe mais a “conversão da história à mentira absoluta”

que confirmaria a existência da realidade phantasma ou espectral. Sua afinidade

com Arendt acaba exatamente nesse contorno. Derrida quer compreender o

15 ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, pp. 17-8.

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espectral, a ficção, a mentira tecnológico-midiática não como uma mentira no

sentido tradicional. Acredita que o exame arendtiano, que destaca a problemática

da imagem na política, revela possibilidades para entender a situação

contemporânea, mas ressalta que a autora não se interessa em aprofundar a

consideração desse aspecto phantasma da “modernidade teletecnológica”, pois

ainda concebe a realização da mentira absoluta como a outra face da verdade. O

que Derrida quer dizer é que Arendt não leva ao extremo a desconstrução, pois

permanece trabalhando com a idéia da vitória da verdade mesmo quando destaca a

transformação da mentira em mentira absoluta, qual seja, naquele tipo de mentira

que se confunde com a verdade pelo fato de que mentir torna-se mais que nunca

mentir a si mesmo. Apesar de conceber a importância do texto arendtiano para a

história da mentira, Derrida acaba por afastar-se de sua concepção “final”, que

julga fundamentalmente “otimista”.

O que parece comprometer o projeto de tal história da mentira, ou pelo menos sua irredutível especificidade, é um otimismo indefectível (...) falar de nosso tempo como idade da mentira absoluta, procurar se dar os meios de analisá-lo com implacável lucidez não é demonstrar otimismo. Otimista, antes, seria o dispositivo conceitual e problemático que aqui se encontra estabelecido ou credenciado. Está em jogo a determinação da mentira política, mas também, antes de tudo, a da verdade em geral, a qual deve sempre triunfar e acabar por se revelar pois, em sua estrutura, como repete freqüentemente Arendt, a verdade é estabilidade assegurada, irreversibilidade; ela sobrevive indefinidamente às mentiras, ficções e imagens.16

O autor estabelece a ligação de Arendt com uma concepção de verdade,

que não é apenas a da veracidade, mas a de verdade como estabilizadora que ele

encontra em Platão e na tradição clássica da verdade como eternidade. Tal

ligação, segundo ele, compromete a possibilidade de pensar a história da mentira e

a história em geral, pois não supõe a possibilidade da “perversão radical”. Ao

contrário, presume que a verdade resistirá. Para Derrida, essa crença na verdade,

não permite compreender o que há de mais específico na nossa época: a

prevalência do simulacro. Seria então o pensamento da autora indicado para essa

nossa tarefa de tentar compreender a história na contemporaneidade?

Nesse texto sobre a “História da Mentira”, o filósofo francês analisa além

de Arendt e outras referências clássicas sobre a mentira, um artigo de Koyré, o

qual também serviu de inspiração para Arendt, embora Derrida não mencione a 16 DERRIDA, J., História da mentira: prolegômenos, p. 34.

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relação entre os dois.17 É certo que Koyré aparece a Derrida na mesma linha que

Arendt, mostrando a singularidade da mentira moderna e a capacidade fenomenal

de mentir do homem totalitário. Mas Koyré acredita que o totalitarismo não foi

além dos limites da mentira, ao contrário, manteve a hierarquia clássica, apenas

invertendo a validade entre verdade e mentira. Nesse caso, Hitler tem um quê de

Maquiavel, embora subverta qualquer virtú enquanto diz a verdade com a

intenção de enganar. Ocorre que, para Koyré, no totalitarismo não há o segredo

político que só o príncipe conhece. A estrutura totalitária é ela mesma fundada

numa “sociedade de segredos”. Arendt também trata dessa questão em Origens do

totalitarismo, onde caracteriza a estrutura totalitária de forma tal que lhe serve a

imagem de cebola para ilustrar o significado do segredo. Não se trata de uma

hierarquia tradicional com o chefe político no ápice de uma pirâmide. No

totalitarismo, tudo é sigiloso e ninguém conhece a ‘camada’ que lhe sucede. O

núcleo da sua arquitetura não está à vista, e sim, escondido como uma espécie de

miolo protegido pelas camadas envolventes.18

Em Koyré, Derrida encontra, no entanto, uma questão que não localiza em

Arendt. A pergunta pelos limites da mentira. Ainda há “direito de falar em

mentira” em meio a tanta mentira? Segundo Derrida, para Koyré, tal como para

Arendt, que não formula explicitamente a interrogação, ainda vale a distinção

entre verdade e mentira mesmo na situação da mentira absoluta do totalitarismo.

Essa temática parece ser o núcleo da discussão de Derrida. Sua pergunta pela

possibilidade de escrever uma história da mentira coloca em questão a própria

possibilidade de escrever uma história do ponto de vista da verdade. Como contar

a história da mentira sem o recurso ao verdadeiro? Como recorrer ao verdadeiro

num mundo de absoluta mentira? Deve-se observar que o autor não trata apenas

da possibilidade da história no sentido historiográfico. Sua questão a respeito da

história trata da própria possibilidade da história enquanto res gestae, e incide

sobre a vigência da separação história e historiografia.19

17 O artigo de Koyré é Réfléxions sur le mensoge. DERRIDA, J., Ibid., p. 26 18 ARENDT, H., Origens do totalitarismo. Para as discussões sobre a autoridade, ver

também O que é Autoridade, In: Id., Entre o passado e o futuro. 19 DERRIDA, J., op cit., p. 10. “Mas será que algum dia se tornará possível distinguir entre:

uma história (Historie) do conceito de mentira; uma história (Geschichte) da mentira, feita de todos os acontecimentos que se deram com a mentira ou pela mentira; uma história verdadeira que ordena a narrativa (Historie, rerum gestarum) dessas mentiras ou da mentira em geral? Como dissociar ou alternar as três tarefas. Não esqueçamos jamais dessa dificuldade.”

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À pergunta sobre os limites da mentira, o autor concede outra resposta. A

possibilidade da história parece estar ligada ao reconhecimento da impossibilidade

de distinguir entre verdade e mentira. Partir da perspectiva da verdade já seria um

meio de excluir a mentira. Uma forma de limitar a história. Talvez não faça

sentido pensar o caráter espectral da contemporaneidade através da concepção de

mentira contraposta à de verdade. O espectral não é nem verdade, nem mentira,

mas se abre como uma diferença entre essas duas instâncias.

Como se sabe, em grego phántasma significa também aparição do espectro: fantasma ou alma de outro mundo. O fabuloso e o fantasmático têm um traço em comum: stricto sensu e no sentido clássico desses termos, eles não pertencem nem ao verdadeiro nem ao falso, nem ao veraz nem ao mentiroso. Antes, assemelham-se a uma espécie irredutível do simulacro ou da virtualidade. É certo que não constituem verdades ou enunciados verdadeiros propriamente ditos; tampouco são erros, enganos propositados, falsos testemunho ou perjúrios.20

Assim, sua crítica à Arendt acerca da persistência da verdade incide

também contra a concepção tradicional que identifica razão e história. O problema

é como narrar uma história sem enunciar uma verdade. Derrida parece retomar, ou

insistir na problemática já divisada em “Os fins do homem”, onde destaca a

relação essencial que persegue a metafísica, e mesmo aqueles que tentam se livrar

de suas amarras, entre o fim do homem e o desenvolvimento histórico. “Para

Husserl como para Hegel, a razão é história e não há história senão da razão.”21

Não é o caso de examinar especificamente a perspectiva de Derrida, pois

para isso seria preciso tomar sua obra como um todo. Porém, a referência ao autor

e, especificamente, ao seu texto sobre a “História da Mentira” é muito pertinente

para iluminar determinados nuances da concepção arendtiana da história, e, ainda

para introduzir alguns questionamentos contemporâneos sobre a possibilidade da

história, sobretudo, aqueles indicados na visão “desconstrucionista” que coloca

em xeque a verdade racional.

No jargão usual contrapõe-se o parâmetro moderno da história, donde a

história é perpassada pela racionalidade, seja ou não na sua totalidade como em

Hegel, à perspectiva pós-moderna, na qual a história surge sob o viés

irracionalista como uma mera casualidade. O questionamento da verdade racional

sobrevém não apenas sobre a existência da realidade em si, que deixa de ser um

20 Ibid, p. 7 21 Id.,. Os fins do homem. In: ____. As margens da filosofia, p. 147.

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fato tornando-se uma sobreposição interpretativa, mas incide contra a capacidade

do historiador de alcançar qualquer verdade do passado, ressaltando sua condição

histórica e subjetiva. Em suma, não poderia haver uma verdade no passado porque

não há essa verdade ou porque ela é inatingível. De certo modo, Derrida interroga-

se nesses dois sentidos quando concebe que a verdade – a distinção entre verdade

e mentira - é um pressuposto limitador, senão inválido, para pensar a história.

Limita a possibilidade de compreensão daquele que escreve a história e restringe

também a própria história que acaba tendo como pressuposto a vitória da verdade.

Por isso, para o autor, ao manter a sombra da verdade, Arendt estaria reduzindo

não apenas sua possibilidade de explicar a história – que não a deixaria entender o

caráter espectral da situação contemporânea -, mas também a própria

possibilidade da história, que teria em vista um fim pressuposto pela vitória da

verdade. Nesse sentido, poderíamos entender que a narrativa arendtiana da

história do ocidente, mesmo que conte a história do declínio do político, o qual se

estende progressivamente até o absurdo completo do totalitarismo, não encontra

seu fim nesse limite. O totalitarismo, que leva ao extremo esse esquecimento,

instaura uma ruptura na continuidade da história que, embora drástica, permite o

ressurgimento da verdade. Se parece necessário pensar mais especificamente a

respeito do que Arendt entende como verdade, e não, simplesmente, concordar

com Derrida, que entende se tratar da concepção antiga da verdade como

permanência, para compreender o sentido da narrativa da história arendtiana, será

importante considerar como advém a mentira absoluta e como ela é ultrapassada.

Mesmo sem aprofundar as considerações de Derrida no quadro mais amplo

de seu trabalho para estabelecer com maior precisão seu aspecto

desconstrucionista, e a sua relação no panorama do que vem a ser entendido como

pós-moderno, vale a pena sublinhar que, apesar do questionamento sobre a

validade da verdade, o autor chama a atenção para a tentativa arendtiana de pensar

uma delimitação do político e novos espaços de responsabilidade na Universidade

e no Judiciário.22 O que parece indicar, a julgar pelo entusiasmo do autor, que ele

também se interessa em entrever no mínimo certos bastiões de responsabilidade

na situação contemporânea. Na verdade, Derrida também parece preocupado com

a ameaça sugerida por Koyré e Arendt sobre o caráter totalitário da mentira, qual

22 Sobre esse ponto ver HABERMAS, J., O discurso filosófico da modernidade.

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seja, o perigo implícito numa completa indistinção entre verdade e mentira.

Visando resolver essa contradição, para qual a saída de Koyré e Arendt ainda seria

a opção pela validade da verdade, Derrida indica a legitimidade de uma

veracidade performativa e sugere a análise do performativo e testemunhal.

A responsabilidade ética, jurídica ou política, caso haja, consiste em decidir sobre a orientação estratégica que deve ser dada a essa problemática interpretativa e ativa, em todo caso performativa, para a qual a verdade, da mesma forma que a realidade, não é um objeto dado antecipadamente, sobre o qual se trataria apenas de refletir adequadamente. É uma problemática do testemunho, em oposição à prova, que me parece aqui necessária...23

Derrida refere-se diversas vezes ao longo de seu texto a essa possibilidade

de entender a mentira pela análise do aspecto performativo, como se pudesse

funcionar como uma alternativa à separação clássica entre verdade e mentira. O

autor explica que não pode tratar mais especificamente o tema do performativo,

mas sugere sua proximidade do testemunhal. Nota-se que, para Derrida, a mentira

“necessita de outro nome, de outra lógica, de outras palavras, requer que sejam

levadas em conta, a um só tempo, certa tecnoperformatividade da mídia e uma

lógica do phántasma (isto é, do espectral) ou uma sintomatologia do inconsciente

para as quais a obra de Hannah Arendt acena, mas ela nunca desenvolve como tal

ao que me parece.”24 Tal fenômeno pode ser compreendido na ligação do

performativo e do sintomal. A análise do testemunho e toda sua dimensão

midiática contemporânea ganha destaque. Nesse sentido, o autor examina o

discurso de Chirac sobre a ‘confissão’ de culpabilidade da França no totalitarismo.

Discurso político transmitido mundialmente. A própria política ganha outro

sentido e o caráter testemunhal – o testemunho diante de um público global –

adquire importância crucial.

Se insistimos nas observações de Derrida é porque apontam para

discussões significantes tanto para pensarmos a teoria da história arendtina,

quanto para buscarmos compreender a situação contemporânea da história. O

questionamento sobre a possibilidade da história é um ponto fundamental nessa

nossa época em que se quer acreditar no fim da história – e da historiografia

enquanto narrativa da verdade. Não apenas os ditos pós-modernos falam da perda

de horizonte que indica a realização da história, mas mesmo os que outrora 23 DERRIDA, J., História da mentira, p. 29. 24 Ibid, 25.

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poderiam ser considerados de ‘esquerda’ demonstram-se desiludidos e já não têm

muitas expectativas sobre alternativas históricas. Afora um grande atentado ou

outro, para falar desde o 11 de Setembro de 2001 nos EUA, temos a arrastada

guerra no Iraque, o velho conflito árabe-israelense, um Chaves desacreditado na

América latina. Poucos eventos políticos de relevância extraordinária. Nada que

realmente possa valer como uma alternativa à democracia capitalista. É claro, há

muita reivindicação a ser feita dentro da própria esfera da democracia e do Estado

de Direito, mas nada que perturbe sua hegemonia. Trata-se de uma plena

realização como pensava Hegel? Obviamente não temos um mundo perfeito.

Longe disso. A desigualdade social entre os países ricos e pobres é abissal e

cresce também nas periferias dos grandes. Seria possível concordar que a

novidade política enquanto evento extraordinário tornou-se impossível? O próprio

extraordinário transfigurou-se em cotidiano? Qual seria o sentido de pensar a

história nesses termos? Permanece algum vínculo entre história e política?

Apesar de repelir a suposta relação de Arendt com a verdade, Derrida

sugere a importância da obra da autora quando se trata de compreender a

possibilidade da história. Nesse sentido, sublinha sua concepção acerca da

capacidade de mentir, que tem o mesmo fundamento da competência humana para

agir – a imaginação e a liberdade. “não existiria história em geral nem história em

particular sem ao menos a possibilidade do mentir, isto é, sem a possibilidade da

ação.”25

A ação, como também notava Ferry, ao incidir suas críticas à filosofia da

história traçada por Arendt, é o núcleo central de uma nova concepção de

historicidade. Tanto Derrida, quanto Ferry, apesar das diferenças de posição

quanto à obra arendtiana, concebem a ação como ponto imprescindível na teoria

da história desenvolvida pela autora. Interessante perceber que os dois autores,

por vias completamente distintas, concluem que Arendt engendra uma filosofia da

história. Ainda que esse termo possa indicar perspectivas tão diferentes quanto a

de Marx e a de Heidegger como defende Ferry ao explorar justamente a variedade

de experiências que se assentam sobre esse conceito.26

25 Ibid, p. 33. 26 Derrida não usa exatamente o termo “filosofia da história”, mas fala do “fim” concebido

por Arendt na realização absoluta da mentira.

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3.2. A imprevisibilidade da ação e a indeterminação da história

A pergunta por uma filosofia da história na obra de Arendt só é válida se

considerar as diversas possibilidades do significado do conceito. De modo geral,

pode-se compreender uma filosofia da história como uma teoria que apreende o

sentido oculto da história. Tradicionalmente, o termo remonta às filosofias de

Kant e Hegel, onde se detecta uma força maior que atua por trás dos homens e

guia a história para um telos determinado. Kant refere-se ao ‘ardil da natureza’, e

Hegel fala da ‘astúcia da razão’. A partir daí, passa-se a conceituar como filosofia

da história as teorias da história que procuram entrever o sentido para o qual a

história se dirige. No entanto, não é tão simples contextualizar e determinar

quando surge e o que é a filosofia da história. Apesar do significado que se pode

ler em seu próprio nome, o qual indica que filosofia da história é uma história

compreendida em termos filosóficos; e da remissão comum a Kant e Hegel na

modernidade, não há consenso sobre o que seja filosofia da história. A diversidade

de teorias da história que podem ser entendidas como ‘filosofias da história’ leva

também a crer que não se pode falar em um único tipo de filosofia da história. O

fato é que a idéia de que a história não é um amontoado de acontecimentos casuais

e desconexos entre si é pelo menos tão antiga quanto à crença no destino. Por isso,

não sem certa razão, Karl Löwith defende a existência de uma aproximação entre

a interpretação teológica da história e as filosofias da história. Em ambos os casos,

pode-se encontrar um princípio comum, subjacente à concepção cristã do mundo,

a partir do qual se torna possível conceber uma história com início e fim. Tal

princípio é a adequação do contingente à descoberta de um sentido último da

história.27

No entanto, mesmo quando se confiava que os eventos desse mundo

tinham um sentido para além das ações humanas, ninguém poderia imaginar

conhecer qual seria esse sentido, que estava resguardado com os deuses. Ainda

que Löwith observe a substituição da transcendência pela imanência entre os

cristãos e os modernos, o que parece diferenciar as teleologias da história das

27 LÖWITH, K., O sentido da história.

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filosofias da história é que apenas na modernidade, quando a história se torna ela

mesma um sujeito autônomo com um sentido em si, é que o homem é capaz de

‘conhecer’ e até ‘determinar’ o rumo da história. A moderna versão do sentido da

história guarda o lugar fundamental da auto-consciência que parece não existir nas

teleologias tradicionais – embora todo aquele que narre o sentido da história tenha

que se colocar num lugar concebido idealmente como “fora da história”. Na

moderna concepção hegeliana, esse lugar não é mais ‘o outro mundo’, no sentido

divino, mas antes, o lugar da plena realização da consciência. O “fora da história”

surge como um “fim da história” que não é o apocalipse. Ao contrário, é a

efetivação do saber absoluto.

Quando Luc Ferry encontra uma filosofia da história na teoria arendtiana,

destaca que o sentido da história revela-se no milagre do ser. A irracionalidade da

história aparece aos homens que não podem controlar suas ações e destinos, pois

não sabem ao certo o que fazem. O milagre do ser deve ser aceito e agraciado.

Arendt elaboraria uma teoria da história muito próxima da concepção

fenomenológica de Heidegger. Que orienta ao cuidado e à espera. De fato, há uma

semelhança entre a perspectiva histórica de Arendt e Heidegger. Onde ele vê o

destino como o esquecimento do ser, ela sublinha o esquecimento do político.

Ambos estão contando a história de um esquecimento fundamental desde os

gregos até a modernidade. A crítica à técnica e o receio da tecnologia também

aparecem nas duas obras. Arendt e Heidegger remontam aos gregos para revelar a

possibilidade de autenticidade do Ser e do político. Mas nesse retorno aparecem,

como já mencionamos, os desencontros dos autores. Heidegger recorre aos pré-

socráticos. Arendt, ao homérico, aos historiadores (Heródoto e Tucídides), e à

experiência política na pólis.28 Note-se que Heidegger procura re-encontrar o

pensamento antes da metafísica, enquanto Arendt busca a experiência histórico-

política concreta, seja nas discussões na polis, seja na leitura de historiadores e

poetas.

A leitura de Derrida, por outro lado, já não trabalha a ligação entre Arendt

e Heidegger. Em vez disso, defende que a teoria da história arendtiana revela no

28 A influência de Heidegger sobre Arendt é inegável, o que não significa dizer que a autora

o assuma integralmente. Apesar da inspiração constante de seus textos e sua presença, Arendt tece severas críticas ao mestre. O assunto inspirou muitos trabalhos acadêmicos, muitos dispostos a mostrar a divergência entre os autores, como Taminiax, que defende que a obra arendtiana é um diálogo e uma tomada de posição contra Heidegger. Retomaremos essa temática no capítulo 5.

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seu fim um vínculo com a filosofia da história hegeliana. A realização da mentira

absoluta na história é entendida num contraponto com a efetivação do saber

absoluto. A mentira absoluta não seria o fim da história de Arendt porque seu

‘otimismo’, como supõe o autor, ainda conta com a revanche da realidade. O

“fim” da história é sempre a vitória da verdade.

As leituras de Ferry e Derrida consideram ângulos e questões distintas

sobre a obra de Arendt, mas em ambos os casos, embora por razões diferentes,

surge o veredicto de que sua teoria da história é uma filosofia da história. O que

implica dizer, pelo menos de modo geral, que a história, para Arendt, tem um

sentido pré-determinado. Seja o destino ou milagre do Ser, como define Ferry.

Seja a verdade, como sugere Derrida. Se a questão a respeito da filosofia da

história nos aparece primeiramente na análise do percurso histórico traçado por

Arendt em A condição humana, considerando que o esquecimento do político

revela-se irreversível desde o fim da cidade-estado grega, as reflexões levantadas

por Ferry e Derrida sobre a pertinência de uma filosofia da história em Arendt

realçam o problema e abrem outras perspectivas sobre a temática da história na

obra da autora.

Pode-se dizer que a pergunta pela filosofia da história incita a reflexão

sobre a teoria da história arendtiana, e explicita a relevância de considerar a

relação entre política e história. O que está em jogo na temática da filosofia da

história é como a ação se torna história, ou como a ‘melancólica casualidade’ dos

fatos adquire sentido e pode ser entendida como história. A consideração da

filosofia da história arendtiana empreendida por Ferry aparece nesse horizonte de

discussão sobre a relação entre história e política. De sua tentativa para

compreender as filosofias da história emerge o esforço de conceber algum

equilíbrio entre história e política, ou, ao menos, alguma teoria da história que não

determine ou aprisione a política numa lógica totalitária ou numa teoria sem ética.

Derrida também está imbuído dessa preocupação. A pergunta pela possibilidade

da história é uma chamada à reflexão sobre a escrita da história e a história

entendida como prática. A ênfase na relação entre o histórico e o político leva

Ferry a entender que o núcleo da teoria arendtiana da história é o seu conceito de

ação. Tal como Derrida destaca sua concepção de mentira e ação como

fundamentais na possibilidade da história.

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A noção arendtiana de ação, como apresentada, na arquitetura da vita

activa, baseia-se na correspondência com a ação política na pólis. A ação se

realiza num espaço de pluralidade, onde os homens estão entre iguais e podem

revelar-se uns aos outros, e dar início a novos começos. Agir é, para Arendt, a

capacidade sui generis do homem; e não é o mesmo que um simples laborar ou

fazer uma obra. Não é qualquer exercício ou atividade. Refere-se ao aparecimento

dos homens no mundo, aos eventos e aos feitos. Por isso, se liga à história tal

como o trabalho está conectado ao surgimento de obras.

É em virtude desta teia pré-existente de relações humanas, com suas inúmeras vontades e intenções conflitantes, que a ação quase sempre deixa de atingir seu objetivo; mas também é graças a esse meio, onde somente a ação é real, que ela ‘produz’ histórias, intencionalmente ou não, com a mesma naturalidade com que a fabricação produz coisas tangíveis.29

A ação deixa atrás de si história. Para compreender essa relação entre ação

e história é fundamental entender que a ação arendtiana nunca é simplesmente

mera realização de uma intenção. Arendt acredita que a ação é sempre um

acontecimento inesperado. Um evento que irrompe como um milagre. Note-se que

a relação com a idéia de milagre, que leva Ferry a concluir sobre a irracionalidade

da história, não significa que os homens não agem e apenas esperam as coisas

acontecerem como se “caíssem do céu”. A referência ao conceito de milagre,

Arendt quer fazê-la sem carregar seu sentido religioso. Trata-se de indicar que,

apesar dos homens agirem, terem intenções, metas, paixões, virtudes e erros,

nunca se pode determinar com certeza o que se está fazendo porque não é possível

controlar absolutamente as ações. Elas têm conseqüências, rumos, efeitos

colaterais que são imprevisíveis. A própria teia de relações pré-existente, sobre a

qual a ação incide, pode alterar completamente o rumo de uma ação. O que

Arendt quer defender com sua teoria da ação, que nos parece realmente uma teoria

da história, é que a história não está determinada por nenhum sentido prévio e

nem mesmo pode ser controlada pelo homem. Na concepção arendtiana, esse é o

preço da liberdade. Garantir a possibilidade da contingência é o mesmo que

assegurar a possibilidade da liberdade. O homem só é livre porque não há nada

determinado em relação aos feitos e eventos. Por destacar a presença de um 29 ARENDT, H., A condição humana, p. 197. Também lemos na mesma obra que “A ação,

na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria a condição para a lembrança, ou seja, para a história.” p.17

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quinhão de casualidade em toda ação humana, e, com isso, afirmar a própria

liberdade da ação, a autora aufere que todo acontecimento guarda afinidade com

um milagre. O evento não está dado por nenhuma ordem causal e não é

determinado por nenhuma necessidade prévia ou sentido da história, por isso,

quando vem ao mundo, é sempre como uma imprevisibilidade. É da natureza do início que se comece algo novo, algo que não pode ser previsto a partir de coisa alguma que tenha ocorrido antes. Este cunho de surpreendente imprevisibilidade é inerente a todo início e a toda origem. (...) O novo sempre acontece à revelia da esmagadora força das leis estatísticas e de sua probabilidade que, para fins práticos e cotidianos, equivale à certeza; assim, o novo sempre surge sob o disfarce do milagre. O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável.30

A princípio, pode fazer sentido a acusação de Ferry que toma a perspectiva

arendtiana como uma filosofia da história irracionalista. Se observarmos a teoria

política tradicional não encontramos paralelo para a noção de ação política da

autora. Ação sempre foi entendida como estratégia, a partir da consideração de

meios e fins.31 Quando Arendt retira essa base tática da ação fica difícil explicar

sua origem e sua função. “A ação, na medida em que é livre, não se encontra nem

sob a direção do intelecto, nem debaixo dos ditames da vontade (...) ela brota de

algo inteiramente diverso que, seguindo a famosa análise das formas de governo

por Montesquieu, chamarei de um princípio.”32 Os princípios que inspiram a ação

não se constituem como motivos. Se assim fosse já não seriam princípios, pois,

segundo Arendt, eles estão ligados às aspirações universais e não a qualquer

determinação específica de um indivíduo ou de um grupo. Os princípios só se

30 Ibid, p. 190-1. Para compreender essa valorização da contingência na obra arendtiana

parece importante destacar a especificidade do que a autora chama de eventos e feitos humanos, que vêm ao mundo a partir das ações humanas. Se há uma ligação entre imprevisibilidade, novidade, ação e acontecimento isso se deve à noção subjacente de extraordinariedade. Seria a história apenas a irrupção dos raros momentos grandiosos? Exploraremos essa temática no próximo capítulo através da comparação entre a novidade totalitária e a novidade revolucionária.

31 Pode-se entrever uma semelhança entre a concepção arendtiana e hedeggeriana de ação quando se observa a ênfase de ambos sobre a necessidade de pensar a ação sem o critério funcional. Não obstante, deve-se considerar que Arendt trata da ação política, cuja especificidade é pertencer ao âmbito dos assuntos mundanos, enquanto Heidegger refere-se à ação como atividade do pensamento. Cf. HEIDEGGER, M., Carta ao humanismo. pp. 23-5 “De há muito que ainda não se pensa, com bastante decisão, a Essência do agir. Só se conhece o agir como a produção de um efeito, cuja efetividade se avalia por sua utilidade.” (...) “O pensamento não se transforma em ação por dele emanar um efeito ou por vir a ser aplicado. O pensamento age enquanto pensa.”

32 ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, p. 198.

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revelam na ação e não antes. “eles se manifestam no mundo enquanto dura a ação

e não mais”.33

A diferença entre a leitura arendtiana e a concepção tradicional é que a

ação perde o caráter funcional; tal como o político, não é meramente a de

estratégia e poder. A autora enfatiza o ângulo da realização do político. O

momento de discussão entre pares e os feitos daí iniciados. Entende o político

como esse compartilhamento do mundo. Tudo o que possibilita estruturalmente

sua sustentação está fora de seu âmbito - não pode ser caracterizado como

político. Por isso, na pólis, Arendt observa que era necessário saltar um abismo

entre a casa e a pólis todos os dias. As esferas da necessidade e da política são

completamente distintas entre si. O mesmo estranhamento que se pode ter diante

da separação entre público e privado também costuma acometer quem tenta

compreender a ação arendtiana. A ação não é o mesmo que a intenção, nem o

mesmo que o seu fim. Não há produtos provenientes da ação. Diferentemente da

fabricação, no caso da ação não é possível entender o processo pela obra final.

Esse ponto é de extrema relevância para o entendimento da história arendtiana. Se

há uma ligação entre ação e história, e se a ação deixa atrás de si uma história, isso

não significa que a história seja o fim da ação ou seu produto, como se a ação

fosse apenas um meio; tal como acontece no processo de fabricação.

A ação só aparece em meio aos que agem em conjunto, isto é, aos pares

que podem juntos se revelar uns aos outros. É como uma espécie de

performance.34 Não sem razão Arendt compara a política ao teatro e às artes de

realização como a dança. Pois nessas formas de arte não há um produto final que

poderá perdurar como obra. O que importa é o que se passa durante o espetáculo.

A dificuldade de Ferry de compreender a ação e suas implicações para a teoria da

história arendtiana é o que lhe permite apontar sua filosofia da história como

irracionalista. Uma ação que não vale por suas intenções ou fins, e que nem

sequer pode ser controlada pelos homens pode fazer crer que só tem por trás de si

qualquer coisa de irracional.

33 Ibid, p. 199. 34 Em O que é liberdade, o caráter performático aparece com o nome de virtuosismo.

Recorrendo a noção maquiavélica da virtú, Arendt enfatiza o significado do virtuosidade. Virtuoso é aquele que sabe aproveitar as oportunidades concedidas pela Fortuna. “é uma excelência que atribuímos às artes de realização (à diferença das artes criativas de fabricação), onde a perfeição está no próprio desempenho e não em um produto final que sobrevive à atividade que a trouxe ao mundo e dela se torna independente.” Ibid, p.199.

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Para compreender como a ação concebida por Arendt não é nem um mero

aparato instrumental, nem simplesmente qualquer atitude irracional, evocaremos a

crítica às filosofias da história rematada pela autora. De fato, sua censura tem

origem na condenação da teoria racionalista que pretende explicar a realidade,

orientar a prática e controlar a história. Pode-se observar que essa objeção baseia-

se no mesmo argumento através do qual a autora sustenta sua reprovação da

sujeição da ação pelo pensamento. O subjugo dos assuntos humanos em voga

desde a Antigüidade, manifesta-se exemplarmente na teoria platônica dos dois

mundos, e sustenta-se na concepção de que o mundo humano, onde os homens

convivem entre si, é o mundo das sombras – das aparências. Nesse mundo, no

qual tudo é transitório e imprevisível não é possível encontrar a verdade. Apenas

no mundo das idéias e essências, o filósofo tem a oportunidade de contemplar o

verdadeiro sentido. Para Arendt, a moderna teoria da história, que encontramos

em Hegel e Marx, embora tenha tentado inverter a situação da ação, valorizando a

história e a práxis, acaba também interditando a ação e vislumbrando um enlace

entre teoria e ação. A autora observa que Hegel imaginou retomar a história, e

entrever um sentido implícito nas ações humanas aparentemente casuais. O

problema é que só pôde fazer isso no “fim da história”, partindo do ponto de vista

contemplativo do filósofo. Desse modo, a ação parece determinada pelo olhar

teórico e por um sentido imanente à própria história, que no caso hegeliano é

concedido pela ‘astúcia da razão’. Na concepção marxista, o sentido da história

não aparece só no fim quando pode ser entrevisto pelo olhar teórico retrospectivo.

O sentido é determinado de antemão e se torna ele mesmo um objetivo da história

e um rumo inevitável que os homens precisam reconhecer e fazer valer. A autora

entende que as conseqüências dessa moderna concepção da história são mais

graves em Marx que em Hegel, porque para esse ainda se tratava de uma

contemplação a posteriori. O maior problema que aparece com a leitura marxista

é a possibilidade de predição do que deve ser feito.35

A partir da crítica ao modelo de ação previsível e controlável e da própria

concepção de submissão dos assuntos humanos podemos compreender melhor a

noção de ação ‘milagrosa’ na obra arendtiana. Trata-se de considerar a ação como

equivalente da liberdade. Para Arendt, o homem só pode ser livre, e, portanto, só

35 Arendt enfatiza a diferença entre Hegel e Marx

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pode agir quando a ação não está decidida de antemão. Nesse ponto, observamos

que a possibilidade da ação e do exercício da liberdade dos homens está

intrinsecamente ligada à concepção da história. É preciso visualizar uma história

que se desenrola como casualidade, na mais pura contingência, para encontrar a

possibilidade da liberdade humana. Por isso, a busca pela autonomia do político,

ou seja, a tentativa de conceber a ação sem as amarras da teoria é a mesma que

movimenta a teoria da história arendtiana. Se Ferry percebe, com razão, que a

concepção arendtiana de ação está associada inevitavelmente a uma nova teoria da

história, peca por concluir que essa teoria seria a validação de um completo

irracionalismo. A questão que precisamos responder para compreendermos a

teoria da história arendtiana é sobre como é possível, a partir da sua concepção de

ação como liberdade, entrever algum sentido na história. Em última instância,

temos que enfrentar a pergunta pela possibilidade de sentido da existência humana

e sua irrupção milagrosa.

Para inverter essa impressão de irracionalismo que a obra arendtiana pode

suscitar, avançaremos um pouco sobre suas suposições acerca da

responsabilidade. Destacaremos o seguinte ponto: não é porque não podem

controlar completamente suas ações ou determinar a história, que os homens

podem fazer qualquer coisa como se nada fizesse diferença.

A teoria da responsabilidade arendtiana não é exatamente uma ética

propositiva, nem muito menos qualquer pretensão de desenvolvimento de uma

doutrina moral. Como bem observado por Derrida, há um sentido extra-moral que

alude à Nietzsche nas considerações arendtianas. Pelas próprias críticas ao

racionalismo exacerbado, pode-se imaginar que não é simples destrinchar a

concepção ética de Arendt. O problema é se situar dentre aqueles que pretendem

uma desmontagem da metafísica e de seus fundamentos últimos, e, ainda assim,

tentar validar a distinção entre certo e errado. Tendo em vista essa dificuldade,

devemos considerar que, quando fala de responsabilidade e da capacidade humana

de diferenciar entre o certo e o errado, a autora não se refere à ética no sentido

forte do termo.

André Duarte sugere que a questão do totalitarismo e a ruptura que

interrompe a tradição trazem à tona o problema do discernimento acerca do certo

e do errado; e acredita que é a partir daí que a autora desenvolve uma ética

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negativa baseada na concepção política do juízo estético kantiano.36De fato, é ao

vislumbrar a dificuldade de pensamento e julgamento de tantos bons alemães que

compactuaram com Hitler que a autora desenvolve suas teorias sobre o juízo e a

responsabilidade. O que a incomoda é justamente a ‘cegueira’ da maioria da

população que não conseguiu perceber o equívoco nazista. Sobretudo, a falta de

discernimento daqueles de quem menos se esperaria. Em suas palavras

visualizamos essa angústia,

Em suma, o que nos perturbou não foi o comportamento de nossos inimigos, mas o de nossos amigos que não tinham feito nada para produzir essa situação. Eles não eram responsáveis pelos nazistas, estavam apenas impressionados com o sucesso nazista e incapacitados de opor o seu próprio julgamento ao verdicto da História, assim como eles o interpretavam. Sem levar em consideração o colapso quase universal, não da responsabilidade pessoal, mas do julgamento pessoal nos primeiros estágios do regime nazista, é impossível compreender o que realmente aconteceu.37

Na tentativa de compreender o equívoco de juízo que promoveu a

ascensão do totalitarismo, evidencia-se o próprio juízo arendtiano segundo o qual

o totalitarismo é um erro. O totalitarismo é uma temática tão fundamental no

pensamento arendtiano, que ela divide a história a partir de seu aparecimento,

vislumbrando a ruptura da tradição nesse evento. A autora tem sua vida pessoal e

profissional ligada ao evento totalitário, e tentou em várias abordagens, como

tantos outros de sua geração, compreender esse que julgava ser o acontecimento

central do século XX. A questão está presente mesmo quando não é tratada

especificamente como pudemos observar em A condição humana. Não há uma

abordagem do assunto, mas a decadência do político e a ascensão do labor

referem-se claramente ao triunfo totalitário, embora num plano mais geral da

modernidade como um todo. No entanto, a autora evita fazer uma condenação

moral do esquema totalitário, como se o regime fosse uma deturpação radical dos

valores morais celebrados pelo Ocidente.

Deve-se observar que não é por ser contrário à moral tradicional que o

totalitarismo surge como um erro. Se Arendt cobra o julgamento dos alemães,

indicando a possibilidade de distinção entre o certo do errado que, no caso do

totalitarismo, implica vê-lo como um equívoco, o erro ou o mal totalitário ao qual

36 DUARTE, A., “A dimensão política da filosofia kantiana segundo Hannah Arendt”, In:

ARENDT, H., Lições de filosofia política em Kant, p. 139. 37 ARENDT, H., Responsabilidade e julgamento, pp.86-7.

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ela se refere não é o inverso do bem, entendido como realização dos bons

costumes. A autora sugere que o totalitarismo rompeu com “nossos padrões de

julgamento”. Por isso, não podemos compreendê-lo a partir da moral tradicional,

simplesmente concebendo-o como sua inversão. Na verdade, ao contrário de

associar a moral ao juízo, acredita que, justamente por terem seguido os

parâmetros da moral tradicional, tantos “bons” alemães compactuaram com o

regime de Hitler e não conseguiram notar o equívoco que se estabelecia. Apenas

continuaram seguindo à lógica automática da obediência e substituíram o “Não

Matarás” pelo “Matarás” em vez de refletirem sobre a novidade da situação.38

Quando evoca o sentido moral, Arendt alude à moral religiosa e à moral

kantiana da segunda crítica. Nesse sentido, muito lhe marca a referência de

Eichmann a esse último texto.39 O problema para a autora é que a moral é

imperativa e formal, referindo-se ao indivíduo em sua intimidade. Apenas cada

um pode saber realmente quais são as suas intenções. O que ela observa é que a

moral, enquanto “dever”, está ligada menos à reflexão que ao seu caráter

axiomático. “As proposições morais têm sido sempre consideradas evidentes por

si mesmas, e descobriu-se muito cedo que não podem ser provadas, que são

axiomáticas.”40Para ela, a Alemanha hitlerista sofreu as conseqüências desse

apelo, pois quando o Estado instaurou a lei da eliminação isso não constituiu nada

vexatório ou produziu qualquer crise generalizada de consciência. A maioria

simplesmente aceitou a ordem do Estado e seguiu obedecendo.

O totalitarismo confirma para Arendt a idéia de que a moral não passa de

um conjunto de regras e valores permutáveis, quando faz ruir uma estrutura moral

aparentemente segura. Garante também a suposição de que quanto mais arraigado

um conjunto de regras em determinada sociedade ou indivíduo, mais fácil é a

adaptação a novas leis. As pessoas acostumadas à sujeição das normas acabam

não se questionando quando há substituição de um regimento por outro.

38 Ibid, p. 105. Ver SOUKI, N., Hannah Arendt e a banalidade do mal. 39 ARENDT, H., Eichmann em Jerusalém, p. 153. 40 Id., Responsabilidade e julgamento, p. 141. Embora Arendt acredite que “Por trás do

‘Deves’, ‘Não deves’, está um ‘se não’, a ameaça de uma sanção imposta por um Deus vingador, pelo consentimento da comunidade ou pela consciência, que é a ameaça de autopunição que comumente chamamos de arrependimento.” Aqueles que de fato se sentem ameaçados pela consciência e temem um desacordo consigo mesmos não estariam agindo por obrigação. Esses são os que “vivem consigo próprios”, o que no dizer arendtiano significa que esses são os que pensam e refletem. Se a moral tem um aspecto que pode levar à reflexão, ela atua mais pela obediência e coerção. Esse ponto revela todo o receio de Arendt pela moral no sentido obrigatório que apresentam as religiões e a segunda crítica kantiana.

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O argumento arendtiano, portanto, baseia-se não no pressuposto de que o

totalitarismo simplesmente inverteu a moral e transformou o bem em mal. Sua

crítica incide sobre a própria lógica que imputa vigência à moral tradicional. O

problema é que essa lógica é regida pelo automatismo. Trata-se da aplicação de

leis. Em outras palavras, está em jogo aí todo o questionamento sobre o caráter

formal da moral kantiana. Em oposição ao automatismo e à aplicabilidade, Arendt

demanda a competência reflexiva do juízo estético. Para tal, recorre à outra face

kantiana que surge na terceira crítica. Não para tratar do prazer estético ou do

caráter do belo, mas para considerar a dimensão da ação, principalmente, o seu

aspecto de novidade. Devemos sublinhar a proposição arendtiana segundo a qual a

moral tradicional e sua lógica formal não funcionam quando uma situação

absolutamente nova interrompe seu funcionamento. Para entender a novidade

totalitária não servem nem a antiga forma de pensamento, nem os velhos

parâmetros. É nesse sentido que a autora acredita que aqueles que não

comungaram com o regime não foram os que mais respeitaram a moral

tradicional, mas sim os que não se guiavam por ela. Segundo Arendt, aqueles que

não aceitaram participar do regime foram os que disseram a si mesmos “Isso eu

não posso” e não os que consideravam “Isso eu não devo”. Os que rejeitaram a

lógica totalitária supunham que a ação não é orientada por nenhuma instância

deontológica.

Os poucos que foram capazes disso [diferenciar entre o certo e o errado] não se guiaram pelos velhos valores ou por crenças religiosas. Os poucos ainda capazes de distinguir entre o certo e o errado guiavam-se apenas por seus próprios juízos, e com toda liberdade (...) Tinham de decidir sobre cada caso quando ele surgia, porque não existiam regras para o inaudito.41

Para nosso contexto, importa destacar que a exigência do juízo e a

atribuição da responsabilidade àqueles que participaram, colaboraram ou

compactuaram com o nazismo, evidencia a imputabilidade do homem sobre suas

ações. Um dos pontos fortes do pensamento arendtiano sobre o holocausto é

distinguir-se pela acusação de responsabilidade. A autora não pretende concordar

que os líderes fizeram todo o trabalho sujo e que a população foi enganada e 41 Ibid, p. 318. Adiante, retomaremos esse tema da relação entre o caráter reflexivo do juízo

estético e a compreensão da novidade que advém abruptamente rompendo com velhos esquemas de pensamento, pois está em jogo nessa questão a própria validade da teoria de funcionar como pré-compreensão da realidade, que sempre será entrecortada pelo extraordiário e imprevisível.

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guiada como rebanho, aliás, por isso também as suas formulações a respeito da

responsabilidade sob o totalitarismo nem sempre foram bem-vindas. Em vez de

nomear alguns culpados e salvar a nação alemã como um todo, insiste em

responsabilizar todos os que de alguma forma participaram do regime. Arendt

coloca o dedo na ferida das futuras gerações, assim como o faz com o seu povo

judeu, revelando a participação nefasta dos próprios conselhos judaicos na

organização da matança.42 Quando evoca a responsabilidade sob o totalitarismo

pressupõe que, apesar de todas as condições sombrias, havia a possibilidade de

distinguir entre o certo e o errado. Havia a escolha de participar do regime.

Na querela entre Jaspers e Arendt sobre a “questão germânica”, a qual se

refere ao problema da responsabilidade dos cidadãos comuns pelos crimes de

Estado na época do Terceiro Reich e de seu legado de erros às gerações futuras,

pode-se notar a ênfase que a autora concede à responsabilidade pessoal. Segundo

Andrew Shapp, a discordância entre os autores se fundamenta no desacordo sobre

o problema da culpa em política.

A Jasperian account of collective responsability based on sympathetic identification is closely associeted with restorative conception of poltical reconciliation in wich private and public moralites tend to be conflated. The politics of authentic self-expression that such a conflation leads to threatens an abandonment of political responsibility by guilty subjects. By contrast, Arendt’s political ethic of worldliness suggests an agonistic conception of reconciliation, which would enable citizens to assume political responsibility while resisting their identification as guilty subjects.43

Apesar de ambos afirmarem a responsabilidade dos cidadãos sob o jugo do

estado totalitário, entendendo que mesmo as pessoas comuns que não fizeram

parte da ‘engrenagem’ têm sua parcela de responsabilidade sobre o acontecido

porque compactuaram com o Estado assassino, tomam posições distintas a

42 Se, por um lado, aponta o automatismo da obediência em oposição à reflexão. Por outro,

não aceita a desculpa da burocracia como meio de livrar-se da responsabilidade. Disso podemos concluir que ela conta com a capacidade de julgamento mesmo sob auspícios totalitários. Seu argumento é o simples fato de que alguns poucos o fizeram.

43 SHAAP, Andrew., Guilty subjects and political responsability: Arendt, Jaspers and the resonance of the ‘German Question’ in politics of reconciliation, p. 750. “A questão jasperiana da responsabilidade coletiva baseada na identificação simpática está bastante associada à concepção restauradora da política de reconciliação em que as moralidades confidenciais e públicas tendem a ser combinadas. A política da autêntica auto-expressão, que tal confluência conduz, ameaça promover um abandono da responsabilidade política dos sujeitos culpados. Em contraste, a ética política da mundanidade de Arendt sugere uma concepção agonística da reconciliação, na qual os cidadãos sejam capazes de assumir a responsabilidade política enquanto resistem a identificar-se como sujeitos culpados.” Tradução livre.

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respeito do tema. Diferentemente de Jaspers que pretende nortear a situação da

culpabilidade moral da nação alemã, Arendt acredita que não se deve tratar o

problema como uma questão de culpa coletiva, pois como a idéia de culpa aplica-

se apenas a indivíduos e suas consciências, a noção equivocada de culpa coletiva

acaba retirando a responsabilidade daqueles que realmente participaram do

regime. O argumento arendtiano sintetiza-se na concepção de que “quando todos

são culpados ninguém de fato o é”.44 Nesse sentido, a solução jasperiana,

visualizada na idéia da reconciliação espiritual, onde a culpa pode ser extirpada

pelas desculpas públicas, poderia promover a dissolução da responsabilidade

individual.

Com a atribuição de responsabilidade a todos os cidadãos, Arendt aborda

uma questão delicada e cara à política contemporânea. Considerando que se

entende que o Estado é fruto de um consenso e existe porque sancionado pelos

cidadãos, pode-se conceber que a responsabilidade política pelos atos de Estado

não é apenas de seus dirigentes, mas de todos. As pessoas comuns que nada

fizeram diretamente para movimentar a máquina nazista, por seu lado, alegam que

não havia outro jeito a não ser aceitar as políticas impostas pelo Reich.

Manifestar-se contra o regime era arriscar a própria vida. De modo que seria

necessário entender a participação como uma coação e não como uma decisão

livre e responsável. Nesse caso, a responsabilidade seria apenas daqueles

participantes convictos.

Tanto Arendt quanto Jaspers estão cientes desse problema e, por isso,

estabelecem distinções entre os cidadãos que participavam do partido ou do

governo e outros que compactuaram por omissão. Apesar de insistir na

importância da comunicação pública da culpa que possibilitaria uma reconciliação

e reparação políticas, Jaspers traça a diferença entre a culpa política ou criminal

de um lado, e a culpa moral ou metafísica, de outro. Arendt, por sua vez, embora

sugira que a omissão acaba funcionando como uma forma de permitir o sucesso

do regime totalitário e não aceite a equiparação entre obediência e consentimento,

também distingue a responsabilidade pessoal da responsabilidade legal para

especificar a responsabilidade daqueles que foram ativos na perpetração do crime.

“Pois a verdade simples da questão é que apenas aqueles que se retiraram

44 ARENDT, H., Responsabilidade e julgamento, p. 83.

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completamente da vida pública, que recusaram a responsabilidade política de

qualquer tipo, puderam evitar tornar-se implicados em crimes, isto é, puderam

evitar a responsabilidade legal e moral.”45

Insistimos na ênfase que Arendt atribui à responsabilidade e ao julgamento

para mostrar a dificuldade de compactuar com a visão de Luc Ferry sobre a

irracionalidade da história e perda da ética na obra da autora. A intenção não é

desenvolver um roteiro daquilo que Duarte chama de ética negativa arendtiana.

Para tanto, seria necessário considerar mais especificamente suas análises do juízo

estético e da atividade do pensamento. O que queremos indicar é tão somente que

se, por um lado, a autora argumenta que os homens não controlam suas ações, e

que elas não se reduzem às intenções e motivações, por outro, podemos notar sua

preocupação em destacar a responsabilidade dos homens por suas ações. A ação

não aparece como um evento irracional, com o qual os homens não têm nenhuma

ligação. O intuito arendtiano é justamente buscar revelar os atores por trás da

história. Seus argumentos indicam que, diferentemente do que querem nos fazer

supor os envolvidos com o nazismo e mesmo a geração alemã do pós-guerra,

existe responsabilidade pelo Holocausto e que essa responsabilidade tem relação

com as decisões e julgamentos que os atores políticos fizeram em determinado

momento histórico. Se houve nazismo não foi apenas porque havia líderes

nazistas ou porque havia qualquer movimento automático da história que

encaminhasse para tal regime, mas sim porque houve cooperação, participação e

omissão.

Em contraposição ao movimento das modernas burocracias que, ao

esvaziarem o lugar de decisão, apresentam-se sob a ótica de um governo de

ninguém, que convém à ausência de responsabilidade, Arendt destaca a

responsabilidade dos atores por suas ações e pela história. Nesse sentido, podemos

visualizar a relação entre a moderna perda de mundo e a perda de sentido da

responsabilidade, da qual o Eichmann arendtiano é o retrato fiel.

45 Ibid, p.96. O argumento arendtiano segundo o qual “todos os governos” estão baseados

no consentimento e não na obediência sugere que todos os cidadãos estão implicados nas decisões políticas do governo. Se ela usa o pressuposto para rebater a tese do ‘dente na engrenagem’, segundo a qual, o funcionário menor não tinha opção senão obedecer ordens superiores, sua proposição acaba remetendo também a posição daqueles que “se retiram da vida pública”. A questão complicada, a qual Jaspers tenta responder assumindo a culpabilidade moral de toda a nação, é justamente se essa “retirada” é possível e se é possível eximir determinados cidadãos da acusação de compactuar de certa forma com o regime. Ibid, pp. 108-11.

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Em Eichmann em Jerusalém, a autora faz questão de mencionar uma

réplica de Eichmann que dizia ter sido fundamental para sua permanência no

cargo do partido o fato de não ter encontrado absolutamente ninguém que fosse

contra a atuação nazista ou as deportações. Essa referência sugere o

encaminhamento do veredicto arendtiano, segundo o qual, Eichmann não refletiu

de fato sobre a situação em que se encontrava. Ele simplesmente teria seguido o

rumo da história e o curso dos acontecimentos como a maioria de seus

concidadãos. Para ela, não se tratava de estupidez ou de qualquer mal radical.

Eichmann não conseguia – e não precisava - pensar o totalitarismo. Sua

‘banalidade’ era justamente ser um homem comum ou mediano que seguia as

regras e obedecia às ordens. Curioso notar que Arendt não duvida do depoimento

de Eichmann o qual acompanhou em Jerusalém. Sua impressão foi de que ele era

limitado pela sua vulgaridade. Eichmann não tinha nada de maquiavélico. Era um

exemplo comum do ‘respeitável’ alemão que a autora tanto quis compreender.

Um homem da burocracia, pai de família e obediente, que se dizia seguidor da

moral kantiana.

Eichmann não era nenhum Iago, nenhum Macbeth, e nada estaria mais distante de sua mente do que a determinação de Ricardo II de ‘se provar um vilão’. A não ser por sua extraordinária aplicação em obter progressos pessoais, ele não tinha nenhuma outra motivação. E se a aplicação em si não era de forma alguma criminosa; ele nunca teria matado seu superior para ficar com seu posto. Para falarmos em termos coloquiais, ele simplesmente nunca percebeu o que estava fazendo.46

Eichmann é o modelo do homem moderno naquele sentido mais

caricatural do homem da burocracia. Não pensa, não reflete, e possivelmente, não

cometeria o mal com suas próprias mãos. Esse é quase um bom homem não fosse

pelo fato de ser um autômato. O problema de Eichmann é que é como se ele não

estivesse lá. Não estivesse experimentando a realidade dos acontecimentos. A

sugestão de Arendt não é justamente essa quando observa que ele sequer chegou a

decidir entre o certo e o errado? O problema de Eichmann é com certeza o

problema maior da modernidade: a perda do mundo. Evidentemente, que no caso

do totalitarismo, a tentativa é de extinção total do mundo, e, conseqüentemente, da

realidade. Ou seja, a pretensão totalitária de instaurar um substituto para a

realidade, qual seja, o próprio movimento da história. Ao mostrar que Eichmann

46 Id., Eichmann em Jerusalém, p. 310.

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não refletiu sobre a nova situação do nazismo e simplesmente aceitou as novas

regras, seguindo uma corrente que também arrastava a maioria da população

alemã, a autora evidencia a força da nova realidade arquitetada pelo nazismo que

se apresentava como a realização da história.

Se, por um lado, Arendt aponta para o automatismo da obediência em

oposição à reflexão, por outro, não aceita a desculpa da burocracia como meio de

livrar-se da responsabilidade. Tal ‘escolha’ não pode ser obscurecida pelo

argumento da roda na engrenagem, que o advogado de Eichmann tentou emplacar,

fazendo crer que o réu era apenas um instrumento da máquina nazista. Disso

podemos concluir que ela conta com a capacidade de julgamento mesmo sob

auspícios totalitários. Seu argumento é o simples fato de que alguns poucos o

fizeram.

O que exigimos nesses julgamentos em que os réus cometeram crimes ‘legais’ é que os seres humanos sejam capazes de diferenciar entre o certo e o errado mesmo quando tudo o que têm para guiá-los seja apenas o seu próprio juízo, que, além do mais, pode estar inteiramente em conflito com o que eles devem considerar como opinião unânime de todos a sua volta.47

O que queremos indicar com a remissão ao texto sobre Eichmann e a

discussão sobre a responsabilidade no totalitarismo é que não é possível

considerar que Arendt vê a história como um milagre, diante da qual só resta aos

homens a atitude contemplativa. Sua compreensão da ação, que leva Ferry a

determinar sua filosofia da história irracionalista, apesar de contar com o caráter

extraordinário, não deixa pensar que as ações humanas são indiferentes. Ao

apontar a necessidade da responsabilidade, ao condenar Eichmann e outros

‘respeitáveis’ alemães por participação no partido nazista, acusando mesmo os

que não atuaram diretamente nas instâncias burocráticas do regime, a autora vai

além de indicar a responsabilidade implicada na ação humana. Sugere também

que, em momentos de crise, como foram esses “tempos sombrios”, até a ausência

de ação acabou se tornando ação, porque os que nada fizeram contra Hitler, os que

não se rebelaram ou fugiram ou ajudaram a salvar algumas vidas, acabaram

compactuando com o regime e se tornando também responsáveis pelo evento.

Nesse sentido, não nos parece possível compreender a ação arendtiana como

47 Ibid, p. 318.

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irracional e absolutamente separada da história.48 Parece que, se a autora quer

preservar a política de um enlace pela teoria e livrá-la de ser entendida como mera

instrumentalidade, não é possível imaginar que a ação da qual fala esteja fora do

alcance dos homens. O pressuposto é o inverso. A ação é a base da teoria da

história arendtiana porque, através dessa concepção, a autora reencontra os

homens por trás da história. Com ela, não se pode entender que a história, como

pensa a filosofia da história hegeliana, tem um rumo pré-definido, que é o

processo de tomada de consciência executado secretamente pela astúcia da razão.

A ação é realizada pelos homens. Se é preciso resguardar seu caráter

extraordinário isso se deve à preservação da possibilidade da própria ação. A

ausência de controle sobre a ação mostra a impossibilidade de determinar o rumo

da história. O homem age e não pode saber exatamente o que significa essa ação,

porque é livre e a história tem um futuro aberto diante de si, que é a própria

contingência. Se tudo estivesse determinado, o homem não seria livre. A crítica

arendtiana às filosofias da história, que garantem conhecer o caminho para o qual

a história se direciona, baseia-se nesse argumento. O que falta na filosofia da

história de Hegel é a liberdade do homem; é a sua possibilidade de agir

livremente, pois se observarmos bem, o homem hegeliano parece mais uma

marionete da astúcia da razão. Não é ele mesmo que tem o mérito do

desenvolvimento do saber. Na verdade, ele nem sabe de coisa alguma exceto no

fim da história quando será finalmente livre. Mais aí o homem também não tem

mais o que agir. O futuro já se transformou num presente eterno.49

Reencontramos aqui as questões levantadas com a leitura de Derrida, que

ressalta o “fim da história” narrado por Arendt como efetivação da mentira

absoluta no totalitarismo. A crítica de Derrida à Arendt sustenta-se principalmente

no argumento de que, apesar de tratar da história da mentira e apontar a conversão

48 Arendt sugere que mesmo a inação pode significar ação em situações limite como o

totalitarismo. Ver Id., A vida do espírito. 49 Id., Da revolução, p.43. A versão mais sucinta dessa crítica a Hegel. Destacando a

influência da Revolução Francesa sobre o pensamento hegeliano, Arendt desvela “Esse aspecto diz respeito ao caráter do movimento histórico, o qual, segundo Hegel e todos os seus adeptos, é, ao mesmo tempo, dialético e movido pela necessidade; da revolução e da contra-revolução, do 14 de julho ao 18 de Brumário e à restauração da monarquia, nasceu o movimento e o contra-movimento da História, que arrasta os homens em sua corrente irresistível, como um poderoso caudal subterrâneo, ao qual devem submeter-se no próprio instante em que tenham que estabelecer a liberdade sobre a terra. Esse é o significado da famosa dialética da liberdade e da necessidade, em que ambas finalmente coincidem – talvez o mais terrível, e, humanamente falando, o mais intolerável paradoxo de todo o pensamento moderno.”

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da história à mentira absoluta no totalitarismo, a autora permanece contando com

o pressuposto da verdade. Desse modo, Arendt ainda estaria concebendo a

mentira em seu sentido tradicional, como uma oposição à verdade; e a mentira

absoluta seria apenas a outra face do saber absoluto vislumbrado por Hegel, onde

permanece em jogo a questão da consciência. A mentira absoluta só é entrevista

do ponto de vista da verdade, ou quando se tem consciência da verdade. Nesse

caso, a história da mentira ainda fulgura como a história de um erro. Derrida

aplica ao raciocínio arendtiano a própria tese de Arendt sobre a mentira. Se a

autora argumenta que a mentira tradicional está ligada à intenção de enganar e se

sustenta pela consciência da verdade por parte do mentiroso, o que sugere que a

mentira tradicional funciona como uma oposição à verdade, Derrida acredita que

Arendt, ao narrar a história da mentira, e sua transformação radical na

modernidade em mentira absoluta, guarda ela mesma a consciência da verdade, e

continua entendendo a mentira como subversão da verdade. Em última instância,

o problema seria a manutenção da dualidade entre verdade e mentira, que não

deixa pensar as especificidades de nosso mundo contemporâneo marcado pelo

caráter phantasmal.

Ao observar a análise arendtiana de Eichmann e suas considerações sobre

juízo e responsabilidade devemos ressaltar sua ênfase sobre a incapacidade de

pensar de Eichmann, tal como sua banalidade. Além disso, também vale enfatizar

a ausência de convicção dos envolvidos no nazismo. Com isso podemos voltar à

questão da mentira no totalitarismo. O fato é que para compreendermos a crítica

de Derrida, é necessário entender o que está implicado na tese de Arendt da

mentira absoluta. A referência a Eichmann é importante porque revela que não se

tratava de uma intenção de mentir ou manipular. Eichmann, como a autora

destaca, não é nada maquiavélico. Se se pode falar de mentira nesse caso, não é,

portanto, no mesmo sentido em que se caracteriza a mentira tradicional, quando o

mentiroso guarda consigo a verdade que esconde do restante do mundo. A mentira

com a qual Eichmann está envolvido não é uma mentira sustentada por sua

intenção de enganar, mas sim uma mentira que se baseia na enganosa realidade

montada pelo totalitarismo. A diferença visualizada por Arendt na mentira

moderna que aparece como mentira absoluta no totalitarismo é que não se trata

mais da mentira pontual, proferida por determinados indivíduos mentirosos que

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subvertem a verdade. No caso do totalitarismo, toda a ordem apresenta-se como

mentirosa, pois se constitui como uma espécie de substituto da realidade.

Por fim, o que é talvez mais perturbador, se as mentiras políticas modernas são tão grandes que requerem um rearranjo completo de toda a trama factual, a criação de outra realidade, por assim dizer, na qual elas se encaixem sem remendos, falhas ou rachaduras, exatamente como os fatos se encaixavam no próprio contexto original, o que impede que essas novas estórias, imagens e psedofatos de se tornarem um substituto adequado para a realidade e fatualidade?50

A reivindicação arendtiana da verdade factual contrapõe a mentira

absoluta criada pelo totalitarismo. Acreditamos que essa verdade precisa ser

compreendida numa relação intrínseca com o devir contingência, pois só os novos

acontecimentos podem fazer desmoronar a realidade fictícia montada pelo regime.

É necessário entender que a crítica arendtiana aos totalitarismos coloca esses

sistemas na esteira da perda de mundo inaugurada na modernidade. Se o homem

moderno não confia mais em seus sentidos, e não mais espera ver a realidade em

si, mas apenas uma representação da realidade constituída sempre pelas categorias

limitadoras do próprio homem e pelos instrumentos técnicos por ele fabricados,

mantém uma relação indireta com a realidade. No caso do totalitarismo, que faz

crer ser o rumo determinado pelo processo histórico, forja-se uma

pseudorealidade que se apresenta como substituta da realidade, cuja origem é a

experiência entre os homens. Por isso, para o sucesso desses movimentos é

importante que os caminhos do futuro sejam traçados de antemão e os fatos

passados sejam adulterados. Assim, na antecipação do futuro e na falsificação do

passado, o totalitarismo constrói a realidade como imagem de si mesmo. E se a

criação é a potência tanto da ação, quanto da mentira, a mentira absoluta perde

essa capacidade e sucumbe à antecipação.51

Na afinidade quanto à perda da realidade vemos a ligação entre a situação

moderna e contemporânea. A perda de mundo moderna anuncia a possibilidade da

perda definitiva da realidade que se desvela no totalitarismo. Essa perda

“definitiva”, a qual Arendt denomina “mentira absoluta”, e descreve como uma 50 Id., Entre o passado e o futuro, p.313. 51 Quando Derrida propõe que deixemos de lado as duplicidades especificamente

metafísicas e sustentemos o caráter phantasmal faz crer que a realidade não representa nada além de si – converte-se em representação sobre representação. Assim, caracteriza a ausência indicada em toda “escritura”. A realidade não pode ser entendida como presença, tal como em Heidegger, a aléthea é sempre um mostrar-se e esconder-se.

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“criação” literal da realidade, uma substituição fictícia, também aparece na

construção da imagem tão específica da era da propaganda nas democracias do

mundo livre, embora não no sentido absoluto do totalitarismo, quando desponta

como novidade. 52

Para nosso contexto, é interessante observar a relação entre a criação da

pseudorealidade e a intervenção na história. Na condição da mentira absoluta,

vemos a ilustração daquilo que a autora entende como “fazer história”. Mesmo

que a mentira, por sua afinidade com a imaginação, erija um começo, ela exclui a

possibilidade da ação e dos novos começos quando se torna mentira absoluta.

Nesse sentido, “fazer” a história é justamente inibir que a história se faça, ou que

as ações dos homens dêem início a novas histórias. A invenção totalitária mostra a

Arendt que a história não pode equivale à ficção. Não pode ser uma história com

autor. A história precisa estar aberta ao que advém, ou a própria realidade

enquanto tal. A história e a ação não podem estar presas à autoridade do

pensamento, da teoria ou da idéia.

Justamente porque notamos na objeção arendtiana ao totalitarismo o

mesmo argumento que encontramos na crítica da autoridade que se fixa na

superioridade da teoria sobre a ação, é que não podemos aceitar a hipótese de

Derrida, segundo a qual Arendt ainda estaria ligada à noção de verdade

metafísica, sustentando a duplicidade entre verdade e mentira, e contando com a

hegemonia da verdade. A acusação do autor diverge com a tentativa arendtiana de

desmontagem da metafísica. Ela se julga empenhada nesse projeto e não pretende

validar a verdade por trás das aparências, nem simplesmente inverter a autoridade

do mundo das aparências sobre o mundo das idéias. Ocorre que o problema que

Arendt vê na separação dos mundos não é propriamente a separação, que talvez

susbista à existência humana na experiência imanente do pensamento, mas a

determinação que a metafísica impõe quando decide a hierarquia entre ação e

pensamento. Acreditamos que a autora não vislumbra tão somente a validação da

instância da ação, mas também parece apontar um meio de conceber a autonomia

52 Arendt não torna equivalente totalitarismo e democracia, mas nota a presença de

elementos totalitários nas democracias contemporâneas.

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do pensamento, entrevendo a possibilidade de uma ligação não autoritária entre

essas instâncias.53

Derrida ainda poderia ter razão, se fosse o caso de Arendt enunciar um

projeto, mas não alcançar realização. De fato, resta ainda esclarecer como Arendt

consegue visualizar sentido na história. Se com a remissão à temática do juízo e

da responsabilidade fica evidente que não se trata de irracionalidade na história,

precisamos entender como a autora pode vislumbrar uma história que não é tão

somente irracionalidade, nem racionalidade absoluta. Compreender o caráter da

novidade na história parece fundamental nesse caminho. Buscaremos elucidar o

surgimento da novidade e as implicações de continuidade e descontinuidade na

história a partir da análise da ruptura provocada pelo fenômeno totalitário e da

insurgência do novo começo apontado pelas revoluções modernas.

53 Na verdade, Derrida indica que, caso seja possível uma história da mentira, seria

prudente levar em conta não apenas a concepção arendtiana de mentira e de ação, mas toda a sua obra. Nesse sentido, destaca três pontos principais que poderiam ser considerados em Arendt: 1- sentido extra-moral presente na teoria arendtiana; 2- abordagem sobre a transformação do político em imagem; 3- busca por delimitar o político, separando-o da vida do pensamento.

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4 Totalitarismo e Revolução – o aparecimento da novidade

O questionamento acerca da teoria da história arendtiana, que toma como

via a pergunta pelo sentido do devir histórico, torna urgente a análise mais

detalhada da concepção de totalitarismo e de revolução desenvolvidas pela autora.

Esses dois tipos de eventos históricos remetem, a princípio, a experiências

bastante distintas entre si. Considerando o entusiasmo de Arendt pela revolução

americana e sua realização política e o seu desprezo pela empreitada totalitária, já

é possível perceber que totalitarismo e revolução aparecem como acontecimentos

históricos opostos. Nesse sentido, a revolução pode ser entendida a partir da

proximidade com a experiência da pólis, enquanto o totalitarismo é pensado como

a tentativa de total extinção da realização do político. Não obstante a divergência

crucial entre totalitarismo e revolução, que se refere à questão da efetivação do

político, nos dois casos Arendt concebe o aparecimento da novidade no mundo.

Se, por um lado, podemos ler que o totalitarismo é marcado por seu ineditismo,

cuja imprevisibilidade rompe com a própria continuidade da história ocidental,

também encontramos a associação fundamental entre revolução e novidade.

Devemos, portanto, compreender em que sentido a autora entende a originalidade

do totalitarismo e da revolução. Acreditamos que a concepção de novidade tem

importância fundamental na obra arendtiana e norteia sua teoria da história. Para

nosso contexto, é crucial considerar que, se a autora concede tanta relevância à

noção de novidade, fica complicado imaginar sua perspectiva histórica como uma

filosofia da história. Ou seja, a possibilidade latente da novidade não permite

vislumbrar sentido a priori da história. A menos que essa novidade não tenha

relação com as ações humanas, o que parece não ser o caso. Nos interessa,

portanto, investigar se essa novidade precisa ser entendida como contingência

absoluta, e se os homens podem assumir a novidade como uma empreitada. Em

outras palavras, buscamos entender em que medida importa e existe consciência

da novidade. Seria possível falar em consciência dos atores ou a novidade só pode

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ser vislumbrada pelo espectador que observa a história retrospectivamente? O que

evocamos com a análise da novidade é o caráter da relação entre ação e história.

4.1. O ineditismo totalitário e a realidade ficcional

Destacamos que a história contada por Arendt sobre o Ocidente tem seu

marco inicial na pólis grega onde o político se manifesta em sua plenitude no

espaço de liberdade no qual os homens podem agir e aparecer uns aos outros

através de atos e palavras. O declínio da cidade-estado antiga e a ênfase na vida

pós-morte trazida com a ascensão do cristianismo anunciam-se como o

esquecimento do político que, acentuado pela moderna perda do mundo, encontra,

de certo modo, seu acabamento na tentativa nazista de eliminar completamente a

pluralidade tornando factível um Uno total que comprime as diferenças entre os

homens. Se a pólis abre-se como um espaço ímpar no qual os homens livres têm a

possibilidade de se reunir para trocar opiniões e agir em conjunto, o totalitarismo

caracteriza-se pela supressão da liberdade pública e privada. “é como se a

pluralidade se dissolvesse em Um-Só-Homem de dimensões gigantescas.”1

A concepção arendtiana do totalitarismo desenvolve-se ao longo de vários

anos. Suas reflexões sobre o tema esboçam-se nos artigos escritos durante a

década de 40 nos Estados Unidos. Nesse período, importava-lhe a temática

judaica e a sua própria condição de apátrida. Vemos nesses escritos, idéias que

tomariam corpo em Origens, mas também ecos de sua obra sobre Rahel

Varnhagen, onde já abordava a questão da judaidade.

Nesse estudo sobre Rahel e os salões da burguesia alemã, a autora também

anuncia alguns argumentos que seriam retomados para constituir o clássico

Origens do Totalitarismo. Sua tentativa de compreender o anti-semitismo e o

poder crescente do nazismo lhe sugeria o problema da assimilação como fato

1 ARENDT, H., Origens do totalitarismo, p. 518.

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importante.2 Arendt mostra como Rahel e outros judeus equivocam-se na

compreensão da igualdade humana pregada pelo Iluminismo. A autora traça o

desenvolvimento da judaidade como problema psicológico e individual. Em

Origens, tal equívoco é entendido como comportamento a-político e como

ingenuidade política dos judeus.

Nesse trabalho sobre Rahel e o romantismo alemão, a autora anuncia sua

polêmica perspectiva segundo a qual o posicionamento judaico contribui para o

terrível destino do Holocausto. Na verdade, a falta de iniciativa política por parte

do povo judeu que não contava com um Estado para garantir sua cidadania,

combina-se com a tentativa individual de cada judeu de resolver por si mesmo o

problema de sua judaidade. O que a autora percebe é que os judeus em vez de se

assumirem como povo específico e buscarem garantir seus direitos como parte

desse povo, acabavam tentando esconder seu judaísmo ou tornar-se um judeu de

exceção, isto é um judeu que por qualidades específicas era salvo e bem-vindo à

sociedade. Arendt defende que o Iluminismo e a modernidade, com sua perda do

mundo, convêm aqueles que como os judeus queriam escamotear os dados da

realidade, ou seja, esquivar-se do fato de serem judeus. Segundo ela, a fuga de

Rahel para o interior de si mesma e a crença dos judeus, típica do Esclarecimento,

na capacidade de pensar por si mesmo, contando exclusivamente com a

competência da razão, revela-se como uma perda da realidade. Arendt destaca que

o grande equívoco de Rahel e seus contemporâneos românticos foi viver a vida

como se ela fosse uma obra de arte. Nesse sentido, indica a relação entre a

ausência de atitude política dos judeus e o fato de viverem como espectadores das

próprias vidas. “a resolução de considerar a vida e a história que esta impõe como

mais importantes e mais sérias que a própria pessoa.” Refugiar-se no interior da

razão e rejeitar a realidade dos fatos – o que em última instância era a tentativa de

negar a realidade do fato de ser judeu – era, para Arendt, uma perigosa

transformação da realidade.

sem a realidade partilhada com os outros seres humanos, a verdade perde todo o sentido. A reflexão e suas desmesuras engendram a falsidade. (...) Os fatos podem ser desintegrados em opiniões tão logo uma pessoa se recuse a consentir neles e

2 Id., Rahel Varnhagen, a vida de uma judia alemã na época do Romantismo. A base do

manuscrito data de 1933. Os dois últimos capítulos são de 1938. YOUNG-BRUEHL, E., Hannah Arendt. Por amor ao mundo, p. 96.

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se retire de seu contexto. Eles têm sua própria maneira peculiar de ser verdadeiros: sua verdade deve ser sempre reconhecida, testemunhada.3

O que percebemos na análise arendtiana dos judeus alemães na época do

romantismo é o despontar do seu argumento sobre a perda do mundo. Na leitura

d’ A condição humana, notamos a importância que a temática adquire no

pensamento arendtiano. A perda do mundo na modernidade advém como uma

inflexão do sujeito para dentro de si mesmo.4 Na razão e não propriamente no

contato com o mundo pelos sentidos é que a verdade pode ser encontrada. Ao

discutirmos as considerações de Arendt acerca da perda do mundo na

modernidade relacionamos tal fato à superioridade da teoria sobre a ação

vislumbrada por Platão na Antigüidade, e evidenciamos a intenção arendtiana de

reverter esse quadro. De conceber a vita activa a partir de sua autonomia e não

como uma submissão à verdade vislumbrada pelo pensamento.

A constatação arendtiana da negação dos fatos e da valorização da razão

por parte dos judeus, a nosso ver, pode ser entendida dentro desse horizonte mais

amplo da sua obra, considerando a atenção da autora para a experiência de

negação dos fatos em prol da teoria na Antigüidade e na modernidade. Desse

modo, visualiza-se a relação entre o comportamento judeu, que reflete a própria

perda de mundo especificamente moderna, e o totalitarismo. Em Rahel, a autora

sugere a existência do vínculo que posteriormente enfatizaria na análise do anti-

semitismo proposta em Origens. A afinidade entre vítima e algoz, se é que

podemos tratar nesses termos a análise arendtiana da relação entre judeus e

nazistas, que, de certo modo, torna possível a ligação absurda entre ambos, parece

3 ARENDT, H., op cit., p. 21-2. Em seguida, aparece a idéia que vimos desenvolvida em

“Verdade e política”. Segundo a qual, pode-se negar um fato isolado, mas não “a totalidade de fatos que chamamos mundo”, p. 24. Essa negação dos fatos encontra raiz na perda do mundo. No caso do Iluminismo, a autora acredita que a idealização da razão torna descartável a realidade factual, sublinhando que os fatos não têm valor de prova para a razão. A perda do mundo em prol da valorização da razão implica na abstração da realidade, no exercício de julgar pelo geral e não pelo particular. O romantismo também perde a realidade quando faz o inverso, isto é, intensifica demasiadamente o particular. “cada situação é arrancada de seu contexto, refletida e vestida como uma ocorrência causal especialmente interessante. (...) cada fragmento é enormemente intensificado pela infindável reflexão, a própria vida é mostrada como um fragmento no sentido romântico”, p. 29. A ligação entre a verdade dos fatos e seu caráter testemunhamental fica claro também na seguinte conclusão: “Pois para o mundo e no mundo as únicas coisas dignas de permanência eram as que podiam ser comunicadas”, p. 91

4 TAMINIAUX, J., The philosophical stakes in Arendt’s genealogy of totalitarianism”, p. 424. O autor discute sobre a “emphasis Arendt puts on the global development of phenomena such as ‘homelessness on an unprecedented scale, rootlessness to an unprecedented.’”. “a ênfase que Arendt dá ao desenvolvimento global de fenômenos tais apátridas em escla sem precedentes e o desenraizamento sem precedentes.” Tradução livre.

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sustentar-se nesse elo comum manifestado pela perda do mundo. Tanto judeus

como nazistas estabelecem a rejeição da realidade e a negação dos fatos. É claro

que o exame arendtiano do totalitarismo revela um caso muito mais terrível de

perda do mundo porque não consiste simplesmente na negação da realidade e na

fuga para qualquer mundo interior, ao contrário, institui uma nova realidade

fictícia e reproduz até mesmo os dados factuais. Mas nos dois casos, Arendt

detecta essa experiência da perda do mundo, que, para ela, seria a própria perda da

experiência.

Devemos destacar que o que mais nos importa nesse estudo sobre Rahel é

a proeminente distinção traçada por Arendt entre a atitude afirmativa diante da

história e o comportamento passivo. No primeiro caso, parece indicar a

possibilidade de agir politicamente e estar atento e participante à realidade do

mundo. No segundo, trata do afastamento da realidade e da submissão ao acaso ou

ao destino. Nos judeus analisados em Rahel, Arendt detecta que a fuga da

realidade promovida pela negação dos fatos através da valorização do

pensamento, seja pelo caminho da abstração ou generalização, seja pelo viés da

idealização de um momento específico, acaba tornando-os sujeitos à casualidade

dos acontecimentos e, por isso, vulneráveis ao totalitarismo. “Uma vez que se

submeta ao acaso, renuncia-se à própria autonomia...”5 Por não terem se assumido

como judeus e não terem compreendido sua própria história, os judeus

despontaram como vítimas dóceis.

O que queremos sugerir com a remissão ao texto de Rahel é a existência da

relação entre ação política e história no pensamento arendtiano. Nesse capítulo,

trataremos mais especificamente dessa relação ao explicitar o caráter da novidade

totalitária e revolucionária, mas na retomada de Rahel já fica indicada a conexão,

quando se observa a oposição que Arendt estabelece entre a “casualidade dos

acontecimentos” e a ação política. Ao evidenciar a sujeição de Rahel diante de seu

destino, a autora desvela “Mas se não a compreendermos (...) nossa história se

vingará, exercerá superioridade e se tornará nosso destino pessoal”. E, em

seguida, completa, “O que é o ser humano sem sua História? Produto da natureza

e nada de pessoal.”6

5 ARENDT, H., Rahel Varnhagen, p. 63. 6 Ibid, pp. 15-6.

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Quando se refere à rejeição da realidade e dos fatos por parte dos judeus,

Arendt faz crer que aquele que não compreende sua história e não age sobre ela

acaba sendo levado pelo puro acontecer e tende a acreditar que o destino não lhe

permite agir. Os homens que não assumem seus destinos são arrastados pelo

processo histórico ou pela casualidade de acontecimentos que lhes aparecerá

inevitável e irresistível como um destino. Assim, a perda da realidade e dos fatos

acarreta a obstrução da ação e do próprio futuro. Em Rahel, nota que “a

antecipação de experiências, o conhecimento que precipitada e pretensiosamente

converte o futuro em passado está colocado mais uma vez, à parte da história; não

previne nada e se desvanece assim que a pessoa se rende novamente à vida,

capitula diante da vida.”7 Ao conectar a idéia da superioridade da razão à

concepção da perda da experiência, Arendt sugere a relação entre iluminismo e

filosofia da história. Nesse sentido, destaca a assimilação de Fichte por Rahel.

Segundo ela, é com Fichte que Rahel passa a supor que a “História é apenas

elucidação de uma comprovação colocada a priori.”8

A distinção entre aqueles que assumem seu destino e os que o tomam

como um fardo e passam a ser arrastados por ele, como se fossem levados por um

processo, indica a diferenciação entre os homens que agem e os que se submetem

ao acaso. Como veremos adiante, essa separação fica ratificada na disparidade

entre os homens da revolução francesa, que se deixam levar pela irresistibilidade

do processo revolucionário, e os homens da revolução americana, que

compreendem a novidade em que estão imersos e agem em nome dela.

Discutiremos ainda oportunamente como a variação entre a possibilidade de

assumir a novidade e se deixar levar pelo processo implica, em ambos os casos,

elementos que estão fora do controle dos homens. O que é necessário ter como

pressuposto nessa distinção entre os que agem e os que se submetem à História é

que não se trata da separação entre os que controlam a história à sua vontade e os

que se deixam levar pelo processo.

Para compreender a distinção entre essas duas possibilidades frente à

história precisamos considerar as características da ação conforme visualizada por

Arendt, às quais comentamos anteriormente. Tendo em vista que ação não

7 Ibid, p.93. 8 Ibid, p. 109. Arendt alude nesse sentido à crença iluminista na superioridade da razão em

detrimento dos fatos.

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equivale à fabricação, percebemos que, mesmo que haja a possibilidade de agir,

isso não significa que o homem possa fazer a história à sua vontade. Em Arendt, o

homem que age não é senhor da história. Ao contrário, muitas vezes aqueles

atores que acreditam poder controlar a história são justamente os que perdem a

possibilidade da ação porque imaginam um sentido pré-definido para a história e

se submetem à sua realização. Ocorre que o controle sobre a história atrela-se ao

imaginado conhecimento do sentido da história. O caso extremo dessa fantasia

histórica, Arendt encontra na construção daquilo que denomina “ficção”

totalitária. Mas também os revolucionários franceses encontram-se enredados na

ficção do Povo, diante da qual perdem a oportunidade de agir.

No caso específico dos judeus, tratado em Rahel, pode-se ver que

compreender a história e assumir o destino é justamente o contrário de negar a

judaidade ou escondê-la na privacidade. Assumir o destino requer o

reconhecimento dos fatos – o fato de ter nascido judeu e a história desse povo. A

ação é possível quando compreende sua história e se posiciona diante dela.

Rejeitar a história e a sua realidade não resolve o problema, ao contrário, só

coloca os judeus à mercê da “casualidade”.

Os diversos argumentos indicados em Rahel tomariam forma acabada em

Origens do totalitarismo. Nessa obra, Arendt apresenta uma análise mais

detalhada da questão judaica e desvela que os judeus não perceberam a novidade

presente no anti-semitismo moderno.9O fato é que apenas quando teve

conhecimento da solução final, acesso aos relatos dos sobreviventes e

conhecimento da lógica dos campos, Arendt consolida sua visão do totalitarismo.

Ela mesma contava com o pressuposto segundo o qual uma história só pode ser

contada quando termina.10 Ao tentar compreender o totalitarismo e suas origens, a

autora acredita que esse movimento havia chegado ao fim.

A concepção de totalitarismo refere-se aos sistemas instaurados por Hitler

na Alemanha e por Stálin na União Soviética. Alguns críticos acreditam que

Arendt deveria reconhecer as diferenças entre a situação alemã e soviética, que

aparecem aglutinadas num mesmo conceito. A própria noção de totalitarismo foi

amplamente questionada. Interroga-se sobre a idéia que o termo suscita: a 9 Ainda em Rahel, podemos ler que “os judeus prussianos demoraram para compreender o

desastre. Viviam esperançosos com emancipação e liberação civil”. Ibid., p. 106. 10 Consideraremos esse argumento no próximo capítulo, onde discutiremos a perspectiva

teórica de Arendt acerca da história.

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vigência da obediência total durante o regime.11 Tal perspectiva estaria negando

tanto a possibilidade de adesão consciente ao projeto nazista, quanto à capacidade

de resistência por parte de alguns. Entendemos que Arendt não acredita que o

totalitarismo tenha se efetivado plenamente. Devemos compreender a idéia literal

de totalitarismo apenas como o projeto totalitário de instaurar um Uno absoluto,

mas na prática, apesar de ter alçado poder e obtido relativo sucesso essa pretensão

não se concretizou. Ocorre que o totalitarismo só poderia ser considerado

verdadeiramente totalitário se dominasse o mundo inteiro. Arendt argumenta que

o maior inimigo do movimento é a existência do mundo não-totalitário e não

deixa de notar a possibilidade de se isentar do totalitarismo. Aqueles que não

apoiaram o regime resguardaram de certo modo a resistência à implementação da

totalidade.12

Para o nosso tema da história, é importante destacar que o totalitarismo

refere-se à tentativa de instaurar uma realidade fictícia baseada na negação e

alteração dos fatos, e, conseqüentemente, no domínio da história. Arendt sugere

que tal criação sempre se confronta com a contingência do futuro, pois, apesar de

se caracterizar como novidade, o movimento totalitário pode ser desmentido pelo

aparecimento de novos fatos. Nesse sentido, a evidência de que o totalitarismo

não se efetiva literalmente é justamente o fato do movimento precisar alterar

constantemente a história, pretendendo com isso retirar dos homens a capacidade

de agir e iniciar novos acontecimentos; e tornar realidade suas predições,

precavendo-se contra a realidade não-totalitária, que a contragosto do

totalitarismo não é eliminada definitivamente.

O que nos propomos aqui não é fazer uma história do conceito e analisar

as críticas a respeito do termo “totalitarismo”. Buscaremos compreender em que

consiste a novidade totalitária para Arendt e em que medida ela está relacionada

às ações humanas, já que seu aparecimento promove a ruptura histórica com a

tradição ocidental, conforme visualizada pela autora. A rigor, esse é o principal

argumento de Origens. O totalitarismo é uma forma de governo absolutamente 11 Arendt se dedica após escrever Origens a completar seu estudo sobre o caso do

totalitarismo soviético e sua ligação com o marxismo. Desse período temos alguns textos agora reunidos em português na publicação A promessa da política. Sobre a discussão do totalitarismo ver: LEFORT, C., A invenção democrática; KURZ, R., Totalitarismo econômico.

12 Esse é o caso clássico de Jaspers, cuja atitude de isolamento sugere à Arendt tal possibilidade de afastamento do movimento. Ver ARENDT, H., Homens em tempos sombrios. No mesmo livro, onde se encontram reunidos relatos biográficos de diferentes personalidades analisadas pela autora, encontramos a pergunta pelo que resta de humanidade no mundo totalitário.

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nova na história ocidental. Arendt insiste na tese de que não é possível entender o

que aconteceu na Alemanha e na URSS partindo da comparação com outras

formas de governo vistas até então. Segundo ela, o totalitarismo não é um caso de

autoritarismo e não é simplesmente um fascismo.13

Acreditamos que a ênfase arendtiana na novidade do totalitarismo baseia-

se, principalmente, na constatação de uma realidade fictícia criada pelo

movimento. A autora refere-se ao caráter inédito do movimento justamente

quando trata da nova forma de governo. Entende que a novidade do totalitarismo

não está na ideologia ou na burocracia, mas na forma como organiza e estrutura

essas idéias. No caso da ideologia, Arendt mostra que o totalitarismo não se

sustenta propriamente no socialismo ou no racismo, o que significa, para ela, que

o totalitarismo não tem um apego utilitário com a ideologia. Não se trata de

acreditar cegamente na idéia. Segundo Arendt, o totalitarismo faz valer ao pé da

letra o significado de ideologia, tratando-a literalmente como a lógica da idéia.

Não foi por acaso que os dois movimentos totalitários do nosso tempo, tão assustadoramente ‘novos’ em seus métodos de domínio e engenhos em suas formas de organização, nunca prepararam uma doutrina nova, nunca inventaram uma doutrina que já não fosse popular. (...) O que distingue os líderes e ditadores totalitários é a obstinada e simplória determinação com que, entre as ideologias existentes, escolhem os elementos que mais se prestam como fundamentos para a criação de um mundo inteiramente fictício.14

Tal realidade fictícia se apresenta na duplicação das instituições, cargos e

organizações. A autora acredita que a própria disposição do movimento, cuja

estrutura ela compara à imagem de uma cebola, para mostrar o arranjo do

encobrimento, onde uma camada envolve a outra, contribui para criar a

possibilidade de afastamento da realidade. “A estrutura de cebola torna o sistema

organizacionalmente à prova de choque contra a fatualidade do mundo real.”15

13 Em O que é autoridade, Arendt explica sua distinção entre o governo autoritário cuja

imagem visualiza na estrutura piramidal e o totalitarismo cuja referência análoga aparece na figura de uma cebola. A autora traça diferenças mais específicas e visualiza a singularidade da autoridade romana. Para nosso contexto, basta notar que no caso do governo autoritário, a fonte do poder está fora e acima da estrutura, enquanto, no totalitarismo, “a imagem mais adequada de governo e organização totalitários parece-me ser a estrutura da cebola, em cujo centro, em uma espécie de espaço vazio, localiza-se o líder; o que quer que ele faça – integre ele o organismo político como em uma hierarquia autoritária, ou oprima seus súditos como um tirano, ele o faz de dentro, e não de fora ou de cima.” In: ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, p. 136.

14 Id., Origens do totalitarismo, p. 411 15 Id., Entre o passado e o futuro, p. 137. Vale a pena acompanhar a extensão do argumento

arendtiano que aparece de modo sintetizado nesse texto O que é autoridade. “Todas as partes extraordinariamente múltiplas do movimento: as organizações de frente, as diversas sociedades

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Essa espécie de duplicação da realidade criada pelo totalitarismo tem seu núcleo

central na manipulação da história e seu experimento radical nos campos de

concentração. Os campos são fundamentais porque concretizam a constituição

totalitária da realidade. Revelam-se como o extremo ou a realização da alteração

da realidade, onde o fato é de uma vez por todas eliminado. Os campos funcionam

como laboratórios nos quais se dispõem à realidade. Aparecem como símbolos do

controle do futuro. Através deles, o totalitarismo evidencia a efetivação da lei de

movimento da História, pois concretiza o apagamento daquilo que não condiz

com a predição de futuro vislumbrada pelo movimento. Nesse sentido, os campos

são a característica mais marcante do totalitarismo. Sua existência indica o

sucesso da extinção da liberdade pública e privada. Nos campos, os homens são

desvestidos de todos os direitos e podem ser tratados como animais, o que, para

Arendt, indica que se tornaram realmente equivalentes como membros da espécie,

cuja igualdade é um simples dado natural como supõe toda a teoria dos Direitos

do Homem.16A determinação da história, cuja prática, o extermínio nos campos

efetiva, é um ponto central para compreender como o totalitarismo se manifesta na

perspectiva arendtiana como a tentativa de eliminar a ação dos homens e instaurar

uma realidade fictícia.17

Devemos ressaltar que a autora relaciona a instauração do totalitarismo à

criação de uma realidade fictícia porque entende que essa é de fato uma realidade

‘criada’ pelos homens. Para compreender esse significado precisamos considerar a

distinção da noção de ação concebida por Arendt. Ou seja, é necessário atentar

para sua diferenciação entre o aparecimento da história real e da história ficcional.

A primeira surge de uma ligação com as ações humanas, que embora sejam

providenciadas pelos homens, não são ‘escritas’ por eles. Parece-nos que a

profissionais, os efetivos do partido, a burocracia partidária, as formações de elite e os grupos de policiamento, relacionam-se de tal modo que cada uma delas forma a fachada em uma direção e o centro na outra, isto é, desempenham o papel de mundo exterior normal para um nível e o papel de extremismo radical para outro. A grande vantagem desse sistema é que o movimento proporciona a cada um de seus níveis, mesmo sob condições e governo totalitário, a ficção de um mundo normal, ao lado de uma consciência de ser diferente dele, e mais radical que ele. Assim, os simpatizantes das frentes, cujas convicções diferem apenas em grau daquelas das demais pessoas, de tal modo que eles jamais precisam estar conscientes do abismo que separa seu próprio mundo daqueles que de fato os rodeia.” pp. 136-7.

16 Id., Origens do totalitarismo, p. 506. “A experiência dos campos de concentração demonstra realmente que os seres humanos podem transformar-se em espécimes do animal humano, e que a ‘natureza’ do homem só é ‘humana’ na medida em que dá ao homem a possibilidade de tornar-se algo eminentemente não-natural, isto é, um homem.”

17 Ibid, p. 516. “o lugar das leis positivas é tomado pelo terror total, que se destina a converter em realidade a lei do movimento da história ou da natureza.”

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dessemelhança sustenta-se na concepção de controle sobre a história. Arendt conta

que o autor de uma história ficcional tem domínio sobre seu texto, enquanto o

ator, na história real, não sabe exatamente o significado de suas ações. Por ora,

acreditamos que basta frisarmos que a ação refere-se à concretização da

pluralidade dos homens. Ao imaginar controlar as forças da história e coadunar o

movimento totalitário ao próprio movimento da história, Arendt sugere que o

totalitarismo elimina a possibilidade da ação e se sustenta pela criação de uma

história nos moldes ficcionais.

Richard Berstein acredita que a conexão entre os textos que compõem

Origens encontra-se na contraposição entre ação e necessidade histórica, e propõe

que essa temática perpassa toda a obra da autora. “Throughout her writings,

beginnig with, and even preceding The Origins of Totalitarianism, Arendt stress

the opposition between historical necessity and political freedom.”18 Ainda que o

autor tenha razão quando observa que essa oposição é fundamental na

compreensão de Origens e na própria obra de Arendt, nos parece problemática a

dimensão que o argumento toma na sua análise intitulada “Not history, but

politics.” A dificuldade reside no seguinte: embora Arendt de fato rejeite a

necessidade histórica e a idéia moderna segundo a qual a História é entendida

como um processo autônomo dotado de sentido próprio, cujo significado pode ser

definido de antemão, isso não constitui uma completa negação da noção de

história, como pode sugerir a leitura de Berstein que apresenta o embate como a

simples oposição entre história e política, ilustrando o conflito entre necessidade e

liberdade.

Entendemos que, se aparece uma oposição entre ação e história na análise

arendtiana dos totalitarismos, isso demonstra a fundamental ligação entre essas

duas instâncias. O totalitarismo exclui a ação em favor da história porque toma a

história num sentido muito específico de processo histórico. A ação só é contrária

à história quando essa última é concebida nos moldes das filosofias da história,

onde o sentido da história e seu fim podem ser visualizados. Arendt percebe que,

ao predizer o rumo da história, e, obviamente, colocar o sucesso do movimento

em comunhão com esse rumo, os movimentos totalitários acabam concebendo 18 BERNSTEIN, Richard., The origins of totalitarianism: not History, but politics, pp. 382-

383.“Por todos os seus escritos, começando com, e até mesmo, precedendo As origens do totalitarismo, Arendt enfatiza a oposição entre necessidade histórica e liberdade política.” Tradução livre.

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uma realidade fictícia, dada a priori pelo pensamento, que rejeita a realidade

presente, passada e futura. A obstrução do futuro, que é antevisto na antecipação

teórica e enclausurado pela organização totalitária e pela existência dos campos, é

o que garante a tentativa da eliminação da ação, e torna factível a oposição entre

ação e história. Se Berstein indica que a verdadeira inimiga da ação política é a

filosofia da história, não propõe nada além da oposição para compreender a

história no pensamento aredtiano, de modo que a história em geral aparece como

hostil à ação como o título do seu trabalho faz crer. O que queremos sugerir é que

a oposição entre ação e história revela a íntima conexão entre as elas. Se a pré-

determinação da história interrompe a possibilidade da ação, a possibilidade da

ação está ligada à existência de uma história indeterminada. Ou seja, de uma

história que não possa ser prevista pelo pensamento ou pela teoria. Ao pressupor a

história como indeterminação ou imprevisibilidade, a autora permite-se a

coerência de indicar a novidade como momento chave no aparecimento da

história. Só podemos compreender como se combinam o fato do totalitarismo

aparecer como uma enorme novidade na narrativa arendtiana do Ocidente, e, ao

mesmo tempo, constituir-se como uma novidade que almeja excluir a

possibilidade da novidade, considerando que não se trata apenas da oposição entre

ação e necessidade histórica, mas da discrepância entre duas concepções de

história.

Retomemos as considerações da autora para avaliarmos a conexão entre

totalitarismo e dominação da história. Em suas palavras:

A pretensão de explicação total promete esclarecer todos os acontecimentos históricos – a explanação total do passado, o conhecimento total do presente e a previsão segura do futuro. Em segundo lugar, o pensamento ideológico, nessa capacidade, liberta-se de toda experiência da qual não possa aprender nada de novo, mesmo que se trate de algo que acaba de acontecer. Assim, o pensamento ideológico emancipa-se da realidade que percebemos com nossos cinco sentidos e insiste numa realidade ‘mais verdadeira’ que se esconde por trás de todas as coisas perceptíveis (...) O pensamento ideológico arruma os fatos sob a forma de um processo absolutamente lógico, que se inicia a partir de uma premissa aceita axiomaticamente, tudo mais sendo deduzido dela; isto é, age com uma coerência que não existe em parte alguma no terreno da realidade.19

Entender o sucesso da empreitada totalitária na perspectiva arendtiana

significa visualizar a ligação sui generis que o movimento estabelece entre

19 ARENDT, H. Origens do totalitarismo, p. 523.

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ideologia e história. A ideologia aparece mais como a lógica do movimento, e o

movimento é o próprio movimento da história conforme previsto pelo

totalitarismo. Essa ênfase no movimento revela para Arendt a submissão ao

processo histórico, mas, segundo ela, aparece aos olhos dos adeptos do

movimento como um meio de se tornar importante historicamente, de realizar

algum feito ou ao menos fazer parte de uma realização grandiosa. Nesse sentido, a

ideologia do movimento totalitário casa-se bem com a superfluidade das massas,

cujas vidas seriam destituídas de sentido. Para Arendt, o interesse das massas pela

propaganda totalitária não é simplesmente uma questão de interesse econômico ou

social. A propaganda baseada na predição da história oferece às massas um lugar

no mundo e um sentido na vida – a participação no grandioso movimento da

história, que é o próprio movimento totalitário.

o que buscava a ralé e o que Goebbels expressou de modo tão preciso era o acesso à história, mesmo ao preço da destruição. (...) A eficácia desse tipo de propaganda evidencia uma das principais características das massas modernas. Não acreditam em nada visível, nem na realidade da sua própria experiência; não confiam em seus olhos e seus ouvidos, mas apenas em sua imaginação, que pode ser reduzida a qualquer coisa ao mesmo tempo universal e congruente em si. O que convence as massas não são os fatos, mesmo que sejam fatos inventados, mas apenas a coerência com o sistema do qual eles fazem parte.20

A pretensão desse acesso não se referia apenas ao fato de participarem do

movimento, mas indicava também a reescritura da história. Ao movimento

convinha não apenas se colocar como escolhido da história e apresentar suas

relações com as forças da história, como se seu sucesso fosse a realização de um

destino, mas ainda desautorizar os manuais de história em uso, sugerindo que toda

escrita da história é produto de determinados interesses. Arendt mostra que “A

finalidade das mais variadas e variáveis interpretações era sempre denunciar a

história oficial como uma fraude, expor uma esfera de influências secretas das

quais a realidade histórica visível, demonstrável e conhecida era apenas uma

fachada externa construída com o fim expresso de enganar o povo.”21 Essa

suposição é, para Arendt, um meio de transformar a factidade da história em 20 Ibid, p. 382 e p. 401 Arendt distingue massa, ralé e povo. Sobre a massa, ela sublinha o

anonimato. Do povo, ela destaca, a convicção. A ralé não tem nenhuma coisa, nem outra. Parece mais uma espécie de escória da humanidade, que sendo frustrada agarra sua única possibilidade de aparecer no mundo. Não sem razão, a ralé se impressiona com os líderes e tem a capacidade de idolatrá-los. Eles representam tudo o que ela gostaria de ser e não é. Tanto a ralé quanto as massas são fundamentais no aparecimento do totalitarismo.

21 Ibid, p. 383.

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opinião. De modo que se possa sobrepor com preferências a distinção entre

verdade e mentira.

A essa aversão da elite de intelectuais pela historiografia oficial, à sua convicção de que nada impedia que a história, fraudulenta como era, fosse usada como brinquedo por alguns malucos, deve acrescentar-se o terrível fascínio exercido pela possibilidade de que gigantescas mentiras e monstruosas falsidades viessem a transformar-se em fatos incontestes, de que o homem pudesse ter a liberdade de mudar à vontade o seu passado, e de que a diferença entre verdade e mentira pudesse deixar de ser objetiva e passasse a ser apenas uma questão de poder e de esperteza, de pressão e de repetição infinita.22

Considerar a ligação do totalitarismo com o movimento da história – sua

predição e alteração significa perceber que tudo o que se encontra no caminho do

vislumbrado desenvolvimento será exterminado. Arendt destaca a importância da

eliminação política e social, que precede o extermínio físico, e sublinha que, ao

predizer a história e o futuro, o totalitarismo suprime teoricamente a existência da

pessoa para depois bani-la fisicamente. O caso exemplar é o de Trotski, que foi

literalmente “morto” na história. Mas o procedimento da exclusão teórica seria o

mesmo para todos os inimigos do movimento. O alvo da eliminação é variável e

condiz com a resolução de remover os empecilhos no caminho da realização

histórica. A existência dos campos sugere que ao totalitarismo “tudo é possível”

porque a manipulação ou criação da realidade torna-se acabada quando de fato se

‘altera’ a história, isto é, se extermina a parte da história para se submeter ao seu

movimento.

Precisamos destacar que o enredamento entrevisto por Arendt entre a

predição da história e a alteração da história – alteração que inclui a falsificação e

exclusão de fatos, tal como a exclusão de pessoas, ou seja, o extermínio físico –

que culmina com o totalitarismo no poder, é pressuposto a partir da distinção entre

o totalitarismo no poder e o período que o antecede. Apenas quando está no poder

o movimento tem a possibilidade de alterar e falsificar a história. Por isso, a

autora entende que o totalitarismo só estaria completo, ou seja, só seria realmente

total se seu poder se alastrasse pelo mundo todo. Essa separação é importante para

compreendermos também a diferenciação concebida pela autora entre elementos

totalitários e totalitarismo. Isso porque é possível encontrar na explicação

arendtiana afinidades entre o imperialismo e o totalitarismo. E, como notamos

22 Idem.

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anteriormente, entre a própria perda de mundo moderna e o totalitarismo, que de

modo semelhante se sustenta na rejeição da realidade. Tal separação entre

elementos totalitários e totalitarismo, e mesmo a separação entre o movimento

totalitário e o totalitarismo no poder indicam a impossibilidade de confundirmos

totalitarismo e democracia. Ainda que possamos ler que “As tendências

totalitárias do macarthismo nos Estados Unidos também vieram à tona claramente

na tentativa de não apenas perseguir os comunistas, mas de forçar todo cidadão a

provar que não era comunista.”23; isso não significa que Arendt defenda a

equivalência entre democracia e totalitarismo.

Essas distinções são importantes no sentido de esclarecer a novidade e a

especificidade do totalitarismo. O que sustentamos é que a lógica da ideologia

atrelada à noção de “chave da história” são os elementos principais para entrever a

novidade do totalitarismo. A ideologia, o anti-semitismo, a superfluidade das

massas, o racismo são elementos que existem antes do totalitarismo e não são

propriamente totalitários. Arendt confessa que “A propaganda totalitária

aperfeiçoa as técnicas da propaganda de massa, mas não lhe inventa os temas.

Estes foram preparados pelos cinqüenta anos de imperialismo e desintegração do

Estado nacional, quando a ralé adentrou o cenário da política.”24

Se o caráter inédito do totalitarismo não exclui a conexão com os eventos

que lhe antecedem, isso é possível porque a autora vislumbra nesse movimento a

combinação dos velhos temas com a nova forma do totalitarismo. Devemos

sublinhar que para constituir seu conceito de novidade totalitária, Arendt observa

a novidade não apenas do totalitarismo – ainda que nesse caso, o totalitarismo é

que traga a novidade radical. Ocorre que ela também demarca uma mudança na

forma do anti-semitismo e do imperialismo. A novidade do totalitarismo é

precedida pela novidade do anti-semitismo e do imperialismo.

O anti-semitismo que aparece no totalitarismo não pode ser entendido

simplesmente como uma discriminação religiosa ou social, mesmo que sua

história remonte ao período medieval ou ao próprio aparecimento do judaísmo e

da sua doutrina do povo eleito. A transformação aparece num anti-semitismo que

não é ligado exatamente nem à xenofobia nem ao nacionalismo exacerbado.

23 Ibid, 40, n. 36. 24 Ibid, p. 400.

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A novidade totalitária nesse caso é usar o anti-semitismo tradicional em

adequação à sua teoria do movimento da história. Devemos notar como a autora

constrói seu argumento entrelaçando o surgimento da novidade do anti-semitismo

moderno que se tornou ideológico com a novidade do anti-semitismo totalitário

que, segundo ela, se ligou mais ao movimento implícito na lógica ideológica que

ao conteúdo da ideologia, o qual tem a capacidade de movimentar paixões e

sentimentos. A questão é que os nazistas não parecem realmente acreditar que os

judeus sejam o mal da terra; não querem exterminá-los por puro racismo ou

porque sejam ativos politicamente. Note-se que Arendt não duvida de Eichmann

quando ele diz que não tinha nenhum ódio pessoal pelos judeus.25 A tentativa da

autora parece ser a de permitir que compreendamos como toda a novidade

totalitária se instalou sem que os homens envolvidos no movimento figurassem

como atores políticos. A dificuldade é entender o que move o totalitarismo se não

é a vontade dos líderes e muito menos a paixão, o ódio ou os interesses de seus

adeptos. Esse parece ser o ponto central da tese arendtiana, onde vemos que o que

move o totalitarismo é o próprio movimento.26 A terrível novidade, que leva os

homens a fazer o mal “quase sem querer”, a exterminar sem paixão, a matar sem

que haja culpa ou inimigo no sentido tradicional, aparece como:

Supremo desprezo pelas conseqüências imediatas e não a falta de escrúpulos; desarraigamento e desprezo pelos interesses nacionais e não nacionalismo; desdém em relação aos motivos utilitários e não a promoção egoísta do seu próprio interesse; ‘idealismo’, ou seja, a fé inabalável num mundo ideológico fictício e não o desejo de poder – tudo isso introduziu na política um fator novo e mais perturbador do que teria resultado da mera agressão.27

Essa novidade não teria sido possível se não arregimentasse elementos pré-

existentes. No caso dos judeus, a autora detecta como fator importante para terem

sido tomados como inimigos o fato de haver um anti-semitismo anterior ao

totalitarismo, cuja ideologia atingia as massas. Outro ponto importante na

objetivação do alvo judeu refere-se à idéia anti-semita segundo a qual havia um

25 Id., Eichmann em Jerusalém. 26 Canovan procura distinguir atores políticos em Arendt. “The paradox is while she

welcomed direct action by the people, she also feared and deplored a lot all actual cases of grassroots mobilizations.” In: CANOVAN, M., The people, the masses and the mobilization of power: the paradox of Hannah Arendt’s ‘populism’, p. 403. “O paradoxo é enquanto deu boas-vindas à ação direta pelos povos, ela igualmente temeu e lamentou muitos casos reais de mobilização das bases.” Tradução livre.

27 ARENDT, H. Origens do totalitarismo, p. 468.

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plano judaico de dominação mundial. A falácia dos “Protocolos de Sião” aparece

como uma contraposição que justifica e legitima a realidade ficcional erigida pelo

nazismo. “o fato é que os nazistas agiam como se o mundo fosse dominado pelos

judeus e precisasse de uma contraconspiração para se defender.” Para Arendt, a

idéia de que os judeus tinham uma conspiração secreta para dominação do mundo

funcionou como realidade para os nazistas que erigiram seu sistema similar e

contrário ao suposto projeto judaico. 28

Na análise do imperialismo também é possível destacar o método de

diferenciação usado por Arendt para separar o imperialismo moderno de seus

possíveis ancestrais, tais como o imperialismo grego ou romano e a empresa

colonial do século XV. A autora sugere que o imperialismo do século XIX pode

ser caracterizado como o primeiro governo verdadeiramente burguês da história.29

Isso significa que apesar das revoluções modernas serem entendidas com razão

como revoluções burguesas somente agora o governo é regido pelos princípios

econômicos. Trata-se de um governo regido por comerciantes. Pode-se perceber

que muitos pontos destacados nesse estudo do imperialismo são semelhantes

aqueles que posteriormente seriam evocados n’ A condição humana para conceber

a modernidade.30 A política que sucumbe ao econômico e ao processo infinito de

acumulação de riqueza assinala o esquecimento da política como o espaço da

pluralidade e da participação dos homens no espaço público. Para Arendt, essa

política imperialista, não é de fato política, mas meramente expansão econômica.

28 Ibid. p, 412. A autora também mostra como as fábulas em torno dos judeus encontram

eco na própria concepção judaica de entender-se como povo eleito. Canovan também destaca esse ponto: “Arendt claims that totalitarianism movements succeded because they gave lost individuals the ‘sense of having a place in world’, and that they provided an alternative world based on fictions such as the Jewish conspiracy and the Aryan race.” CANOVAN, M., op cit, p. 408. Arendt reivindica que os movimentos totalitários foram bem sucedidos porque deram a indivíduos perdidos ‘o sentido de ter um lugar no mundo', e que forneceram um mundo alternativo baseado em ficções tais como a conspiração judaica e a raça ariana.” Tradução livre.

29 Arendt menciona a conhecida tese de Lênin sobre o “imperialismo” como último estágio do capitalismo, e acredita estar contrapondo-a quando propõe que o imperialismo não é o último estágio, mas o primeiro governo verdadeiramente burguês, cujos princípios políticos são puramente econômicos. Curioso notar que o argumento de Lênin também se origina dessa constatação do predomínio econômico. Arno Mayer, por seu turno, convocaria a pensar em outro sentido, que denomina político, a permanência das forças do antigo regime, e desvela uma hipótese radicalmente distinta onde concebe o imperialismo e a Primeira Guerra Mundial como resistência das forças tradicionais. MAYER, A. A força da tradição.

30 Taminiaux aponta essa semelhança entre Origens do totalitarismo e A condição humana. Analisando o prefácio da primeira edição comenta: “I will then try to detect in book itself the anticipation of several key topics articulated in ‘The Human Condition’”. In: Taminiaux, J., op cit, p. 424. “Eu tentei detectar no livro a antecipação de diversos tópicos e chaves articulados na ‘Condição Humana’”. Tradução livre.

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Tal como notamos na passagem entre a supremacia do “homo faber”, para quem

os artefatos produzidos pelos homens ainda tinham valor, para o “animal

laborans”, quando o processo de fabricação se torna mais importante que o

produto final, o imperialismo funda-se na noção de progresso e de expansão e

refere-se à mesma situação na qual “a riqueza tornou-se um processo interminável

de se ficar mais rico.”31 No exame do imperialismo, fica mais evidente que n’ A

condição humana a separação entre a noção de progresso dos revolucionários do

século XVIII, que ainda se baseava na emancipação do homem, e o progresso que

se torna um sujeito e aparece como um processo infindável e irresistível ao qual

os homens sucumbem.32 Quando os homens, seus artefatos e seu capital perdem

valor, Arendt entrevê o aspecto de superfluidade que adquirem. Capital supérfluo,

de um lado, homens supérfluos, de outro, permitem a união que torna possível o

imperialismo. A superfluidade é um ponto comum entre imperialismo e

totalitarismo, embora não possamos inferir disso que o imperialismo seja a causa

do totalitarismo na análise traçada por Arendt.

Do mesmo modo, a autora examina o surgimento de um “mundo

fantasma” com o avanço da empreitada do imperialismo ultramarino. Tal

realidade se assemelha à concepção da realidade fictícia instaurada pelo

totalitarismo. Apesar da afinidade, Arendt não estabelece nenhum vínculo

determinante entre esses acontecimentos, como se a experiência fantasma na

África pudesse figurar como uma espécie de razão da instauração da realidade

fantasma do totalitarismo. No entanto, o encontro dos aventureiros- “subproduto

da sociedade civilizada” – com o ‘outro’ mundo de tribos e povos africanos

aparece em Origens como uma espécie de realidade experimental para o

totalitarismo. Ao comentar o caso dos bôeres, a autora analisa o contraste entre

natureza e história. O mundo dos nativos aparece como o mundo sem lei e sem

história. É claro que não se trata de pensar a própria história do continente

africano, mas a situação do ponto de vista do indivíduo europeu que se vê alheio

no novo mundo.33 Em Conrad, Arendt encontra a compreensão dessa experiência.

31 ARENDT, H., Origens do totalitarismo, p. 174. 32 Ibid. p. 173. Habermas prefere trabalhar com a distinção entre modernidade e

modernização. Tal distinção parece interessante, sobretudo, porque permite a diferenciação entre as possibilidades propostas nas revoluções modernas e um posterior momento de valorização do progresso. Ver O discurso filosófico da modernidade.

33 Tanto Berstein quanto Canovan mencionam essa abordagem arendtiana que exclui a história dos nativos.

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Esse homem pré-histórico nos amaldiçoava, implorava ou dava boas-vindas? Quem poderia saber? Entre nós e o meio ambiente não havia qualquer entendimento; passávamos por eles como fantasma, cheios de espanto mas secretamente apavorados (...) O encontro com esse mundo “rodeados por uma natureza hostil, deparavam-se com seres humanos que, vivendo sem um determinado alvo para o futuro e sem um passado que incorporasse suas realizações, pareciam-lhes tão incompreensíveis como loucos num hospício.34

Essa sensação de ser um fantasma permite também a constituição de uma

realidade fantasma para esses europeus que se encontram agora num mundo sem

lei - ao menos sem as leis às quais deveriam se dobrar -, no qual podem realizar

suas fantasias, explorar e extorquir.

Se o anti-semitismo e o imperialismo figuram como Origens isso não quer

dizer que sejam causa do totalitarismo ou que já sejam de certo modo totalitários.

Para Arendt, o totalitarismo aparece como novidade radical. Nesse caso, como

poderíamos entender a busca arendtiana pelas Origens do totalitarismo? Qual a

relação do imperialismo e do anti-semitismo com o totalitarismo? Alguns autores

acreditam que o termo Origens é enganoso por remeter à noção de causalidade. A

própria Arendt se refere a essa problemática.35Acreditamos que Origens ainda é

um termo válido quando se destaca que não tem o mesmo sentido de causa.

Quando Arendt busca encontrar as Origens do totalitarismo almeja ter uma

compreensão sobre a possibilidade do fenômeno totalitário. Nesse sentido, a

apreensão das origens não aparece como uma determinação causal entre passado e

futuro, como se o imperialismo e o anti-semitismo tivessem produzido

inevitavelmente o totalitarismo.

A ligação entrevista por Arendt entre imperialismo, anti-semitismo e

totalitarismo não é de necessidade, mas de possibilidade. O imperialismo e o anti-

semitismo tornaram possível o aparecimento do totalitarismo, mas não impuseram

sua ascensão. Note-se que a análise arendtiana abre espaço para a própria

contingência da história e suas particularidades. Decerto houve imperialismo sem

anti-semitismo, e imperialismo sem totalitarismo em muitos lugares. Além disso,

é preciso sublinhar que a noção de origem implica a fundamental concepção 34 Ibid, p. 221. Quando se refere à ausência de história, a autora quer indicar que o

confronto com esses povos dos quais não se conhecia nenhuma história, permitiu aos europeus tomá-los como parte da natureza. Lemos que “O termo ‘raça’ só chega a ter um significado preciso, quando e onde os povos com história conhecida se defrontam com tribos das quais não têm nenhum registro histórico e que ignoram sua própria história.” Ibid, p. 222.

35 ARENDT, H., Reply to Voegelin, p. 78.

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arendtiana acerca da separação entre causa e efeito. Na verdade, ao observar o

totalitarismo, a autora entrevê que há algo nesse evento que é de fato inexplicável.

A convicção de que tudo o que acontece no mundo deve ser compreensível pode levar-nos a interpretar a história por meio de lugares-comuns. Compreender não significa negar nos fatos o chocante, eliminar deles o inaudito, ou, ao explicar fenômenos utilizar-se de analogias e generalidades que diminuam o impacto da realidade e o choque da experiência. (...) Assim, deve ser possível, por exemplo, encarar e compreender o fato, chocante decerto, de que fenômenos tão insignificantes e desprovidos de importância na política mundial como a questão judaica e o anti-semitismo se transformaram em agente catalisador, primeiro do movimento nazista; segundo, de uma guerra mundial; e, finalmente da construção de centros fabris de morte em massa. Também há de ser possível compreender a grotesca disparidade entre a causa e o efeito que compunham a essência do imperialismo.36

Diante da assustadora realidade do totalitarismo, Arendt intui que o evento

inaudito ou o fato inédito não pode ser explicado completamente por nenhuma

causa, razão ou intenção. Há algo na realidade do acontecimento totalitário – e de

todo acontecimento - que não se deixa apreender. Esse algo é o próprio ineditismo

do evento que lhe caracteriza como novidade. A disparidade observada pela

autora entre as causas e os efeitos do totalitarismo indica não apenas que não há

uma conexão direta entre causas e efeitos, de modo que causas insignificantes

podem ser agentes catalisadores de grandes tragédias, mas também que o futuro

não pode ser compreendido diretamente pelo passado que o antecede. Por mais

que seja importante explicar as mudanças trazidas pelo imperialismo e as

possibilidade abertas pelo anti-semitismo moderno, isso não explica com certeza

por que aconteceu o totalitarismo.

Por surgir como um evento radicalmente novo, que não pode ser entendido

através dos modelos tradicionais de governo, o totalitarismo requer um conceito

‘novo’ e “a escolha de um termo inédito”. Ou seja, um novo meio de compreender

o evento, que parece se caracterizar como autoritarismo, ditadura ou fascismo,

mas se constitui como uma experiência diferente e singular. O problema é como

conceber a novidade com as categorias “velhas” do pensamento. Deve-se observar

que a novidade não advém da esfera do pensamento. Ao contrário, o totalitarismo

aparece como uma realidade singular, única, que obriga à renovação das idéias e

concepções tradicionais. Como nota Castoriadis:

36 Id., Origens do totalitarismo, p. 12

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Está implícito na análise de Arendt o pressuposto de que nós enfrentamos aqui algo que não apenas transcende as "teorias sobre a história" herdadas, mas transcende qualquer "teoria". Na verdade, o totalitarismo é, a esse respeito, o exemplo monstruosamente privilegiado e extremo daquilo que é verdade para toda a história e para todos os tipos de sociedade.37

Tal observação indica que a realidade da qual atos e eventos emergem é o

âmbito original da novidade. É na história que se revela o imprevisível. Por isso, a

autora insiste na diferenciação entre fim da tradição e ruptura com a tradição.

Apenas um acontecimento, ou seja, alguma coisa da ordem da ação, poderia

esfacelar a tradição fundada na superioridade do pensamento. O pensamento só

pode inverter teoricamente as hierarquias tradicionais, mas não tem a capacidade

de esfacelar a tradição justamente por ser pensamento. Aqui encontramos um

argumento fundamental para entender o pensamento arendtiano e sua teoria da

história. A teoria não pode indicar ou orientar a realidade porque a realidade

guarda um caráter imprevisível e o que acontece de realmente novo não pode ser

pensado pelas categorias usuais de pensamento. A imprevisibilidade dos fatos e a

possibilidade da novidade é o que sustenta a proposição de Arendt acerca da

autonomia entre ação e pensamento. Veremos ainda que a relação entre teoria e

novidade ou entre pensamento e ação coloca em xeque a conexão direta entre

passado e futuro. A novidade surge como uma ruptura com o processo

subseqüente e por isso não pode ser explicada por modelos veiculados pela

tradição do pensamento. Nesse mesmo sentido, distinguiremos a novidade

revolucionária analisada pela autora. Por ora, devemos observar que a dificuldade

de lidar com a novidade aparece não apenas para os historiadores que

posteriormente tentam entender o que aconteceu, mas foi também, decisiva para o

julgamento equivocado das pessoas envolvidas no evento. Os próprios

contemporâneos do totalitarismo não entendiam direito o que se passava. Nesse

sentido, também podemos compreender a afirmativa, segundo a qual “as ‘pessoas

normais’ se recusam a crer que tudo seja possível.”38 Contando com seus

tradicionais esquemas e conceitos de pensamento não era possível entender a

37CASTORIADIS, C., Os destinos do totalitarismo. In: ____. Os destinos do totalitarismo e

outros escritos. 38 ARENDT, H., Origens do totalitarismo, p. 491.

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novidade que o totalitarismo representava. Não se imaginava a alteração da

história que estava em jogo.

O chocante que vêm à tona com o absurdo totalitário não é simplesmente o

absurdo do totalitarismo, mas o absurdo de todo inaudito. Se falássemos com os

termos de Luc Ferry, poderíamos dizer que não é o totalitarismo que é irracional –

sua empresa, aliás, é perfeitamente racional e organizada de modo técnico -, mas

seu aparecimento, e suas conseqüências, que não podem ser equiparadas às suas

causas é que parecem ser irracionais. O problema é que, nesse caso, a

“irracionalidade” não seria uma especificidade do totalitarismo, mas a própria

lógica da história. A irracionalidade estaria ligada ao aparecimento do inaudito, e

estaria implícita na realidade em si mesma; em todo acontecimento que surge no

mundo. Mas Arendt não parece deixar margem para supormos que a história é

irracional. De certo que ela recusa o racionalismo absoluto no sentido hegeliano

donde “todo real é racional”, considerando as conseqüências que tal abordagem

pode acarretar, sobretudo no que se refere à determinação antecipada da história.

Não obstante, o aspecto inédito no qual se funda a realidade, qual seja, a

possibilidade de advir a novidade, não deve caracterizar-se como irracionalidade.

Até porque a realidade é justamente aquilo que é partilhado por uma pluralidade

de homens, aquilo que pode ser posto em palavras. Arendt sublinha a coerência

lógica sob a qual a realidade fictícia do totalitarismo se sustenta. Em

contraposição, defende que a realidade na qual se desvelam os fatos em sua

contingência é aparentemente menos coesa. Sua coerência não é como a ficcional,

onde o sentido é traçado de antemão. Não obstante, o sentido ficcional predito

pelo totalitarismo tem sua coerência sempre perturbada pela contingência do

futuro. Desse modo, Arendt sustenta que a realidade acaba deixando entrever um

sentido que não está pré-determinado, que acaba sendo mais coerente que o

sentido previsto de antemão, que não se adéqua às novidades imprevistas.39

Para entender a originalidade totalitária precisamos notar em que medida

os homens estão envolvidos no empreendimento dessa novidade. A questão é que

a novidade do totalitarismo parece ser entrevista mais do ponto de vista histórico

que da perspectiva dos atores políticos. Não que os atores não visualizassem a

empresa monumental na qual estavam se inserindo com o intuito de transformar a

39 Retomaremos essa discussão sobre o sentido da realidade no próximo capítulo, onde

também devemos procurar examinar mais especificamente a noção arendtiana de ficção.

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história. Ocorre que Arendt, ao defender que essa “novidade” histórica significava

para os atores menos a possibilidade de iniciar algo novo no mundo, e mais a

necessidade de se adequar ao rumo pré-determinado da história, retira a

competência da ação das mãos das pessoas envolvidas no totalitarismo. Assim,

observamos que a autora consegue entrever a maior novidade da história do

ocidente, conforme a sua narrativa dessa história, sem que precise dar crédito à

ação política daqueles que se empenharam nessa criação. Entendemos que Arendt

compõe esse quadro do aparecimento da novidade sem ação enfatizando a

imobilidade dos atores e a valorização do processo da história.

Toda a empresa totalitária concebida por Arendt se funda menos na

vontade, nos interesses e paixões dos atores políticos que no movimento

autônomo da história. Veja nesse sentido o argumento sobre a falta de convicção

dos membros do partido. Ainda que seja possível entender que abrir mão de agir e

corroborar para o desenvolvimento das forças preditas da história está relacionado

ao interesse de se tornar importante, ascender socialmente ou encontrar um

sentido na vida, a autora insiste em destacar que

a forma totalitária de governo muito pouco tem a ver com o desejo de poder ou mesmo com o desejo de uma máquina geradora de poder, com o jogo do ‘poder pelo amor ao poder’ que caracterizou os últimos estágios do domínio imperialista. (...) O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe diferença entre fato e ficção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento).40

A anulação da ação pode ser entrevista principalmente na adesão por parte

dos atores ao movimento, que é, segundo a perspectiva arendtiana, uma submissão

ao processo histórico. Nesse sentido, até mesmo a autoridade do líder acaba

enredada pela força maior da história. A diferença entre a hierarquia autoritária e

totalitária revela que o líder totalitário não está fora e acima do movimento. Ao

40 Ibid, p. 526 e 456-7. Para Arendt, a falta de convicção se revela quando o mundo fictício

é destronado e não restam entusiastas do programa nazista. Ela não trabalha com a possibilidade de que a derrota histórica dos totalitarismos faça seus adeptos se esconderem e reverem seus discursos. Também não aborda o fato do suicídio de diversos líderes no sentido de adesão ao programa. Considerando a perspectiva arendtiana, essas mortes aparecem como fuga da responsabilidade. Tal leitura aparece ainda no caso de Eichmann. A autora não sugere que ele era um mentiroso, mas, ao contrário, acredita que realmente não tinha ódio pessoal pelos judeus e contava com a leitura moral kantiana. Traço marcante na interpretação arentiana do totalitarismo, que sustenta seu argumento sobre a novidade é justamente esse. A novidade metodológica é que Arendt não rejeita o depoimento dos nazistas, ao contrário, para entender sua nova lógica toma-os ao pé-da letra.

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contrário, ele é seu núcleo de sustentação. Sua figura atinge todas as camadas da

hierarquia e “o desejo do Führer é a lei do partido”, mas também se encontra

subjugado pelo movimento e, ao profetizar a história e pôr-se à disposição de suas

forças, precisa respeitar a coerência do processo, onde ‘o direito é aquilo que é

bom para o movimento’.41

Arendt percebe que o líder liga o movimento ao mundo real, pois se

constitui como sua figura pública mais eminente. Desse modo, o mundo não-

totalitário supõe que ele é o responsável pelo movimento, que ele o controla

absolutamente e “sabe o que está fazendo”42 Mas esse é mais um equívoco

propiciado pelos velhos esquemas teóricos. Ocorre que o mundo exterior julga o

totalitarismo sem considerar a sua novidade e toma-o como mais um caso de

autoritarismo ou ditadura. O que leva a autora a argumentar que os líderes

totalitários não são os velhos manipuladores maquiavélicos, que comandam tudo à

sua vontade por trás dos panos, é a constatação de que o líder totalitário não passa

a ser a fonte da autoridade. A novidade é que o movimento funciona como a

própria encarnação da lei. “o totalitarismo introduziu um princípio inteiramente

novo no terreno das coisas públicas que dispensa inteiramente o desejo humano de

agir, e atende à desesperada necessidade de alguma intuição da lei do movimento,

segundo a qual o terror funciona e da qual, portanto, dependem todos os destinos

pessoais.” 43

Como poderíamos entender essa novidade do totalitarismo em consonância

com a teoria arendtiana da ação? Se constatamos que ação enquanto início de

alguma coisa nova no mundo não é o mesmo que a ficção totalitária, onde está a

diferença crucial? Se na pólis, a autora vislumbra a conexão entre a capacidade

41 Ibid, p. 424; 461. 42 Ibid, 425. Margaret Canovan fala desse paradoxo do totalitarismo se constituir como

novidade, mas não ser a novidade da ação. “In other words, totalitarianism illustrated the human capacity to begin, that power to think and act in ways that are new, contingent, and unpredictable that looms so large in her mature political theory. But the paradox of totalitarian novelty was that is represented an assault on that very ability to act and think as unique individual. CANOVAN, M. The Cambridge companion to Hannah Arendt, p. 27. “Em outras palavras, o totalitarismo ilustra a capacidade humana para começar, o poder para pensar e agir de modo novo, contingente e sem precedents que se aproxima-se em garnde medida da sua teoria política madura.” Tradução livre.

43 ARENDT, H. Origens do totalitarismo, p. 520. Para Arendt, o totalitarismo se difere dos governos fundados na lei positiva porque interrompem a discrepância entre a fonte da lei (a autoridade) e a lei. Essa temática também aparece na discussão sobre a revolução, que veremos adiante, onde é retomada para diferenciar a revolução francesa da americana. Segundo ela, o totalitarismo “Pode dispensar o consensus iuris porque promete libertar o cumprimento da lei de todo ato ou desejo humano; e promete a justiça na terra porque afirma tornar a humanidade a encarnação da lei.” Ibid, p. 515.

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humana de agir e a possibilidade de iniciar algo novo no mundo, no caso do

totalitarismo o surgimento da novidade não está relacionado a essa competência

humana, representando, ao contrário, a abdicação e a submissão da liberdade do

homem. Em outras palavras, ainda que promova a novidade, o membro do partido

e nem mesmo o líder podem ser considerados homens de ação. Nesse sentido,

também não convém compreender o totalitarismo como a extrema realização da

vontade. Como se o homem pudesse de tudo dispor e dominar. É certo que Arendt

entrevê a enorme disposição do totalitarismo para alterar a história e erigir uma

realidade fictícia na qual “tudo é possível”, mas parece que os atores que colocam

em andamento essa empresa acabam enredados no processo do movimento. Ao

predizerem a história e criarem uma realidade baseada na mentira, na perda do

mundo e na alteração dos fatos, os ‘atores’ deixam de agir para comportarem-se

de acordo com o previsto. Não há mais abertura para pluralidade porque há uma

única opinião, tal como não existe espaço para a novidade, pois o futuro está

decidido de antemão. Se é possível encontrar um impulso criativo no

totalitarismo, como destaca Derrida quando compara a essência comum da ação e

da mentira, vemos que esse impulso encerra a si mesmo ao erigir uma realidade

falsa cujo desígnio é conhecido teoricamente pelos homens mesmo antes de

adentrarem a esfera da vita activa. O problema é que esses homens, mesmo que

tenham se colocado ao serviço das forças da história ou da natureza acabaram

‘fazendo’ história. Ou seja, mesmo que tenham se enredado na realidade fictícia e

criado um regime no qual a liberdade foi suprimida eles foram livres para criá-la.

Sustentamos que a perspectiva arendtiana apóia-se na idéia, segundo a

qual, a equiparação da vontade ao destino histórico acaba promovendo a própria

perda da realidade da história e a possibilidade da ação. De modo que, em termos

lógicos, é possível concluir que o homem que faz história à sua vontade não age e,

conseqüentemente, não “faz” história alguma, mas comporta-se de acordo com a

teoria imaginada na antecipação. Assim, o totalitarismo aparece como um feito

que apesar de deixar atrás de si um dos maiores ‘feitos’ da história ocidental, que

é a ruptura de sua continuidade, não trata de atores ou da construção de um espaço

político comum no qual a pluralidade possa se realizar. A novidade surge, senão à

revelia dos atores, impondo-se contra a ação. Entrevisto desse modo, o

totalitarismo só aparece como novidade e inaudito pela tentativa de eliminar a

própria possibilidade da novidade.

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4.2. Diante da novidade: o caso dos revolucionários modernos

Para ampliar o entendimento do fenômeno da novidade na obra arendtiana

e o seu significado para a sua compreensão da história, trataremos de sua teoria

acerca das revoluções modernas. Acreditamos que na comparação entre o

surgimento da novidade revolucionária na América e na França, Arendt elucida

historicamente a temática da novidade, pois é nesse texto que a novidade aparece

claramente como uma edificação promovida por atores políticos.

A teoria arendtiana sobre a revolução figura como importante referência

no rol das obras adotadas pelos historiadores. Além de tratar de temática

fundamental na história, a abordagem da autora permite um questionamento não

apenas da revolução, mas ainda sugere uma leitura particular da modernidade.

Inclusive, distancia-se da própria versão de modernidade que encontramos n’ A

condição humana, onde o significado da ‘perda do mundo’, e do esquecimento do

político são enfatizados. Apesar da notoriedade, não é comum encontrar quem

concorde com o argumento central dessa obra que relega a Revolução Francesa ao

segundo plano associando-a aos interesses sociais, e exalta a experiência política

na Revolução Americana. O livro de Arendt, Da revolução, publicado em 1962,

com apoio da Fundação Rockefeller, “sob os auspícios do programa Especial

sobre a Civilização Americana”44, pode ser visto como uma elevação do

americanismo no contexto de guerra fria. A mesma acusação é lançada contra

Origens do totalitarismo onde a autora critica o regime de Stálin. Se foi possível

acreditar que, num mundo dividido entre duas grandes potências, acusar o

totalitarismo soviético era defender o capitalismo liderado pelos Estados Unidos e

seu estilo de vida moderno fundado no desenvolvimento da técnica, o

aparecimento d’ A condição humana deixou evidente que a questão em jogo no

totalitarismo implicava a própria modernidade como um todo. E Arendt não

deixou de apontar a existência de elementos totalitários nas democracias

ocidentais. Fato é que, apesar do MacCarthismo, de Nixon e da guerra fria, os

Estados Unidos parecem ter mantido uma tradição de liberdade, principalmente

44 Como indica Arendt nos Agradecimentos do livro.

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no que se refere à liberdade de expressão. A perspectiva arendtiana, no entanto,

não demonstra a intenção de simplesmente exaltar a América, embora acabe por

destacar a grandeza herança da experiência política dos “Pais Fundadores”.

Para nosso trabalho de compreender a concepção de história arendtiana, o

Da revolução aparece como texto fundamental, onde se desenvolve o exame da

ligação entre o passado e o futuro propiciado pelo advento da novidade

revolucionária. Na tese famosa e central sobre a “derrapage” da Revolução

Francesa que perde o foco político e se volta para a reivindicação social,

acreditamos que está explícita a concepção de modernidade e a interpretação da

história defendida por Arendt. A Revolução Francesa, que consta como a grande

revolução moderna nos anais de história, evoca não apenas a imagem da

revolução, mas também a da modernidade. Para Arendt, nem a Revolução

Gloriosa, na Inglaterra, nem a Revolução Americana alcançaram a notoriedade da

Revolução Francesa quando se trata de evocar o sentido revolucionário. Quanto

ao evento da independência nos Estados Unidos, inclusive, a historiografia ainda

se questiona sobre a validade de considerá-lo como uma revolução.45

A argumentação arendtiana arregimenta-se para mostrar que essa

equivalência entre revolução e revolução francesa, que permite ao processo

revolucionário francês ser tomado como “exemplo” de revolução e paradigma

para atestar a existência da revolução em outras situações, deve-se ao seu aspecto

de irresistibilidade, que, por sua vez, é íntima da noção de modernidade como um

processo autônomo. A irresistibilidade detectada por Arendt refere-se à

irrevogabilidade do movimento revolucionário, que uma vez em curso parece ser

tomado por forças próprias e necessárias.

Na busca pelo aparecimento da palavra revolução em sentido moderno, a

autora encontra a cena do diálogo entre Luís XVI e o duque La Rochefoucauld-

Liancourt na noite da queda da Bastilha, no qual o duque caracteriza o movimento

como uma revolução, contrapondo a pergunta do rei que imaginava tratar-se de

uma revolta. Segundo Arendt, “aqui, talvez pela primeira vez, a ênfase deslocou-

se inteiramente do determinismo de um movimento giratório cíclico para a sua

irresistibilidade. O movimento ainda é visto através da imagem dos movimentos

45 Arendt sugere que a associação entre revolução e libertação social é tão forte que leva a

supor não ter havido revolução na América. Ibid, p. 20.

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das estrelas, mas o que é enfatizado agora é que está além do poder humano detê-

lo, e, como tal, é uma lei em si mesma.”46

No caso da Revolução Francesa, essa irresistibilidade é representada pela

massa de pobres que teriam forçado a entrada no mundo político, indicando a

ausência de controle sobre o movimento da revolução. Quando sublinha a

‘derrapage’ da revolução Francesa que se vê arrastada para o problema social,

Arendt está mostrando que a questão da revolução deixa de ser a vigência da

liberdade e a demanda da instauração da república, e passa a ser resolução da

libertação da miséria, a seu ver, um ponto pré-político. Mas o que está em jogo

com a noção de irresistibilidade é não apenas o aparecimento das massas e da

miséria no cenário político, mas a caracterização do próprio processo

revolucionário como curso irresistível e irrevogável dos eventos. O turbilhão da

massa indica o próprio turbilhão do processo revolucionário, que será entendido

como o processo histórico em si. Tal noção ficou intrinsecamente associada à

concepção moderna de revolução e constitui a base do moderno conceito de

história, cuja versão mais bem acabada surge para Arendt com a “Filosofia da

História” de Hegel. A autora sugere que essa obra é a “conseqüência de maior

alcance da Revolução Francesa”.47

Se em ambos os processos revolucionários, a idéia de irresistibilidade é

importante para compreender o surgimento da novidade, o conceito tornou-se

intimamente ligado ao curso revolucionário na França, onde os homens

surpreendidos pela novidade teriam sido arrastados por uma força maior, que

passou a ser identificada como “a força da História e da necessidade histórica”.48

Deve-se notar que o caráter de irresistibilidade que tomou o processo

revolucionário francês não aparece no início da revolução, quando se imaginava

restaurar a ordem. Apenas com a inesperada insurreição popular, ficou evidente

que os objetivos e intenções dos primeiros homens da revolução, cujo

entendimento ainda equacionava revolução e restauração, sucumbiram ao curso

dos eventos.49 Para Arendt, essa corrente subterrânea que toma conta do rumo da

46 Ibid, p. 38. 47 Ibid, p. 41. 48 Idem. 49 Para compreender a novidade da revolução, a autora busca mostrar a diferença no uso

moderno da palavra. Arendt conta que, originalmente, revolução significava restauração. Tratava-se de um conceito da astronomia que indicava o movimento natural e cíclico, eternamente repetido pelos astros. “o movimento regular, sistemático e cíclico das estrelas, o qual, era visto que todos

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revolução francesa não desponta nos eventos da revolução americana. Vejamos

como a autora marca essa distinção entre o caso francês e americano. Referindo-se

inicialmente à revolução na França, ela percebe que:

O que apareceu com mais nitidez nesse espetáculo foi que nenhum dos participantes podia controlar o curso dos acontecimentos, e que esse curso tomou uma direção que pouco ou nada tinha a ver com os objetivos e metas intencionais dos homens que, pelo contrário, se viam obrigados a submeter sua vontade e objetivos à força anônima da revolução, se é que queriam realmente sobreviver. (...) Contudo, precisamos apenas lembrar dos rumos da Revolução Americana, onde aconteceu exatamente o oposto, e recordar o quanto era forte o sentimento de que o homem é o senhor de seu destino, que impregnava todos os seus atores, pelo menos no que diz respeito ao governo político, para entender o impacto que o espetáculo da impotência do homem em face do curso de sua própria ação deve ter tido.50

O que queremos destacar é que a distinção arendtiana entre a revolução

francesa e a revolução americana baseia-se na premissa segundo a qual a

revolução americana realiza a experiência política plena, enquanto a revolução

francesa ‘perde’ o rumo político e é arrastada pelo processo histórico. É nesse

sentido que podemos entender a separação entre a submissão às forças autônomas

e irresistíveis da história, e a ação política promovida pelos homens, que não se

deixam levar pelo movimento independente da história, mas influenciam, eles

mesmos, esse movimento.

Ao menos duas questões importantes para o nosso contexto emergem

dessa diferenciação. A primeira refere-se à especificidade da realização do

político na revolução americana, que permite à autora sublinhar a notoriedade

desse evento. Considerando que a extraordinariedade da revolução americana é o

aparecimento da liberdade, tal como vislumbrado na pólis grega, parece

necessário cogitar se a história em Arendt não se apresenta como uma repetição

do mesmo. Outro ponto que precisamos considerar nessa distinção entre as

revoluções é a relação entre ação e história. Fica claro que na revolução americana

está em jogo a ação dos homens, em contraposição à determinação da História,

que emerge como curso autônomo na Revolução francesa. Encontramos essa

oposição também na discussão de “Origens”, onde vimos a relevância da noção de

processo para o argumento sobre a instituição do totalitarismo como uma

sabiam que não dependia da influência do homem e que era, portanto, irresistível, não era certamente caracterizado nem pela novidade, nem pela violência.” Ibid, p. 34.

50 Ibid, p. 41.

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realidade fictícia baseada no movimento das forças da história. Ao visualizarmos

a mesma temática do processo autônomo da história no caso da Revolução

Francesa, devemos notar que a irresistibilidade também enreda os homens, e os

submete ao movimento histórico, embora isso não signifique que o terror

revolucionário francês seja equivalente ao terror totalitário, pois no totalitarismo a

história autônoma era pré-determinada. Nesse quadro, em que observamos a

relação ator-história na revolução americana, na revolução francesa e no

totalitarismo, configuram-se três perspectivas. Na revolução americana, os

homens agem e edificam a novidade através da fundação da república. Na

revolução francesa, os atores deixam-se levar pela irresistibilidade da História e

não se posicionam frente à novidade. No totalitarismo, além da submissão às

forças da história, concebe-se a pré-determinação do seu movimento para a

criação de uma realidade fictícia que pretende eliminar a possibilidade da ação.

Quando diferencia a Revolução Americana da Francesa, contrapondo a

tradição de hegemonia desse último episódio, Arendt não pretende negar o

atributo revolucionário do evento francês. Quer mostrar como a noção de

revolução ficou presa à idéia da irresistibilidade, a ponto de evocar mais o

processo revolucionário que uma mudança original do curso dos eventos. Isso não

quer dizer que o caso francês não possa ser considerado uma revolução. A autora

não deixa de caracterizar a revolução francesa como uma revolução, atribuindo-

lhe caráter de novidade. No entanto, observa que os revolucionários franceses não

souberam aproveitar o aparecimento da novidade. Não tiveram capacidade de

lidar com o aspecto inédito da novidade para tornarem-se como os revolucionários

americanos “senhores dos seus destinos”. Importa-nos observar como a autora

sugere a novidade de ambas as revoluções ao mesmo tempo em que sublinha a

ação dos americanos e a submissão dos franceses frente à novidade. O que

precisamos compreender é como o surgimento da novidade relaciona-se com a

ação dos atores, e de que forma essa conexão torna-se histórica. Ao considerar o

caráter de novidade em ambas as revoluções e distinguir as reações dos

revolucionários diante da novidade, Arendt indica que há algo na novidade que

irrompe de forma contingente e independente das intenções dos atores. Inclusive,

ela sublinha que em nenhum dos lados do Atlântico almejava-se fabricar a

novidade, sugerindo que tal ruptura não surge como realização da vontade dos

revolucionários.

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Pode-se notar que, já, na introdução do livro, o intuito arendtiano ao

comentar o legado do século XX, marcado irrevogavelmente pelas guerras e

revoluções, é separar esses dois tipos de violência. A característica fundamental

nessa diferenciação é a modernidade das revoluções e sua relação com o

aparecimento da liberdade. “as guerras se incluem entre os mais antigos

fenômenos do passado de que se tem registro, ao passo que as revoluções, em seu

sentido próprio, não existiam antes da idade moderna. (...) Contrariamente à

revolução, o objetivo da guerra, apenas em raros casos, estava ligado à noção de

liberdade”.51

Arendt não nega que pode haver proximidade entre guerras e revoluções e

considera que as revoluções muitas vezes começam com guerras ou terminam em

guerras. O ponto comum entre guerras e revoluções é o uso da violência. O que as

distingue é surgimento da novidade e a instauração da liberdade. Segundo Arendt,

as revoluções não devem ser compreendidas como meras mudanças, pois se

caracterizam- pelo aparecimento do “inteiramente novo”.52 Se antes da

modernidade existiam lutas, guerras e mudanças políticas acompanhadas de

irrupções violentas, a autora acredita que essas eram ainda transformações

diferentes das revoluções porque “As mudanças não interrompiam o curso daquilo

que a Idade Moderna passou a chamar de História” 53

O ponto importante é compreender o caráter de novidade que as

revoluções apresentam. A autora indica que a novidade das revoluções modernas

está ligada à introdução de um “novo princípio”. Retomaremos suas proposições

para entrever em que medida esse novo princípio vêm à tona por intervenção das

ações humanas. Além disso, também é preciso avaliar o caráter dessa novidade.

Trata-se de uma novidade absoluta, que se apresenta como um ineditismo segundo

o qual se visualiza uma ruptura na continuidade da história ou de um “novo

princípio”, que representa menos uma experiência inédita que uma nova

combinação histórica?

A idéia de que as revoluções modernas introduzem uma ruptura histórica

fundamental a partir da qual a própria concepção de história se reorienta em

direção ao

51 Ibid, p. 10 52 Ibid, p.17. 53 Idem.

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futuro, abdicando da experiência passada, está intimamente ligada à consciência

da novidade reivindicada pelos homens modernos.

Habermas enfatiza que a modernidade se sustenta na reflexão concretizada

pela consciência histórica, que permite o desenvolvimento de sua auto-

normatividade. Por conceber a si mesmo como novidade, a era moderna abdicou

de sua sustentação no passado histórico e precisou fundar suas próprias origens.

“a modernidade não pode e não quer tomar dos modelos de outra época seus

critérios de orientação, ela tem de extrair de si mesma a sua normatividade.”54

Nesse sentido, Reinhart Koselleck explica o ineditismo dos tempos modernos

através da imagem da separação entre o “campo de experiências” e o “horizonte

de expectativas”.55 O autor sugere que a modernidade torna ultrapassada a noção

de continuidade histórica vigente na perspectiva da “História mestra da vida”, que,

pelo menos desde Cícero, funda-se na concepção segundo a qual o passado pode

orientar o futuro. Desde então a história pôde ser entendida como o singular

coletivo que designa um processo único dotado de sentido autônomo.56 Essa

noção de processo está intimamente relacionada à concepção de progresso e à

expectativa de um por-vir eterno.

Comumente se entende que um dos pontos fortes da modernidade é a

capacidade humana de criar o novo. A própria modernidade se entende desse

modo e se desligando dos valores tradicionais, imagina se auto-fundamentar. A

idéia da revolução de inovar o calendário e começar a marcar o tempo a partir da

irrupção revolucionária indica essa auto-sugestão. Justamente por se deparar com

a construção da novidade as revoluções têm que responder pela fundamentação do

novo começo.

Ocorre que a necessidade de legitimidade da modernidade que se vê

desamparada da tradição, permite o soerguimento da História em sua totalidade

como fundamentação dos novos tempos. Arendt observa que a nova concepção de

História, embora estabeleça o descrédito da consideração cíclica, segundo a qual o

passado legitima e guia o futuro, “longe de começar com um novo princípio,

apenas recaiu num estágio diferente do seu ciclo, seguindo um curso pré-ordenado

pela própria natureza dos acontecimentos humanos, e que era, portanto, imutável 54 HABERMAS, J., O discurso filosófico da modernidade, p. 12. 55 Koselleck, R., Futuro passado, p. 319. 56 Koselleck apresenta também em seu Crítica e crise a conexão entre a movimentação

revolucionária e a crise política.

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em si mesmo.”57 A possibilidade de considerar a História uma totalidade permite

que a “experiência” deixe de ser transmitida pelo passado e possa se revelar no

processo histórico em si mesmo. A consciência de se saber novidade abre aos

modernos a possibilidade de tomar a história como uma totalidade a qual pode ser

entrevista unicamente pelo excepcional presente moderno. Tal concepção dos

novos tempos valida a associação entre consciência histórica e filosofia da

história. “Koselleck mostra como a consciência histórica, expressa no conceito de

‘tempos modernos’ ou ‘novos tempos’, constituiu uma perspectiva para a filosofia

da história: a presentificação reflexiva do lugar que nos é próprio a partir do

horizonte da história em sua totalidade.”58 As considerações de Arendt, de certo

modo, também se encaminham nesse sentido, de observar que a novidade

instaurada pela revolução sucumbe às filosofias da história. Se permanecer presa a

uma totalidade de sentido que pode ser vislumbrada pelo filósofo, a História

subsume novamente a ação ao conhecimento, embora a origem da autoridade

tenha se transferido teoricamente do passado para o futuro.59

O problema da auto-fundamentação é um dos paradoxos da modernidade,

que se vê livre para se sustentar por si mesmo, mas permanece carente de

encontrar sentido para sua nova liberdade. A consciência histórica de se entender

livre encontra-se num beco de onde sai ora para o fim da história como no caso

hegeliano, ora para o progresso sem fim, vislumbrado por Kant. O certo é que a

impossibilidade de recorrer aos firmes pilares da tradição e suas concepções

absolutas jogam a modernidade no olho do furacão desencadeado pelo processo

que ela mesma abriu. Habermas esboça esse embaraço e apresenta a solução

baudeleriana para o impasse da modernidade. “o ponto de referência da

modernidade torna-se agora uma atualidade que consome a si mesma, custando-

lhe a extensão de um período de transição (...) O presente não pode mais obter sua

consciência de si com base na oposição a uma época rejeitada e ultrapassada, a

uma figura do passado. A atualidade só pode se constituir como o ponto de

intersecção entre o tempo e a eternidade.”60

57 ARENDT, H., Da revolução, p.17. 58 Ibid, p.10. 59 Apesar de apontar a problemática das filosofias da história Arendt faz questão de

distinguir Hegel de Marx, entendendo que apenas para o segundo, a possibilidade de se vislumbrar o significado da totalidade da história funciona exatamente como experiência.

60 Habermas, J., op cit, p.14.

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Se, para Habermas, Baudelaire ainda procura contar com o absoluto da

eternidade para resolver o enigma da transitoriedade moderna, estabelecendo a

conexão entre o presente e o eterno, na atualidade da obra de arte, o autor

descobre em Benjamin outra possibilidade de estabelecer a fundamentação da

modernidade, mantendo aberta a potência da novidade. Habermas acredita que

Benjamin retoma a idéia de atualidade para dar-lhe outro sentido, o qual se trata

de “retraduzir essa experiência estética fundamental em uma relação

histórica.”61O tempo-presente pela atualização do passado teria a capacidade de

interromper o continuum da história e introduzir significado no tempo

“homogêneo e vazio”, que tornou a novidade mero processo. Nessa noção de

atualização, Benjamin estaria recuperando a competência da novidade de se auto-

fundamentar, e, desse modo, resolvendo a equação da ligação entre passado e

futuro.

Entendemos que Habermas tem razão quando detecta a tentativa

benjaminiana de responder à dificuldade moderna de auto-fundamentação, que

não é outra senão a própria dificuldade de legitimação e orientação advinda da

ruptura com o passado e do conseqüente enigma do progresso que devora a

potência do novo num infinito processo de superação. Certo é que Benjamin

vislumbra na sua noção de atualização a possibilidade da combinação entre futuro

e passado, preservando o vigor da novidade. Não discutiremos aqui a validade de

tal proposição. Rainer Rochlitz questiona em vários pontos o projeto e destaca a

permanência da perspectiva messiânica de Benjamin, enquanto Habermas surge

como entusiasta dessa alternativa.62 Sem omitir a influência benjaminiana sobre a

obra de Arendt, nos deteremos à tentativa de elucidar sua compreensão da

novidade através da sua leitura das revoluções modernas.

O que precisamos entender é como a autora entende a novidade

revolucionária já que não a aborda nos termos que tradicionalmente entendemos a

modernidade, como uma ruptura radical entre passado e futuro, mas, ao contrário,

mostra como o revolucionários evocam experiências passadas para erigir sua auto-

fundamentação, sem que isso caracterize alguma manifestação de nostalgia ou

conservadorismo. Na análise arendtiana das revoluções visualizamos desenvolver-

61 Ibid, p. 17. 62 ROCHLITZ, R., O desencantamento da arte. p.348-9.

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se um sentido singular da novidade, que tenta preservar a experiência do novo,

mesmo quando indica a necessidade da fundação.

Para compreendermos essa experiência nova e o caráter de sua novidade é

necessário examinar o que a autora quer dizer quando associa a novidade menos

ao novo absoluto e mais à nova experiência de ser livre.

O que a revolução trouxe à luz foi essa experiência de ser livre, e essa foi uma experiência nova, embora não na História do mundo ocidental – foi bastante comum na Antigüidade greco-romana -, mas em relação aos séculos que separam a queda do Império Romano do advento da Idade Moderna. E essa experiência relativamente nova, pelo menos para aqueles que a viveram, foi, ao mesmo tempo, a experiência da capacidade do homem para iniciar alguma coisa nova. Essas duas coisas juntas – uma nova experiência que revelava a capacidade do homem para a novidade – estão na base do enorme pathos que encontramos tanto na Revolução Americana como na Francesa...63

O que intriga e torna, a nosso ver, a perspectiva da novidade arendtiana

singular é justamente a ligação que a autora estabelece entre o novo e o passado.

Ao indicar que a novidade da revolução não é tão nova porque remete à política

greco-romana não acreditamos que Arendt esteja renegando a possibilidade da

novidade. A ligação entre novidade e liberdade evidencia um particular enlace que

aponta para a singularidade da sua concepção de novidade.

A autora não nega que a “Liberdade, como fenômeno político, foi

contemporânea das cidade-Estados gregas. Desde Heródoto, ela foi entendida

como uma forma de organização política em que os cidadãos viviam juntos em

condições de não-mando, sem uma distinção entre governantes e governados.” Se

isso revela, como ela mesma admite, que a liberdade das revoluções modernas não

é nenhum acontecimento absolutamente inédito, também indica outra

possibilidade para a novidade moderna. Diferentemente dos que conceberam a

modernidade como ruptura radical e destacaram a liberdade negativa como uma

de suas grandes conquistas, Arendt entrevê nas revoluções modernas, o

aparecimento da liberdade positiva cuja origem remonta à pólis. Ou seja, a autora

se desvencilha da compreensão comum das revoluções, distinguindo direitos civis

e liberdade, tal como diferencia libertação e liberdade. Não é na defesa da “vida,

liberdade e propriedade” que ela encontra o sentido das revoluções, mas sim, na

liberdade efetiva e positiva que “significa participação nas coisas públicas, ou

63 ARENDT, H., Da revolução, p. 27.

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admissão ao mundo político”.64 A novidade da revolução não pode, conforme a

perspectiva arendtiana, ser caracterizada simplesmente como um objetivo ou um

projeto “Se a revolução tivesse tido como meta apenas a garantia dos direitos

civis, não teria, com isso, visado à liberdade, mas tão-somente a libertação dos

governos que tivessem extrapolado seus poderes e infringidos direitos antigos e

bem enraizados.”65

César Augusto Ramos discute sobre o caráter da modernidade da liberdade

a qual Arendt se refere como liberdade política. Sua questão é “Como conciliar a

idéia de liberdade política (e, conseqüentemente, ausência da liberdade do querer)

com a concepção da liberdade como um começar de novo, na qual o livre querer

do sujeito criador é um componente fundamental da ação, culminando com a idéia

kantiana da liberdade como espontaneidade?” Apesar de destacar que a estratégia

da autora para conciliar a liberdade antiga e moderna é a de se desvencilhar do

“elemento individualista da autarquia e da autonomia”, Ramos conclui acerca da

primazia da liberdade moderna baseada na espontaneidade. “De qualquer forma,

não é mais possível viver a ‘bela eticidadade grega’ com a sua forma de aparecer

(política) da liberdade. Resta, então, a liberdade dos modernos de começar.”66

Num sentido diferente, como o próprio Ramos se refere em nota, André

Duarte destaca que Arendt concebe a liberdade revolucionária em consonância

com a liberdade na polis. “O objetivo da revolução era justamente a fundação de

um espaço da liberdade em que ela pudesse aparecer e se tornar visível a todos,

como na Antigüidade.”67 De nossa parte, entendemos que Arendt não pressupõe a

contradição entre uma liberdade antiga e moderna tendo como eixo o querer do

sujeito, conforme estabelece a análise de Ramos. Até porque a espontaneidade e a

capacidade de agir não estão ligadas à vontade de um único sujeito. A capacidade

de começar, que é a própria competência da ação, não se refere à objetividade,

mas à intersubjetividade. Por outro lado, também não acreditamos que a situação

revolucionária deva ser considerada uma mera repetição da experiência da

liberdade da pólis.

64 ARENDT, H., Da revolução, p. 26. 65 Idem. 66 RAMOS, César Augusto, O conceito (político) de liberdade em Hannah Arendt, In:

DUARTE, A., LOPREATO, Christina, MAGALHÃES, Maria Brepohl de, A banalização da violência: a atualidade do pensamento de Hannah Arendt, p. 181-184.

67 DUARTE, A., O pensamento à sombra da ruptura, p. 291.

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Por enfatizar a afinidade entre revolução e liberdade em seu sentido

positivo, Arendt acredita que o ponto principal das revoluções modernas é a

decisão sobre a forma de governo e sua fundação; e argumenta que a libertação,

como extinção da opressão poderia se concretizar ainda sob os ditames do regime

monárquico, enquanto a liberdade exigia uma nova forma de governo para se

consumar. “necessitava da formação de uma nova, ou antes, redescoberta forma

de governo; exigia a constituição de uma república.”68 A fundação da república

aparece como ponto fundamental na revolução e sua implementação é ao mesmo

tempo a instauração da liberdade e a realização da liberdade de iniciar dos

homens.

Notemos que, se a ênfase na questão da fundação da república parece ser o

núcleo da teoria arendtiana da novidade revolucionária, tal fato precisa ser

relacionado à própria necessidade de auto-fundamentação da modernidade. O que

vemos em Da revolução é justamente o esforço de Arendt para revelar a

competência dos revolucionários americanos na experiência da novidade. Se a

autora designa-os como “senhores do seu destino” em contraposição aos franceses

que sucumbiram à irresistibilidade do processo, isso se deve à perspicácia dos

primeiros para a fundação da república. A capacidade de fundação é a

competência para a experimentação do novo. É a possibilidade de se auto-

fundamentar sem perder a potência da novidade ou sucumbir ao processo infinito

do progresso. É a possibilidade de estabelecer uma nova constelação entre

passado e futuro sem limitar o futuro à orientação do passado ou ter o futuro

devorado pela transitoriedade.

Entendendo a novidade mais como uma nova constelação que como

novidade absoluta, podemos inferir que a experiência de ser livre, vislumbrada

por Arendt nas revoluções modernas, não é mera imitação do passado. Não se

trata de ser livre novamente, mas de uma nova experiência da liberdade, na qual

“a ânsia de libertar e de construir uma nova morada onde a liberdade possa

habitar, é algo sem precedentes e sem paralelo em toda a História anterior.”69

68 ARENDT, H., Da revolução, p. 26. A questão da institucionalização do político é

controversa em Arendt, pois em A condição humana a pólis aparece mais como o espaço de relação entre os iguais e a estruturação legislativa é concebida como instância pré-política. Em Da revolução, a autora procura relacionar a fundação à ação. Se a novidade surge como a fundação de um governo, donde se erige a liberdade, ela não pode ser entendida como novidade radical. Tal liberdade existia na polis, onde também se afirmava “pela ‘instituição artificial’ da pólis.

69 Ibid, p. 28.

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A tentativa de compreender como a autora apreende essa nova ligação

entre passado e futuro está intimamente ligada à preocupação de analisar sua

concepção de história, pois se a liberdade e a política caracterizassem-se sempre

do mesmo modo seria possível entender a história arendtiana como uma história

do mesmo. O que nos faz acreditar no contrário é a proeminência que a novidade

adquire em sua obra. A referência ao passado não indica repetição, nostalgia ou

conservadorismo. Antes, revela um caráter singular da novidade concebida pela

autora. Sua preocupação em salvaguardar a potência do novo e entrever a

possibilidade de fundamentação sem os ditames da tradição.

Primeiro destacaremos como a novidade revolucionária aparece à revelia

das intenções humanas, para depois indicarmos como a capacidade de fundação se

liga à competência para a experimentação do novo. Donde concluiremos que

experimentar o novo é assumir sua potência. Se os americanos aparecem como

“senhores de seus destinos” isso não significa que controlem à sua vontade a

história. Ao contrário de indicar o domínio sobre a história, o esforço arendtiano

direciona-se para mostrar como os homens, apesar de serem capazes de iniciar a

novidade no mundo, não controlam absolutamente a história que se desenrola de

suas ações. Tal ponto aparece claramente quando avalia a posição dos atores

envolvidos nas revoluções.

A autora desvela como os homens das revoluções não imaginavam

inicialmente produzir transformações radicais na história. Seus interesses se

voltavam para a restituição da ordem, e, por isso, a palavra revolução, no sentido

original da movimentação dos astros, se fazia aplicar perfeitamente. Como sugere

a diferenciação arendtiana entre liberdade e libertação: a liberdade não era

objetivo da revolução. Tratava-se, antes, de mudar a pessoa que usurpava ou

abusava da autoridade. “(...) é essa aversão a inovações que ainda ecoa na própria

palavra revolução, um termo relativamente antigo que só lentamente adquiriu

novo significado.”70 A novidade ou “o enorme pathos de uma nova era”

manifesta-se quando a revolução atinge o “ponto sem retorno”.

Devemos destacar aqui a contraposição arendtiana à idéia de que a

revolução corrobora com a noção segundo a qual o homem faz a sua própria

história. Os atores da revolução não se mostram como atores que objetivam a

70 Id., Da revolução, p. 33

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derrocada da velha ordem e a construção da nova por sua própria conta. De certo

modo, também esses atores são pegos de surpresa pela imprevisibilidade dos

fatos. “Nada poderia estar mais distanciado do significado original da palavra

revolução do que a idéia que se apoderou obsessivamente de todos os

revolucionários, isto é, que eles são agentes num processo que resulta no fim

definitivo de toda uma velha ordem, e provoca o nascimento do novo mundo.” 71

O que fica evidente é que a novidade da revolução vem à tona sem que os

atores pretendam transformar a antiga ordem. A mudança provocada pela

revolução não encontra razão na motivação dos atores. A dúvida é como Arendt

explica o aparecimento da novidade sem estabelecer a conexão tradicional que

vincula causalmente atores e eventos.

A irrupção do novo está ligada menos a uma empreitada por parte dos

homens que a uma oportunidade imprevisível, a qual a autora denomina ‘boa

sorte’. Se os americanos são mais privilegiados que os franceses no que se refere

ao destino, o fato é que, em ambos os casos, revela-se uma ocasião propícia para a

novidade. Trata-se aí, segundo a autora, do próprio contexto de crise. As

revoluções estão intimamente relacionadas ao vazio deixado pela perda da

autoridade; “elas são a conseqüência, e nunca a causa da decadência da autoridade

política”72.

A sorte dos americanos, ou o contexto no qual surge a revolução

americana é sem dúvida, para Arendt, mais favorável que o francês. Faz diferença

o fato de que a Revolução Americana surge da luta contra a “monarquia limitada”,

ao passo que a Francesa se opõe ao absolutismo. Além disso, são importantes para

a experiência revolucionária americana: o passado colonial de “autogoverno” e o

fato de que a miséria era desconhecida na América.73 Segundo a autora, a

singularidade da situação americana confirma que o Novo Mundo, por razões

peculiares se constitui como um cenário propício ao aparecimento da liberdade,

pois a questão da miséria era um grande problema em todo o mundo, exceto na

71 Ibid, p. 34. 72 Idem. Para explicar a questão da autoridade a autora remonta à edificação da trindade

romana, baseada na religião, na autoridade e na tradição. A perda da religião e da tradição são anteriores à perda da autoridade, e, de certo modo, constituem seus precedentes no sentido literal do termo.

73 É inegável a singular boa sorte da Revolução Americana. Ela ocorreu em um país que desconhecia a miséria popular, e entre um povo que tinha uma larga experiência de autogoverno; certamente, uma de suas maiores graças foi a revolução ter sido conseqüência de um conflito com uma ‘monarquia limitada’.” Ibid, p. 125.

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América, onde havia pobreza, mas não miséria. Nessas condições privilegiadas, os

homens puderam pensar em resolver a ordem política, e não a ordem social.74

A remissão à concepção de ‘boa sorte’ pode ser entendida como o contexto

em que a revolução eclode, embora seja importante compreender que a noção de

sorte remete à idéia de casualidade. Com a noção de ‘boa sorte’, entendemos que

Arendt sugere a combinação entre as forças contingentes e a ação dos homens.

Isso fica manifesto se considerarmos que a autora não está contando com a

conexão causal entre a crise da autoridade e a revolução. A ‘boa sorte’ que

desencadeia a revolução precisa contar com a competência para a ação por parte

dos homens. É necessário que existam homens preparados para assumir a

fundação do novo.

A tomada de consciência da novidade aparece então como ponto

fundamental para que os homens se empenhem nessa nova empresa em que estão

lançados. Quando fala da tomada de consciência, a autora está se referindo ao

momento em que os homens tanto na América, quanto na França se deram conta

de que os eventos que estavam experimentando constituíam-se como novidade.

Trata-se do momento em que tiveram consciência do “ponto do não retorno”.

Quando perceberam que não era o caso de uma restauração, mas de uma

revolução. Ou seja, quando “revolução” adquiriu seu sentido novo e moderno.

Arendt destaca que a novidade não era em nenhum dos dois países a

pretensão original dos homens da revolução, e enfatiza que a questão da novidade,

de certo modo, se impôs aos revolucionários, traçando uma diferença fundamental

entre a reação diante dos acontecimentos. Na América, os homens tornaram-se

“senhores de seus destinos”, enquanto na França, concordaram em se ver

arrastados pelo curso inevitável da revolução. Nesse sentido, não podemos perder

de vista que, apesar de evocar a contingência dos eventos que levou os homens 74 Arendt acredita que a questão da escravidão não era um problema social. Ocorre que era

como se ela “não existisse” Ibid, p. 57. Com relação à miséria, Arendt entende que um dos maiores problemas é que sua presença traz para a cena pública a questão da compaixão. A euforia de sentimentos que tomou conta da revolução francesa acaba tornando os revolucionários “curiosamente insensíveis à realidade em geral”. Ibid, p. 71. O ponto central é que Rousseau e Robespierre levaram para a política as dificuldades concernentes à alma e ao coração. Arendt acredita que o mundo público é o lugar onde ser e aparência realmente são uma única e mesma coisa. Em outras palavras, em política não podemos julgar senão pelas aparências. Não é possível tratar de intenções e sentimentos, esses são da esfera privada e quase sempre deturpados quando aparecem em público. Para essa distinção, ver , em especial, p.77-78. Podemos notar ainda que a discussão sobre sentimentos que não aparecem em público remonta a questão das forças ocultas por trás da história. Toda caça às bruxas, baseia-se no pressuposto de que existem segredos e conspirações. A própria história como um todo é pensada nesse sentido de intriga. Ibid, p.83.

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das revoluções ao ponto sem retorno, a autora caracteriza a diferença entre o caso

francês e o americano pela capacidade de ação dos homens do novo mundo.

O que está em questão nessa distinção entre a Revolução Americana e a

Francesa é a capacidade de experimentar o novo. É como se houvesse duas

possibilidades diante da novidade dos acontecimentos: 1- ser arrastado pela

necessidade histórica; 2- assumir a potencialidade do novo e fundar um novo

começo. Crucial na diferença entre essas duas opções é a aptidão para

experimentar a novidade. Tal aptidão parece estar relacionada à disposição para

enfrentar a realidade dos acontecimentos e assumir a potência do novo.

Para Arendt, os franceses não souberam edificar a novidade. Foram

envolvidos pelas reivindicações sociais e arrastados pela necessidade histórica.

Desse modo, perderam o “momento histórico”, ou a oportunidade de iniciar o

novo – de instituir a fundação da novidade. Nesse ponto, a autora destaca que “a

revolução mudara de rumo; não buscava mais a liberdade; seu objetivo agora era a

felicidade do povo.”75Mas o que diferencia franceses e americanos nessa

experimentação? O que permite aos americanos assumir a novidade e aos

franceses negá-la quando aderem ao processo? O que constitui essa adesão?

A distinção entre pensamento e ação nos sugere mais uma vez a pista para

compreender essas duas possibilidades de que dispõem os revolucionários. Ao

conceber a empresa da fundação, Arendt indica a relação entre a competência para

a novidade e a experiência da realidade dos acontecimentos.

A partir daí, os homens, arrebatados à sua revelia nos vendavais revolucionários, para um futuro incerto, assumiram o lugar dos orgulhosos idealizadores que intentaram construir novos lares com base no saber acumulado de todas as épocas pretéritas, na forma como o entendiam; e, com esses iniciadores, desapareceu a confortadora confiança de que um novus ordo saeclorum podia ser erigida com idéias, segundo um modelo conceitual, cuja verdade era assegurada pela própria antigüidade. Não o pensamento, apenas a prática, apenas a aplicação poderia ser nova.76

Na oposição entre o “modelo conceitual” e a experiência, a autora desvela

que apenas essa última poderia ser nova. A aplicação de um modelo ou de uma

teoria pronta aparece como um obstáculo à experimentação da novidade. É nesse

sentido que Arendt arremata a argumentação sobre a diferença entre as revoluções

75 Ibid, p. 48. 76 Ibid, p.45. Arendt diz que na América também não se fundou um “novus ordo

saeclorum”.

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francesa e americana. Se a questão da novidade manifesta-se inicialmente em

ambas as revoluções, os franceses deixaram-se enredar pela necessidade histórica

porque aplicaram a teoria para entender o que se passava. O que detectamos na

interpretação arendtiana é que os revolucionários franceses tiveram dificuldade de

experimentar a novidade da revolução porque encobriram a nova realidade com

seus “velhos” aparatos teóricos. Seu questionamento incide sobre a dificuldade da

experimentação do novo. Observamos que, ao evocar o caso francês,

considerando essa alternativa de dar significado à novidade por intermédio de

teorias prontas, Arendt indica que o passado continua, de certo modo, orientando

o futuro. Não exatamente nos moldes da “História mestra da vida”, mas ainda

como uma espécie de entrave para a experiência da novidade.

De certo modo, reencontramos aqui a mesma problemática que detectamos

quando tentamos compreender o totalitarismo. A tensão entre o “modelo

conceitual” e a experiência nova. Devemos observar que tal tensão é o próprio

conflito entre teoria e ação, cuja origem a autora remonta ao erguimento da

tradição. Desse modo podemos entender que, quando Arendt caracteriza os

franceses como espectadores de sua própria história, indica que, ao contrário de

agirem e experimentarem a novidade, refugiaram-se no conhecimento teórico pré-

definido para explicar o que se passava e, com isso, perderam a própria novidade

da experiência. É nesse sentido que Hegel aparece a Arendt como a versão mais

bem acabada da revolução francesa. Sua história revela a possibilidade de

observar a história do ponto de vista do fim da história – quando a ação já acabou.

Franceses e americanos distinguem-se porque os primeiros tornaram-se

espectadores de sua própria história, enquanto os americanos foram homens de

ação que fundaram o novo começo.77 Isso significa que, diante do abismo da

novidade, os franceses recuaram e continuaram buscando a ‘orientação’ do

passado através dos “modelos conceituais” pré-concebidos.

Acreditamos que esse embaraço em presença do novo, o qual estamos

denominando como dificuldade de experimentar a novidade, alude ao enigma da

auto-fundamentação. Assim, aparece a subsunção da novidade pelas forças da

história no caso francês, e a possibilidade de salvaguardar a potência da novidade

77 Precisamos destacar que nessa diferenciação entre espectadores e homens de ação está

explícita mais uma vez a separação entre pensamento e ação, tal como a ênfase à experiência real da história.

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no caso americano. Delineiam-se, a partir das distintas possibilidades diante da

novidade, duas formas de se relacionar com o passado, às quais estão referidas a

duas concepções distintas de poder.

O ponto central é que a novidade da república francesa acabou sendo

legitimada pela mesma recorrência à idéia de absoluto, na qual também se firmava

a monarquia. Arendt defende que o topos divino como instância que sustenta o

poder é substituída pela noção de Nação, igualmente angariada dentre as

concepções absolutas, ou seja, dentre aquelas idéias universais que não encontram

correspondente na experiência real dos homens. A crítica arendtiana é sobre o

recurso francês de sustentar a autoridade do novo corpo político na Vontade geral

do povo e na noção de nação homogênea. 78 Para Arendt, essas noções são tão

abstratas quanto à idéia do governo absoluto, que figura na monarquia. O

problema é que a legitimidade permanece sendo uma fonte exterior ou absoluta e

não uma força que provenha realmente dos homens em conjunto, pois a vontade

geral é uma concepção teórica que arregimenta artificialmente uma Vontade

única. Ao contrário de uma construção teórica, na América, a autora observa que

o próprio processo revolucionário baseado no esforço conjunto dos homens livres

deu sustentabilidade ao novo corpo político.

Devemos notar que Arendt está tratando de duas concepções de poder. No

caso francês, refere-se ao poder no sentido tradicional, entendido como uma

instância superior e exterior ao corpo político. Na situação americana, enxerga o

poder proveniente da ação, surgido do esforço conjunto dos homens. Conforme

essa separação a Constituição na França aparece como limitadora dos poderes do

governante, enquanto na América, representa o sentido originário da revolução, e

evoca menos a noção de limite que de instituição do poder. Sobre os

revolucionários americanos sugere que “a questão principal, para eles, não era

certamente como limitar o poder, mas como estabelecê-lo, ou seja, não como

limitar o governo, mas como fundar um novo.”79 Tal distinção concebida por

Arendt alude à disparidade entre uma Constituição efetivada como ato formal de 78 A crítica arendtiana à legitimação da nação com base na ‘busca de um passado comum’

revela a necessidade da sua sustentação numa forçosa homogeneidade. No caso americano, “O esforço conjunto nivela, com muita eficácia, tanto as diferenças de origem, como as de qualidade.” Ao observar o sucesso da empreitada americana, a autora não menciona que seria mesmo inviável para os novos americanos basear sua nova nação no passado comum, pois esse provavelmente remeteria à origem européia da qual precisavam se afastar.

79 ARENDT, H., Da revolução, p. 118. Esses dois sentidos de poder, Arendt encontra em Rousseau e Montesquieu.

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governo, que estabelece a supremacia do poder representativo; e uma Constituição

baseada na experiência do poder constituinte, que mantém o vínculo do qual se

originou. Se, na América, a Constituição aparece como a fundação da autoridade,

na França, o ato de constituir perdeu o significado revolucionário e começou a

funcionar como “ausência de realidade e de realismo, com sua excessiva ênfase no

legalismo e nas formalidades.”80 Em comparação com a sucessão de Constituições

que se seguiu ao processo revolucionário francês, a autora indica que nos Estados

Unidos a Constituição e a Declaração de Independência compõem-se como ação,

enquanto na França tornou-se letra morta. Segundo Arendt, a própria oposição

entre o ato de constituir e a constituição nos é legada por essa oposição que o

poder constituinte e o poder constituído tomaram na França. O processo

americano de Independência e a fundação de um novo corpo político revelariam a

possibilidade contrária por se constituir como um processo de autonomia e

participação política dos estados.

Quando Habermas sugere que a concepção de poder arendtiana está

fundada na idéia do contrato, e indica que a autora “A fim de assegurar o núcleo

normativo de uma equivalência original entre o poder e a liberdade, ela prefere

recorrer, em última análise, à figura venerável do contrato, que ao seu próprio

conceito de práxis comunicativa. Retrocede, assim, até a tradição do direito

natural.”81, desconsidera justamente a distinção entre os dois tipos de poder

traçada por Arendt. Ou melhor, acredita que a autora, apesar de enfatizar a

competência da ação - que Habermas denomina “práxis comunicativa” - acaba

recorrendo à noção de contrato para validar o poder. Entendemos que, se Arendt

não rejeita inteiramente a noção de contrato, e como destaca Habermas, até utiliza

esse termo para falar do acordo baseado nas promessas mútuas entre os homens

livres que fundam o espaço onde a liberdade pode se efetivar, isso não significa

que esteja retomando a matriz jusnaturalista, da qual se aparta por entender que

seu fundamento ainda é um absoluto transcendental. O que a autora enfatiza no

episódio americano, e que lhe permite inclusive falar em contrato sem se vincular

ao direito natural, é a experiência da ação. Segundo ela, uma coisa é o

estabelecimento formal da lei; outra é a lei que se estabelece mediante a

pluralidade.

80 Ibid, p. 101. 81 HABERMAS, J., O conceito de poder de Hannah Arendt, In: Habermas, p. 118.

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O que devemos destacar é que Arendt, diferentemente do que conclui

Habermas, não joga a legitimação do corpo político para a vontade dos

indivíduos.82 Como se, por livre vontade, eles concedessem autoridade ao novo

governo, ao qual passariam a obedecer. Não é esse tipo de contrato que visualiza

na América. Ao contrário, entrevê a formação de um “esforço conjunto” que por

permanecer sendo conjunto mesmo quando há um acordo formal sustenta a

novidade e não fixa nenhum absoluto exterior ao corpo político donde possa

auferir autoridade. Pode-se notar que a questão da novidade para Arendt implica,

não apenas, numa boa sorte do destino, mas, sobretudo, na capacidade de

experimentar o devir sem parâmetros que lhe imprimam o caráter de futuro

antecipado. O que entrevemos na análise arendtiana é justamente a combinação da

história como “milagre”, que está aberta à contingência, e a possibilidade de ação,

que aparece como uma “oportunidade de agir”.83 A história não é somente uma

“melancólica casualidade” diante da qual os homens se vêem anulados, nem uma

pura racionalidade, que os sucumbiria da mesma forma; mas o cruzamento entre a

contingência e a ação.

Da busca francesa pelo absoluto e da aplicação dos modelos conceituais

não se pode concluir que a autora se recuse a considerar a importância da

experiência do passado para a experimentação da novidade. A competência para

experimentar a novidade, que, no caso dos revolucionários, é a capacidade para

fundar a novidade, passa pela aptidão para estabelecer uma nova constelação entre

passado e futuro. A rejeição à orientação teórica na experimentação da novidade

não significa que Arendt acredite que os revolucionários americanos fizeram

surgir do zero sua capacidade de tornarem-se “senhores de seu destino.”84Ao

82 Se a autora fala em pacto ou contrato não quer dizer que a América apareceu como

“aquele primórdio” evocado nas teorias de contrato. Ao contrário, Arendt acredita que a experiência americana influencia as teorias contratualistas embora os teóricos não mencionem essa relação. A autora fala na diferença entre dois tipos de contrato. Um em que há participação efetiva e recíproca, e outro em que as pessoas renunciam a participação direta em nome do governo. No primeiro caso, o poder só existe enquanto as pessoas estiverem reunidas em ‘esforço conjunto’, enquanto no segundo, há a separação entre governo e governados, que se tornam politicamente inexistentes. Em Hobbes, visualizamos esse contrato onde se abdica do poder em nome de um governo. Em Montesquieu, parece estar a concepção segundo a qual o poder não precisa ser legitimado de fora do corpo político; a própria “lei é relativa”. Para essa discussão ver ARENDT, H. Da revolução, p. 152-157. Em Direito e democracia encontramos uma leitura um pouco diferente sobre a concepção de poder de Arendt que Habermas havia concluído tratar-se de matriz contratualista. Nesse texto, o autor privilegia a concepção pluralista de Arendt.

83 Ibid, p. 45. 84 A autora observa que a dificuldade de compreender a novidade da revolução e empenhar-

se na fundação do novus ordum saeclorum também atingiu os americanos. Trata-se da dificuldade

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contrário, reconhece que “permanece ainda a dificuldade, mais séria em nosso

contexto, de que pouca coisa existe, na forma ou no conteúdo das novas

constituições revolucionárias, que seja realmente nova, nem muito menos

revolucionária.”85 Sublinhando a validade da cultura dos “Pais Fundadores”, a

autora revela que para fundar o novo corpo político os americanos foram buscar

na História “todos os exemplos, antigos e modernos, reais ou fictícios, de

constituições republicana.”86Admite também como foi fundamental para a

revolução americana a experiência colonial de acordos e pactos.

Em outras palavras, o que aconteceu na América colonial antes da revolução (e que não aconteceu em nenhuma outra parte do mundo, nem nos antigos países nem nas novas colônias) foi, teoricamente falando, que a ação levou a formação do poder, e que o poder foi mantido vivo e atuante pela aplicação dos instrumentos de promessa e de pacto, então recentemente descobertos. (...) com uma experiência acumulada de um século e meio de formação de acordos e pactos, ao, se erguerem num país que estava articulado, de cima para baixo – desde as províncias ou Estados até as cidades, municípios, vilas e comarcas -, em organismos devidamente constituídos, cada um deles formando uma comunidade com características próprias, com representantes ‘livremente escolhidos pelo consentimento de amigos e vizinhos benquistos’87

O que sustenta a diferenciação entre o caso francês e o caso americano não

é, portanto, a questão da aplicação ou da rejeição do passado. Trata-se, antes, da

forma como o passado é retomado. Importante é o modo como se dá esse encontro

da teoria com a nova realidade. Na França, Arendt vê um passado que abafa o

futuro e a experiência da novidade, seja pela orientação conceitual pré-existente,

de “traduzir” em palavras a novidade da experiência em questão. A necessidade de se recorrer ao aparato conceitual pré-existente. “No que concerne a Jefferson e aos homens da Revolução Americana – de novo, com a possível exceção de John Adams -, a verdade de suas experiências raramente transparecia quando falavam de generalidades.” Tal problemática persegue os revolucionários a ponto de Arendt entrever nesse ponto indícios do fracasso da revolução americana em perpetuar sua fundação. No próprio documento da Constituição ela aponta a alteração da concepção de “felicidade pública”, que carrega consigo a noção da participação na vida pública, pela idéia de “busca da felicidade”, cujo sentido indica a possibilidade de sucesso na vida privada. Mesmo na América, onde visualiza o sucesso da revolução, no que se refere a sua “verdadeira finalidade”, qual seja, a fundação do novo corpo político, a autora também percebe que a tarefa de “perpetuar o princípio” e imortalizar o espírito da revolução viu-se fracassada. Lemos ainda que “Essa falta de nitidez e precisão conceituais, no que tange às realidades e experiências existentes, tem sido o anátema de toda a história ocidental desde que, após a época de Péricles, os homens de ação e os homens de pensamento apartaram-se uns dos outros, e o pensamento emancipou-se completamente da realidade, e, em especial, da realidade e experiência política.”

85 Ibid, p. 114. 86 Ibid, 120. 87 Ibid, p. 140-1. Essa experiência tem, inclusive, origem pré-colonial, pois o “acordo” que

surgiu entre os homens que vieram se fixar no novo mundo entrou em vigor ainda no navio, antes de aportar nas novas terras.

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seja pela nova noção de totalidade da História. Na América, a experiência do

passado não devora a novidade. Como os americanos conseguiram esse feito de

estabelecer uma nova ligação entre passado e futuro? Como Arendt defende essa

hipótese?

Na América, ela vislumbra o esforço conjunto para uma auto-legitimação

que revela também a autonomia do político. Não é o pensamento teórico ou

qualquer modelo conceitual enviado pelo passado que orienta a ação. Sendo a

própria ação equivalente à liberdade isso significa que ela é livre de qualquer

orientação teórica e de todo vínculo autoritário com o passado. Assim, em

Arendt, a busca do passado por parte dos americanos não aparece como a tentativa

de imitação, mas revela a preservação da possibilidade da novidade.

Foi apenas no decorrer das revoluções do século XVIII que os homens começaram a tomar consciência de que um novo princípio podia ser um fenômeno político, podia ser a conseqüência daquilo que os homens tinham feito e que, conscientemente, se dispuseram a fazer (...) A novus ordo saeclorum não era mais uma bênção advinda do ‘grande plano’ de desígnio da Providência’, e a novidade não era mais a vaidosa e simultaneamente assustadora posse de alguns. Quando a inovação alcançou o mercado público, tornou-se o início de uma nova História, desencadeada – ainda que involuntariamente – por homens de ação, a ser encenada posteriormente e ampliada e difundida pela sua posteridade.88

O passado aparece aos revolucionários como inspiração para as questões

do presente, mas não há dúvida sobre a novidade da situação revolucionária. Os

revolucionários se orgulhavam de sua glória, por isso consideravam a si mesmo

“iluminados”. Ao evocar o passado, seja o da experiência colonial, seja o de

Roma, não deixam de ser modernos. A estratégia para combinar passado e futuro

de modo a preservar a novidade é inverter o tradicional rumo da orientação do

futuro pelo passado. O eixo deixa de ser a transmissão de valores e experiências

do passado ao futuro, para se tornar a retomada do passado pelo futuro.

Quando eles se voltaram para os antigos, foi porque descobriram neles uma dimensão que não fora legada pela tradição – nem pelas tradições de costumes e instituições, nem pela grande tradição do pensamento e concepções ocidentais. Portanto, não foi a tradição que os vinculou os primórdios da história ocidental,

88 Ibid, p. 37-8. “no transcurso de ambas as revoluções, os seus agentes tomaram

consciência da impossibilidade de restauração e necessidade de se aventurarem numa empresa inteiramente nova.” Ibid, p. 36

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senão, ao contrário, suas próprias experiências, para as quais necessitavam de modelos e precedentes.89

Arendt acredita que o maior exemplo para os “Pais Fundadores” foi a

fundação de Roma, onde encontraram semelhantes perplexidades acerca da

questão do início. Segundo ela, com esse caso, os americanos entenderam que

poder e autoridade não são equivalentes. O poder emana do esforço conjunto e a

autoridade se fixa numa determinada instância. Em Roma, era o Senado que

corporificava a autoridade. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte cumpriria esse

papel.

Para marcar a diferença entre romanos e americanos e sugerir que não se

trata da mesma história, Arendt destaca que no caso da fundação de Roma ainda

se recorria à idéia de uma refundação, cuja validade, em última instância, referia-

se à restauração da cidade eterna e de Tróia. “Seja como for ou possa ter sido,

quando os americanos decidiram alterar o verso de Virgílio, de Magnus ordo

saeclorum para novus ordo saeclorum, foi porque haviam admitido que não era

mais uma questão de fundar “Roma mais uma vez”, mas de fundar uma “nova

Roma”90. A autora entrevê na Revolução Americana a possibilidade de encontrar

a inspiração e ensinamento no passado sem perder a especificidade histórica da

novidade. A experiência romana servia aos americanos não por ter sido legada

pela autoridade da tradição, mas porque os revolucionários acreditavam estar

numa situação semelhante àquela enfrentada pelos romanos quando precisam

fundar sua própria tradição.

O que precisamos compreender é como esses contextos históricos distintos

se relacionam, buscando avaliar se a analogia entre passado e futuro indica a-

historicidade. A autora demonstra a analogia entre a Revolução Americana e a

fundação de Roma considerando a importância das lendas de fundação. Arendt

observa que o recurso da narrativa de lendas e heróis incide como forma de

legitimar o início ou o re-início da história. Para ela,

“Se algum ensinamento pôde ser colhido dessas lendas, foi o de que nem a liberdade é o resultado automático da libertação, nem o novo começo é a conseqüência automática do fim. A revolução – assim, pelo menos, deve ter

89 Ibid, 158. “O que consistia em “extraordinária capacidade de olhar para o passado como

uma visão compreensiva dos séculos vindouros.” 90 Ibid, 170.

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parecido a esses homens – foi precisamente o legendário hiato entre o fim e o princípio, entre um não-mais e um ainda-não.”91

A autora destaca que o hiato entre o não-mais e o ainda-não parece sempre

com um momento fora do tempo, pois se trata de uma ruptura com um processo

em curso. Reportando-se a Kant, ela lembra que “o problema do novo” refere-se

àquilo que não pode ser explicado de acordo com uma série precedente. O que

significa que o novo é a ruptura com seus antecedentes causais.92 A sensação de

que ele está fora do tempo deve-se justamente a esse rompimento com o que lhe

antecede e, conseqüentemente, com que lhe sucede. “É da própria natureza de um

início conter, em seu âmbito, uma certa dose de arbítrio. Além de não estar preso

a nenhuma cadeia explícita de causa e efeito, uma cadeia na qual cada efeito se

transforma imediatamente na causa de futuros desdobramentos, o início parece

não ter nada em que se apoiar; é como se ele surgisse de um vazio, fora do tempo

e do espaço.”93

Essa concepção do hiato temporal, que não é nenhum momento

absolutamente fora do tempo, mas sim a ruptura com uma série predecente, lhe

permite comparar a ruptura instaurada pela novidade ao ausentamento

momentâneo da realidade próprio da atividade do pensamento. O que nos

interessa agora é perceber que a relação entre as circunstâncias inéditas deve-se à

similitude da perplexidade do início, que acompanha o aparecimento da novidade.

Se, por um lado, isso pode sugerir que o problema da novidade é sempre o mesmo

em Arendt; por outro, não quer dizer que a novidade seja destituída de seu

potencial original.

Para esclarecer a perplexidade do início, tradicionalmente se recorreu à

concepção absoluta do iniciador que está fora da ordem iniciada, ou seja, contou-

se normalmente com uma noção de Deus. No entanto, Arendt não se aproxima da

discussão sobre o enigma do início como se fosse possível encontrar resposta

definitiva para essa questão. A meu ver, um de seus melhores insights, sobretudo,

quando se considera a questão da história, refere-se a essa abordagem da

novidade. Seu esforço opera para desfazer o engano de que há um princípio

absoluto ou uma causa primordial de toda a história e existência humana. Nesse 91 Ibid, 165. 92Nesse sentido, podemos ver que se levarmos ao pé da letra a equivalência entre agir e

iniciar, o que está em jogo é a perplexidade da novidade, do re-start. Id., A vida do espírito, p.201. 93 Id., Da revolução, p. 165.

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sentido, acredita que “essa última parte da tarefa da revolução – encontrar um

novo absoluto para substituir o absoluto do poder divino – é insolúvel, pois o

poder, sob condição da pluralidade humana, nunca pode atingir a onipotência, e

leis que se baseiam no poder humano nunca podem ser absolutas.”94 Se a autora

contraria a preocupação comum dos filósofos de pensar no fim e na morte do

homem e volta-se para a tentativa de compreender as perplexidades causadas pelo

início, isto é, concentra-se no enigma do aparecimento misterioso da existência

humana, não o faz com a ilusão de dar respostas sobre o surgimento do homem.

Na verdade, sua apropriação da diferenciação agostiniana entre princípio e início

mostra que seu intuito é considerar a questão do início justamente sem ter que

dispor de um princípio absoluto para o aparecimento da humanidade. Por isso,

Arendt trata mais da novidade como um nascimento que como surgimento da

existência. Assim, mesmo quando sua análise parece buscar uma sustentação

ontológica para legitimar a possibilidade do início, considerando que o homem é

dotado da capacidade de iniciar, consegue relacionar o início como o

aparecimento factual do homem no mundo ligando-o a uma continuidade pré-

existente: o próprio mundo que existia antes do nascimento de qualquer um.

Nesse sentido, se todo início é uma ruptura; também é sempre a possibilidade de

um re-início. Isso significa que o novo não adquire aspecto de causa primeira, ao

contrário, desponta sempre como a instauração do “entre” o passado e o futuro.

De modo que a novidade é menos um novo radical que o rompimento de uma

determinada ligação de continuidade entre passado e futuro e a constituição de

uma nova continuidade. A questão não é discutir se a novidade já existia ou se

havia elementos do que agora é a novidade em seus antecedentes, ou se vigora a

permanência do antigo. Tal como dizer que o novo tem causa no antigo, coisa que

os historiadores geralmente pressupõem. O importante é a nova constelação que

surge na ligação entre passado e futuro.

Na revolução americana, a empreitada de fundação deixa de se referir a

qualquer instância superior e legitima-se pela própria ação dos homens. O que na

linguagem arendtiana quer dizer que a fundação surge no mundo. Em meio à

pluralidade. Para a autora, essa fundação se constitui, não como um novo

absoluto, uma legitimidade superior que está fora do tempo e da história, mas sim

94 Ibid., p. 31.

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como uma nova relação de continuidade. Arendt aponta a distinção ao mencionar

a quarta Écloga da Eneida de Virgílio, onde o início é evocado pelo nascimento de

uma criança que não é a salvação ou o início radical da história, mas o nascimento

e uma criança na continuidade da história, a qual está ligada às glórias e feitos do

pai. A peculiaridade está menos ligada ao nascimento singular do messias que à

própria singularidade de todo nascimento. “afirmação da divindade do próprio ato

de nascer e de que a salvação potencial do mundo está no próprio fato de que a

espécie humana contínua e perpetuamente regenera a si mesma.”95

Para o seguimento desse trabalho deixamos destacados dois pontos. Se a

novidade tem seu referencial na noção de ruptura, a capacidade de experimentar o

novo e a competência para a fundação revelam que, para a autora, a novidade

envolve mais que a perda da continuidade: sua singularidade é constituir-se como

uma nova constelação que se instaura entre o passado e o futuro. Essa nova

ligação, por sua vez, também nunca pode se considerar definitiva. Possivelmente,

ela será desestabilizada pelo advento de uma nova novidade. Nesse sentido, a

história concebida pela autora apresenta-se mais como um mosaico de inícios e

fins – instauração e rupturas de processos históricos -, que como um único

processo. O que precisaremos entender é como Arendt pode conciliar essa noção

da novidade com sua narrativa do esquecimento do político na tradição, ou seja,

com a sua leitura da história ocidental, onde parece desenvolver-se num sentido

único, pelo menos, até a ruptura totalitária.

95Idem.

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5 O espetáculo da história

Numa carta ao seu então professor Jaspers, a jovem Arendt contesta já em

1926 a utilidade da história.

Só entendo a história a partir do terreno em que eu mesma me encontro (...) tento interpretar a história, compreender o que se exprime nela a partir do que já sei pela minha experiência. Do que consigo compreender assim, eu me aproprio, o que não compreendo, rejeito. Ora, se entendi bem o seu seminário, encontro-me diante da seguinte questão: Como é possível a partir da interpretação da história assim concebida, tirar algo novo da história? A história não constitui dessa maneira uma simples série de ilustrações para o que quero dizer, e para o que já sei mesmo sem a história? Imergir-se na história significaria então apenas encontrar uma mina de exemplos apropriados?1

Em tal fragmento, pode-se notar seu anseio, impulsionado pelo curso de

seu orientador, autor de Origem e meta da história, de compreender a história a

partir da consideração profunda sobre a novidade.2 Observamos que nessa

passagem anuncia-se o vigor que a temática da história tomaria em sua obra. A

pergunta chave é sobre como “tirar algo novo da história”. Esse questionamento

ao qual o desenvolvimento da noção de história arendtiana está ligado, sugere o

re-exame da concepção de historicidade, segundo a qual o homem não pode “sair”

da história para conhecê-la, já que o mundo se abre para ele na história.

Debatendo com essa idéia da história como historicidade que não é nenhuma

excepcionalidade do pensamento jasperiano, mas uma noção desenvolvida,

principalmente por Heidegger, e que se tornou uma espécie de consenso para a

nossa época que não conta mais com os auspícios da verdade metafísica, Arendt

interpõe o status da novidade. Todo o seu esforço de tentar explicar o

aparecimento da novidade na história humana parece estar relacionado à pretensão

de apresentar uma concepção da história que não se restringe à experiência da

historicidade.

1 ARENDT, H.; JASPERS, K., Correspondance, 1926-1969, p. 33-34. Tradução extraída

de ADLER, L., Nos passos de Hannah Arendt. 2 JASPERS, K., Origem e meta da história. O texto de Arendt sobre essa obra é “Karl

Jaspers: uma laudatio” In: ARENDT, H., Homens em tempos sombrios, p.67-75.

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A suposição de que a noção de novidade está intimamente relacionada à

concepção de história arendtiana revela a ligação entre ação e história que

anunciávamos anteriormente. Tal conexão se mostra tanto na possibilidade da

ação de iniciar a novidade no mundo, quanto na capacidade da história, enquanto

historiografia, de compreender a história que a ação deixa atrás de si3. Nesse

capítulo buscaremos analisar essa ligação a partir da análise das considerações

teóricas de Arendt acerca da historiografia e do historiador. Tal exame visa

explicar como a autora pode narrar a história ocidental do ponto de vista da

continuidade da tradição, contando a história do esquecimento do político e, ao

mesmo tempo, sugerir a descontinuidade da história, através da ênfase na

novidade, a qual, como entendemos, sustenta sua indicação acerca da separação

entre história real e escrita da história. Acreditamos que, ao entender como a

autora pode conjugar a grande narrativa da tradição com proposições teóricas que

remetem à noção de descontinuidade da história, poderemos anunciar algumas

conclusões sobre a concepção de história em sua obra, que indicam possibilidades

para a reconsideração da situação da historiografia na contemporaneidade.

5.1. Considerações teóricas

O que denominamos “considerações teóricas” de Arendt sobre a história e

a historiografia se constitui de fragmentos ao longo de sua obra. Tais referências a

respeito da historiografia aparecem principalmente n’A condição humana, em

“Compreensão e política”, nas narrativas biográficas de Homens em tempos

sombrios, e, em “Verdade e política”. Não obstante, encontramos comentários e

sugestões sobre a especificidade da história em muitos outros textos da autora, os

quais estão devidamente considerados nessas indicações à concepção da história

arendtiana. Nesse momento, não trataremos ainda das implicações do seu texto

mais conhecido acerca da historiografia, que provavelmente é aquele sobre “O

Conceito de história – antigo e moderno”. Sem dúvida, esse último é o que tem

3ARENDT, H., A condição humana, p. 197.

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maior fôlego no enfrentamento direto da questão da história, e, dada sua própria

estrutura, que revela a modificação histórica da própria idéia de história,

preferimos examiná-lo separadamente. Ocorre que, apesar de encontrarmos

sugestões teóricas sobre a história nesse trabalho, ao narrar a história da história

ele acaba compactuando com o ‘modelo’ da grande narrativa proposto n’A

condição humana. Nos outros textos, as considerações teóricas indicam mais

explicitamente a concepção arendtiana de uma história fragmentada.

O que há em comum nas indicações teóricas acerca do histórico que

aparecem nesses diferentes trabalhos de Arendt é uma clara separação entre a

história real, na qual os atores estão envolvidos, e a historiografia, a qual é

também referida pela atividade do historiador ou do storyteller de narrar uma

história. Veremos como tal diferenciação pode ser compreendida de acordo com a

distinção mais geral que vigora na obra arendtiana entre as atividades da vita

activa e as atividades da vida do espírito. Devemos observar, primeiramente, que

a história real não é exatamente a geschichte vislumbrada pelos modernos como

um processo autônomo dotado de sentido próprio. Ao contrário, ao sugerir que a

história real é a história ‘encenada’ pelos atores, a autora não está indicando a

existência de uma outra realidade mais real. Assim como destacamos na análise da

narrativa da história do ocidente, é preciso lembrar que, se Arendt busca distinguir

ação e pensamento, não pretende conceder validade às falácias metafísicas, as

quais ela mesma se empenha em desmontar. Retomemos seu texto para notar a

diferenciação entre história real e história narrada.

É em virtude dessa teia preexistente de relações humanas, (...) é também graças a esse meio, onde somente a ação é real, que ela ‘produz’ histórias, intencionalmente ou não, com a mesma naturalidade com que a fabricação produz coisas tangíveis. Essas histórias podem depois ser registradas em documentos e monumentos; podem tornar-se visíveis em objetos de uso e obras de arte; podem ser contadas e recontadas e transformadas em todo tipo de material. Por si, em sua realidade viva, possuem natureza totalmente diferente de tais reificações.4

A separação entre a história real e a história narrada, que como indica a

passagem, é a mesma distinção que existe entre a ação e a reificação da história,

se sustenta pela idéia segundo a qual o ‘fluxo vivo’ ou a ‘realidade viva’ do

evento não pode ser completamente materializada. Tal diferenciação pode ser

4 Ibid., p. 196-7.

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entendida como a separação entre a perspectiva do ator, que, para Arendt, “nunca

sabe exatamente o que está fazendo” e a posição do espectador, que olha a história

“de fora” quando a ação já chegou ao fim.

A constatação da perplexidade da fugacidade do fluxo vivo da ação

sustenta a distinção entre ‘quem’ alguém é e “o que” alguém é. Para a autora, o

“quem” só se manifesta aos outros durante a ação; é como um daimon grego, que

está por cima dos ombros de cada um, não pode ser visualizado pelo ator, mas

apenas por aqueles que comungam o espaço público com ele. Uma possibilidade

de se aproximar do ‘quem’, e a única maneira possível do ator compreender quem

ele é e o significado de sua ação, é através da reificação da história. O problema é

que, sempre que se tenta dizer quem alguém é, são evocados adjetivos que não

têm a capacidade de conceber a singularidade de cada um e generalizam o ‘quem’

pela determinação do ‘que’. Na tentativa de se aproximar ao máximo do fluxo

vivo da ação, Arendt sugere que a mímesis, no sentido determinado por

Aristóteles, de repetição da ação, aparece como a forma mais adequada. Não

podemos deixar de destacar que, para a autora, as atividades mais apropriadas

para realizar a transposição do fluxo vivo são as artes performáticas, dentre as

quais são mencionadas o teatro e a música. A ênfase nessas modalidades artísticas

deve-se sobretudo à semelhança com o fluxo vivo, elas mesmas são atividades

que não produzem nenhum produto. A historiografia, que é a produção escrita da

história, pode se empenhar em narrar a vida da pessoa na tentativa de revelar seu

‘quem’. Arendt indica que o estilo biográfico é o mais adequado para aqueles que

pretendem revelar quem uma pessoa foi. Nesse sentido, alguns autores entendem

que ela mesma executa o exercício de storyteller ao empreender a narrativa da

vida de diferentes personalidades em Homens em tempos sombrios.5 No entanto,

não podemos entender que mímesis se reduz à mera imitação da ação. Se assim

fosse, como se explicaria que “A ação só se revela plenamente para o narrador da

história, ou seja, para o olhar retrospectivo do historiador, que realmente sempre

sabe melhor o que aconteceu do que os próprios participantes.”?6 É importante

sublinhar que, ao fazer referência à concepção aristotélica da mímesis, a autora

não supõe que a ‘imitação’ seja o retorno da ação em si, pois se trata, mesmo nas

5 LAFER, C., Hannah Arendt: vida e obra., In:ARENDT, H. Homens em tempos sombrios.

pp.233-249. 6 ARENDT, H., A condição humana, p. 204-5

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artes performáticas, de uma re-apresentação. Arendt também demonstra

desconfiança acerca da possibilidade de explicar todo tipo de arte a partir do

esquema mimético. Segundo ela, “no próprio tratado, fica evidente que Aristóteles

foi buscar no drama o modelo da ‘imitação’ na arte; a generalização do conceito

para torná-lo aplicável a todas as artes parece-me inadequada.”7 Assim,

entendemos que a tentativa de retomar o fluxo vivo dos eventos pela escrita da

história aparece mais como a possibilidade de reconciliação, ou seja, de

compreender o sentido da ação, que como pura imitação.8 A historiografia, que se

destaca em Arendt, por não se constituir apenas como a escrita de uma estória,

mas por contar a verdade dos fatos, insurge como a possibilidade de referir-se à

singularidade do evento, como na imitação, e, ao mesmo tempo, indicar a

possibilidade de sentido. “Na medida em que o contador da verdade dos fatos é

também um contador de estórias, ele efetiva aquela ‘reconciliação’ com a

realidade que era compreendida por Hegel, o filósofo par excellence, como o fim

último de todo pensamento filosófico e que, de fato, tem sido o motor secreto de

toda a Historiografia que transcende a mera erudição.”9

No intuito de apontar a especificidade da ação, Arendt vislumbra a

possibilidade de diferenciar a ação em si, tanto das motivações individuais dos

atores, por um lado, como dos seus possíveis significados, de outro. Como

evidenciamos anteriormente, há dificuldade, por parte dos leitores de Arendt, de

entender essa autonomia da ação. Decerto que, se concebida esquematicamente,

como se funcionasse apenas do mesmo modo que uma separação metodológica

proposta pelo estudioso diante da realidade, a proposta arendtiana seria refutável

pelo corrente argumento que aponta para a concretude das coisas. Poder-se-ia

dizer que sua suposição tem sentido, mas não revela a realidade da experiência.

Quando destacamos que a distinção entre ação e história baseia-se no pressuposto

segundo o qual há uma diferença entre a experiência do “fluxo vivo” e a

7 Ibid, p. 200, nota. 11. 8 Costa Lima argumenta que a mímesis não é simples imitação, mas sempre uma mimesis

produtiva, onde está em jogo uma diferença entre o ‘original’ e a ‘cópia’. André Duarte também interpreta nesse sentido a noção arendtiana de mimesis ao remeter à noção de diálogo com o passado. Para o autor, trata-se de mais de uma leitura hermenêutica do passado do que de sua retomada ‘como ele realmente foi’. Ver: LIMA, Luiz Costa., Mímesis desafio ao pensamento; DUARTE, A., O pensamento à sombra da ruptura.

9 ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, p. 323. Seguindo texto arendtiano, encontramos uma indicação sobre o significado da reconciliação, que menos que a conciliação entre essência e aparência surge como “a aceitação das coisas tais como são.”

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reificação desse fluxo, podemos perceber que a hipótese arendtiana se ampara no

distanciamento temporal entre o vivido e o pensado, como tradicionalmente se

apresenta. Na perspectiva de Arendt, essa diferenciação não deve ser considerada

nesses termos, pois o pensamento, para ela, também se manifesta como “fluxo

vivo”, e, aparentemente, nesse âmbito, encontram-se os mesmos dilemas da

transposição do “fluxo vivo” para a “coisa morta” – a reificação. Referindo-se à

tendência contemporânea de enfatizar o aspecto ativo do pensamento, Arendt

indica que “atividade e ação não são a mesma coisa, e o resultado da atividade de

pensar é uma espécie de subproduto com respeito à própria atividade.” 10

A semelhança observada na consideração do “fluxo vivo” da ação e do

“fluxo vivo” do pensamento não opera a equiparação entre pensamento e ação,

embora permita que a autora refira-se a ambas as atividades através da remissão à

noção de “hiato temporal”. Vimos que a idéia de “hiato” pode ser compreendida

como a suspensão da continuidade temporal na qual os homens estão

imediatamente inseridos. O que nos interessa agora é apontar a conexão entre a

idéia de “fluxo vivo” e “hiato”. Tanto quando trata do fluxo vivo da ação, quanto

quando menciona o fluxo vivo do pensamento, Arendt está indicando a existência

de um tipo de experiência que não se passa na vivência comum do tempo, onde os

homens contam normalmente com a continuidade e com a sucessão. A ação e o

pensamento, cada um a seu modo, caracterizam-se, frente a essa continuidade,

como uma descontinuidade, isto é, uma ruptura do encadeamento entre passado e

futuro. O pensamento é designado como hiato porque supõe um afastamento

momentâneo da realidade, onde o ego pensante pode reencontrar e recombinar

passado e futuro. Ao romper com a ligação sucessiva entre passado e futuro

insurge como uma ruptura temporal. A ação, por sua vez, é a ruptura da

continuidade histórica entre passado e futuro, pois, ao se constituir como

novidade, revela o início ou o re-início de alguma nova ‘história’. A diferença

fundamental entre essas duas possibilidades de escapar do tempo da continuidade

é que o pensamento se dá no alheamento do mundo, enquanto a ação acontece na

pluralidade. Se observarmos essa relação entre “fluxo vivo” e “hiato” e

considerarmos o aspecto temporal que lhe é imputado, qual seja, a possibilidade

10 Em Algumas questões de Filosofia moral, Arendt trata especificamente da possibilidade

da transposição do fluxo vivo do pensamento em produtos. In: ARENDT, H., Responsabilidade e julgamento, p. 171.

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de constituir-se como uma experiência de tempo distinta da vivencia comum da

continuidade, podemos inferir que a diferença entre “fluxo vivo” e reificação, e,

conseqüentemente, entre história real e história narrada, não indica a separação

entre a realidade em si e a representação da realidade, antes concebe duas formas

de experimentar o tempo, sem perder de vista que a experiência do tempo só pode

ser uma experiência humana dentro do mundo. A oportunidade de evasão

momentânea pela atividade do pensamento e a capacidade de iniciar a novidade,

indicam a possibilidade de afastar-se do mundo, mas não supõem uma saída

definitiva, como se houvesse outra realidade mais verdadeira a ser vislumbrada

pelas idéias. Assim, a ‘fugacidade’ que compõe o ‘fluxo vivo’, que não pode ser

completamente reificada, indica não apenas a dificuldade de apreender a realidade

viva, mas mostra a possibilidade de concebermos essa realidade “viva” menos

como coisa morta, e mais como uma forma distinta de experimentar o tempo.

Teremos a oportunidade de avançar nessa comparação entre pensamento e ação ao

analisarmos a questão da historicidade. Por ora, interessa prosseguirmos na

apresentação de um quadro geral das considerações teóricas de Arendt a respeito

da história. Devemos entender que, a separação entre a história real e a história

narrada, que se refere à distinção entre “fluxo vivo” e reificação, coaduna uma

série de outras suposições acerca da história.

N’A condição humana, Arendt traça a diferenciação entre história real e

história narrada através do argumento de que a primeira é da ordem da

contingência, enquanto a segunda, deve seu aparecimento à presença de um autor.

“as histórias reais, ao contrário das que inventamos, não têm autor.” (...) “A

diferença entre a história real e a ficção é precisamente que esta última é feita,

enquanto a primeira não o é.”11 Importa-nos perceber que a escrita da história,

diferentemente da história real, que decorre da ação, é colocada lado a lado com a

ficção no que se refere à presença da autoria porque ambas representam, para a

autora, possibilidades de reificação. A capacidade de transformar a história real

num produto reificado – a história escrita -, de acordo com a estrutura da vita

activa apresentada por Arendt, pode ser inscrita como atividade do homo faber.

Ou seja, a história escrita, tal como a ficção ou obra de arte, é considerada, em sua

materialidade, como um produto fabricado pelo homem. São atividades com

11 Arendt usa a formulação “resultante da ação” para mencionar a história real; enquanto a

história ficcional é um produto de um determinado autor. Id., A condição humana, p. 198.

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início e fim bem definidos, controlados pelo fabricador que opera o produto. Por

certo, sua análise não ignora a especificidade do ‘produto arte’, diante de outros

produtos, cuja produção visa tão somente ao uso. 12 Nesse sentido, tanto a obra de

arte, quanto a história escrita apresentam-se como ‘produtos’ especiais que

sustentam a durabilidade do mundo. A questão é que, além da materialidade

desses produtos, precisamos entender que sua produção nunca é meramente uma

reificação. Ou seja, apenas uma atividade do homo faber. N’A vida do espírito,

Arendt preocupa-se mais especificamente com a temática da passagem do

pensamento ao produto artístico, mas sua tendência é ainda considerar que a

experiência viva do pensamento resiste à completa transposição material.13 O que

nos importa é indicar que a historiografia surge como uma atividade intelectual,

que se empenha na tarefa de compreender a história real, erigindo ela mesma um

produto que é a história escrita. Diante disso, faz-se necessário explicar não

apenas como é possível a reificação da história, mas também como esse produto

lançado pela atividade do historiador se interpõe no mundo. Seguimos na análise

da primeira questão.

Voltemo-nos para a semelhança entre a produção historiográfica e a

produção artística. Arendt não sugere equivalência entre essas atividades, embora

insista em destacar a presença do autor em ambos os casos. Se n’A condição

humana aparece essa delimitação da história real e da história escrita, que tem por

base a distinção entre ator e autor, vemos ainda em diversos textos a conexão

entre a produção artística e a produção historiográfica, no que se refere à

capacidade de engendrar sentido às ações. Nesse quesito, a autora indica,

sobretudo, a afinidade entre historiografia e poesia, mas também alude à literatura,

quando menciona, por exemplo, o texto de Faulkner sobre a Primeira Guerra

Mundial, destacando sua competência para revelar o sentido do evento.14 Tendo

12 Devemos considerar que a arte não é apenas um produto, ou seja, não é um produto que

está sob o controle absoluto do seu fabricador. A obra de arte nunca corresponde integralmente à intenção do artista. LAFER, C. Da Dignidade da Política: sobre Hannah Arendt, In: ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, pp. 9-27.

13 Ver também em Algumas questões de filosofia moral, In: ARENDT, H., Responsabilidade e julgamento, p. 162. “na medida em que o pensamento é uma atividade ele pode ser traduzido em produtos, em coisas como poemas, música ou pinturas. Todas as coisas desse tipo são realmente coisas do pensamento, assim como a mobília e os objetos de nosso uso diário são corretamente chamados de objetos de uso: uns são inspirados pelo pensamento e os outros são inspirados pelo uso por alguma necessidade e carência humana.”

14 “O livro de Faulkner, Uma Fábula (1954) supera em discernimento e clareza quase toda a literatura sobre a Primeira Guerra Mundial pelo fato de que o seu herói é o Soldado

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em vista a similitude entre historiografia e ficção, Arendt remete à origem comum

dessas atividades. Segundo ela, a cena de Ulisses ouvindo sua própria história na

corte dos feácios é paradigmática tanto para a poesia quanto para a história. Sua

sugestão fundamenta-se no pressuposto segundo o qual tanto a escrita poética,

quanto à escrita da história estão separadas, e, ao mesmo tempo, constituem-se

apenas na relação com a ação, pois sua tarefa é dotar de sentido o que outrora era

mera contingência.15 O importante é notar que para a narrativa, seja ela histórica

ou ficcional, está sempre em jogo a noção de reconciliação com a ação. De modo

que a separação entre a história real e a história escrita nunca é definitiva.16

Não obstante a semelhança entre história e ficção, deve-se destacar que

Arendt não se situa dentre os autores que vislumbram uma equiparação entre os

dois tipos de produção, a qual acarreta a impossibilidade de distinguir qualquer

verdade no âmbito da história. Tal questão parece se esclarecer em “Verdade e

política”, onde a autora defende a existência da verdade factual e distingue o

narrador da verdade dos fatos de outros narradores. Nesse texto fica em evidência

a tarefa das “Ciências Históricas e as humanidades, que têm a obrigação de

descobrir, conservar sob guarda e interpretar a verdade dos fatos e os documentos

humanos, têm relevância politicamente maior.”17

Vale lembrar que já em Origens do totalitarismo, a autora apontava para a

tentativa totalitária de controlar o rumo da história através da predição do futuro,

Desconhecido.” Id., A condição humana, p. 193. Em Homens em Tempos Sombrios, a autora também mostra a mesma opinião. Ver em especial “Após a Primeira Guerra Mundial, tivemos a experiência de ‘dominar o passado’, com uma enxurrada de descrições sobre a guerra, imensamente variadas em tipo e qualidade; naturalmente isso não ocorreu apenas na Alemanha, mas em todos os países atingidos. Contudo, deveriam se passar quase trinta anos antes que surgisse uma obra de arte que apresentasse a verdade íntima do acontecimento de um modo tão transparente que se podia dizer: Sim, é como foi. E nessa novela, A Fable (Uma Fábula) de William Faulkner, descreve-se muito pouco, explica-se menos ainda e não se ‘domina’ absolutamente nada; seu final são lágrimas pranteadas também pelo leitor, e o que permanece para além disso é o ‘efeito trágico’ ou o ‘prazer trágico’, a emoção em estilhaços que permite à pessoa aceitar o fato de que realmente poderia ter ocorrido algo como aquela guerra.”Id., Homens em tempos sombrios, p. 27.

15 Nesse sentido, lemos que “A História como uma categoria de existência humana, é, obviamente, mais antiga que a palavra escrita, mais antiga que Heródoto, mais antiga mesmo que Homero. Não historicamente falando, mas poeticamente, Ulisses, na corte do rei dos Feácios, escutou a estória de seus próprios feitos e sofrimentos, a história de sua vida, agora algo fora dele próprio, um ‘objeto’ para todos verem e ouvirem. O que fora pura ocorrência tornou-se agora ‘História’”. Id., Entre o passado e o futuro, p. 75.

16 Não trataremos aqui de procurar diferenciar, seja na obra arendtiana ou teoricamente, poesia e ficção. Para nossa questão da história parece bastar, tomar de um lado o texto histórico e de outro o texto ficcional. Luiz Costa Lima aborda a especificidade dessa questão em História, ficção e literatura. Para a discussão sobre ficção ver também KERMODE, F. The sense of an ending.

17 ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, p. 322.

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falsificação de dados e do próprio extermínio dos judeus, indicando a construção

de uma realidade paralela, a qual era designada como “realidade fictícia”. A

concepção da “realidade fictícia”, que se sustenta pela supressão da contingência

inerente à realidade humana, baseia-se na hipótese de que o totalitarismo não

preserva a diferença existente entre a história real e a história escrita. A “realidade

fictícia” nada mais é do que a superposição da história real e da história escrita.

Seu empreendimento é tornar indistinguível a posição do ator e do autor da

história. Se apresentando como aquele que conhece o rumo da história, o

totalitarismo assume a perspectiva do autor da história – daquele dirige sua trama

-, sem deixar de ser também ator da história. O termo fictício, portanto, já

indicava a separação, que não era respeitada, entre história real e história escrita.

Não podemos deixar de sublinhar que a efetivação da “realidade fictícia”

instaurada pelo totalitarismo está ligada à aspiração de converter a história real em

mero produto humano, ou seja, eliminar a diferença entre história real e história

escrita.

O uso da designação “fictícia” n’A condição humana, que se interpõe na

descrição da divisão entre história real e história escrita, compartilha do

significado já referido em Origens do totalitarismo, mas não para assinalar a

superposição sugerida no estudo sobre totalitarismo. Ao contrário, visa demarcar a

distinção entre ator e autor, estabelecendo teoricamente a diferença entre história

real e história escrita. O que deve ser entendido nessa remissão ao ficcional é o

propósito da limitação entre história real e escrita da história. A partir da

comparação entre os textos de Arendt, podemos inferir que a ficção só pode

existir quando concebida a diferença entre ator e autor, e a “realidade fictícia” não

é o mesmo que o produto da ficção, mas antes, o abandono da diferença entre

história real e história narrada.18 Assim, quando aparece a designação “realidade

ficcional” que, nos termos arendtianos tem o mesmo sentido de realidade

mentirosa, não precisamos nos assustar suspeitando que a autora imagina a

equivalência entre ficção e mentira. O que é idêntico à mentira não é a ficção, mas

sim, a realidade ficcional que o totalitarismo erige suplantando a diferença

18 Nesse sentido, também é interessante mostrar a possibilidade de pensar a ficção menos

nos termos da relação entre realidade e representação da realidade, e mais a partir da diferença entre ator e autor. Resta responder às análises que consideram a posição do autor como a de um ator de segunda instância - o observador que vê a si mesmo. Ver FOUCALT, M., As palavras e as coisas.

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fundamental entre a “realidade” e a ficção. O termo “realidade fictícia” parece

designar literalmente o que expressa, a saber, a edificação de uma tentativa de

tornar a ficção uma realidade.

Ao descartar a separação arendtiana entre ficção e não-ficção,

considerando que o importante com relação à estória é apenas a produção de

sentido que propicia a durabilidade do mundo, George Kateb acaba por concluir

que a autora não tem como sustentar a distinção entre a realidade ficcional

instituída pela ideologia totalitária e a realidade fundada pelo contador de estórias,

pois ambas podem ser compreendidas como possibilidade de “criação” da

realidade. O que a leitura perspicaz de Kateb sugere é que o contador de estórias

em Arendt é o responsável pela edificação de sentido daquilo que se entende por

realidade. É ele que, ao compreender o sentido das ações, narra estórias que

permitem aos homens “estar em casa nessa terra”, ou seja, conceber a realidade

como fundamentalmente humana. Observando a diferenciação entre verdade e

sentido seguida pela autora, Kateb mostra que o storyteller deve “reveals meaning

withouth committing the error of defining it”. De modo que a narrativa do

contador de estórias aparece como “the case that meaning is never truthful and,

worse, that truth is always meaningless. The quest for meaning is a self-enclosed

language game, just as quest for knowledge is.”19 A questão de Kateb está

diretamente relacionada à caracterização do historiador como aquele que narra

uma estória. Ao cunhar o termo comum storyteller para tratar dessa aproximação

e indicar que o historiador não é o descobridor de uma verdade que está escondida

no processo histórico, a autora deixa a impressão de que não há separação entre o

ficcionista e o historiador. Desse ponto de vista, talvez a argumentação de Kateb

tenha sentido. Sua dúvida se refere à possibilidade da distinção entre a realidade

fictícia do totalitarismo e a realidade real não totalitária. Sua proposição incide

também sobre a invalidade da perspectiva metafísica. Grosso modo, sua questão

tem certa semelhança com a suposição de Derrida, e versa sobre a limitação do

real. Segundo ele, se o sentido é uma atribuição indeterminada que cada época

tem de si, não se pode delimitar a metafísica como uma falácia ou o totalitarismo

19 KATEB, G., Ideology and storytelling, p. 325-329. “revelar o sentido sem cometer o erro

de defini-lo (…) o caso em que o sentido nunca revela a verdade e, pior, a verdade é o mesmo que sentido. A questão do sentido está auto-referida num jogo de linguagem que é a questão do conhecimento.”

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como uma realidade fictícia, tratar-se-ia, ao invés disso, de realidades distintas,

nas quais estão implicadas visões de mundo distintas.

O que podemos retorquir, de imediato, em Kateb é o fato de sua análise

não evocar a separação entre história real e escrita da história. Tudo funciona

como se a atribuição de sentido fosse aleatória, ou se referisse apenas à intenção

ou compreensão de mundo dos contadores de história. Ao não discernir que a

escrita da história versa sobre a ação, e está amparada, em Arendt, pela separação

entre ação e história, toda a realidade parece uma ‘criação’ da atividade

intelectual. A indistinção entre o ficcionista e o historiador, que não permite notar

a especificidade do “contador da verdade dos fatos [que] é também um contador

de estórias”20, para usar os termos arendtianos, confere maior plausibilidade à tese

de Kateb, mas implica num afastamento maior acerca das proposições da autora.

Se as histórias conferem sentido à realidade, devemos ter em mente que, para

Arendt, elas não fazem aparecer a realidade, pois a realidade se refere à

experiência da pluralidade – é o que se passa entre os homens. Por isso, a

insistência da autora em enfatizar a experiência das ações e indicar que a história

só acontece quando os homens agem – dadas as ações reais dos homens. Lembre-

se que, na perspectiva arendtiana, não é a teoria que muda o mundo, mas as ações

dos homens. No entanto, se considerarmos, conforme as suposições da autora, que

é possível falsificar dados e alterar a história, fica mesmo difícil distinguir entre

realidade e realidade fictícia, pois a própria verdade de fato, nesse caso é uma

mentira considerada verdade.

Vimos, ao evocar o texto de Derrida, que, por sua vez, acredita que essa

remissão à verdade de fato não resolve o problema da verdade e entende que a

autora precisa contar com uma noção de verdade absoluta para designar o

totalitarismo como mentira absoluta, que uma das possíveis soluções de Arendt

para não se enredar num universo onde não é mais possível discernir entre

realidade e realidade fictícia - ou entre verdade e mentira - é a indicação da

inverossimilhança da realidade fictícia. Para a autora, havendo ainda um mundo

não-totalitário e a possibilidade de iniciar a novidade no mundo, o totalitarismo

precisaria constantemente rever seus prognósticos e falsificações acerca da

história, pois os novos acontecimentos poderiam deixar sem sentido a realidade

20 ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, p. 323.

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fictícia rigidamente coerente. Nesse sentido, observamos que, apesar de não ter

um sentido pré-determinado ou secreto, a história real deixada pela ação tem uma

coerência própria. Entretanto, a resposta ainda contava com a existência de um

mundo não-totalitário, ou seja, a mentira absoluta não é absoluta no sentido de

que não há possibilidade de discernimento entre a realidade e a realidade fictícia –

como se tudo estivesse tomado por essa realidade totalitária. A situação a qual

tanto Derrida quanto Kateb fazem referência é aquela onde não se pode distinguir

entre verdade e mentira, ou entre realidade e realidade fictícia, pois toda

compreensão de mundo tem o mesmo valor, e não há nada fora da história para

definir parâmetros. Derrida observa que Arendt não leva ao extremo sua indicação

da indistinção, enquanto Kateb infere o oposto ao notar que a autora não tem

como sustentar a diferença entre as diferentes realidades. O que está em questão é

se Arendt comunga da versão dita pós-moderna da história, para a qual tudo é

interpretação ou ainda defende a possibilidade de uma verdade em si. Kateb, ao

entender que a proposta da autora é compreender o mundo como linguagem,

acaba propondo uma leitura mais “pós-moderna” para a autora, onde toda a

designação de mundo seria discursiva.21 Derrida, como notamos em outro

momento, tem a conclusão inversa.22

O que precisamos explicar é como a autora pode enfatizar a prioridade do

sentido e da compreensão em oposição à noção de verdade absoluta, e ainda não

recair num extremo relativismo. Ou seja, como pode rejeitar a concepção da

verdade absoluta e admitir a existência da verdade de fato e da realidade do

mundo. Com a distinção entre história real e escrita da história, observamos que

Arendt pretende indicar uma saída para a consideração da história como verdade

absoluta. Como destacamos, não há na suposição da história real, nenhuma

referência ao desenvolvimento de uma verdade absoluta, como se dos assuntos

humanos fosse possível tirar alguma verdade eterna. Ao contrário, sendo a história

real, os feitos e eventos que a “ação deixa atrás de si”, ela só pode ser concebida

diante da liberdade do homem. Tendo como pressuposto que é uma história

indeterminada, cujo fundamento é a contingência. Nada do que acontece deve

necessariamente acontecer. A verdade que se pode encontrar na história é apenas a

21 Falamos aqui da proposição de Kateb em Hannah Arendt: poltics, conscience, evil, onde

o autor defende que a ação arendtiana refere-se apenas ao plano discursivo. 22 Para melhor detalhamento das proposições de Derrida ver cap. 3.

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verdade do fato, que é uma verdade retrospectiva. Ocorre que se a história real

está na esfera da contingência, a história escrita precisa compreender como um

acontecimento pôde aparecer dentre as diversas possibilidades configuradas.

A suposição arendtiana é que a história real, na maior parte das vezes, foi

entendida como se fosse regida por um autor, enquanto, o que ocorre é que os

atores não são autores de sua história. Não seria viável objetivar o rumo dos

assuntos humanos, pois nessa esfera impera a liberdade do homem e a

possibilidade de advir a novidade. Considerar a história como se houvesse uma

consciência por trás dela foi, para Arendt, o grande engodo das filosofias da

história, mas não só delas, pois esse engano seria a ilusão comum à própria

tradição do pensamento e se refere ao “desconcertante problema de que, embora a

História deva sua existência aos homens, obviamente não é ‘feita’ por eles.”23

Nesse sentido, a autora entende que esse equívoco que conduziu durante muito

tempo as análises e aproximações do mundo dos assuntos humanos é basicamente

o mesmo desde Platão. O problema é explicar a ação do ponto de vista do

pensamento, donde a pluralidade dos homens é abordada como se constituísse

uma singularidade plenamente consciente de seus atos – um homem que faz a

história. A alternativa arendtiana para amenizar a dificuldade de tomar a história

como se houvesse alguém por trás dos bastidores, é indicar a “natureza política da

História”, mostrando que a história é a “história de atos e feitos, e não de

tendências e forças ou idéias – que a introdução de um ator nos bastidores que

vemos em todas as filosofias da História.”24

A separação entre história real e escrita da história não nos parece

constituir uma separação absoluta, como se indicasse que as instâncias do político,

na qual os atores agem, e da historiografia, na qual os autores escrevem, fossem

totalmente desconectadas. Nesse sentido, a importância do interesse arendtiano

pelo político, não é contrária, nem se sustenta sem uma reconsideração da

historiografia. A questão da autonomia da ação está diretamente relacionada à

tematização da história, e não apenas porque podemos nos referir à história de seu

surgimento e de seu esquecimento, mas, antes, porque a ação e a liberdade do

23 ARENDT, H., A condição humana, p. 198. 24 Idem. Lemos ainda que “A perplexidade é que em qualquer série de eventos que, no

conjunto, compõem uma história com significado único, podemos, quando muito isolar o agente que imprimiu movimento ao processo; e embora esse agente seja muitas vezes o ‘herói’ da história, nunca podemos apontá-lo inequivocamente como o autor do resultado final” Idem, p. 197.

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homem de começar só podem vir à tona quando a história real não é equivalente à

história escrita. A distinção entre essas esferas, que separa ator e espectador, é o

que concede a Arendt a ocasião de defender a autonomia da política. No nosso

entendimento, essa distinção surge também como a requisição da especificidade

da história. Tanto num caso, como no outro, trata-se da valorização, diante da

tradição de uma retomada dos assuntos humanos.

Para a história, enquanto historiografia, essa proposição pode significar a

defesa da particularidade da escrita da história frente à tradição do pensamento

filosófico, além de revelar um questionamento das associações com a sociologia e

outras disciplinas que tem uma perspectiva geral acerca dos assuntos humanos.

Em outras palavras, indicar que a historiografia é perpassada pelo exame da

singularidade dos acontecimentos e que sua preocupação não deve ser a

descoberta de verdades eternas ou proposições universais. Seu objeto é a própria

novidade que surge no mundo pela ação dos homens.

O novo é o domínio do historiador que, ao contrário do cientista natural, preocupado com acontecimentos sempre recorrentes, lida com eventos que sempre ocorrem somente uma vez. Esse novo pode ser manipulado se o historiador insiste na causalidade e arroga-se a capacidade de explicar os eventos por meio de uma corrente de causas que nele culminou. (...) É tarefa do historiador detectar esse novo inesperado com todas as suas implicações, em qualquer período, e trazer à luz a força total de sua significação.25

Reconhecer sua especificidade é perceber que sua perspectiva é

inevitavelmente retrospectiva. Assim, a escrita de uma história só se inicia quando

a ação já chegou ao fim. Sua tarefa é conceder ao mundo o sentido da história, que

não pode ser vislumbrado pelos atores, que, envolvidos no processo, não têm

condição de compreender o significado da história que colocam em ação.

Todo relato feito pelos próprios atores, ainda que, em raros casos, constitua visão fidedigna de suas intenções, finalidades e motivos, não passa de fonte útil nas mãos do historiador, e nunca tem a mesma significação e veracidade da sua história. (...) para o ator, o sentido do ato não está na história que dele decorre. Muito embora as histórias sejam resultado inevitável da ação, não é o ator, e sim o narrador que percebe e ‘faz’ a história.26

O que precisamos entender é como o historiador pode conceber o

significado da história se não há nenhum sentido ‘escondido’ por trás das ações – 25 ARENDT, H., “Compreensão e política”, In: A dignidade da política, pp. 49 e 50. 26 Id., A condição humana, p. 204-5

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se não há sentido há ser desvendado? A princípio pode parecer que a sugestão

arendtiana se assemelha a argumentação de Max Weber e dos neo-kantianos para

quem o sentido da história só é dado a posteriori pela teoria. Seria o caso de

Arendt também estar concebendo desse modo a atribuição de sentido pelo

historiador? Na verdade, contamos com outra hipótese. A autora não supõe que a

história real possa adquirir significado simplesmente pelo uso do método. O

historiador pode atribuir sentido às ações não porque arregimenta um sentido com

sua explicação teórica onde coaduna certos fatos e ocorrências que a princípio

constituem mera casualidade, mas porque um sentido a ele se revela.

Em “Compreensão e política”, a autora deixa claro que não é o historiador

que ‘inventa’ uma história de acordo com seus parâmetros subjetivos, ao

contrário, é o próprio evento que exige uma história. Sua proposição é a de que o

próprio acontecimento deixa ver a história a ser narrada. Podemos citar suas

palavras para mostrar que o evento e sua singularidade constituem a própria

possibilidade de sentido “Sempre que ocorre um evento grande o suficiente para

iluminar seu próprio passado a história acontece. Só então o labirinto caótico dos

acontecimentos passados emerge como uma estória que pode ser contada, porque

tem um começo e um fim.”27

O que chama a atenção nessa passagem é a explicitação da conexão entre

acontecimento e história, que esclarece melhor a noção desenvolvida n’ A

condição humana onde vimos a elaboração da relação intrínseca entre história real

e escrita da história. Considerando que a ação se define como a possibilidade da

novidade, Arendt estabelece que ela mesma interpõe uma ruptura que delimita o

fim de uma história e o início de outra. Se tomarmos rigorosamente essa

proposição, poderemos visualizar o seguinte encaminhamento: a ação interrompe

uma determinada continuidade histórica e abre a possibilidade de um novo

processo cujo sentido só se revelará no seu final. Desse modo, a história a ser

contada já está indicada pela novidade da ação. Ao conceber sua teoria da história,

Arendt visa resguardar, como estamos indicando ao longo desse trabalho, a

possibilidade da novidade, ou seja, não pretende subordinar a ação ao

pensamento. A história não aparece como processo autônomo, nem pode ser

27 Id., A dignidade da política, p. 49. A rejeição da causalidade e da aplicação de categorias

gerais visa libertar a historiografia para que possa entrever “a luz ‘natural’ que a própria história oferece”. Ibid., p. 50.

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determinada pela teoria. A história só existe na medida em que o homem age. Isso

não significa exatamente que a história é composta apenas de momentos

extraordinários, que como a própria autora explica, não são tão comuns. A

suposição é a de que a ocorrência do evento efetiva a passagem da esfera da ação

para o âmbito da história. Seu pressuposto é que para um evento se realizar ele

precisa deixar de ser mera possibilidade. É como se a sua efetivação matasse as

diversas possibilidades que estavam em jogo para os atores. Em outras palavras, a

concretização de um evento o retira imediatamente do possível e torna-o fato. Ao

acontecer, a ação sai da ordem da contingência para estabilizar-se como

necessidade. Não é a narração ou o historiador que produz a história ao escrever

sobre ela como pode sugerir a passagem de “Verdade e política”, onde vemos que

“Aquele que diz o que é – légei ta conta – sempre narra uma estória, e nessa

estória os fatos particulares perdem sua contingência e adquirem um sentido

humanamente compreensível.”28 Essa história só pode ser narrada porque o

evento se concretizou. Porque “o que é” já pode ser identificado como “o que é”,

ou seja, perdeu seu aspecto de contingência para constituir-se como fato

irreversível.29

Daí as atenções arendtianas acerca da história caracterizarem-se como

tentativas de compreender o irrevogável, ou seja, aquilo que aconteceu e não pode

ser modificado. O evento tendo se tornado acontecido passa a ser um fato. É nesse

sentido que a história é sempre um post facto e a atividade do historiador, de

narrar o que aconteceu e compreender o acontecido, deve ser entendida como um

olhar retrospectivo. A história a ser escrita, portanto, está intrinsecamente ligada

ao acontecido, que ao passar da contingência à necessidade já se torna história. O

sentido só pode ser vislumbrado depois que a novidade interrompeu a história e

interpôs uma história com início e fim. A história não é exatamente a história do

evento, mas a história iluminada pelo evento. Tal valorização do acontecimento,

que enfatiza a preponderância do particular ante o geral, sustenta todo o

28 Id., Entre o passado e o futuro, p. 323. 29 Arendt explicita esse argumento ao analisar a filosofia de Duns Scottus. “Uma coisa pode

ter acontecido bastante ao acaso, mas uma vez que tenha vindo a ser e que tenha assumdo realidade, perde seu aspecto de contingência e apresenta-se à nós com aspecto de necessidade. (...) Uma vez que o contingente aconteceu, não podemos mais desembaraçar os fios que o enredaram até que se tornasse um evento – como se pudesse ainda ser ou não ser.” Id., A vida do espírito, p.289.

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argumento arendtiano contra a concepção moderna de história e sua versão mais

bem acabada da filosofia da história.

A constatação acerca da existência do fato contraria a atual concepção em

voga na historiografia, segundo a qual privilegia a retomada do passado como

interpretação do passado e rejeita a noção da realidade do fato passado. Ao rever a

validade do fato e conceber a escrita da história a partir da separação com a

história real, pode-se imaginar que Arendt esteja na contramão das teorias

contemporâneas da história que sequer contam mais com a idéia de que o passado

de fato é passado.30

A sustentação da versão factual da história não se faz sem a consideração

de que o passado só é retomado pela interpretação e de que na escrita da história

está sempre em jogo a posição do historiador e sua historicidade. O que Arendt

parece querer resguardar com sua noção de história é a própria existência comum

no mundo. Menos que pensar a história como mera historiografia e produção

intelectual, como se o historiador pudesse de fato “fazer” história; a autora supõe

que os assuntos humanos compõem a realidade do mundo. Nossa leitura mostra

que, para Arendt, a rejeição dos fatos é o mesmo que a negação da possibilidade

de agir dos homens. A consideração da pluralidade do mundo e da liberdade do

homem de iniciar a novidade no mundo não pode ser entendida meramente como

construção conceitual ou atividade do pensamento. A história não pode ser

equivalente à interpretação historiográfica porque o que a movimenta é o agir dos

homens. A história é a história das ações – dos feitos, dos acontecimentos e dos

inícios promovidos pela ação humana.

Assim, do mesmo modo que concebe a ação como o que se passa entre os

homens, a autora entende que a história é a história dos homens, e não do Homem,

como sugeria o conceito moderno de história no seu afã de integrar toda a

humanidade. Essa proeminência da noção da pluralidade, que garante a

singularidade da concepção arendtiana de ação e sua defesa da autonomia dos

negócios humanos em relação ao pensamento, é, como supomos, o fundamento da

sua concepção de história, que pode ser concisamente enunciada na proposição de

que a história

30 Veremos um exemplo dessa posição mais adiante em Merleau-Ponty.

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tem muitos começos, mas nenhum fim. O fim, em qualquer sentido estrito e definitivo da palavra, só poderia ser o desaparecimento do homem da face da Terra. Pois o que quer que o historiador chame de fim, seja o fim de um período, de uma tradição, ou de toda uma civilização, ele é um novo começo para aqueles que estão vivos (...) uma história que nunca pode acabar, por ser a história dos seres, cuja essência é começar.31

A história não surge com um processo singular e autônomo. A ligação

entre ação e história revela que a história, tal como a existência dos homens, é

marcada pela pluralidade. Através da idéia de que a história é uma história de

muitos inícios e nenhum final, a teoria da história arendtiana revela sua ênfase na

descontinuidade da história. A história aparece como um mosaico constituído de

uma pluralidade infinita de histórias. Compondo-se como “o livro de histórias da

humanidade”.32 Nesse sentido, Arendt parece indicar a possibilidade de existir um

lugar “fora” da história, que não é nem outro mundo da verdade, nem um ponto de

vista arquimediano, como aquele vislumbrado no fim da história de Hegel. A

história ainda pode ser vista como um ‘espetáculo’, e, aliás, a suposição

arendtiana, é que ela só pode mesmo ser concebida dessa forma – da perspectiva

do espectador -; sem que isso signifique que o homem tenha desvendado uma

verdade absoluta. O que precisamos observar é que a história perde sua aura

divina – em outras palavras, deixa de ser pensada como um processo autônomo

dotado de sentido próprio o qual poderia ser visualizado no fim da história -, para

ser admitida como a relação entre a história real, lançada pela ação, e a história

escrita, narrada pelo historiador. Nessa concepção, a historiografia não insurge

como interpretação que perde de vista a realidade à qual corresponde, como se

passasse a ter o significado de mera representação. Ao tematizar a história, Arendt

já não conta com a abordagem tradicional que supõe a duplicidade entre essência

e aparência, por isso, não se deve entender que a tarefa do historiador seja buscar

a realidade do passado ou reproduzi-lo. Se, em comunhão com as teorias pós-

modernas da história, a autora, que também se vê empenhada na desmontagem da

metafísica, alude à tarefa interpretativa do historiador, isso não exprime a

subjetivação da história ou a possibilidade de confundir verdade e mentira. A

autora não descarta as discussões que indicam a impossibilidade de haver fatos

sem interpretações, mas, antes argumenta que

31 ARENDT, H., A dignidade da política, pp. 51 e 52. 32 Id., A condição humana, p. 197.

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esta e muitas outras perplexidades inerentes às Ciências Históricas são reais, mas não constituem argumento contra a existência da matéria fatual, e tampouco podem servir como uma justificação para apagar as linhas divisórias entre fato, opinião e interpretação, ou como uma desculpa para o historiador manipular os fatos a seu bel-prazer.33

Entendemos que a admissão da autonomia da ação em Arendt acarreta sua

compreensão da especificidade da história porque a história não se apresenta

como um ‘constructo’ intelectual sem correspondência na realidade. O historiador

não pode ‘criar’ o acontecimento. O que lhe resta é narrar e compreender essa

história legada pela ação, isto é, contar a história real sob a forma da história

escrita. Por isso, a “ciência” histórica, vislumbrada por Arendt baseia-se na

análise da novidade, ou seja, do inesperado, do singular. Sua especificidade é

tentar compreender como a novidade pôde aparecer no mundo. Na perspectiva

arendtina isso significa que o historiador deve propiciar a reconciliação com o

fato. Sua tarefa é explicar como o possível se tornou necessário. Ao contar a

história, deixa ver como a novidade vem ao mundo, isto é, como o acontecido se

afirma em meio à contingência. Aludindo à importância de compreendermos o

totalitarismo, Arendt indica a validade do próprio exercício da compreensão

diante da novidade, segundo ela, “ao compreendermos o totalitarismo não

estaremos perdoando coisa alguma, mas, antes, reconciliando-nos com um mundo

em que tais coisas são definitivamente possíveis.”34

Ao assumir o lugar da transposição da história real para a história escrita, o

historiador faria uma espécie de reconciliação com a realidade, a qual Arendt,

define também como compreensão. “E os olhos do historiados representam

somente o olhar cientificamente treinado da compreensão humana; só podemos

compreender um evento como o final e a culminação de tudo o que aconteceu

antes, como o ‘preenchimento dos tempos’”.35 Ao designar ao historiador a tarefa

da compreensão por excelência, ou seja, considerar que a compreensão, que é a

possibilidade de todos, é a ocupação específica do historiador, Arendt esclarece

como ação e compreensão são como duas faces da mesma moeda.

33 Id., Entre o passado e o futuro, p. 296. 34 Id., A dignidade da política, p. 39. 35 Ibid., p. 50.

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Se a essência de toda a ação, e em particular da ação política, é fazer um novo começo, então a compreensão se torna o outro lado da ação, a saber, aquela forma de cognição, diferente de muitas outras, que permite aos homens de ação (e não aos que se engajam na contemplação de um curso progressivo ou amaldiçoado da história), no final das contas, aprender a lidar com o que irrevogavelmente passou e reconciliar-se com o que inevitavelmente existe.36

Na articulação entre ação e compreensão, donde a compreensão surge

como uma espécie de reconciliação, a história e o historiador adquirem posição de

destaque na obra arendtiana. Nesse sentido, Odílio Aguiar sugere que, em Arendt,

“o filósofo tem que se tornar um storyteller, pois não adianta mais partir de uma

universalidade dada aprioristicamente, uma vez que o sentido só emergirá na

medida em que o pensamento se debruçar sobre os acontecimentos”.37

De fato, a aposta no storyteller se faz na contramão da tradicional ênfase

no filósofo e no ponto de vista geral do teórico. O filósofo arendtiano não

encontra nenhum lugar especial como aquele reservado a ele na concepção

tradicional do pensamento. Até mesmo porque a presunção de conhecer a verdade

que deslocava o filósofo do mundo, pelo menos desde Platão, era o que garantia

seu status específico. Voltando-se contra a primazia do pensamento sobre a ação,

Arendt recusa também a idéia da torre de marfim. No entanto, não parece que a

autora renegue a filosofia como uma atividade específica. O problema não está em

ser filósofo ou não, mas em tomar a perspectiva geral ou a noção de validade

universal como orientação para compreender os assuntos humanos. O pensamento

ainda pode ser a sua tarefa. Mas será compreendido menos como uma atividade

especial que pode entrever a verdade do mundo, e mais como um exercício

improdutivo e sem finalidade, que como a “teia de Penélope se faz de dia e se

desfaz à noite”.38

O que se mostra evidente na proposição de Aguiar, apesar de não

concordarmos com suas conclusões que indicam a confluência de filosofia e

história na atividade do storyteller, é o papel fundamental da história e do

historiador. É certo que a história não pode ser tomada como processo autônomo,

nem o historiador como um cientista natural que observará a regularidade dos

36 Ibid., p., 52. 37AGUIAR, Odílio Alves. “Pensamento e Narração em Hannah Arendt”, p. 216. In:

MORAES, E. e BIGNOTTO, N. (org.). Hannah Arendt. Diálogos, reflexões, memórias. Também é o que suspeita Kateb quando revela: “I think that for Arendt only stories or other intellectual modes can be construed as stories are meaningful.” KATEB, G. Ideology and storytelling, p. 330.

38 ARENDT, H., Homens em tempos sombrios.

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eventos. Justamente para marcar essa diferença, Arendt cunha o termo storyteller.

Seu intuito é mostrar que a atividade do historiador não pode ser concebida como

possibilidade de revelar a verdade, como se houvesse uma estabilidade ou uma

verdade geral por trás da melancólica casualidade dos fatos. Ou seja, sugere que

os assuntos humanos não podem ser considerados do ponto de vista de uma

verdade eterna – aquela imaginada pela tradição metafísica.

A noção de que o historiador é um contador de histórias indica que não há

verdade absoluta por trás da história; e arremata sua configuração para a

concepção de que há uma separação entre história real e história narrada. É a

partir da configuração dessa distinção que o historiador aparece como aquele que

pode realizar a reconciliação com a realidade. Tal referência à realidade e à noção

de reconciliação indica a possibilidade de compreender o sentido dos fatos e feitos

que são originalmente do âmbito da contingência. Reconciliar-se significa para

Arendt não apenas a possibilidade de perdoar, mas, principalmente, a

oportunidade de entender como um evento ocorre de determinado modo, mesmo

podendo ter sido realizado de outras formas. O que faz a reconciliação tão

importante na teoria arendtiana é que, se a ação está na esfera da possibilidade e

da liberdade, a história passa ao ângulo da necessidade, pois uma vez ocorrido um

fato, as possibilidades estão mortas. Nesse sentido, Arendt parece ainda carregar

algum resquício da interpretação hegeliana da história onde a “coruja de Minerva

só alça vôo ao entardecer”. 39

No entanto, devemos atentar para o fato de que o ‘fim’ da história

arendtiano não se apresenta como culminância do saber absoluto, nem como

qualquer ‘fim’ definitivo, como se houvesse uma realização da história. Ao

contrário, para ela, enquanto houver novos homens recém-chegados ao mundo,

vem com eles sempre a possibilidade de novos eventos e novas histórias. Se ainda

é fundamental para Arendt a noção de fim da história e de reconciliação, se é

nesse quadro que a historiografia parece encontrar seu lugar na teoria da história

arendtiana, não podemos deixar de notar que à idéia de fim, a autora interpõe a

noção de começo. De modo a sugerir ao historiador que se oriente mais pela 39 Arendt define a compreensão como “um processo complexo, que jamais produz

resultados inequívocos. Trata-se de uma atividade interminável, por meio da qual, em constante mudança e variação, aprendemos a lidar com nossa realidade, reconciliamo-nos com ela, isto é, tentamos nos sentir em casa no mundo. (...) “a atividade da compreensão é necessária; se jamais pode inspirar diretamente a luta ou fornecer objetivos que do contrário estariam ausentes, por outro lado pode, por si só, conferir-lhe sentido.” ARENDT, H., A dignidade da política, p. 39.

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compreensão da novidade que pela detecção dos fins. Ao contrário de Hegel que

vislumbra a possibilidade da reconciliação no fim da história, Arendt propõe que a

reconciliação se inicia quando um evento vem à tona e juntamente com ele uma

história se ilumina. Assim, sua hipótese é a de que, tal como a infinita

possibilidade da novidade, que está inscrita no aparecimento dos homens na

Terra, a história real – que surge das ações humanas – não pode encontrar um fim.

É fato que a conceituação da história como “a história de muitos inícios e nenhum

final” precisa contar com a suposição da interrupção da história, que é, de certo

modo, o fim de uma determinada continuidade, mas o fim, nessa perspectiva,

sendo apenas o fim de uma continuidade histórica, não se constitui como fim

definitivo, e revela que, no hiato entre uma história e outra, pode se efetivar a

compreensão da ação, qual seja, a escrita da história. Assim, o lugar da

reconciliação que em Hegel é um lugar ‘fora’ da história, em Arendt aparece

como um espaço ‘entre’ as histórias, que se caracteriza ainda como um lugar

‘fora’ da história, mas não se compromete teoricamente com a perspectiva

hegeliana do fim da história. A ênfase na novidade nos mostra que a história

traçada por Arendt, como sugerimos antes, não parece uma determinação da

história. Ao contrário, seu suposto fim surge, na verdade, como a possibilidade de

um recomeço.

O que precisamos entender é como essa versão da descontinuidade da

história se adéqua à sua grande narrativa da história ocidental, pois por mais que

possamos imaginar que a tradição do pensamento político, abordada por Arendt

seja apenas uma história dentre outras, o fato é que sua história abrange quase a

totalidade da história conhecida e, em termos gerais, não se difere de outras

grandes narrativas que traçam o desenvolvimento da história ocidental.

Seyla Benhabib supõe haver certa contradição entre a ênfase arendtiana na

descontinuidade, de um lado, e na continuidade, de outro.40 A autora relaciona

essa divergência às influências distintas de Benjamin e Heidegger sobre Arendt.

De fato, chama a atenção que muitas das considerações teóricas arendtianas

assemelhem-se às proposições benjaminianas, sobretudo, no que se refere à

valorização do evento como aquele que “ilumina” o passado e na proeminência de

uma historiografia retrospectiva. Tal como Benjamin, Arendt entende que a

40 BENHABIB, S., The reluctant modernism of Hannah Arendt.

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história “se faz a contrapelo”.41 Toda a sua tentativa de se desvencilhar da noção

de processo e progresso, que constitui a perspectiva moderna da história, encontra

eco no trabalho de seu amigo. Ambos procuram enfatizar a singularidade do

acontecimento como a novidade que dá sentido à história. Como vimos na leitura

de Habermas sobre Benjamin, trata-se da tentativa de salvar o significado da

novidade mediante o continuum aparecimento de novidades mais novas – sair da

tempestade do progresso, que conforme a metáfora benjaminiana do quadro de

Klee arrasta tudo para o futuro.42 O anseio de conceber a história menos como

“tempo homogêneo e vazio” e mais pelo aspecto qualitativo do evento que

interrompe a continuidade do processo autônomo realmente parece aproximar

Arendt e Benjamin. A alternativa de Benjamin para a tempestade surge como a

possibilidade de atualização do passado, que é retomado como num “salto de

tigre” e se caracteriza como um tempo-agora. Arendt também vislumbra a saída

da continuidade através da irrupção da novidade, e também sugere a possibilidade

da retomada do passado pelos homens de ação diante da experiência da novidade.

Mas, nesse sentido, qual seja, no intuito comum de encontrar uma opção que se

interponha à concepção moderna da história, Arendt não observa contradição

entre Benjamin e Heidegger. Ela mesma aponta a afinidade entre os dois autores

acerca do anseio de tentar retomar o passado sem o fio autoritário da tradição. Daí

ser possível, como sugere André Duarte, considerar a perspectiva histórica de

Arendt, a partir da inspiração benjaminiana e heideggeriana, como o esforço

hermenêutico de retomar o passado.

Benhabib, por sua vez, ao indicar a suposta contradição, sublinha a

importância da ruptura da continuidade na versão de Benjamin e a manutenção da

continuidade na história concebida por Heidegger como história do esquecimento

do Ser. Descartando a hipótese da contradição, nosso estudo volta-se mais para

observar que, de fato, Arendt traça considerações teóricas acerca da história que

privilegiam a descontinuidade, e, ao mesmo tempo, conta a história do

esquecimento do político, apresentando uma grande narrativa da história do

ocidente. Não obstante, nossa suposição é sobre a existência de uma

complementaridade entre a concepção da continuidade e da descontinuidade no

conceito de história de Arendt, a qual, só se sustenta se considerarmos a referência

41 BENJAMIN, W., Sobre o conceito da história. 42 Comentamos o texto de Habermas no cap. 3.

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histórica da sua compreensão da história. Em outros termos, acreditamos que para

entender como a autora pode narrar a história da continuidade e conceber a

fragmentação teórica da história precisamos considerar sua narrativa sobre a

história da história, ou seja, historicizar sua própria teoria da história. Antes de

prosseguirmos com essa argumentação, no entanto, avaliaremos a possibilidade de

conceber a teoria da história arendtiana como uma proposta hermenêutica.

5.2. História e historicidade

Delimitar as orientações hermenêuticas de Arendt é uma tarefa que se

amplia porque dela se exige também alguma demarcação da própria noção de

hermenêutica. Acredita-se que a hermenêutica tomou novo fôlego e despontou

como possível rumo para as ciências do espírito com Schleierrmacher e Dilthey.

Tanto Paul Ricouer quanto Gadamer destacam esse ressurgimento proveniente da

“fusão da exegese bíblica, filologia clássica e jurisprudência.”43 O que mais nos

interessa, no entanto, é considerar a noção de historicidade que se tornou idéia

central para a hermenêutica contemporânea.

Defendendo o que chama de uma leitura positiva de Heidegger, Vattimo

propõe que a hermenêutica contemporânea se delineia sobretudo depois de

Heidegger e não pode ser entendida sem sua referência à superação da metafísica.

Nesse sentido, observa que a hermenêutica apresenta outra concepção de

‘verdade’ que não é mais a verdade como adequação suposta pela metafísica. A

dissolução metodológica da verdade “termina por construir uma teoria geral da

interpretação que a faz coincidir com toda experiência humana no mundo.”44

Vattimo explica que a noção científica kantiana também distinguia uma

realidade que aparecia ao homem como interpretação, i. é., mediante determinadas

categorias a priori. Mas, nesse caso, como no neokantismo ainda há referência a

uma realidade “separada” da interpretação humana, com Heidegger, a

correspondência entre sujeito e objeto que constitui a distinção entre veracidade e

43 RICOUER, P., Do texto à acção. p. 38. 44 VATTIMO, G., Para além da interpretação, p. 16

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falsidade está sempre relacionada ao fato do Dasein estar lançado numa pré-

compreensão. Há uma abertura ‘ontológica’ que não é verificável nos termos da

ciência. Daí não ser possível, para o filósofo italiano, conceber a hermenêutica

sem levar em conta a concepção niilista desenvolvida por Nietzsche, segundo a

qual, “não existem fatos, só interpretações, e esta também é uma interpretação.”45

No entanto, o autor acredita que “A hermenêutica não é apenas uma teoria

da historicidade (dos horizontes) da verdade; é ela mesma uma verdade

radicalmente histórica. Não pode pensar-se metafisicamente como descrição de

uma estrutura objetiva qualquer do existir, mas só como exposição a um envio,

aquele que Heidegger chama Ge-Schick.”46 A retomada de Heidegger, a qual o

autor denomina positiva, baseia-se na suposição de que a hermenêutica não pode

ser considerada nem uma metatoria no jogo das interpretações, nem mais uma

interpretação dentre outras, pois em ambos os casos recairia na ‘armadilha’

metafísica de vislumbrar uma explicação total. A solução encontrada por Vattimo

na sua leitura de Heidegger é conceber a verdade histórica da hermenêutica sem

resumi-la à versão historicista, que decai no relativismo. Isso significa que a

verdade da hermenêutica só tem sentido do ponto de vista do fim da metafísica:

o que o hermenêutico oferece como ‘prova’ da própria teoria é uma história, seja no sentido de resgestae, seja no sentido de história rerum gestarum, e talvez também, realmente, no sentido de uma ‘fábula’ ou de um mito, já que se apresenta como uma interpretação (que pretende validade até apresentar-se uma interpretação concorrente que a desminta) e não como uma descrição objetiva de fatos.47

Para nosso tema da concepção de história de Arendt, não vale aprofundar a

discussão sobre a leitura que Vattimo faz da obra de Heidegger, nem retomar

interpretações sobre o texto do filósofo alemão. Referimo-nos às análises do autor

italiano com intuito de acenar para a temática da hermenêutica. Sua abordagem

nos parece satisfatória sobretudo na caracterização da hermenêutica

contemporânea que deve ser pensada a partir do niilismo nietszcheano e da

filosofia heiddegeriana. Vattimo não é o único a reconhecer a especificidade da

45 Ibid., p. 25. 46 Ibid., p. 19. 47 Ibid., p. 22. Embora em certo momento o autor admita que a versão hermenêutica

apareça como uma “interpretação mais persuasiva do historicismo” Ibid., p. 23.

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hermenêutica contemporânea através da ênfase na obra de Heidegger e, mais

particularmente, na sua noção de historicidade.

Ao examinar as relações entre fenomenologia e hermenêutica, Ricouer

também sustenta que há uma relação fundamental entre a concepção hermenêutica

e a tese de Heidegger. Vale a pena citar a passagem onde estabelece uma

delimitação da hermenêutica contemporânea:

a hermenêutica pretende, precisamente, radicalizar a tese husserliana da descontinuidade entre fundação transcendental e fundamento epistemológico (...) É esta radicalidade da questão que faz remontar da idéia de cientificidade à condição ontológica de pertença, pelo que aquele que interroga faz parte da própria coisa sobre a qual ele interroga.48

Embora aceite a proposição heideggeriana da abertura do mundo como

estrutura ontológica que subjaz à separação científico-metodológica entre sujeito e

objeto, Ricoeur apresenta-se mais ao lado de Gadamer ao evocar a autonomia do

texto. Sua tendência é admitir que a pré-compreensão tem o mesmo significado de

pertencimento à tradição.

Valorizando a reviravolta preconizada por Heidegger no âmbito dos

estudos hermenêuticos e nas discussões a respeito da especificidade das ciências

históricas, Gadamer sugere que a pré-compreensão a qual está referida

ontologicamente toda possibilidade de conhecimento aparece determinada pela

situação histórica de cada época, que não existe separada de um diálogo com as

épocas que lhe antecederam. Assim, o horizonte histórico no qual o mundo se

abre para cada homem e para cada época não se constitui simplesmente como a

referência historicista. Para Gadamer, a hermenêutica permite considerar de modo

distinto a “distância temporal” que afligiu os historicistas. Ao contrário de

caracterizar-se como um empecilho para alcançar a experiência vivida do passado,

a “distância temporal” é uma vantagem para a compreensão, “Não é uma distância

a percorrer, mas uma continuidade viva de elementos que se acumulam formando

48 RICOUER, P., Do texto à acção, p.55. Essa pertença é a própria finitude do Dasein

conforme entrevista por Heidegger. A menção à Gadamer se justifica pelo seguinte argumento de Ricouer. “A relação intersubjectiva curta encontra-se coordenada, no interior da conexão histórica, com diversas conexões intersubjectivas longas, mediatizada por instituições diversas, por funções sociais, por instâncias coletivas (grupos, classes, nações, etc.). O que sustenta estas relações (...) é a transmissão ou uma tradição histórica da qual o diálogo é apenas um segmento.” Ibid., p. 57.

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uma tradição, isto é, uma luz à qual tudo o que trazemos conosco de nosso

passado, tudo o que nos é transmitido faz a sua aparição.”49

Ricouer afina-se com a noção gadameriana da “distância temporal” e

também sugere que “a hermenêutica pode mostrar a necessidade de uma crítica

das ideologias, mesmo que esta crítica nunca possa ser total, exatamente devido à

estrutura da pré-compreensão.”50Sua tese sobre a autonomia do texto permite-lhe

vislumbrar a hermenêutica como interpretação, que, sem se constituir pelo aspecto

subjetivista ou objetivista, guarda a possibilidade do distanciamento do vivido.

Desse modo, imagina poder conciliar a hermenêutica em seu sentido da pré-

compreensão com a ‘crítica das ideologias’. A dificuldade é entender como esse

projeto combina a noção de pré-compreensão, que indica um pertencimento

insuperável caracterizado pela finitude humana, com a perspectiva da ‘crítica das

ideologias’, onde é fundamental a noção de distanciamento e da ruptura com a

continuidade da história.51

Habermas indica como a leitura gadameriana pode se constituir como uma

“urbanização” de Heidegger. O fato é que a própria possibilidade de considerar

uma “distância temporal” na ordem da pré-compreensão parece já indicar certo

afastamento da noção heideggeriana de historicidade.52 O problema é justapor a

moderna concepção de história, a qual está ligada intrinsecamente à noção de

“consciência histórica”, que, por sua vez, revela a separação entre o vivido e o

pensado, à contemporânea teoria da historicidade, cujo argumento fundamental

versa sobre a existência da pré-compreensão. Nas palavras de Heidegger, “A

análise da historicidade da pre-sença busca mostrar que esse ente não é ‘temporal’

porque ‘se encontra na história’ mas, ao contrário, que ele só existe e só pode

existir historicamente porque, no fundo do seu ser, é temporal.”53

49 GADAMER, H., O problema da consciência histórica, p. 68. 50 RICOUER, P., op cit., p. 61. 51 Ibid., p. 43. 52 VATTIMO, G., Para além da interpretação, p. 15. A proposição de ‘urbanização’ de

Heidegger também encontra eco no fato de Gadamer levar as considerações heideggerianas para o plano metodológico do qual aquele tentava se livrar. A discussão sobre a especificidade das ciências do espírito e a questão do seu método ser a própria compreensão co-extensiva a todos, Heidegger havia deixado de lado desde que concebeu a historicidade como problema ontológico, ou seja, desde que vislumbrou a historicidade como possibilidade para a historiografia.

53 HEIDEGGER, M., Ser e tempo, p. 181. Seu esforço é apontar que a historicidade está dada antes da separação historiográfica que sustenta a historiografia – por isso não é necessário falar em reconciliação – já parte de uma unidade ‘primordial’ entre ser e homem. Se bem que quando trata da história do ser – sua perspectiva também se assemelha à da reconciliação – sem usar esses termos a história aparece como a história do esquecimento do ser e a época da superação

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A proposta de Gadamer, no entanto, ainda deve ser entendida a partir das

suposições heideggerianas, pois, mesmo que considere a possibilidade da

‘distância temporal’, ela surge mais como o afastamento reflexivo para um

diálogo com tradição, a qual permanece mais como uma “continuidade viva” do

que como o “peso morto” do passado. Ricouer, apesar do empenho em mostrar

que o “texto representa a mediação entre a pré-compreensão do mundo da ação e a

refiguração referencial da realidade quotidiana operada pela própria intriga”,

também permanece bem próximo das referências de Heidegger. Parece que, nesse

sentido, podemos compreender o pressuposto lingüístico de sua obra, que sugere

que “os próprios discursos são ações, por isso mesmo é que o laço mimético – no

sentido mais aditivo do termo - entre o acto de dizer (e de ler) e o agir efetivo

nunca se rompe completamente.”54

O importante para nosso tema do conceito de história em Arendt é

perceber que o problema da continuidade e descontinuidade da história está

diretamente ligado ao desenvolvimento da noção de historicidade heideggeriana.

Para alcançarmos algum juízo sobre o caráter hermenêutico de sua teoria, faz-se

necessário remeter à leitura arendtiana do filósofo alemão.

Como já foi notado por diversos autores a relação intelectual entre Arendt

e Heidegger é dúbia. Por um lado, a autora, que foi sua aluna e leitora das mais

perspicazes, não deixa de manter admiração pela capacidade heideggeriana de

pensar e de despertar o pensamento. Por outro, sua interpretação de Heidegger não

é simplesmente elogiosa. Arendt critica a distinção entre o modo de ser próprio e

o modo de ser impróprio, cujo pressuposto, a seu ver, seria o apartamento entre o

mundo comum, onde se encontram os homens, e um “Eu” solitário, ao qual o

mundo se revela. O que ela observa é que a experiência autêntica do mundo

vislumbrada por Heidegger só existe a partir do isolamento do mundo. “Com a

experiência da morte como nadidade eu tenho a oportunidade de devotar-me

exclusivamente a ser um Eu e, de uma vez por todas, libertar-me do mundo

circundante.”55 Mais especificamente é ao tornar-se um ser para a morte que o

da metafísica surge como a possibilidade de não esquecer que a diferença ontológica possa ser esquecida – é um fim da história que aponta para a cisão original – que se não é entre essência e aparência é da própria alethea como velar/desvelar.

54 RICOUER, P., Do texto à acção, p. 18. 55 ARENDT, H. O que é filosofia da existenz?, In: A dignidade da política, p.32.

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Dasein alcança essa possibilidade. “Apenas na realização da morte, que o retirará

do mundo, o Homem tem a certeza de ser ele próprio.”56

Supõe-se que o julgamento mais ferrenho de Arendt sobre Heidegger surge

antes da reabilitação de sua amizade na década de 1950. No entanto, entendemos

que o argumento fundamental que aparece em todas as análises que a autora

apresenta sobre seu antigo professor se mantém praticamente o mesmo – é esse

que aponta a discrepância entre a experiência do Dasein e da pluralidade. Desde

seus primeiros comentários acerca das concepções heideggerianas até seus últimos

textos sobre o autor, Arendt sugere que Heidegger continua contando com a

supremacia do pensamento que afligiu a tradição. Seu modo particular de fazê-lo é

tornando o pensamento equivalente à ação. Em meio às ruínas da antiga harmonia pré-estabelecida entre Ser e pensamento, entre essência e existência, entre o ser existente e o Quê do ser existente concebível pela razão, Heidegger afirma que ele encontrou um ser no qual essência e existência são imediatamente idênticos e este ser é o Homem. Sua essência é sua existência. (...) O Homem como identidade de Existenz e essência pareceu ter fornecido uma nova chave para a questão relativa ao Ser em geral. Basta apenas recordar que para a metafísica tradicional Deus era o ser em quem essência e existência coincidiam, em quem pensamento e ação eram idênticos e que por isso era interpretado como o fundamento em-um- outro-mundo para todo Ser deste mundo – para compreender quão sedutor era esse esquema.57

Apesar de toda a desmontagem da metafísica e de toda tentativa de escapar

das denominações tradicionais que erigiam o “esquecimento do ser”, na

interpretação arendtiana destaca-se uma aproximação entre Heidegger e Platão.

“Assim reencontramos a velha hostilidade do filósofo em relação à polis nas

análises heideggerianas da vida cotidiana normal em termos de das Man (o ‘eles’

ou o domínio da opinião pública, em oposição ao ‘eu’), em que o âmbito público

tem a função de ocultar a realidade e até impedir o surgimento da verdade.”58 Tal

abordagem ganha sentido ao se considerar as opções políticas desses filósofos. A

participação heideggeriana no nazismo e a proximidade entre Platão e a tirania. O

que Arendt sugere é a possibilidade de haver relação entre a negação do mundo

pelo pensamento e a dificuldade de discernimento político dos filósofos. A autora

56 Ibid., 31. 57 Ibid., p. 29. Isso não significa que Arendt entenda o pensamento heideggeriano como um

novo aparecimento da metafísica. Ao contrário, reconhece, como veremos a seguir, a extrema consciência da finitude que sua compreensão ontológica apresenta.

58 ARENDT, H., Compreender. Formação, exílio e totalitarismo, p. 448.

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chega a mencionar esse problema da separação entre ação e pensamento como se

fosse um vício profissional dos filósofos, sua “deformação profissional” que leva

a atividade solitária do pensamento a isolar-se radicalmente da noção plural em

que a existência se apresenta.

A ambigüidade com relação à obra heideggeriana, que tantas vezes foi

interpretada como se fosse simplesmente uma questão pessoal de Arendt com

Heidegger, deve ser considerada a partir das proposições gerais que a autora

indica acerca da relação entre pensamento e ação. Não nos parece que Arendt

incida a crítica ao isolamento do Dasein, e, posteriormente, defenda os préstimos

do pensamento, reconhecendo a grandeza do seu mestre de outrora.59

O importante é perceber que a autora não muda completamente sua

perspectiva sobre Heidegger, quando exalta que “o pensamento tornou a ser vivo,

ele faz com que falem tesouros culturais do passado considerados mortos e eis que

eles propõem coisas totalmente diferentes do que desconfiadamente se julgava.”60

Mesmo reconhecendo o valor de suas indicações sobre a atividade do pensamento,

e admitindo a proeza de sua obra na história da filosofia, Arendt permanece

endossando as conseqüências políticas de ele ter desconsiderado a relevância da

pluralidade dos homens. Até seus últimos textos sobre o autor, ela segue

enfatizando que a abertura de mundo se realiza em oposição à pluralidade. “O eu,

que, pensando ‘se sustém em si mesmo’ na tempestade desencantada, como diz

Heidegger, e para quem o tempo literalmente pára, não só não tem idade, como

também ainda que sempre um eu especificamente diferente, não tem

particularidade.”61 A idéia de que o ego pensante em Heidegger está ligado a um

tempo que pára indica como a autora ainda entende a temporalidade à qual o

filósofo se refere como o tempo da eternidade, que tradicionalmente esteve

associado à possibilidade de vislumbrar a verdade do mundo.

59 Ettinger imagina que a suposta mudança de posição de Arendt com relação a Heidegger

indica uma própria virada na trajetória de seu trabalho, que se volta tardiamente para a análise de temas mais “filosóficos” como as “atividades do espírito”. VER ETTINNGER, E., Hannah Arendt, Martin Heidegger. André Duarte, apesar de indicar o quadro mais amplo da discussão arendtiana acerca da tensão entre pensamento e ação, também acaba sugerindo uma leitura baseada nas relações pessoais entre Arendt e Heidegger quando destaca a mudança na abordagem da autora com relação ao seu antigo mestre desde a década de 1950 – época em que reatam relações. “A partir do início dos anos cinqüenta, após a sua reconciliação pessoal com Heidegger, Arendt chegaria a uma avaliação mais equilibrada a respeito do legado teórico de seu antigo mestre para repensar a política.”, In: DUARTE, A., O pensamento à sombra da ruptura. p. 327.

60 ARENDT, H., Homens em tempos sombrios, p. 223. 61 Ibid., p. 226.

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Se há um elogio à atividade do pensamento vislumbrada pelo filósofo, isso

se deve ao fato de Arendt conseguir separar a validade da concepção

heideggeriana do pensamento, que não pode produzir nenhuma verdade, da sua

recaída por Hitler, isto é, da sua empreitada no mundo dos assuntos humanos. É o

significado acerca da improdutividade do pensamento que a autora retoma de

Heidegger. Interessa-lhe a concepção do pensamento que “se comporta com

relação a seus próprios resultados de forma destrutiva, isto é, crítica.”62 Esse

significado, porém, recebe uma realocação dentre as atividades da vida do

espírito, que, por sua vez, na sua concepção, estão separadas das atividades da vita

activa.

Se entendemos que a autora compartilha da perspectiva hermenêutica até

onde concorda com Heidegger, devemos apontar quais seriam os resquícios

heideggerianos em sua obra para mostrar como as hipóteses do filósofo são

apropriadas. Evidentemente, não se trata aqui de fazer uma análise exaustiva nesse

sentido, como, por exemplo, pretendem os trabalhos que se dedicam

especialmente a analisar a relação entre os autores.63 Nos contentaremos em

avaliar em que medida essas críticas à concepção de isolamento do Dasein e à

participação política de Heidegger no nazismo acarretam a rejeição arendtiana da

concepção de historicidade para conceber sua própria noção de história.

Devemos entender que, se Arendt não concorda com a perspectiva de

isolamento do Dasein, nem com sua suposta transferência para uma concepção

histórica, que, segundo ela, acarreta uma visão unificada da política que sugere a

compreensão da história a partir de categorias mitologizantes como povo e

destino, ou, finalmente, conflui para a sustentação de uma história do Ser onde os

homens em sua pluralidade são destituídos de liberdade, a autora aprende com

Heidegger a necessidade de considerar a finitude humana. Daí fica a dúvida sobre

como Arendt toma para si a concepção de finitude, da qual não abre mão, como

vemos em toda sua crítica acerca da supremacia do pensamento e das tentativas de

fundar qualquer absoluto, e, ao mesmo tempo, não compartilha da idéia de que a

história é sustentada pela noção de historicidade?

62 Ibid; p. 225. 63 Veja TAMINIAUX, J., The thracian maid and the professional thinker. Arendt and

Heidegger; VILLA, D. Arendt and Heidegger: the fate of the political.

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Primeiro é preciso considerar que a autora observa a equivalência entre a

concepção de historicidade e o desenvolvimento da argumentação ontológica de

Heidegger através da qual o autor concebe a estruturação do Dasein. Para ela, o

filósofo desenvolve a noção de finitude, segundo a qual, não pode haver

perspectiva absoluta ou fora da história. “O verdadeiro representante dessa

filosofia continua a ser Heidegger, que, em Ser e Tempo (1927), já havia

formulado a ‘historicidade’ em termos ontológicos, e não antropológicos, e em

anos mais recentes passou a compreender a ‘historicidade’ como ser portado a seu

fim (...) de modo que a história humana, para ele, coincidiria com a história do Ser

que aí se revela.”64

Devemos considerar ainda que, para a autora, a proposta fenomenológica,

desde Husserl está ligada à tentativa de reabertura da história. Trata-se da

possibilidade de libertar-se da suposição acerca da existência de um lugar fora da

história donde fosse possível reconsiderá-la, que permite à filosofia e à

historiografia reencontrarem os assuntos humanos. Nas palavras de Arendt, “A

insistência de Husserl nas ‘próprias coisas’ – que elimina essa especulação vazia e

prossegue separando o conteúdo fenomenologicamente dado de um processo de

sua gênese – teve uma influência libertadora à medida que o próprio homem, e

não o fluxo histórico, natural, biológico ou psicológico para o qual ele é sugado,

pode novamente tornar-se um tema de filosofia.”65

Em Heidegger, a autora também evidencia o intuito de compreender a

existência a partir da concepção da finitude. Devemos destacar que na

argumentação arendtiana a noção de finitude surge como a possibilidade de

considerar os assuntos humanos em sua perspectiva própria. O que sustenta esse

entendimento é a suposição de que a ação, diante da finitude, pode começar a ser

considerada em seus próprios termos, sem ser submetida à supremacia do

pensamento e às supostas verdades absolutas por ele vislumbradas. Surge a

possibilidade de entender que os negócios humanos não são regidos por nenhuma

verdade subjacente. Em outros termos, observar que não há nada por trás dos

acontecimentos seria o grande feito da consideração da finitude. No entanto, se

essa noção, que sustenta a ‘nova’ idéia de historicidade, surge como elemento

fundamental para a libertação da ação e da história, ao constatar que, em

64 ARENDT, H., Compreender. Formação, exílio e totalitarismo, p. 448 65 Id., A dignidade da política, p 18.

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Heidegger, ela está ligada fundamentalmente ao “Eu isolado”, Arendt refuta suas

implicações. “Aqui surge o conceito de historicidade, o qual, apesar da nova

aparência e maior explicitação, e a despeito de sua evidente proximidade com o

âmbito político (porque nega o absoluto) compartilha com o conceito anterior de

história a mesma incapacidade de atingir o ponto fulcral da política – o homem

como ser de ação.”66

Ao considerar a reviravolta da noção de historicidade heideggeriana como

possibilidade para retomada dos assuntos humanos, Arendt não deixa de notar,

portanto, o que seria a tendência dessa filosofia para reapresentar o esquecimento

do político ou a subordinação da ação. Em sua primeira abordagem sobre

Heidegger, já apontava o “quão sedutor era o seu sistema” pela equiparação entre

pensamento e ação, cuja unidade, a metafísica vislumbrava em Deus.67 O

problema é que a mesma consideração da finitude, que pode garantir a autonomia

da ação, provém da descoberta de que no homem, essência e aparência não se

separam. Para Arendt, essa suposição leva à conclusão de que pensamento e ação

não se distinguem. O pensamento passa a ser entendido como um acontecimento,

e a rejeição do mundo comum pelo “Eu isolado” desponta literalmente como

“abertura de mundo”. Ou seja, como se o mundo não existisse independente do

pensamento – sem se constituir como uma interpretação do pensamento. Ao

detectar a equivalência entre ação e pensamento na noção de historicidade, a

autora indica a relação com a moderna concepção de história, revelando que a

constatação da finitude não livrou Heidegger de decair no equívoco comum dos

filósofos, que tomam o mundo pelo pensamento. “A transformação do conceito de

história em historicidade surgiu com a concepção moderna sobre a ligação entre

pensamento e acontecimento, e como tal não é de forma alguma monopólio do

pensamento heideggeriano, embora seja em Heidegger – cuja filosofia posterior

atribuirá um papel cada vez maior ao ‘acontecimento’ (das Ereignis) – que a

coincidência entre pensamento e acontecimento se evidencie com maior

clareza.”68

66 Id., Compreender. Formação, exílio, totalitarismo, p. 449. 67 Id., A dignidade da política, p. 29. 68 Id., Compreender. Formação, exílio, totalitarismo, p. 449. Consideraremos a questão da

passagem do conceito moderno de história à ênfase na historicidade que aparece na consideração contemporânea no próximo tópico onde discutiremos a própria história da história traçada por Arendt.

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Para reconhecer a apropriação e rejeição de Heidegger, e de sua noção de

historicidade, talvez seja possível observar que Arendt exalta suas intenções de

reconsiderar a filosofia a partir da finitude, mas desconfia de seu sucesso nesse

projeto. Assim, poderíamos entender porque a autora retoma a perspectiva da

finitude, mas não quer se comprometer com a arquitetura da abertura de mundo do

“Eu isolado” ou de sua relação com a totalidade entrevista como povo, destino ou

história do ser. Acreditamos que, para ela, Heidegger compromete seu próprio

anseio de conceber a existência a partir da finitude.

Ao concluir sua análise sobre Arendt e Heidegger, notando como a autora

reintroduz o professor de Marburg “para o seio de um pensamento cuja vocação

para a tirania teria em Kant a sua notável exceção”, ou seja, para a tradição do

pensamento filosófico que sustenta a primazia do pensamento e seu caráter

absoluto, Edgar Lyra alude à insistência de Heidegger na consideração da finitude.

“Numa exata contrapartida, Heidegger ergueria com François Fédier, por ocasião

da comemoração desses mesmos oitenta anos, um brinde à finitude – à

constitutiva finitude.” 69 Com essa referência, Lyra indica a possibilidade da

contraposição à interpretação arendtiana. De fato, o próprio Heidegger jamais

admitiria estar arregimentando o status absoluto do pensamento, já que seu

propósito, como até mesmo Arendt revela, era justamente o contrário. Não

retomaremos aqui o texto heideggeriano para contradizer a interpretação da

autora. Concentraremo-nos na leitura arendtiana e no significado para o seu

conceito de história.

O importante é analisarmos qual é a alternativa que Arendt apresenta a

essa versão do pensamento como ação, já que ela também compartilha da idéia da

finitude. Entendemos que sua opção é trabalhar com a noção de finitude, ligando-

a diretamente à existência da pluralidade.70 Tal conexão, no entanto, não perde de

vista a necessidade de especificar as esferas do pensamento e da ação. Numa

análise sobre Jaspers, Arendt mostra que não se trata de considerar tudo do ponto

69 Ver LYRA, E., “Arendt e Heidegger. Pensamento e juízo”, In: MORAES, E. e

BIGNOTTO, N. (org.) Hannah Arendt. Diálogos, reflexões, memórias, p. 107 Arendt sublinha a pretensão de Heidegger de reconhecer a validade das estruturas cotidianas com a idéia de ser-no-mundo. Nesse sentido, podemos ler a passagem que se segue: “Todavia, visto que Heidegger nunca expôs as implicações de sua posição a esse respeito, talvez seja presunçoso atribuir demasiada importância a esse seu uso da forma plural.” In: ARENDT, H., Compreender, p. 459.

70 Nesse sentido, concordamos que Richard Bernstein tem razão em destacar a pluralidade como o ponto principal na distinção entre Heidegger e Arendt.In: BERSTEIN, R. Arendt response to Heidegger.

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de vista plural. “para a filosofia de Jaspers, a comunicação constitui o centro

‘existencial’ e se torna efetivamente igual à verdade (...) à qual supõe uma fé na

compreensibilidade de todas as verdades, junto com a boa vontade de ouvir e

revelar, como condições primárias do autêntico convívio humano.”71 Se a autora

critica em Heidegger a ênfase no “Eu isolado” da pluralidade, também não parece

admitir que o pensamento está subordinado à pluralidade, como se fosse o

equivalente da opinião. O direcionamento de Arendt diante do reconhecimento da

finitude não a leva a abolir a separação entre os dois mundos – da essência e da

aparência – como se concluísse que tudo não passa de ação. Sua proposição é

entender como nesse mundo em que o “Ser é igual à aparência”, em que não é

possível determinar nenhuma verdade absoluta, deve se compreender a diferença

entre ação e pensamento. A questão é que Arendt não concebe a necessidade de

revirar a hierarquia tradicional entre pensamento e ação, nem pretende tornar

equivalente essas atividades. Sua sugestão de considerar a esfera dos assuntos

humanos implica a proposição da manutenção da tensão entre ação e pensamento.

A autora reconhece que a atividade do pensamento requer um afastamento do

mundo e dos homens, ou seja, da experiência da pluralidade; mas não entende que

esse afastamento constitua-se como o erigimento de um mundo superior das idéias

ou qualquer morada do pensamento que legitime a “torre de marfim” dos

intelectuais. O afastamento do pensamento é momentâneo e nunca pode ser

definitivo. Se quando pensa, o homem se ausenta inevitavelmente da realidade,

i.é, da presença dos outros, e recolhe-se para um encontro consigo mesmo, o fato

é que ninguém pode se isolar definitivamente. Talvez apenas o louco possa perder

completamente a noção da realidade, e ‘criar’ um mundo próprio ou uma

realidade paralela. O problema com relação aos filósofos que imaginam “morar”

num mundo próprio das idéias é justamente que esse mundo não existe, e que tão

logo o pensador acredite vislumbrar a “verdade” ele acaba entrevendo a

possibilidade de “adequá-la” à realidade. É nesse sentido que Heidegger “trai”

suas próprias suposições quando concebe o “destino comum do povo” e o

surgimento do nazismo. Quando, nas palavras de Arendt, “a tentar lançar mão de

confusões mitologizantes como Povo e Terra como fundação para seus Eus

isolados.”72

71 ARENDT, H., Compreender, p. 457. 72 Id., A dignidade da política, p. 32.

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Para a autora, a retomada da concepção metafísica dos dois mundos surge

não apenas como um problema ultrapassado, mas como a questão a ser

compreendida. O fato não é que o espírito não seja ‘invisível’, mas que não está

em outro mundo. Por isso, a análise arendtiana se encaminha para o apontamento

de que “quando pensamos” não estamos em outro lugar, e, sim, fazemos outra

“experiência temporal”. Sua formulação “quando estamos quando pensamos”

sugere a tentativa de retomar com novos olhos o velho problema da atividade

espiritual. Arendt reconhece que Merleau-Ponty abordou a temática da relação

entre o visível e o invisível que, para ela, indicam respectivamente a esfera da

pluralidade e o âmbito do pensamento. No entanto, observa que, por admitir,

como ela, que “Ser e aparência” coincidem, o autor acaba tomando o pensamento

pelo seu aparecimento. A passagem sobre Merleau-Ponty é a seguinte:

Como certa vez, Merleau-Ponty formulou, ‘só posso escapar do ser para o ser’, e já que ser e Aparência coincidem para os homens, isso quer dizer que só posso escapar da aparência para a aparência. Mas o problema não está resolvido, pois ele se refere à aptidão que o pensamento tem para aparecer; e a questão é se o pensamento e outras atividades espirituais invisíveis e sem som estão destinados a aparecer, ou se, de fato, eles não podem jamais encontrar um lar adequado neste mundo.73 A argumentação arendtiana se distingue pela inquirição acerca da

possibilidade das atividades espirituais aparecerem no mundo. Sem desconsiderar

a primazia da aparência, sua tentativa é explicar a especificidade das atividades do

espírito – pensar, querer e julgar -, cujo aspecto principal é a invisibilidade, num

mundo primariamente visível. Nas atividades espirituais observa-se a retirada do

“eu” do mundo das aparências. Para a autora, trata-se de considerar a

particularidade dessas atividades “invisíveis”, especificando que, ao realizá-las, o

homem não deixa de “ser desse mundo de aparências”, mas se alheia

momentaneamente dele. Nesse sentido, suas conclusões apontam menos para

vislumbrar a “aparência” do pensamento e mais para conceber de que modo a

atividade espiritual se afasta do mundo. Por isso, dizemos que a separação não é

definitiva.

Ao conceber o pensamento como um afastamento do mundo, Arendt

concorda com Platão, para quem essa atividade é solitária e surge, como ela

73 Id., A vida do espírito, p. 20.

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mesma observa, como um “estranhamento do mundo”. É por essa via em que o

pensamento aparece como um descolamento do mundo que se pode entrever a

semelhança entre sua definição e a de Heidegger. O pensamento surge como a

possibilidade de afastar o presente e aproximar-se do distante. “Se, por exemplo,

encontra-se um homem face a face, ele é percebido de fato em sua corporeidade,

mas não se pensa nele.”74 Nesse mesmo sentido, encontramos uma justificativa

para o argumento de que aquele que não está envolvido na ação pode ter uma

melhor compreensão do acontecimento, “muitíssimas vezes é só na lembrança

retrospectiva, quando a impressão não mais nos pressiona, que as coisas que

vimos tornam-se totalmente próximas, como se então revelassem pela primeira

vez o seu sentido, pois não estão mais presentes.” 75

A abordagem arendtiana da atividade do pensamento é muito semelhante

àquela efetivada por Heidegger. A diferença desponta quando Arendt insiste em

designar a “saída” do pensamento como um ausentamento momentâneo da

realidade. Se atentarmos para a imagem do tempo do pensamento concebida pela

autora como uma diagonal que surge como resultante das forças que se chocam

entre o passado e o futuro, poderemos vislumbrar mais concretamente a existência

de um ponto de contato entre o pensamento e a realidade. É a partir da parábola de

Kafka que a autora evoca essa representação.

Ele tem dois adversários: o primeiro, acossa-o por trás, da origem. O segundo bloqueia-lhe o caminho à frente. Ele luta com ambos. Na verdade, o primeiro, ajuda-o na luta com o segundo, pois quer empurrá-lo para frente, e, do mesmo modo, o segundo o auxilia na luta contra o primeiro, uma vez que o empurra para trás. Mas isso é assim apenas teoricamente. Pois não há ali apenas os dois adversários, mas também ele mesmo, e quem sabe realmente de suas intenções? Seu sonho, porém, é em alguma ocasião, num momento imprevisto – e isso exigiria uma noite mais escura do que jamais o foi nenhuma noite -, saltar fora da linha de combate e ser alçado, por conta de sua experiência de luta, à posição de juiz sobre os adversários que lutam entre si.76

A partir desse texto, Arendt indica a tradicional concepção do tempo,

donde subjaz a idéia de que é possível saltar para fora dele - o sonho de fugir para

uma região acima e fora do campo de batalha. Para ela, esse é a antiga quimera

metafísica de encontrar uma região segura fora do mundo dos assuntos humanos

para poder anunciar a verdade – “um lugar neutro adequado ao pensamento.” A

74 Ibid., 227. 75 Idem. 76 ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, p. 33.

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interpretação arendtiana da história de Kafka se destaca principalmente por

conceber que a presença d’“ele” acaba produzindo um paralelogramo de forças,

donde sai uma diagonal rumo ao infinito do ponto de contato entre as duas outras.

Andar por essa diagonal é instalar-se entre o passado e o futuro. Esse é o lugar em

que estamos quando pensamos. Ou melhor, o tempo em que estamos quando

pensamos. Importa-nos destacar que a diagonal infinita pela qual transita está

irremediavelmente ligada ao mundo – ao presente. Na imagem da diagonal que

revela a especificidade do tempo do pensamento vemos que, apesar de se

constituir como uma saída da realidade, ou seja, uma saída do tempo contínuo

entre passado e futuro, a atividade de pensar mantém sempre um ponto de contato

com a realidade – que está geometricamente representado no paralelogramo

vislumbrado por Arendt como o ponto comum entre a linha do passado, a linha do

futuro e a própria linha diagonal que se refere ao pensamento.

O que não podemos esquecer é que todo esse desenvolvimento é sobre a

atividade do pensamento. O que está entre o passado e o futuro e desponta pela

capacidade de recombiná-lo à vontade é o ego pensante. É ele que está livre da

continuidade do tempo cotidiano. Se essa fosse a única experimentação do tempo

considerada por Arendt, de fato, poderíamos concordar que sua perspectiva segue

a noção de historicidade e sua compreensão da história é hermenêutica. Mas não é

isso que ocorre. Sustentando a existência da separação das atividades, a autora não

abre mão de considerar a existência do mundo. Não do ponto de vista do ego

pensante, que é solitário, mas da perspectiva da pluralidade. Ao considerarmos o

pensamento como atividade do ego pensante que se ausenta momentaneamente da

realidade é certo que persiste a semelhança com a definição do pensamento por

Heidegger. Encontramos a variação arendtiana na demarcação do vínculo com a

realidade. Outra forma de detectarmos esse vínculo é através da remissão à noção

de compreensão arendtiana. Para nosso contexto, essa via é ainda mais

importante. Basta lembrarmos que, para a autora, a compreensão é a tarefa por

excelência do historiador. Tal como Heidegger, Arendt distingue ciência e

compreensão propondo que

A compreensão precede e sucede o conhecimento. A compreensão preliminar está na base de todo conhecimento, e a verdadeira compreensão, que o transcende têm isso em comum: conferem significado ao conhecimento. (...) A verdadeira compreensão sempre retorna aos juízos e preconceitos que precederam e orientaram a investigação estritamente científica. As ciências podem apenas

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iluminar, mas nunca provar ou refutar a compreensão preliminar da qual partem.77

Pode-se entender que Arendt estaria revelando as perplexidades inerentes

ao “círculo hermenêutico” nessa tematização da compreensão, a qual, por sua vez

surge como possibilidade inevitavelmente ligada a uma pré-compreensão. No

entanto, é nessa conexão entre compreensão e pré-compreensão, que aqui

aparecem designadas como compreensão preliminar e compreensão verdadeira

que está traçada mais uma vez a concepção arendtiana da relação entre o

pensamento e a pluralidade. A ligação é aí entrevista como a conexão insuperável

entre o especialista e o senso comum. “Se o cientista, desorientado pelo próprio

labor de sua investigação, começa a bancar o especialista em política e a desprezar

a compreensão popular da qual partiu, ele perde de imediato o fio de Ariadne do

senso comum, a única coisa que pode guiá-lo com segurança por entre o labirinto

de seus próprios resultados.”78 Ao sugerir que a pré-compreensão a qual se liga o

pensamento é o senso comum ou a compreensão popular, Arendt marca seu

afastamento da concepção hermenêutica heideggeriana, e direciona-se para uma

aproximação, ou melhor, para uma apropriação do juízo estético kantiano. O que

está em questão no apontamento da compreensão comum é a demarcação entre o

mundo real e os devaneios teóricos que deixam de corresponder à experiência. O

‘senso comum’ é importante para manter o elo com a realidade e não deixar que o

cientista ou o pensador se perca “em meio às nuvens da especulação”79. O intuito

arendtiano é a impropriedade do pensamento que deixa de corresponder à

experiência. A visualização da ligação entre ação e compreensão está mais em

Kant que em Heidegger. Nesse sentido, é importante destacar que em Kant, não

apenas na sua obra, mas na dignidade de seus juízos políticos, Arendt vislumbra

uma rara competência entre os filósofos. Trata-se da capacidade de assumir a

perspectiva de espectador – de julgar coerentemente os eventos.80 É na sua

apropriação do juízo estético, que a autora busca a ligação entre ação e 77 Id., Compreensão e política. Precisamos destacar que a solidão da atividade do

pensamento, para aquele que está pensando, na verdade, surge como um diálogo intenso do eu consigo mesmo. Esse diálogo que já se abre no dois-em-um também se sustenta pela representação das possíveis opiniões dos outros.

78 Id., A dignidade da política, p. 42. 79 Ibid., p 43. 80Arendt elogia a capacidade kantiana de compreender a revolução francesa. Apesar disso,

não compartilha da filosofia da história de Kant, na qual vê excluída a ação humana em prol do ardil da natureza. Ver ARENDT, H., Lições de filosofia política em Kant.

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compreensão. O fato é que Arendt não poderia estar de acordo com Heidegger no

que se refere à manutenção do contato com a realidade, se suas críticas ao filósofo

incidem justamente sobre esse ponto. A leitura arendtiana de Heidegger converge

para mostrá-lo como uma espécie de especialista que perdeu contato com o

mundo – primeiro, ao estruturar a abertura de mundo através da oposição do “eu

isolado” em relação aos outros; depois, ao associar-se ao nazismo e concebê-lo

como destino do povo; e ainda, quando tematiza a ‘história do Ser’, na qual o

homem que age parece mero figurante; onde a liberdade humana sucumbe ao

destino do Ser.81

Para a discussão sobre o aspecto hermenêutico da concepção de história

arendtiana, é crucial percebermos que a recusa da noção de historicidade

heideggeriana, que se constitui mais como sua delimitação ao âmbito do

pensamento que como uma completa rejeição, não permite que Arendt trabalhe

com a suposição da equivalência entre história e hermenêutica. A indicação sobre

a existência do mundo comum, que é o mundo de aparências – e único mundo que

existe -, comporta a consideração de uma outra noção de história. Diferentemente

de Gadamer que entrevê a relação entre pré-compreensão e compreensão como a

possibilidade de um diálogo entre as épocas através da proposição de que a pré-

compreensão é o pertencimento à tradição. E distintamente de Ricouer, que

pretende considerar a separação entre pré-compreensão e compreensão pelo

distanciamento do texto. A saída de Arendt para não se render às perplexidades do

isolamento do “Eu” ao qual o mundo se abre, não é necessariamente negar que

haja uma historicidade, a qual seria uma temporalidade subjacente à

historiografia, mas apontar que essa concepção de temporalidade não pode advir

de um isolamento definitivo, ou de uma rejeição da pluralidade.

Deve-se sublinhar que Arendt não ignora o que seria a tentativa

heideggeriana de transpor a concepção singular para a plural. Resumida por

Vattimo como a “passagem do mundo, como estrutura da pre-sença, para os

mundos, como aberturas históricas do ser.”82Mas entende que a adaptação de uma

81 Não sem razão, a concepção de história de Heidegger concebida como história do ser

precisa se desfazer da semelhança com a história de Hegel. Tanto Arendt, como Vattimo abordam essa temática.

82 VATTIMO, G., Para além da interpretação, p. 40. Vattimo sublinha “em Ser e Tempo, mundo é usado sempre no singular (o homem é pre-sença, i. é, ser no mundo), e, no ensaio sobre a Origem da obra de arte (1936) torna-se “um” mundo. (...) Heidegger esforça-se por apreender, não as estruturas (objetivas, metafísicas) da existência, mas o sentido (da história) do Ser, tal como se

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estrutura, que se contrapõe à pluralidade, à noção de história acaba por produzir

conceituações equivocadas como a de povo, destino e de história do ser. O que

podemos notar é que para Arendt, não é possível adequar a perspectiva individual

à plural. Essa transposição não evidencia o aspecto realmente plural da existência.

A crítica à tomada da pluralidade como povo também surge na sua análise da

revolução francesa. A autora rejeita a possibilidade de considerar a pluralidade

como uma coletividade, que, para ela, seria um meio de não reconhecer o caráter

realmente plural dos homens, e sim, uma forma de adequar a pluralidade ao

modelo singular. A alternativa arendtiana não nos parece ser a concepção de uma

passagem do singular para o coletivo, mas, antes, a indicação de que a

singularidade e a pluralidade estão inevitavelmente ligadas.

Para Arendt, o pensamento é a possibilidade de evadir-se

momentaneamente da realidade, mas isso não quer dizer que a partir desse

afastamento o pensador possa retornar ao mundo imaginando conhecer a verdade

por trás dos assuntos humanos ou querendo ditar o que fazer. O pensamento em

questão é uma atividade destrutiva, não pode estabelecer nenhuma orientação da

ação. Por não existir nenhuma ligação entre pensamento e verdade – a não ser

aquela em que o pensamento coloca em questão a possibilidade da verdade – é

difícil caracterizar essa separação entre ação e pensamento concebida por Arendt

como a antiga divisão entre aparência e essência. A capacidade de evasão pelo

pensamento surge menos como duplicação do mundo e mais como a possibilidade

de experimentar o tempo de forma distinta. Para que em sua experimentação

específica do tempo, o ego pensante não se desligue do mundo, a sugestão

arendtiana é que ele nunca perca de vista o senso comum do qual partiu. O senso

comum, para ela, é uma espécie de senso de realidade, que funciona como um

sexto sentido. Em Kant, a autora encontra a referência teórica mais consistente a

respeito do senso comum. Isso se deve ao fato de que, segundo a sua leitura, o

juízo de gosto só pode ser fruído em meio à pluralidade. Acreditamos que a

interpretação arendtiana de Kant diferencia-se por não aceitar que o juízo acerca

do belo seja mudo – ao contrário, sua ênfase é justamente sobre a possibilidade de

determinou na época da metafísica completada, que é a modernidade, i. é, a idade da ciência e da técnica.”

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dizer “Isso é belo!”.83 Não nos interessa aqui desenvolver os pontos que sustentam

essa argumentação. O importante para nossa temática da história é destacar a

relação de contraposição e ligação que a autora vislumbra entre a perspectiva

plural da experiência e a singular do pensamento.

Quando estou pensando saio do mundo das aparências, mesmo que o meu pensamento lide com objetos comuns dados pelos sentidos, e não com invisíveis como os conceitos ou as idéias, o antigo domínio do pensamento metafísico. (...) pensar sempre lida com objetos que estão ausentes, afastados da percepção direta dos sentidos. Um objeto do pensamento é sempre uma representação, isto é, algo ou alguém que está realmente ausente e presente apenas para o espírito que, pela imaginação, pode torná-lo presente na forma de uma imagem.84

Por iluminar a coexistência dessas duas esferas, entendemos que a

conceituação da história em Arendt não pode resumir-se à consideração da

historicidade. Ao negar a equivalência entre ego pensante e pluralidade,

enfatizando que o afastamento do mundo pelo pensamento não lhe torna senhor de

nada, mas apenas se constitui como um alheamento da realidade, a autora se

recusa a compreender a existência a partir do pensamento. Distinguindo entre

ação e pensamento, Arendt separa vantajosamente, ao que parece, a temporalidade

do ego pensante e a temporalidade da história. A experiência do pensamento, que

é do âmbito do singular e a vivência no mundo que se dá no plural. “A principal

distinção, em termos políticos, entre Pensamento e Ação reside no fato de que,

quando estou pensando, estou apenas com meu próprio eu ou com o eu de outra

pessoa, ao passo que estou na companhia de muitos assim que começo a agir.”85

Essa separação que, como vimos, nunca é definitiva, trata-se, portanto, mais de

uma reconsideração da teoria platônica das idéias. Apesar de não visualizar a

existência de dois mundos, Arendt trabalha com a suposição da vigência de dois

âmbitos que se distinguem e se conectam entre si. Podemos observar que sua

teoria acerca da separação entre história real, proveniente da ação, e escrita da

história está incluída nessa relação mais ampla entre o visível e o invisível. Nossa

objeção acerca da suposição de que a noção arendtiana da história é hermenêutica

se sustenta justamente no reconhecimento dessa distinção entre a experiência

83 A análise arendtiana de Kant valoriza o aspecto a comunicabilidade do juízo do belo.

Lyotard, em sua conhecida obra sobre o assunto, entende se tratar de uma ênfase na sociabilidade. LYOTARD, J., Lições sobre a analítica do sublime.

84 ARENDT, H., Responsabilidade e julgamento, p. 232. 85 Ibid., p.171.

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singular do pensamento e a experiência plural no mundo. A história não pode ser

simplesmente a história do ego pensante ou a história concebida pelo pensamento.

A história tem um correspondente real que se refere à existência do mundo e das

ações humanas.

Mesmo quando Arendt assinala a importância da experiência singular do

tempo que está circunscrita pelo intervalo temporal entre o aparecimento e o

desaparecimento da pessoa no mundo, indicando que a própria possibilidade da

historiografia está relacionada ao desencadeamento de uma história com início e

fim que se interpõe pelo nascimento e morte de cada um, a autora contrapõe essa

noção de tempo circunscrita ao caráter objetivo do tempo do mundo, considerando

que os homens são “seres que sempre chegam em um mundo que os precede e que

a eles sobreviverá.” Por um lado, o tempo finito parece ter certa primazia pelo fato

de que “fornece o protótipo secreto de todas as medidas temporais”86. Isso torna o

fundamento da noção de história de Arendt próxima da perspectiva heideggeriana

da historicidade, pois a autora admite que a própria possibilidade da historiografia

está relacionada ao fato de a vida individual ser concebida com início e fim. Por

outro lado, essa historicidade radicada na experiência singular da temporalidade

não define a concepção de tempo e de história. Se parece existir algum

fundamento ontológico da história em Arendt, como pode sugerir a ênfase na

potencialidade do nascimento humano, é apenas entre os homens que a história se

realiza. Do mesmo modo, a experiência da historicidade não determina a

existência do mundo. A questão é que mesmo que possa ser identificada a

validade da perspectiva individual, ela só tem sentido quando compreendida como

um intervalo temporal inserido numa continuidade mundana sem começo ou fim

definidos. O que nos termos de Arendt deve indicar que a temporalidade de cada

um está sempre relacionada à pluralidade, ou ao fato de que ninguém está sozinho

nesse mundo. “Em outras palavras, nada do que é, à medida que aparece, existe no

singular; tudo que é, é próprio para ser percebido por alguém. Não o Homem, mas

os homens é que habitam este planeta.”87

Observando o destaque da noção de pluralidade podemos reencontrar o

argumento principal que sustenta a divisão da história entre atores e espectadores.

A própria existência da pluralidade garante que todos podem ser ao mesmo tempo

86 Id., A vida do espírito, p. 18. 87 Ibid., p. 17.

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atores e espectadores porque estão sempre vendo os outros e sendo vistos por eles

na medida em que agem - “percebendo e sendo percebidos - ao mesmo tempo”.88

Devemos lembrar que toda a crítica arendtiana à moderna concepção da

consciência se baseia nessa idéia de que o homem em sua singularidade não pode

assegurar a realidade do mundo.

Considerando essa distinção, compreende-se porque Arendt reelabora uma

idéia que parece ultrapassada no campo da história e da filosofia: a separação

entre história real e historiografia. Entendido que a história real é proveniente da

ação e a historiografia é uma atividade do espírito, podemos perceber que isso não

sugere a existência de uma realidade mais verdadeira por trás das aparências –

uma verdade do fato que a historiografia ressuscitará. A vantagem da concepção

de história arendtiana é trazer novamente à tona a possibilidade de considerar o

passado como aquilo que irrevogavelmente passou, sem que isso inspire qualquer

pretensão metafísica de conhecer ou reproduzir a totalidade do que foi. A autora

não nega que há interpretação do fato, mas entende que não se pode rejeitá-lo

completamente como se fosse uma mera criação do pensamento. Em Arendt, o

tempo que não passa é o do ego pensante. Apenas na consciência pode-se

conglomerar passado, presente e futuro. O tempo do mundo está inevitavelmente

submetido à fugacidade. Por isso a história ainda tem a tarefa de conceder

permanência às ações humanas. Justamente porque o passado passa é que a

história tem um lugar. Nesse sentido, entendemos que a distinção entre

pensamento e ação, que visa revelar a autonomia de ambas as esferas, possibilita

que a história seja considerada em seus próprios termos e deixe de ser entendida

apenas como historicidade. O que inferimos com Arendt é que a historiografia,

embora seja capaz de instituir a durabilidade especificamente humana no mundo,

não pode ser tomada como uma espécie de macro-consciência humana. O fato do

tempo passar não significa que haja um curso retilíneo que torna o presente

conseqüência do passado e o futuro conseqüência do presente, como se pode

imaginar através da concepção tradicional do tempo em que passado, presente e

futuro estão necessariamente encadeados. Merleau-Ponty contrapõe a versão

comum da experiência temporal à noção de uma temporalidade originária, onde a

“consciência desdobra ou constitui o tempo”.

88 Idem.

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Diz-se que o tempo passa ou escoa. Fala-se do curso do tempo. A água que vejo passar preparou-se, há alguns dias na montanha, quando a geleira derreteu, no presente ela está diante de mim, ela vai em direção ao mar onde se lançará. Se o tempo é semelhante a um rio, ele escoa do passado em direção ao presente e ao futuro. O presente é a conseqüência do passado, e o futuro é a conseqüência do presente. Essa célebre metáfora é na realidade muito confusa. Pois a considerar as próprias coisas, a fusão das neves e aquilo que daí resulta não são acontecimentos sucessivos, ou, antes, a própria noção de acontecimento não tem lugar no mundo objetivo.89

A perspectiva de Merleau-Ponty, até certo ponto, bastante próxima da

concepção heideggeriana, indica que o próprio homem é um ser temporal. A

leitura arendtiana não se volta para defender a existência de um tempo natural que

exista sem a presença humana. A diferença, ao que nos parece, é que a autora se

esforça por conceber a presença humana não somente do ponto de vista singular

da consciência e da vida individual, mas considerando a presença da pluralidade

de homens. Assim, ela poderia concordar que “o tempo não é um processo real,

uma sucessão efetiva que eu me limitaria a registrar”, mas talvez não aceitasse

exatamente a conclusão do argumento do filósofo francês que desfecha seu

raciocínio sugerindo que o tempo “nasce da minha relação com as coisas.”90

Devemos observar que, se há alguma discrepância entre a concepção arendtiana

do tempo e da história em relação à Heidegger e à Merleau-Ponty isso não ocorre

porque a autora necessariamente negue a idéia de que o tempo existe devido à

presença humana, mas, sobretudo pelo fato de tentar compreender, para além da

percepção original e singular do tempo da consciência, como os homens instituem

o tempo no mundo. Nesse sentido, Arendt desvela como a ação humana, surgida

da pluralidade, tem a capacidade de instituir o tempo. Ao infringir um início ou

um re-ínicio os homens concretizam, não para si, mas para eles mesmos, a noção

de início e fim. Não apenas o homem se abre na temporalidade. O próprio mundo

tem um tempo próprio e objetivo, que não é o tempo natural, mas o tempo

instaurado pelos homens.

Para visualizarmos a importância da noção arendtiana para a teoria da

história contemporânea vale a pena mencionarmos que desde o fim das grandes

narrativas, ou seja, desde que a história deixa de ser concebida como um processo

89 MERLEAU-PONTY, M., Fenomenologia da percepção, pp. 555 e 550. 90 Ibid., p. 551. Sobre Heidegger, ver p. 573.

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que pode ser apreendido na sua totalidade, a historiografia se rendeu aos encantos

da hermenêutica. Pareceu-lhe em geral bastante apropriado entender que escrever

história e fazer história são procedimentos indistinguíveis, pois, tendo em vista a

impossibilidade do historiador de alcançar um ponto de vista absoluto ele estaria

irrelutavelmente preso à sua época, ao seu aparato cultural e teórico, e ainda à sua

própria subjetividade. É certo que a equivalência entre história e escrita da

história, cuja tendência é conceber a história como mera interpretação,

desenvolve-se por rumos distintos e alcança formulações diversas em diferentes

obras. Observemos rapidamente dois exemplos.

No curso Em defesa da sociedade, Foucault avança no desenvolvimento da

sua teoria sobre a “insurreição dos saberes” que pretende alocar historicamente

todo discurso. Traçando uma análise da teoria da soberania, o autor sustenta que,

na saída da Idade Média, com a centralização do estado e o monopólio da guerra,

surge um novo discurso histórico-político que se contrapõe ao discurso filosófico-

jurídico vigente desde os gregos. Este último refere-se às concepções universais e

gerais, enquanto o primeiro sugere a natureza parcial de qualquer discurso.

Contrário a idéia de uma verdade absoluta ou de um sujeito universal, o discurso

histórico-político conta com o pressuposto de que “aquele que fala, aquele que diz

a verdade, que narra a história, aquele que recobra a memória e conjura os

esquecimentos, pois bem, este está forçosamente de um lado ou de outro: ele está

na batalha, ele tem adversários, ele trabalha para uma vitória particular.”91 O novo

discurso guarda em si mesmo a forma da guerra de modo que o saber teria se

tornado uma arma. Se não há a possibilidade de conceber uma teoria neutra, todo

discurso é a defesa de uma perspectiva; o pensamento é ação. Corroborando com

essa idéia, o próprio Foucault, seguindo nitidamente o Nietzsche da Genealogia

da moral, não supõe que seu discurso seja o verdadeiro. 92 Seu texto, que encontra

a origem do discurso histórico-político no período pós-medieval, apresenta-se

como um projeto genealógico, que é ele mesmo um discurso entre outros. “Trata-

se, na verdade, de fazer que intervenham saberes locais, descontínuos,

desqualificados, não-legitimados, contra a instância teórica unitária que pretendia

91 Ibid,. p, 60. 92 A idéia de que fazer história e escrever história são uma única e mesma coisa aparece na

interpretação da história por Marx, donde a história surge inevitavelmente como a história da luta de classes. Arendt observa esse fato e, inclusive, entende que essa idéia dá margem a manipulação da história efetivada pelo totalitarismo. Ver cap. 3.

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filtrá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro,

em nome dos direitos de uma ciência que será possuída por alguns.”93

Hayden White ilustra por outro ângulo a tendência contemporânea de

tomar história e escrita da história como esferas equivalentes. Sua hipótese é de

que a história é sempre uma criação do historiador. O que significa que “não pode

haver história propriamente dita sem o pressuposto de uma meta-história

plenamente desenvolvida, pela qual se possa justificar aquelas estratégias

interpretativas necessárias para a interpretação de um dado segmento do processo

histórico.”94 Para White, existe um certo consenso acerca do caráter interpretativo

da historiografia, o qual se fundamenta nas próprias limitações acerca da

possibilidade de apreensão e representação do passado. O autor sugere que a

historia é sempre “menos e mais que o passado”, White indica que o “registro

histórico é ao mesmo tempo compacto demais e difuso demais”,95 ou seja, por um

lado, não pode abranger a totalidade dos fatos e, por outro, ao se constituir como

representação histórica, compõe-se de inferências, ilações e sínteses que

arregimentam a forma do acontecido. Sua discussão gira em torno da demarcação

das possibilidades narrativas da historiografia.96

Para Arendt, a historiografia concebida como ação, donde se superpõem o

acontecimento e a sua interpretação, levaria a disputa de interpretações a adquirir

uma realidade que ela não tem. Devemos reparar que a autora não nega o caráter

interpretativo da história e, provavelmente, estaria de acordo com a noção de que

“Não vivemos estórias, mesmo que confiramos sentido à nossa vida moldando-a

retrospectivamente.”97 No entanto, sua argumentação visa sublinhar que o fato de

a historiografia ter aspecto interpretativo, por se tratar da elaboração de uma

93 FOUCAULT, M., Em defesa da sociedade, p. 13. Tomando partido do discurso histórico-

político, Foucault critica Hegel, argumentando que sua suposta retomada da história, na verdade é uma “colonização do discurso histórico-político”, pois o pressuposto do filósofo é ainda a teoria do discurso filosófico-jurídico. Ibid., p. 69.

94 WHITE, Hayden, Trópicos do discurso. Ensaios sobre a crítica da cultura, p. 67. 95 Ibid; p. 65. 96 Nesse sentido, o autor menciona a diferença sobre a versão positivista de Hempel e a

perspectiva narrativista, indicando que ambos os casos, trata-se de interpretação da história. White observa que, para Hempel, a história é uma ciência nomológico-dedutiva, como todas as ciências, e para os narrativistas a produção de sentido historiográfica não é explicativa, mas advém da própria narrativa construída pelo olhar retrospectivo do historiador sobre os acontecimentos. As referência de White são: HEMPEL, C., Explanation in science and in history. GALLIE, W. B., Philosophy and historical understanding; MINK, L.O., The autonomy of historical understanding; DANTO, A. Analitical philosophy of history. DRAY, Philosophical analysis and history. Ibid; p. 70-1.

97 Ibid., p, 106.

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história, não indica que o historiador seja o criador da realidade. Como pode

sugerir a argumentação de White, onde “(...) com vistas a criar com eles uma

estória compreensível, o historiador impõe a esses eventos o significado simbólico

de uma estrutura de enredo”.98

Devemos observar que a autora não procura reabilitar a verdade positiva

do fato. Vimos anteriormente que, para Arendt, poesia e historiografia estão do

mesmo lado, constituindo-se como possibilidade de reificar o sentido da ação. Sua

argumentação não quer provar a realidade da historiografia e a ‘invencionisse’ da

ficção, ao contrário, em ambos os casos está mantida a relação com a realidade da

ação. O interessante na posição arendtiana é que detectar o elemento ficcional na

historiografia não significa colocar em questão a realidade do acontecimento. A

proposição acerca da separação entre história real, proveniente da ação, e escrita

da história não pode ser compreendida nos termos da discussão sobre a oposição

ou equivalência entre história e ficção. Tanto o historiador quanto o ficcionista

são autores da história e diferenciam-se dos atores da história.99 Em Arendt, a

conexão entre história real e historiografia existe como um laço interpretativo,

mas não se caracteriza como justaposição. Seu intuito volta-se mais para indicar a

importância da distinção entre as duas esferas e a sua possível ligação em bons

termos, que para determinar quais são as estratégias narrativas às quais o

historiador pode recorrer. Sua preocupação é mostrar que tomar fatos por

interpretações é um equívoco grave, que permite a ‘construção’ de realidades

fictícias como as totalitárias.

A diferença fundamental é que, para White, o historiador cria o sentido,

enquanto em Arendt, ele vislumbra o sentido. Se White pode recair num

relativismo sociológico, ao assumir que as possibilidades de contar uma estória

não são infinitas, mas estão ligadas ao horizonte do historiador e de seu tempo,

donde se avultam “os modos de urdir o enredo, os modos de explicação e os

modos de implicação ideológica”100 e, ao indicar com Mannheim, que não existe

98 Ibid., p. 108. 99 Se a ficção pode construir um personagem que seja o autor da história nunca apreende de

fato a realidade viva da existência do autor. 100 “Assim, a interpretação entra na historiografia pelo menos de três maneiras:

esteticamente (na escolha de uma estratégia narrativa), epistemologicamente (n escolha de um paradigma explicativo) e eticamente (na escolha de uma estratégia pela qual as implicações ideológicas de uma dada representação possam ser deduzidas para a compreensão de problemas sociais do presente).” WHITE, H., loc. cit. p, 89. As opções para a urdidura estética apresenta pelo autor são: romance, comédia, tragédia e sátira. Os modos de explicação são: idiográfico,

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uma “historiografia contemplativa”.101 A alternativa arendtiana sobre a

possibilidade do sentido da história advir dos próprios acontecimentos pode

parecer ultrapassada ou nostálgica. Como o historiador pode detectar a grandeza

dos feitos humanos? Sua proposta não seria a retomada da concepção antiga da

história?

Desde o seu aparecimento na Grécia, o historiador é aquele que diz o que é

– légei ta conta. Sua tarefa é primordialmente ver e contar o que aconteceu, ou

seja, testemunhar acerca da realidade do mundo. Arendt recorre à concepção

grega do historiador como aquele que “salva do esquecimento” para conceder-lhe

responsabilidade pela durabilidade do mundo. Se é na convivência entre pares que

é possível afirmar a presença do mundo, em última instância, isso sugere que a

realidade do mundo é dada aos olhos, que não existe nada por trás do que aparece.

A noção de que o mundo é o que se abre entre os homens significa justamente que

a realidade é confirmada pelo testemunho.

Nosso intuito volta-se para o esforço de retomar a narrativa da história da

história traçada pela autora. Tendo em vista a pergunta acerca da influência da

concepção antiga de história no desenvolvimento de seu próprio conceito de

história.

5.3. História da história

Entendendo que para compreender a concepção da história arendtiana é

necessário remeter à própria história da história traçada pela autora, nos

reservamos a tarefa de considerar separadamente o desenvolvimento da noção de

história apresentado no seu trabalho sobre o “Conceito de história – antigo e

moderno”. Para acompanhar a narrativa sobre o nascimento da escrita da história

na Grécia e seu definhamento até a contemporaneidade, é importante ter em mente

organicista, mecanicista e contextualista. Os modos de implicação ideológica são: anarquista, conservador, radical e liberal.

101 White refere-se ao ensaio O pensamento conservador e à obra Ideologia e utopia. “O sociólogo do conhecimento Karl Mannheim asseverava que as diferentes posições no espectro ideológico das sociedades modernas, com suas divisões de classe - liberal, conservadora, radical e anarquista (ou niilista) – traziam consigo sua própria forma de consciência temporal e social e uma noção particular da extensão com que os processos históricos eram suscetíveis de análise racional ou se opunham a esta.” Ibid,. p. 87.

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o traçado arendtiano da história do Ocidente que analisamos no primeiro capítulo

desse trabalho, pois, como supomos, a autora concebe de modo semelhante o

esquecimento do histórico – escrita da história – e do político.

Podemos notar que, apesar de comumente se supor que a modernidade e a

concepção moderna de história deram cabo da versão antiga da história, na qual

“o passado orientava o futuro”, esse não é o pressuposto arendtiano.102 Sua leitura

aponta para a ruptura da tradição apenas na contemporaneidade. Isso não significa

que a autora não estabeleça uma diferenciação entre a concepção antiga da

história e a moderna. Mas sua distinção, certamente, não é a tradicional. A

narrativa da história do Ocidente traçada por Arendt, a qual se distingue por

contar a história da tradição do pensamento político e do esquecimento da origem

do político no qual se funda, tem como um de seus pilares a concepção de que a

tradição que se inicia com Platão, e se estabelece definitivamente com o fim da

pólis na Grécia, encontrou a ruptura de sua continuidade com o advento dos

totalitarismos. Na ruptura da tradição, a autora vislumbra a possibilidade de

reencontrar o passado sem o “fio condutor” que determinava o encadeamento

entre passado e futuro e que, como sabemos, pelo menos, desde de Cícero, está

definido prontamente no adágio da “História mestra da Vida”.

O que precisamos sublinhar é que a separação arendtiana entre a noção de

história antiga e moderna segue o pressuposto que norteia sua narrativa da história

do florescimento do político na pólis e de seu posterior esquecimento, ou seja,

conta com a ruptura da tradição apenas na contemporaneidade, e não na

modernidade. Não sem razão suas referências à Tocqueville e seu famoso

presságio que revela que “quando o passado não orienta mais o futuro o homem

vagueia na escuridão”, aparece quando a autora se refere à ruptura instaurada

pelos totalitarismos.103 A História concebida pelos modernos como um processo

102 Essa concepção usual sobre a passagem da história mestra da vida para a história em sua

versão moderna, concebida como processo autônomo dotado de sentido, encontramos claramente em Koselleck, no seu “Futuro passado”, especialmente no capítulo “Historia Magistra Vitae”. A noção de história, que se convencionou chamar de “História Mestra da Vida”, cujo exercício visava conceber a história como material exemplar para as gerações futuras, funda-se na concepção cíclica do tempo da Antigüidade. Entendia-se que o passado poderia orientar o futuro porque havia semelhança e continuidade entre as épocas. A natureza humana era a mesma e garantia a equivalência das situações. Ver JASMIN, M, Alexis de Tocqueville. A historiografia como ciência da política.

103 Nesse sentido a autora evoca o poema de René Char “Notre héritage n’est precede d’aucun testament - “Nossa herança nos foi deixada sem testamento algum” In: ARENDT, H. Entre o passado e o futuro, p. 28. Ao comentar a perda do tesouro dos homens da resistência

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autônomo dotado de sentido não vigora na leitura arendtiana da historiografia

como a concretização da libertação da tradição. Nossa suposição é que Arendt

observa na constituição da História como processo o erigimento de uma nova

versão do absoluto que determina a ação. Como vimos anteriormente, reside nesse

ponto toda a sua crítica às filosofias da história. O fato é que se a tradição do

pensamento político toma forma com a instituição da supremacia da teoria que

pode indicar a ação o que deve ser feito, a História moderna não seria uma

valorização da ação e dos assuntos humanos concretos, como queriam Hegel e

Marx, ao contrário, para Arendt, a História vislumbrada nos moldes do processo

autônomo caminha para destituir qualquer consideração da liberdade humana – a

possibilidade dos homens de agir por si mesmos em total contingência.

Apesar de a autora não nomear uma subversão do esquecimento da

história, fica claro que o conceito moderno de história é inferior ao conceito

antigo. De todo modo, importa-nos perceber que o lugar da história só pode ser

apreendido quando pensado em relação ao político. Acreditamos que a narrativa

do destino comum do político e do histórico torna nítida a suposição que viemos

defendendo até então. De que não há no pensamento arendtiano uma oposição

entre política e história, mas, ao contrário, justamente, a noção de que as origens

do político e do histórico estão referidas entre si e podem ser encontradas na

Grécia clássica.

Mostrar como a história da história está ligada à narrativa da história do

ocidente como esquecimento do político requer a consideração do

desenvolvimento do conceito de história. Entendemos que há na delimitação

conceitual arendtiana sobre a história – no estudo sobre o conceito antigo e

moderno - uma história acerca da noção de história em diferentes épocas da

história ocidental. Assim como entrevimos uma narrativa de Arendt sobre o

esquecimento do político, destacaremos sua abordagem da história da história,

explicitando as diferenças entre a noção antiga e moderna de história, que em

muito se assemelham às distinções do político nos respectivos períodos, de modo

francesa, que era a própria experiência da liberdade que existiu entre eles, Arendt reafirma a necessidade da ação ser salvaguardada pela história. “o ‘acabamento’ que de fato todo acontecimento vivido precisa ter nas mentes dos que depois deverão contar a história e transmitir seu significado deles se esquivou, e sem este acabamento pensado após o ato e sem a articulação realizada pela memória, simplesmente não sobrou nenhuma história que pudesse ser contada.” Ibid., p. 32. Para Arendt, a tradição fazia a transposição entre o passado e o futuro. Sua ruptura, que abre a possibilidade para a autonomia da ação, também insurge como uma perda de sentido.

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a indicar como a autora, na verdade, conta uma história sobre o sentido do

histórico. Considerando um quadro geral, podemos apontar pelo menos a

referência a cinco conjunturas distintas entre si, donde figuram a Grécia clássica, a

romana, a cristã, a moderna e a contemporânea. Como a opção da autora é focar

sua atenção na distinção entre o conceito antigo e moderno de história e examiná-

lo através de tópicos temáticos, não é possível traçar com tanta clareza um quadro

cronológico como o que aqui estamos tentando fazer para acompanhar sua

narrativa. Não obstante, acreditamos que essa elaboração deixa ver como se

constitui sua própria noção de história, que se concilia com sua teoria do político.

O mais importante nessa sucessão cronológica é perceber que na história da

história surge a mesma temática do declínio. Arendt não chega a falar

explicitamente em decadência, mas fica evidente que o conceito moderno de

história, que implica a “monstruosidade dessa transformação”, está ligado à perda

de mundo especificamente moderna, e aparece também como um definhamento da

história, quando comparado ao seu lugar grego. O surgimento do conceito de

processo histórico autônomo, dotado de sentido próprio, que deixa de se referir às

ações humanas em sua singularidade para encontrar as forças ocultas que movem

a história, aparece como um empobrecimento em relação à concepção antiga da

história que garante a permanência da grandeza humana na narrativa de suas

ações.

A autora evoca o aparecimento da escrita da história na Grécia, onde surge

como uma espécie de atividade “complementar” à ação, pois é ela que não

permite que sua grandeza seja esquecida e, ao mesmo tempo, garante-lhe um

sentido que não pode ser concedido pelos atores. Desde os romanos, quando a

história assume claramente a função de orientar a ação, tornando-se “história

mestra da vida”; mas, sobretudo, na antigüidade tardia, onde Arendt visualiza que

a história deixa de ser a escrita sobre a ação e passa a ser um processo de ascensão

e decadência semelhante aos processos biológicos, a historiografia demonstra seu

declínio.

Retomaremos essa história, procurando analisar os principais aspectos que,

segundo Arendt, marcam a concepção de história das diferentes épocas,

especialmente, as mais bem delimitadas na sua leitura; a antiga e a moderna. Tal

exame tem em vista, não apenas compreender as divergências entre o conceito

antigo e moderno de história, mas, principalmente, entender o que caracteriza o

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histórico para Arendt. Nossa ênfase sobre o período contemporâneo não tem outra

razão senão visualizar o diagnóstico da autora acerca do histórico em nossa

época.104 Seria possível imaginar que, após a derrocada das filosofias da história e

da desmontagem da metafísica a história redescobrisse seu status antigo? Qual o

significado da ruptura da tradição para a historiografia?

Para termos uma idéia geral do aparecimento do histórico e da mudança de

sentido do conceito de história desde a Antigüidade tardia, o que configura, como

supomos, uma espécie de ‘esquecimento’ do histórico; devemos ter em vista o

amplo panorama do desenvolvimento histórico da noção de história. Se o seu

despontar pode ser visualizado na Atenas clássica, o sentido da história se

modifica com os romanos e os cristãos, e transforma-se na versão moderna e

contemporânea. Traçaremos não mais que um quadro geral, examinando o

significado e as implicações de compreender a história da história através da

variação histórica de seu sentido.

Comecemos pela remissão ao contexto antigo, mais explicitamente à

situação do surgimento da história na Grécia clássica. Tal como outrora indicava o

florescimento do político na pólis, Arendt também não deixa de louvar a

concepção grega de história. Remete ao seu nascimento com Herótodo, mas não

deixa de evocar sua origem metafórica em Homero. Ao encontrar o paradigma da

história e também da poesia na mesma cena da narrativa da estória de Ulisses na

corte dos feácios, Arendt reconhece que está em jogo aí a idéia de catarse que

seria tomada para a tragédia grega e a noção de reconciliação.105O que devemos

sublinhar é que a escrita da história que surge na Grécia assume uma espécie de

lugar complementar à política. Ou seja, destacar que é mediante à fugacidade e à

fragilidade da ação que se interpõe o histórico como a possibilidade de “salvar do

esquecimento”.

104 “Histórico” aqui está se referindo à escrita da história, ou como alguns preferem

denominar, à historiografia. 105 Quando fala do nascimento da história, Arendt está falando da escrita da história.“A

História como uma categoria de existência humana é, obviamente, mais antiga que a palavra escrita, mais antiga que Heródoto, mais antiga mesmo que Homero” ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, p. 74. É preciso lembrar também que o início da história como escrita da história ao qual alude não se trata propriamente de um início histórico. Nesse sentido, o paradigma vislumbrado por ela é uma imagem poética. De todo modo, é comum tomar o aparecimento da historiografia na Grécia com Heródoto, designado por Cícero como pai da história.

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A escrita da história surge não como uma oposição à ação, mas como uma

espécie de “acabamento” que preenche pelo menos algumas de suas lacunas.106 É

na história que a ação ganha durabilidade e sentido. A cena paradigmática de

Ulisses revela justamente a possibilidade do herói da história ser ao mesmo tempo

aquele que houve sua história e compreende o seu significado. “O motivo humano

mais profundo para a História e a Poesia surge aqui em pureza ímpar: visto que

ouvinte, ator e sofredor são a mesma pessoa (...) Isso significa que foi possível

para o ator vislumbrar o sentido da ação. Na narrativa da estória, o herói enxerga

seu próprio “quem” que se revela na ação, mas que durante seu desenrolar está

oculto aos seus olhos.”107

Nessa retomada do nascimento do histórico, quando concebe o conceito

antigo de história, Arendt deixa ver quase completamente suas próprias

considerações teóricas acerca da história. As indicações sobre a caracterização da

história e da tarefa do historiador surgem mais claramente como o conceito antigo

de história. Decerto, muitas vezes, temos a impressão de que a autora se refere à

história como se falasse do conceito antigo de história, e vice-versa, quando trata

do conceito antigo parece indicar “o” lugar da história, tal como sua menção ao

político carrega consigo a alusão à experiência do político na pólis. A sensação de

que há uma equivalência entre a posição arendtiana e sua interpretação dos gregos

é o que sustenta as hipóteses que apontam o aspecto nostálgico de seu

pensamento. A análise do conceito do histórico também pode suscitar essa

suposição. Tal como o político, o histórico, como escrita da história, é

contemporâneo dos gregos. Do mesmo modo, pode-se imaginar que a constatação

desse surgimento “fixa” um lugar do histórico, diante do qual as alterações

sofridas em outras épocas indicam declínio do sentido original. Como se as

concepções cristã e moderna da história figurassem como decadência do histórico,

cuja culminação surge na versão totalitária da história que, para a autora, subverte

completamente a noção de história, retirando-lhe não apenas a tarefa de atribuição

106 O termo “acabamento”, a autora utiliza para falar da necessidade da ação, que é fugaz

por excelência, ser salvaguardada do esquecimento. 107 O que a história torna visível e reifica no fim da história é a identidade do ator que só

pode ser entrevista pelos seus pares. Arendt sintetiza essa concepção do “quem” na menção ao daimon grego, que uma pessoa carrega consigo por toda a vida sem poder identificar. Se a polis pode guardar a continuidade da memória pelo testemunho, a história pode prover a durabilidade do “quem” pela narrativa.

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de sentido e reconciliação, mas inferindo a justaposição entre ação e história –

entre a história real e a escrita da história.

Esse ‘esquecimento’ do histórico que, como supomos, caminha no mesmo

passo do esquecimento do político, começa, principalmente, na Antigüidade tardia

quando a história deixa de se constituir como uma série de histórias que narram e

compreendem a ação e passa a caracterizar-se como um processo linear com

início e fim. Certo é que já na perspectiva romana da história a autora constata

uma variação da concepção grega. Arendt sugere que no caso da história romana

os eventos servem de exemplos para orientar a ação, como se fossem

padronizados, enquanto, na situação grega, o caráter exemplar dos eventos

históricos está mais ligado à tarefa de despertar a grandeza, mas não de dizer o

que deve ser feito.108A expressão da autora é de que na historiografia grega, os

exemplos podem servir como uma espécie de ‘estalão’, enquanto na romana trata-

se da condução da ação.

O que devemos observar é que a remissão ao conceito antigo comporta a

separação entre gregos e romanos e, ao mesmo tempo, supõe a semelhança entre

ambos. Arendt não nega que tanto na noção grega quanto na romana está em

questão a ‘lição de cada evento’; sua leitura enfatiza menos a repetição da história

e a temática da natureza humana, e mais a grandeza do evento em sua

particularidade. Assim, considerando a diferença fundamental no que se refere à

orientação da ação, acreditamos que a autora adota o ‘conceito antigo’ para gregos

e romanos por entender que, nos dois casos, a história é a história do particular –

dos feitos humanos provenientes da ação -, em oposição, à concepção moderna,

que privilegia o processo em detrimento do evento. Para Arendt, o que marca a

perspectiva antiga da história é o fato do acontecimento ter sentido por si mesmo e

não precisar se encaixar numa cadeia causal para adquirir significado.

O que é muito mais relevante é que as historiografias grega e romana, por mais que difiram uma da outra, dão ambas por assente que o significado ou, como diriam os romanos, a lição de cada evento, feito ou ocorrência revela-se em e por si mesma (...) causalidade e contexto eram vistos sob a luz fornecida pelo próprio evento, iluminando um segmento específico dos problemas humanos; não eram considerados como possuidores de uma existência independente.109

108 ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, p. 99. 109 Ibid., p. 96.

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Na preocupação em contrapor o conceito antigo e moderno de história, a

autora não aprofunda seu exame acerca da distinção da noção de história grega e

romana. A referência a essa diferenciação aparece na tentativa de desvencilhar

Agostinho da versão moderna da história. Arendt argumenta que, em matéria de

história secular, Agostinho pensa como os romanos, isto é, baseia-se no

pressuposto da história exemplar, segundo o qual a história “permanece um

repositório de exemplos, e a localização do evento no tempo, dentro do curso

secular da história, continua sem importância (...) nenhuma verdade

fundamentalmente nova será jamais novamente revelada por tais eventos

mundanos.”110 Sem negar que, ao conceber o aparecimento de Cristo como ponto

de inflexão, Agostinho supõe a singularidade do evento, Arendt acredita que o

caráter único do nascimento do Messias não indica a possibilidade de vislumbrar

uma história baseada na novidade. O milagre cristão é o único acontecimento

irrepetível da história. O milagre se refere ao plano extraterreno e não ao mundo

humano.

Na passagem pela temática da história em Agostinho, a autora aponta a

diferença não apenas entre a historiografia grega e romana, supondo que a última,

funda-se no pressuposto da orientação da ação, como também sugere a

especificidade da perspectiva cristã da história. Qual seja, a historiografia cristã

tem a preocupação com o extra-mundano. Seu foco é narrar a história milagrosa.

Para Arendt, esse dado é fundamental, pois ao conceber o nascimento da

historiografia na Grécia, indica que seu desígnio está associado à ação, isto é,

trata-se da tentativa de salvaguardar os feitos humanos e dotar-lhes de sentido. A

complementaridade da ação sugere que a historiografia é uma atividade que,

embora não deixe de ser intelectual, está extremamente próxima dos assuntos

humanos. Assim, considerando que a historiografia cristã interessa-se menos pelo

que se passa entre os homens e mais pelo que transcende o mundano, a autora

nota aí o decaimento do histórico. Fato que já se anuncia, de certo modo, desde a

leitura romana da historiografia, que privilegia a narrativa histórica como forma

de orientação. Há ainda outro ponto que se mostra nessa retomada de Agostinho.

Para diferenciá-lo dos modernos, a autora sugere que a novidade presente em sua

concepção de história é a idéia cristã do milagre, e não a noção moderna que

110 Ibid., p. 99.

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concebe o próprio processo histórico como uma continuidade sustentada pela

irrepetibilidade dos fatos.

O que os intérpretes modernos tendem a esquecer é que Agostinho reclamava essa singularidade que soa tão familiar a nossos ouvidos, somente para esse evento – o evento supremo na história humana, quando a eternidade se quebrou no decurso da mortalidade terrena; ele jamais pretendeu essa unicidade, como o fazemos, para eventos seculares ordinários. (...) Para nós, por outro lado, a história assenta-se sobre o pressuposto de que o processo, em sua secularidade mesma, nos conta uma estória, com direito próprio e de que, estritamente falando, repetições não podem ocorrer.111

Para além da discussão sobre a existência de uma filosofia da história

cristã, interessa-nos destacar que, ao evocar, a questão da ‘modernidade’ de

Agostinho, Arendt parece contar com a clássica divisão entre a historiografia

antiga e moderna, donde esta última surge como um processo infinito, linear e

irrepetível. O problema que se apresenta é o seguinte: se a autora supõe que a

novidade histórica no âmbito secular está ligada à noção moderna da história,

segundo a qual a história é um processo de fatos inéditos, como podemos entender

sua argumentação sobre a singularidade do evento na historiografia antiga, a rigor,

na historiografia grega?

Se podemos compreender que existe a postulação da separação entre as

concepções da história grega, romana, cristã e moderna, resta entender como, ao

mencionar que Agostinho concebe a história secular como exemplar, Arendt

diferencia antigos e modernos não apenas pela separação entre primazia do

evento, de um lado; e ênfase no processo, de outro; mas indica que, para nós,

modernos, a história não existe sem a possibilidade da novidade, dando a entender

que a novidade é especificamente moderna. A dúvida certamente recai também

sobre a possibilidade de conciliar essa diferenciação entre antigos e modernos

com a sua interpretação da ação, estabelecida n’ A condição humana como

competência para iniciar a novidade no mundo. A concepção antiga da história

não deveria diante dessa definição da ação estar intrinsecamente ligada à noção de

novidade? Afinal, em que Arendt se aproxima e se afasta da perspectiva corrente,

segundo a qual a história até a modernidade é basicamente a experiência da

111 Ibid., pp. 98 e 100. Agostinho e a noção cristã da história também se diferem do

conceito moderno porque no seu caso contam com um mundo com início e fim, enquanto, na versão moderna a história surge como um processo infinito.

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“história mestra da vida”, quando tal noção é substituída pela idéia de que a

história é um processo autônomo dotado de sentido e seus eventos são

irrepetíveis?112

Para responder a essas perguntas é preciso esclarecer em que consiste a

singularidade do evento que perpassa a noção de historiografia antiga, tal como

avançar na narrativa do declínio do histórico que alcança a contemporaneidade.

Na análise da historiografia antiga e de seu significado, podemos perceber o que

sustenta para Arendt a valorização do extraordinário em relação ao comum e

cotidiano. Comentamos tal divisão ainda no primeiro capítulo desse trabalho, ao

examinarmos a distinção entre trabalho e ação. A natureza aparece como um ciclo

biológico de eterna repetição, o qual é rompido pelo erigimento do mundo

artificial construído com o trabalho humano e pelo aparecimento das ações e

feitos que os homens iniciam no mundo. No caso antigo, a autora indica que a

história serve para conceder ao homem uma imortalidade especificamente humana

num mundo natural onde tudo é eterno menos o homem, cuja vida individual, e

não a vida natural da espécie, é dotada de início e fim. A imortalidade é alcançada

quando essa vida expõe uma grandeza digna de ser narrada para a posteridade. O

que está em questão na historiografia antiga que pretende ‘salvar do

esquecimento’ é, portanto, a possibilidade de surgir uma durabilidade

especificamente humana, concretizada pelos homens.

Acreditamos que, para entender essa clivagem arendtiana entre o conceito

antigo e moderno, devemos mostrar como ela se apóia menos na ênfase da

modernidade como arauta da novidade e mais na suposição de que a versão

moderna da história surge como um processo, que apesar de infinito e irrepetível,

se mostra mais como uma construção teórica que como uma consideração dos

assuntos humanos.113 Seguindo sua proposta de sublinhar a relação entre história e

natureza, tanto na versão antiga, quanto na moderna, Arendt destaca que na

Antigüidade, o homem era o único ser mortal diante de um universo eterno, ou

seja, era o único que tinha início e fim bem definidos pela vida individual de cada

pessoa, em oposição à eternidade biológica das outras espécies. Como espécie, o

homem também era eterno, mas, justamente aquilo que lhe diferenciava do 112 KOSELLECK, R., Futuro passado. 113 No capítulo anterior também procuramos, mais especificamente, destacar como a

modernidade subsume a potencialidade da novidade, conjugando os eventos num processo autônomo dotado de sentido.

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universo biológico era o que lhe retirava essa eternidade, qual seja, a sua finitude.

Se lembrarmos que a ação também se distingue a partir dessa distinção do

biológico, vemos como ação e história estão do mesmo lado. Arendt refere-se à

capacidade do homem de ‘rasgar’ o ciclo sempterno da natureza, não através de

produtos, mas pela implantação de feitos legitimamente humanos – eventos

desencadeados pela ação dos homens. É a história, ou a escrita da história, que

salvaguarda os feitos e lhes confere sentido, dando-lhes a possibilidade da

durabilidade e imortalidade. O que significa a possibilidade de encontrar uma

eternidade especificamente humana, a qual não se designa por eternidade porque

justamente não deve tratar-se de uma duração fora do tempo humano.114 Essa

durabilidade propriamente humana é designada como imortalidade. A

complementaridade entre ação e história é o que constitui a possibilidade de

instaurar uma ‘continuidade’ propriamente humana. Devemos perceber que a

‘continuidade’, nesse sentido, só existe porque interpõe uma ruptura num processo

em curso, seja ele o ciclo natural ou o ciclo cotidiano. Nesse sentido, a ênfase no

extraordinário revela não apenas o caráter da ação, mas a sua relação com a

história.

Tais referências ao conceito antigo de história são bastante semelhantes

àquelas que tratamos no tópico designado como ‘considerações teóricas’. O

importante agora é destacar que a valorização do extraordinário que é a ação,

constitui o objeto da escrita da história e fundamenta a designação arendtiana

acerca do conceito antigo de história. A conexão entre ação e história e a ênfase

no evento não permitem que Arendt considere qualquer ligação primordial entre

história e filosofia. Para ela, a história está ligada à particularidade desde o seu

surgimento.115 Nesse sentido, vemos que ela defende como poucos autores a

especificidade da história. Uma história intrinsecamente ligada ao mundo, que não

pode se desconectar completamente dos eventos e feitos, ou seja, da realidade

particular que é o seu tema. Quando se torna filosófica ou sociológica, e enfatiza a

análise geral e teórica em detrimento da experiência concreta, a história perde sua

virtude e autonomia e, inclusive, pode se transformar em outra coisa, como

acontece com as filosofias da história. Oportunamente retomaremos a indagação 114 N’A condição humana, Arendt dedica um tópico especial para a questão da

diferenciação entre eternidade e imortalidade. 115 Arendt não compartilha da visão, defendida, entre outros, por Cochrane, de que a

história surge da filosofia. ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, pp. 69-70, nota 1.

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208

sobre a possibilidade de haver nesse surgimento da história na Grécia a fixação do

lugar da história, o qual estaria indicado pela possibilidade de reconciliação com a

ação e pela capacidade de assegurar a permanência e durabilidade do mundo. A

própria idéia de um declínio do histórico já anuncia essa possibilidade.

Avaliemos o desenvolvimento do conceito de história. Arendt parece

supor que apenas na antigüidade tardia o histórico começa a declinar, quando

passa a ser concebido como uma narrativa de ascensão e queda, semelhante ao

curso biológico. “O movimento histórico começou a ser construído à imagem da

vida biológica.”116 O importante nessa passagem é o aparecimento de uma noção

linear de história que marcará profundamente a transição entre a concepção

antiga, que privilegia os feitos dos homens, ou seja, ainda se volta para a ação, e a

noção moderna em que o processo por si mesmo adquire validade. Visualizamos

nesse período, desde a Antigüidade tardia até a modernidade, o traço comum da

perspectiva linear da história. Afirmada pela concepção cristã, segundo a qual a

história tem um início e um fim determinados.

O declínio narrado por Arendt com a ascensão da versão cristã da história

pode ser designado como o desinteresse pelos assuntos humanos. O problema é

que seu objeto não é mais a ação humana, como na historiografia grega, mas, sim,

o milagre divino – não se trata mais de assegurar a imortalidade, mas de lembrar

para a eternidade. Nesse sentido, o fato de constituir-se como uma religião de

memória (“Fazei isso em memória de mim.”) como destacado por Jacques Le

Goff não torna imediata a conexão com a história.117 Ocorre que a lembrança dos

fatos e feitos na história cristã não são exatamente façanhas humanas. A história,

nesse caso, não teria relação com a possibilidade da imortalidade, mas seria uma

versão da eternidade. Arendt sublinha a passagem bíblica que sugere a separação

entre o mundano e o divino para mostrar a renúncia aos assuntos humanos.

Devemos notar que é esse desapego pelo mundo dos homens que caracteriza o

afastamento do histórico.

Decerto que, apesar de refutar a consideração de Agostinho como versão

moderna da história e questionar a relação da perspectiva cristã com a moderna, a

autora não descarta que, em ambos os casos, há a rejeição da ação, pois a História,

entendida no sentido moderno como processo autônomo aparece ainda como uma

116 Ibid., p.72. 117 LE GOFF, J., História e memória.

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pseudo-divindade, que também desconsidera o agir humano em prol da

valorização de um sentido superior e eterno. Mas isso não significa que defenda

que a versão cristã possa ser identificada como uma filosofia da história. É

importante notar que, para Arendt, o conceito moderno de história, diferentemente

da concepção cristã, que conta com a suposição de uma vida eterna, é baseado na

secularização da história. Sem considerar esse aspecto não seria possível entender

como o conceito moderno surge com a noção de que a história é um processo

infinito, sem início e fim definidos. O fato é que a transformação do sentido da

história parece mais ser uma perda de sentido – já que no mundo grego a história

tinha a tarefa fundamental de deixar o homem em casa nessa terra. Com o

cristianismo a história serve para mostrar que essa terra é apenas uma passagem

para a vida eterna; o mundo não é sua casa. Nos termos de Arendt, trata-se de

uma subjugação dos negócios humanos. Assim, a mesma declinação do político

surge na decadência do histórico e, em ambos os casos, o declínio é uma espécie

de esquecimento dos assuntos humanos; uma desconsideração de sua perspectiva

finita em prol da supremacia da teoria ou da religião. A conexão entre ação e

história revela que na perspectiva arendtiana a história só tem sentido num mundo

finito, pois é eminentemente humana e precisa ser concebida dessa forma.

Lembremos que entre o fim da proeminência do cristianismo e o início da

época moderna, quando a História ainda não havia tomado o lugar do absoluto

religioso, a autora vislumbra o florescimento das filosofias políticas. “E de fato,

no início da época moderna tudo apontava para uma elevação da ação e da vida

política, e os séculos XVI e XVII tão ricos de novas filosofias políticas, eram

ainda inconscientes de qualquer ênfase especial na História enquanto tal.”118 A

semelhança entre a situação de admissão da mortalidade na Antigüidade e na

época do renascimento que por essa razão se identificava mais com os antigos que

com o tempo medieval do cristianismo, onde a vida é imortal dentro de um mundo

mortal, é o que permite, segundo a autora, a possibilidade do nascimento de uma

ciência política. “Politicamente falando, dentro do próprio reino secular, a

secularização não significava senão que os homens haviam de novo se tornado

mortais.”119 Se levássemos adiante a proposição arendtiana, poderíamos retomar

nesse mesmo sentido o “reaparecimento” da historiografia com Maquiavel e

118 ARENDT, H., Entre o passado e o futuro, 110. 119 Ibid., p. 110.

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Guicciardinni. Tal ressurgimento da produção historiográfica corrobora com a sua

leitura acerca do interesse pelos assuntos humanos e reafirma a relação

complementar entre ação e história. Onde há ação, ou seja, quando o homem é

livre para erigir feitos especificamente humanos, surge com esses feitos uma

história a ser narrada e, portanto, a história escrita.

Importante para seguirmos o fio da narrativa do declínio da história é

perceber como a versão moderna surge como uma nova relação entre o homem

mortal e o processo infinito, qual seja, entre finitude e infinitude. A autora entende

que tanto a concepção antiga, quanto a moderna estão diretamente relacionadas às

noções de natureza de suas épocas. “(...) os mais recentes progressos nas Ciências

Naturais. Eles nos reconduziram à origem comum da natureza e da história na

época moderna e demonstraram que seu denominador comum jaz de fato no

conceito de processo – tanto quanto o denominador comum à natureza e à História

na Antigüidade se assentava no conceito de imortalidade.”120 A comunhão entre o

conceito antigo e o moderno, no que se refere à relação entre história e natureza,

no entanto, revela para Arendt, o grande engano da modernidade que pretende

sustentar a “imortalidade” e a infinitude da humanidade no desenvolvimento

‘eterno’ da espécie. Tão logo fala da semelhança da noção de imortalidade antiga

e moderna, a autora distingue prontamente seus significados.

Arendt aponta a “realização” do conceito moderno de história, que traz

para o plano terreno a noção de infinitude do processo, produzindo uma noção de

imortalidade humana. A vantagem da noção moderna é não conceber fim e a

desvantagem é garantir a imortalidade pelo processo fluido e não na estrutura fixa

como se fazia na Antigüidade. No entanto, é justamente essa noção de

imortalidade que será alvo de sua crítica. Ao observar a grandeza que a

modernidade concede ao próprio processo, a autora indica que tal noção se refere

“à mera seqüência temporal”.121 Se a história moderna aparece como um processo

infinito isso não é nada diferente do processo natural da espécie. Da eternidade

biológica. “Foi portanto no decurso da busca de um âmbito estritamente secular

de duradoura permanência que a época moderna descobriu a imortalidade

potencial da espécie humana.” 122

120 Ibid., p. 93. 121 Ibid., p. 97 122 Ibid., p.

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Notamos que a orientação da autora é divisar a relação entre história e

natureza tanto na Antigüidade como na modernidade, mostrando que, para os

antigos, a história é a possibilidade de conquistar pelos eventos grandiosos a

imortalidade terrena em meio a uma natureza eterna; enquanto para os modernos,

a história é um processo infinito tal como o processo de natureza. Se há uma

conexão entre história e natureza em ambos os casos, parece que na Antigüidade

ainda há uma contraposição entre homem e natureza, que pretende ser subsumida

na modernidade. Devemos perceber como é considerável nessa distinção a noção

de tempo humano e tempo natural. A questão da natureza não aparece no

argumento arendtiano seguida de qualquer discussão sobre o caráter de natureza.

Pode-se entender que essa não é a problemática da autora. O “tempo natural”

aparece praticamente como uma ausência de tempo, dado o aspecto eterno do

ciclo natural. Em oposição ao tempo natural surge o tempo humano que, marcado

pela própria finitude, caracteriza-se pela mutabilidade. O homem só está preso à

eternidade do tempo biológico enquanto ser da espécie. Mas, considerando que a

humanidade do homem se distingue, em Arendt, pela possibilidade do homem se

diferenciar dos seus iguais, o tempo propriamente humano é aquele onde o

homem interpõe sua diferença. Assim, podemos inferir que o tempo

especificamente humano na concepção de Arendt é o tempo da ação e da história,

supondo, então, que na proposição arendtiana o tempo natural ou o tempo eterno é

uma espécie de não-tempo. A temporalidade constitui-se pela própria interposição

do humano – da ação - sobre o ‘tempo natural’. 123 Nesse caso, a moderna versão

da história, na verdade, deixaria de se constituir como a instituição do tempo para

se tornar um processo atemporal – infinito e eterno. Por essa razão, apesar da

valorização da novidade trazida pela modernidade, os eventos e ações humanas

não são considerados em sua singularidade. Mesmo se caracterizando como um

processo onde repetições são impossíveis, isso não significa necessariamente a

retomada da ação pela história porque não é a ação que “deixa a história atrás de

si”, mas o processo que converte toda ação e todo fato automaticamente em

história. De modo que, o que parece ser uma emancipação do histórico na

modernidade, se constitui mais como uma ‘naturalização’ da história.

123 Lembramos aqui a distinção entre Arendt e Merleau-Ponty abordada anteriormente. Em

Arendt, a interposição do tempo mundano pelo homem se faz pela ação e não pelo pensamento, embora essa atividade também tenha sua temporalidade específica.

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Para além de traçar a temática do tempo na obra arendtiana, cuja

profundidade renderia outro trabalho, nosso intuito ao apontar a relação concebida

pela autora entre história e natureza, é indicar que a conexão entre essas duas

instâncias, que se mostra, na Antigüidade, como uma verdadeira oposição e, na

modernidade, se encaminha mais para uma justaposição, refere-se à relação entre

finitude-infinitude. A leitura de Arendt acerca do desenvolvimento do histórico e,

do político, implica na visualização dessa relação ao longo da história. A partir daí

é que se coloca a questão da conexão entre ação e pensamento. Devemos observar

que tudo o que se refere à finitude evoca os assuntos humanos em sua

especificidade. Reconhecer a finitude é perceber a particularidade da ação. A

infinitude é entrevista pelo princípio de considerar o mundo como se fosse

possível estar fora dele. A autora rejeita a concepção do absoluto, própria da

infinitude, por entender que a finitude é a única perspectiva que os mortais podem

ter.124

No caso do exame da ação e da história, podemos entender porque ambas

as narrativas aparecem como histórias da decadência. Ocorre que, para a autora, a

antigüidade reconhece a finitude humana, por isso, concede enorme importância à

grandeza das ações e à imortalidade alcançada pela história. Mas a importância da

ação perde lugar quando, em meio aos anseios de resolver a perplexidade dos

mortais, ou seja, de escapar de sua finitude, o homem lança mão da concepção do

absoluto, seja pela idéia da verdade do pensamento ou da revelação divina. A

versão moderna da história que se sustenta na concepção da infinitude do

processo, constitui, segundo a interpretação arendtiana, menos uma retomada dos

assuntos humanos e mais uma nova roupagem do absoluto. A suposição de que a

História mesma é autônoma e dotada de sentido já indica que o relevante não são

as ações humanas, mas o sentido que se revela na sua totalidade. A autora faz

questão de enfatizar como a história antiga volta-se para ‘salvar do esquecimento’

grandes feitos humano e, nesse sentido, lida com o particular, ao contrário da

historiografia moderna que, acreditando ser a história um processo autônomo

dotado de sentido, privilegia o geral. “O que o conceito de processo implica é que 124 Nesse sentido, Arendt lembra que “Kant compreendeu que não pode haver nenhuma

verdade absoluta para o homem, pelo menos no sentido teórico. Certamente estaria preparado para sacrificar a verdade à possibilidade da liberdade humana, pois se possuíssemos a verdade, não poderíamos ser livres.” ARENDT, H., Homens em tempos sombrios, p. 32-3 Embora a autora entenda que em Kant ainda há a remissão ao absoluto do imperativo categórico, que “se situa acima dos homens”.

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se dissociaram o concreto e o geral, a coisa ou evento singulares e o significado

universal. O processo, que torna por si só significativo o que quer que porventura

carregue consigo, adquiriu assim um monopólio de universalidade e

significação.”125

A caracterização do conceito moderno é feita justamente pela ênfase na

auto-referencialidade do processo. Note-se que, se a grandeza dos feitos na

Antigüidade aparece como um acontecimento que pode ser facilmente detectado

por todos, e, por isso mesmo se refere ao testemunho e à convivência dos homens,

na modernidade a dificuldade volta-se justamente para a distinção da grandeza.126

Certo é também que a grandeza dos eventos perdem sentido por si mesmas e

passam a estar relacionada ao processo geral da história. Se não é possível

enxergar ou testemunhar a grandeza, isso não faz tanta diferença porque a

particularidade dos eventos perde ‘autoridade’ para a sucessão temporal. A

história deixa de ser uma história especifica para se tornar a História única, dotada

de sentido próprio e autônomo. O problema quanto à determinação da grandeza só

reaparece quando cai por terra a noção de História como processo e torna-se

necessário distinguir o que será tema da historiografia. Tal incapacidade de

solucionar o impasse leva a historiografia a considerar que tudo possivelmente

pode ser tema de uma narrativa histórica. Mas esse já é um problema

contemporâneo, que indica a superação das filosofias da história.

Quanto à versão moderna da história descrita por Arendt, é necessário

considerar ainda que sua argumentação sugere que a tentativa de ‘extinção do eu’

– a qual a autora descreve com Droysen como “objetividade eunuca” -está ligada

à desconfiança moderna sobre a apreensão sensível. 127 “o nascimento da moderna

125 Id., Entre o passado e o futuro, p. 96. 126 Arendt entende que é ao considerar a dificuldade de conhecer a verdade da natureza,

que Vico imagina a possibilidade do contentamento com o conhecimento da história, pois nesse caso os próprios homens a fazem e podem, conseqüentemente, explicá-la. Nesse inicial redirecionamento para a história, a autora observa o equívoco no qual se fundamenta. A idéia de que o homem faz história assim como fabrica um produto. Marx levaria essa concepção ao extremo, imaginando que por fazer história, o homem pode movimentá-la ao seu gosto e predizer o futuro.

127 Para Arendt, a ciência moderna desloca a pergunta do que é para como se deu para o processo. Analogamente, a história deixou de contar a história dos feitos e tornou-se um processo feito pelo homem. ARENDT, H., op. cit., p. 89 Arendt defende que a ciência histórica moderna, em seu anseio de ser considerada uma ciência, acaba buscando referências científicas medievais e aristotélicas, onde vigorava a noção da ‘extinção do eu’. A autora acredita que tal busca pela neutralidade do sujeito foi descartada pelas próprias ciências naturais, que reconhecem o caráter subjetivo das perguntas científicas através das quais o pesquisador se envolve com seu objeto. “O problema da objetividade científica tal como foi colocado no século XIX, devia-se à auto-

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idéia de História não apenas coincidiu como foi poderosamente estimulado pela

dúvida da época moderna acerca da realidade de um mundo exterior dado

‘objetivamente’ à percepção humana como um objeto imutado e imutável.”128A

corrida para munir-se de artefatos ou métodos para alcançar a realidade que está

escondida dos olhos humanos caracteriza a moderna perda de mundo entrevista

por Arendt.

Daí vemos a correlação entre a história do esquecimento do político,

profundamente marcada pela concepção da moderna perda de mundo, que é a

própria perda da realidade sensível, e o desenvolvimento do sentido do histórico

no exame da distinção entre os conceitos de história propostos pela autora. Se

prosseguirmos na analogia com a narrativa arendtiana da história do ocidente,

podemos inferir que essa valorização do processo em sua autonomia indica a

mesma suposição do declínio do político para a decadência do histórico. A

sugestão de considerar a história a partir da imparcialidade em vez de tentar a

imposição de uma neutralidade absoluta, senão impossível de ser alcançada,

também suplantada pela idéia segundo a qual o homem está sempre envolvido

com uma pré-compreensão do mundo, endossa ainda mais a possibilidade de

tratar-se de uma narrativa da decadência do histórico, pois a imparcialidade

concebida por Arendt ainda é para ela uma solução grega. Devemos notar que a

alternativa arendtiana para o impasse da objetividade não é apontar a existência de

uma subjetividade ou de um aparato cultural irrevogável. Se, por um lado, há a

idéia moderna de que o homem precisa abster-se de si mesmo, alcançar uma

objetividade para conhecer o que “de fato aconteceu”, como se fosse possível

encontrar um lugar fora da história para dizer a verdade sobre ela, por outro lado,

a versão historiográfica contemporânea se encaminha para estabelecer a

contraposição dessa possibilidade, sustentando que, ao contrário da objetividade,

o sujeito que pretende avaliar a história está irremediavelmente arraigado nela, de

modo que sua narrativa é sempre uma interpretação. É contra essas duas

possibilidades que a autora supõe a retomada da perspectiva antiga da

imparcialidade, que teria sido desenvolvida por Heródoto quando conseguiu

incompreensão histórica e à confusão filosófica em tão larga medida que se tornou difícil reconhecer o verdadeiro problema em jogo, o problema da imparcialidade, de fato decisivo não somente para a ‘Ciência’ da História como para toda Historiografia oriunda da poesia e do contar histórias.” Ibid., p. 81.

128 Ibid., p. 83.

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contemplar na sua narrativa diferentes pontos de vista – como o de gregos e

troianos.

Para concluir acerca do significado do declínio moderno diante da versão

antiga da história, precisamos compreender a passagem do moderno ao

contemporâneo. Só podemos fazê-lo remarcando que, se a ênfase no processo

acena para a possibilidade de retomar os assuntos humanos, a leitura arendtiana é

pessimista quanto à tentativa moderna de conciliar política e história. Segundo

ela, esse anseio, que encontra sua versão mais bem acabada na obra de Hegel, se

constitui ainda como uma valorização da teoria em detrimento da ação porque os

negócios humanos não são considerados em sua particularidade. A grandeza do

evento e seu caráter de novidade subsumem ao sentido que subjaz ao processo e

que pode ser entrevisto quando se avalia a totalidade da história. “Durante longo

tempo, pareceu que essas inadequações e perplexidades no seio da vita activa

poderiam ser resolvidas ignorando as peculiaridades da ação e insistindo na

‘significatividade’ do processo da história em sua totalidade, que parecia dar à

esfera política aquela dignidade e redenção final da ‘melancólica casualidade’ tão

obviamente exigidas.”129 A preponderância do geral sobre o particular que marca

o conceito moderno de história revela que a ação continua a não ter sentido em si

mesma. Desse modo, notamos que a passagem para a moderna versão da história

e a conseqüente arregimentação das filosofias da história que, supostamente,

apontam a proeminência da história em detrimento da política, não caracterizam,

para Arendt, apenas o decaimento do político, mas também o próprio declínio do

histórico. Não podemos imaginar que o erigimento do histórico como processo

único indique a rejeição de Arendt à história, ao contrário, trata-se do surgimento

de novo sentido de história que se interpõe para o declínio do sentido antigo da

história.

Avancemos para o encontro do quadro contemporâneo da história. Ao

concebê-lo, devemos ter em vista que a referência ao “contemporâneo” se faz a

partir distinção arendtiana entre a “época moderna” e o “mundo moderno”. Tal

diferenciação já está delimitada n’A condição humana, como assinalamos ao

examinar sua narrativa sobre a história do ocidente, e indica o contexto que se

delineia a partir das fissões atômicas, tomando forma no pós-guerra. Usamos a

129 Ibid., p. 120-1.

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expressão contemporâneo com o intuito de melhor situar essa noção de mundo

moderno. Nesse sentido, consideramos que a contemporaneidade de Arendt ainda

é, de certo modo, a nossa. No texto sobre “O Conceito de História” essa

contemporaneidade é caracterizada pela indiferença quanto à questão da

imortalidade. “Hoje, é difícil entendermos que essa situação de mortalidade absoluta pudesse ser insuportável aos homens. Contudo, voltando o olhar para o desenvolvimento da época moderna até o início de nossa própria era, o mundo moderno, vemos que se passaram séculos, antes que nos acostumássemos à noção de mortalidade absoluta, a ponto de não mais nos incomodar a sua idéia e de não mais ser significativo o antigo dilema entre uma vida imortal individual em um mundo mortal e uma vida mortal em um mundo imortal.”130

Na situação contemporânea, a interposição que fundamentava a relação

entre história e natureza se transforma radicalmente. O que constituía a tarefa da

história na antigüidade e na modernidade, qual seja, garantir a durabilidade do

mundo, perdeu a própria razão de ser. Se, na Antigüidade, a história sustenta-se

pela conexão entre o homem mortal e o mundo imortal, e na modernidade, surge

como um processo que garante a infinitude do homem; no contexto atual, em que

tanto o homem quanto o mundo tornaram-se mortais, seu lugar encontra-se

esvaziado. Se a chave para a concepção da história foi a concepção de natureza, o

que a perda de sentido da imortalidade pode significar? O fim da história menos

no sentido hegeliano e mais no sentido de uma falta de necessidade da história?

Precisamos destacar que, no contemporâneo, natureza e história ainda

estão intimamente ligadas. O conceito que perpassa ambas as esferas é o de ação.

Arendt indica a passagem para o “mundo moderno” destacando a produção das

fissões atômicas. Sua sugestão é de que, quando começa a iniciar processos

‘naturais’ que não existem na natureza, de certo modo recriando a natureza, o

homem levou a capacidade de iniciar, a princípio uma competência política, para

a esfera da natureza. Assim, ao desencadear processos que ele mesmo não

controla, iluminou a possibilidade de ‘agir natureza’. No âmbito do histórico, a

autora também encontra o desígnio contemporâneo de ‘agir’ com a referência à

130 Ibid., p.109. No mesmo sentido, lemos ainda que “A antiga confiança na maior

permanência do mundo que na de indivíduos humanos, e nas estruturas políticas como uma garantia de sobrevivência terrena depois da morte, não retornou, desvanecendo-se dessa forma antiga oposição de uma vida mortal a um mundo imortal. Agora tanto a vida quanto o mundo tornaram-se perecíveis, mortais, fúteis.” Idem.

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criação da realidade fictícia do totalitarismo. Desde que deixou de ser uma história

sobre a ação, para se transformar num processo, já estava em curso a

transformação do sentido da história, mas apenas com a ruptura totalitária, se

afigurou a capacidade de ‘agir’ história, ou seja, de pôr em curso uma realidade

que originalmente não existia, a história se separou completamente do mundo

dado para ‘criar’ um outro mundo – uma realidade inventada.

Esses processos, após como que devorarem a sólida objetividade do dado, terminaram por destituir de significado o único processo geral que originalmente lhes fora concebido com o fito de lhes dar significado, e para agir, por assim dizer, como o espaço-tempo terreno no qual todos eles poderiam fluir, libertando-se, assim, de seus conflitos e exclusividades mútuos. Foi o que aconteceu ao nosso conceito de história, como foi o que sucedeu ao nosso conceito de natureza. Na situação de radical alienação do mundo, nem a história nem a natureza são em absoluto concebíveis. Essa dupla perda do mundo – a perda da natureza e da obra humana no senso mais lato, que incluiria toda a história – deixou atrás de si uma sociedade de homens que, sem mundo comum que a um só tempo os relacione e separe ou vivem em uma separação desesperadamente solitária ou são comprimidos em uma massa.131

Mediante sua argumentação baseada na relação entre natureza e história,

pode-se entrever que o destino comum da perda de sentido evidencia os dois lados

de uma mesma moeda. De qualquer modo, nos importa que o fim da história

assim descrito como perda de sentido da história não se compara ao fim da

história hegeliano entrevisto como fim de um processo. Desponta, sim, como a

perda da conexão com a realidade.

Claro que a divisão entre o moderno e o contemporâneo, como

observamos na análise d’ A condição humana, pode parecer tênue quando se nota

que o contemporâneo irrompe como uma espécie de prolongamento do moderno –

como aquele que leva o moderno às últimas conseqüências. Essa leitura fica

evidenciada se entendermos que o totalitarismo fabrica a história mais ou menos

nos moldes teóricos supostos pelas filosofias da história. No entanto, Arendt

insiste em registrar a novidade do movimento totalitário. Seu aparecimento

interrompe a “continuidade da história ocidental”. Desde então podemos falar em

outra época, onde se vê o ultrapassamento da temática de Kant e Hegel. “Hoje em

dia, a maneira hegeliana e kantiana de reconciliamento com a realidade através da

compreensão do significado mais profundo de todo o processo histórico parece

131 Ibid; p. 126.

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tão completamente refutada como a tentativa simultânea do pragmatismo e do

utilitarismo de ‘fazer história’ e impor à realidade o significado e a lei

preconcebidos pelo homem.” 132

Arendt conta, portanto, com a especificidade e singularidade da situação

contemporânea e nota que seu despontamento revela um novo sentido de história,

o qual se sustenta na idéia de que a história real e a história escrita constituem um

só evento. Reencontramos o contexto da valorização da historicidade na indicação

sobre a superação da problemática das filosofias da história.133 Se a concepção

moderna da história ainda guardava algum vestígio da separação entre a ação e a

escrita da história, como poderíamos supor pela necessidade de vislumbrar um fim

da história e a possibilidade de reconciliação, depois da completa ‘criação’ da

história erigida pelo totalitarismo, qualquer versão da história torna-se de

realidade. O problema daí decorrente é a confusão entre mundo e interpretação do

mundo.

A transformação do conceito de história moderno na versão

contemporânea está indicada pela autora desde o seu exame do totalitarismo.

Concebendo o movimento como uma radical perda de realidade e imposição de

uma realidade fictícia, Arendt defende que a novidade do totalitarismo é a própria

possibilidade de destituir de sentido a história. Sua novidade constitui-se mesmo

como uma nova concepção da história, a qual se sustenta na justaposição entre a

história real proveniente da ação e a escrita da história.

Em meus estudos do totalitarismo, tentei mostrar que o fenômeno totalitário, com seus berrantes traços anti-utilitários e seu estranho menosprezo pela fatualidade, se baseia, em última análise, na convicção de que tudo é possível, e não apenas permitido, moralmente ou de outra forma, como com o niilismo primitivo. Os sistemas totalitários tendem a demonstrar que a ação pode ser baseada sobre

132 Ibid; p.122. Sobre a perda de sentido da história na contemporaneidade, Arendt indica

também a importância do desenvolvimento da tecnologia. Se a guinada moderna para a valorização da história estava relacionada à inabilidade para perceber a realidade através dos sentidos, que leva à separação entre o domínio da natureza e a esfera dos assuntos humanos pela linha da suposta possibilidade de fazer história, a situação pós-guerra desvela um novo contexto. O homem torna-se apto a “fazer” natureza tanto quanto poderia imaginar que “fazia” história. O homem não precisa mais, como pensava Vico, dotar de importância a história porque não ‘faz’ natureza. Ibid; p.123.

133 E a própria noção de historicidade vem tentar reabrir ou redescobrir os assuntos humanos que permaneceram subjugados ao processo histórico. Assim podemos entender melhor a referência de Arendt acerca da libertação da história promovida ainda por Husserl.

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qualquer hipótese e que, no curso da ação coerentemente guiada, a hipótese particular se tornará verdadeira, se tornará realidade fatual e concreta.134

A perda de sentido no caso da história e da historiografia que parece

indicar seu fim refere-se à possibilidade de a história ser mera interpretação. O

sentido, o qual a história revelaria, não está mais na ação particular, como na

Antigüidade, nem no processo como um todo, como na versão moderna, mas na

‘criação’ da história, que se interpõe, ao mesmo tempo, como história e

historiografia. O que a historiografia teria admitido com a aceitação de que o

homem não pode conhecer o passado porque está irremediavelmente lançado

numa abertura histórica, seria a possibilidade de tomar a história pela

historiografia. Nos termos de Arendt, o dado pela interpretação, isto é, a ação pelo

pensamento.

Se o seu percurso sobre o desenvolvimento do conceito de história

encontra um fim tão desanimador que nos pusemos a caracterizá-lo como a

narrativa de um declínio, isso não significa que a autora tome a história por

encerrada. Não há alternativa para a história nesse texto sobre “O Conceito de

história. No entanto, se considerarmos suas indicações sobre a amplitude da

ruptura da tradição, veremos que a perda da orientação do futuro pelo passado,

abre também novas possibilidades para a concepção da história.

No caso da historiografia, parece que o otimismo que ronda sua obra pode

ser entrevisto pela suposição de que com a ruptura da tradição seria possível

redescobrir o passado. Tal abertura é a própria perda da autoridade do fio

condutor que ligava passado e futuro, diante da qual a contemporaneidade insurge

como perda do mundo, mas também manifesta nova potencialidade. A quebra do

absoluto que fechava a História num processo autônomo deixa a ligação entre

passado e futuro sob responsabilidade dos homens. A indicação da relação entre a

ruptura da tradição e as possibilidades por ela abertas encontra-se, sobretudo, em

passagens sobre Benjamin e Heidegger. Em Heidegger, a autora destaca que

“exatamente porque para ele o fio da tradição se rompeu, redescobre o passado.”

134 ARENDT, H., op cit., p.123. Explicando seu argumento, a autora conclui :“Em outras

palavras, o axioma do qual partiu a dedução não precisa ser, como supunham a lógica e a metafísica tradicionais, uma verdade auto-evidente; ele não necessita sequer se harmonizar com os fatos dados no mundo objetivo no momento em que a ação começa; o processo da ação, se for coerente, passará a criar um mundo no qual as hipóteses se tornam axiomáticas e auto-evidentes.” Ibid; p.124.

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Em Benjamin, analisa a tentativa de “descobrir novas formas de tratar o passado”

diante da perda da autoridade.

A íntima afinidade entre a ruptura da tradição e a figura aparentemente extravagante do colecionador que reúne seus fragmentos e restos dos destroços do passado talvez seja melhor ilustrada pelo fato, espantoso apenas à primeira vista, de que provavelmente não houve nenhum período antes do nosso em que as coisas velhas e antigas, há muito tempo esquecidas pela tradição, tornaram-se material didático geral, distribuído a escolares de todos os lugares em centenas de milhares de exemplares. (...) Sem percebê-lo, Benjamin realmente tinha mais em comum com o notável senso de Heidegger para os olhos e ossos vivos que marinhamente se transformaram em coral e pérolas, e como tal só podiam ser recolhidos a alçados ao presente com uma violência ao seu contexto...135

A aguda consciência arendtiana acerca da especificidade da situação

contemporânea é o que nos impulsiona a conceber, menos uma tensão que uma

complementaridade entre sua abordagem da história, que ora aparece como a um

apanhado de histórias fragmentadas, ora como uma grande narrativa da história

ocidental. A autora observa como na ruptura da tradição, a história parece surgir

novamente como uma série descontínua de histórias. Nesse sentido, apontávamos

a semelhança entre o que denominamos suas “considerações teóricas” e sua

delimitação do conceito antigo de história. Em ambos os casos, os homens estão

livres de um processo geral que determine o sentido da ação. Nos termos de

Arendt, podemos entender também que os seres humanos se tornam novamente

mortais, pois lhes é devolvida a capacidade de agir e iniciar a novidade no mundo

e a potencialidade da escrita da história. A tendência dos intérpretes arendtianos

para explicar o aparecimento de uma história descontínua é evocar o aspecto

hermenêutico de sua leitura e sustentar que se trata da possibilidade do diálogo

entre passado e futuro. Embora existam também aqueles que permanecem

acreditando numa re-leitura da concepção antiga. Vimos na secção anterior porque

rejeitamos a idéia de que a concepção de história de Arendt seja meramente uma

perspectiva hermenêutica. Precisamos ainda de mais algumas palavras sobre a

questão da similitude com o conceito antigo de história.

Reencontramos aqui a temática lançada no início desse trabalho sobre a

existência de uma estrutura da condição humana que nos parecia corresponder à

condição do homem grego configurado por Arendt. A questão para nosso contexto

da história é entender o que sustenta o otimismo da autora no que se refere às 135 Id., Homens em tempos sombrios, p. 223, 166 e 172.

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possibilidades trazidas pelo contemporâneo. Responder a esse ponto significa

esclarecer em que consiste a semelhança entre o conceito antigo de história

traçado por Arendt e sua própria concepção da história, considerando a

possibilidade de haver uma conceituação teórica do histórico que não corresponda

exatamente a um sentido histórico de uma determinada época. A questão é como

elucidar a impressão do resíduo ‘estrutural’ que permeia a obra arendtiana. Não é

ainda a potencialidade da condição humana, sua capacidade de agir e constituir

durabilidade do mundo pela escrita da história que sustentam a contraposição ao

diagnóstico do fim da história? Em outros termos, não é o elemento trans-

histórico, fundado na correspondência com a situação grega, que vem nesse fim

da história acenar a salvação?

Parece que agora podemos retomar a questão em melhores termos. Se

entendermos que a concepção de ação, como capacidade humana de iniciar a

novidade no mundo, e a conceituação da história, como a história de muitos

inícios e nenhum final, correspondem ao contexto grego vislumbrado por Arendt,

e acabam por constituir a própria estrutura da existência do homem no mundo,

podemos supor que a autora, apesar de conceber a variação histórica da ação e do

sentido da história, não admite a completa deturpação dessa estrutura. Em outras

palavras, continuaria apostando na “saída” do declínio porque contaria com a

potencialidade invariável da ação e da história. Nesse sentido, poderíamos

entender que a autora mantém seu otimismo porque considera a potencialidade

humana, em última instância, incorruptível. O problema dessa suposição, que

parece ser a base do argumento de Derrida, é encontrar na obra arendtiana

qualquer garantia para a permanência do humano.136 Toda a consideração teórica

de Arendt está sujeita à história. Se não fecha a história no diagnóstico do declínio

e insiste sobre a capacidade de agir isso não significa que o esquecimento seja

parte constituinte do ser, como se o decaimento fosse uma espécie de destino

histórico, nem que haja qualquer certeza sobre a permanência da ação e da

história.

Ao demarcar a diferença entre a condição humana e a natureza humana,

sustentando que o homem pode transformar sua própria condição, a autora revela

que a grande validade desse conceito é justamente comportar a possibilidade da

136 Sobre a crítica de Derrida a Arendt, veja capítulo 3.

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mudança histórica, de abranger a potencialidade do homem para a novidade. Não

se trata de acreditar que os homens mantêm uma secreta capacidade de

regeneração mesmo nos tempos mais sombrios e que no fim das contas tudo acaba

bem. Se Arendt pode contar com a capacidade da ação e da história é mais porque

elas sobreviveram às tentativas de transformá-las completamente e menos por

serem a-históricas.

O diagnóstico sobre a perda de sentido da história não se caracteriza como

um fim da história, não porque a autora esteja esperando o “fim” do progresso, ou

ainda esteja contando com a revelação da verdade, como pôde supor Derrida.

Notamos anteriormente que, apesar de definir o totalitarismo como realidade

fictícia e mentira absoluta, Arendt não entende que o totalitarismo tenha sido

realmente total, pois para isso teria que abarcar todo o globo e de fato extinguir a

capacidade humana de ação, e alterar completamente toda a história humana. Ao

vislumbrar que a condição humana não foi inteiramente transformada, a autora

não quer dizer que isso seja impossível, mas que isso não aconteceu, apesar da

intenção total dos totalitarismos. Assim, acreditamos que suas considerações

teóricas não devem ser tomadas como idéias a-históricas, como se pairassem

acima dos acontecimentos. Ao contrário, suas indicações encontram ecos na

realidade dos contextos históricos. Suas proposições não são feitas de fora da

história. Aliás, essa é justamente a posição que a autora abomina. Parece que, se

concluíssemos que a estrutura da condição humana ou uma teoria geral da história

salva a história de ser pura decadência, estaríamos radicalmente contra as

suposições da própria autora. Se não há uma teoria isolada do mundo, através da

qual o histórico pode ser definido, isso também não significa que o histórico seja a

equivalência ao sentido da história definido por cada época.

Ao entrever que uma história só pode ser narrada quando chegou ao fim,

Arendt vislumbra a alocação de um “fora” da história que não é um fim da

história. Ou seja, imaginando que só se pode compreender o que já alcançou seu

termo, ela acredita poder separar pensamento e ação, indicando um “lugar” para o

surgimento da teoria, e, conseqüentemente, de sua própria teoria da história.

Assim, a história do totalitarismo só pode se contada porque chegou ao fim. A

ruptura da continuidade só significa o fim de uma história específica e não um fim

definitivo, isto é, a ruptura revela a abertura do “entre” uma história e outra, que

configura o “livro de histórias da humanidade”.

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Desse modo, a nossa argumentação acerca da existência de uma

complementaridade entre o que denominamos “considerações teóricas” sobre a

história e a própria narrativa arendtiana da história, só é válida quando se explica

que, nesse caso, a noção teórica não é uma formulação que paira acima da

realidade histórica, ao contrário, só podem ser compreendidas à luz das alterações

do sentido da história ao longo do tempo. Reconhecer o aspecto histórico de sua

conceituação da história significa também observar que a sua perspectiva só pode

advir no fim da história narrada. Ocorre que a complementaridade entre a

perspectiva da descontinuidade da história, que parece sustentar a idéia de que “a

história é a história de muitos inícios e nenhum final”; e a abordagem da história

do declínio do político e do histórico, que se ampara na continuidade da grande

história ocidental, insurge justamente no fim da história ou no fim da sua narrativa

da grande história ocidental.

Ao comentar a referência de Arendt à cena de Ulisses como episódio

paradigmático para a história, Hartog se pergunta não pela validade da afirmação,

mas pela sua jurisdição. Para quem ela vale? O autor acredita que ela vale

certamente para nós – pós-hegelianos -, e para nossa concepção de história.137

Nesse mesmo sentido, acreditamos que a concepção de história arendtiana não

encontra equivalência no conceito antigo, nem tampouco no sentido moderno, tal

como também não corrobora com as tendências contemporâneas ou figura como

uma proposta teórica a-histórica.

A perspectiva arendtiana da história não é meramente uma reabilitação da

versão antiga da história ou uma adaptação da concepção moderna, nem

simplesmente uma confirmação das tendências contemporâneas da hermenêutica e

historicidade. Se ela concebe com louvor o mundo antigo, a ponto de traçar uma

narrativa do declínio do sentido da história desde a antigüidade tardia até a

completa corrupção pelo totalitarismo, isso não significa que esteja imaginando

qualquer possibilidade de retornar ao mundo antigo. Arendt tem plena consciência

da especificidade de nossa época. Em suma, para evocar a perspicaz análise de

Hartog, seu conceito de história se constitui originalmente como uma perspectiva

pós-hegeliana. Responde diretamente à derrocada das filosofias da história. A

questão é que a própria ruptura da tradição e da continuidade da história é que

137 HARTOG, F., Os Antigos, o passado e o presente, p. 21-22.

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dota de sentido a possibilidade de uma história fragmentada. Apenas após a

‘coruja de minerva’ hegeliana alçar vôo, o sentido de fim da história pode vir à

tona e aparecer como o próprio caráter retrospectivo da história, o qual toma

forma de ‘fins’ da história na versão arendtiana.

Por mais que conceba a tradição com suas múltiplas tendências, a autora

apresenta uma grande narrativa sobre a história ocidental, que se inicia na Grécia

e termina com os totalitarismos no século XX, abarcando praticamente a

totalidade do que se entende como história ocidental. A noção de que a história é

constituída por uma diversidade de histórias, a qual se caracteriza como uma

história de muitos inícios e nenhum final, portanto, só adquire sentido fora daquilo

que se convencionou chamar de tradição que, em si mesma, interpõe a

continuidade autoritária entre o passado e o futuro. Na narrativa de Arendt sobre a

história ocidental, encontramos esse ‘fora’ da tradição em seu ‘antes’ e seu

‘depois’. Não sem razão há a impressão de existir uma semelhança entre o grego e

o contemporâneo. Na verdade, é nesses períodos que a autora encontra a

potencialidade da ação e da história livre da orientação de qualquer instância

absoluta. Além desses momentos, a autora também analisa, ao longo de sua obra,

outras circunstâncias em que os homens tiveram que lidar com a novidade dos

acontecimentos sem serem prescritos pelo fio da tradição. Menciona as

possibilidades abertas no curto período de transição entre a idade média e o

renascimento, quando pareciam florescer novas filosofias políticas. Ocasião em

que, como notamos, irrompe novamente o interesse pela história. Sem falar das

revoluções, que aparecem como situações excepcionais em que a tradição perde a

validade.

Apesar da semelhança entre as irrupções da liberdade, defendemos que em

Arendt não há equivalência entre os períodos.138 No caso da historiografia, mesmo

que possamos visualizar afinidades entre a fragmentação antiga e contemporânea

da história, não temos como negar que se referem a circunstâncias distintas.

Ocorre que apenas quando vislumbramos a grande narrativa que se interpõe à

perspectiva descontínua da história, é que temos a oportunidade de encontrar o

ângulo através do qual a concepção histórica de Arendt parece adquirir seu devido

vigor. Uma concepção da história que não pode estar fora da história, mas que

138 Desenvolvemos essa questão no capítulo 4, ao analisar o caráter da novidade em sua

obra.

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mantém a consciência de sua própria época. Apenas do descrédito do fim da

história pode surgir a noção de ‘fins’ desenvolvida pela autora.

A distinção da conceituação arendtiana da história é justamente notar que

o fim do fim da história não deve levar embora consigo a noção de fim que indica

a brecha temporal através da qual se pode compreender a história, mas antes,

deixar ver que a sensação epigonal de nossa época está relacionada à própria

perspectiva do historiador, que por ser retrospectiva, sempre vê as coisas a partir

do ‘hiato” que se abre entre o passado e o futuro.

A vantagem de tal concepção é entrever que essa posição do fim da

história é apenas o lugar “entre” as histórias que compõem a realidade do mundo e

que sua “história” real não pode ser um processo autônomo dotado de sentido com

início e fim. O grande legado aos historiadores é a possibilidade de novamente

falar do passado, dos fatos e eventos sem a carga metafísica da verdade absoluta

que esses conceitos carregavam. A grande novidade é que mais uma vez e, agora,

de modo totalmente diverso, pode-se falar de uma história de atores e

espectadores. Em suma, da capacidade da história assumir-se como espetáculo.

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6 Conclusão

Com o intuito de compreender o conceito de história na obra arendtiana,

procuramos analisar a grande narrativa do declínio do ocidente traçada pela autora

e, em especial, aquela que se refere à decadência do histórico, buscando explicar

em que medida essa história contínua poderia se conciliar com suas indicações

sobre a fragmentação da história na contemporaneidade, que vigora desde a

ruptura da tradição. A preocupação inicial era examinar se a concepção de Arendt

poder-se-ia constituir como mais um caso de filosofia da história. Por isso as

questões principais giravam em torno da sua concepção do quadro grego, donde

vislumbra o surgimento do político e do histórico, e seu decorrente definhamento.

Na correspondência entre a arquitetura da condição humana e a condição do

homem grego, que leva à inevitável ligação com o contexto histórico ateniense,

encontramos a base da noção de história arendtiana. Ao mesmo tempo em que

exercitava sua consciência histórica, relacionando o surgimento do político e do

histórico à situação em que apareceram, Arendt parecia contar com categorias a-

históricas ao interpretar a história do ocidente como um definhamento desse

florescimento grego. Por que não considerar que cada época tem uma

compreensão distinta do político e do histórico, admitindo que não é possível

apontar de modo definitivo qual seria a noção mais verdadeira ou mais adequada?

Nos termos de Derrida, essa indagação é equivalente ao questionamento sobre a

possibilidade da corrupção irreversível ou sobre a impossibilidade de distinguir

entre o verdadeiro e o falso.

Analisando a ênfase que a autora concede à noção de novidade, pudemos

notar que sua concepção do histórico não condiz com nenhuma definição de

filosofia da história. O sentido da história que ainda persiste em sua abordagem

não aparece como um sentido pré-determinado da história, nem como um sentido

que pode ser atribuído metodologicamente pelo estudioso. Seu encaminhamento

se delineia justamente para negar tanto as filosofias da história no sentido

clássico, como aquelas desenvolvidas por Kant e Hegel, quanto à possibilidade do

sentido constituir-se como um puro investimento do historiador. Arendt também

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não concorda com a idéia de que não é possível compreender a história como se

não houvesse nenhum sentido nos acontecimentos realizados pelos homens. Nem

comunga da opinião segundo a qual a historicidade suplanta a história.

Para a autora, a história não está dada de antemão. Os homens não são

marionetes do destino. Não há nenhuma estrutura invisível por trás dos eventos

casuais que lhes garanta um sentido determinado. Ao agir o homem é livre. No

discurso arendtiano, isso significa que é a contingência que assegura a liberdade.

O futuro precisa ser indeterminado. Mas como conciliar a possibilidade de sentido

e a indeterminação da história senão por intermédio do sujeito que aponta o

sentido. O que detectamos como ponto crucial para a definição da história em

Arendt é que em vez de levar adiante a oposição entre necessidade e acaso, a

autora reinterpreta o dilema. É na sua argumentação sobre a redefinição da relação

entre ação e pensamento que encontramos o desenvolvimento de sua conceituação

da história. Ela mostra como, pelo menos, desde Platão, os negócios humanos

foram rejeitados por não conterem estabilidade suficiente para configurarem uma

verdade, que era concebida como aquilo que não varia no tempo. A forma da

verdade era essencialmente uma forma atemporal baseada na idéia de eternidade.

Assim, a autora observa que a tradição ocidental se funda na negação do que é

fugaz e passageiro, mais especificamente, na submissão do político ao teórico.

Supondo conhecer a verdade, a teoria imaginou que poderia orientar a ação dos

homens, indicando-lhes o que fazer. Para Arendt, esse enlace da ação humana

enunciado pela versão platônica da alegoria da caverna, revela o momento inicial

do aprisionamento da ação e, portanto, da liberdade humana de agir, pelo

pensamento teórico. A proposição arendtiana acerca da autonomia da ação e do

pensamento requer uma revisão dessa relação entre ação e pensamento.

A concepção de história em Arendt só pode ser entendida mediante a

pretensão de considerar os assuntos humanos em sua dignidade própria. Nesse

sentido, a história é compreendida a partir de sua afinidade com a ação. Os

homens deixam atrás de si a história de feitos e eventos que desencadearam com

sua capacidade de agir e iniciar a novidade no mundo. O surgimento do evento

como o início de alguma coisa nova no mundo estabelece uma história que pode

ser contada, pois ilumina o início e o fim de um processo subseqüente ao começar

uma nova série. O evento é o limite da história. Com seu aparecimento a história

se torna visível. Isso não significa que a história seja qualquer estrutura invisível

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pré-determinada, mas sim que os atores não tem consciência do sentido da história

que desencadeiam com suas ações. O que é uma outra forma de dizer que os

atores são livres e a história não está pronta de antemão como se fosse um destino

ou um desígnio. Considerando que apenas os espectadores podem visualizar a

história com início e fim, a autora indica que os atores realmente “nunca sabem

exatamente o que estão fazendo”, pois uma história só pode ser compreendida

quando chega ao fim. A possibilidade de visualizar e interpretar uma história não

é simplesmente uma competência teórica à qual o estudioso poderia recorrer. O

espectador está de fato “fora da história”, não porque consiga alcançar uma

postura neutra, mas porque a história que entrevê já acabou. Se fosse ele mesmo

um ator nessa história não teria a mesma capacidade para compreender os eventos.

A separação entre a história real, proveniente da ação, e a história narrada,

se funda nessa distinção entre atores e espectadores, que, em última instância,

remete ao afastamento entre ação e pensamento. Sendo derivada da ação, a

história real se origina na esfera da pluralidade. Ao agir, os homens “fazem

história”, mas não no sentido imaginado por Marx. Arendt nega a noção segundo

a qual a história é realmente feita pelo homem como se fosse um produto. Para

ela, o que os homens fazem é concretizar sua capacidade de agir, ou seja, eles

agem e com isso acabam “fazendo” história. Não como se a controlassem

absolutamente, e, sim, como atores que não conhecem o completo significado de

suas ações. Devemos observar que, nessa concepção, a autora resguarda a noção

da casualidade, preservando a contingência e a liberdade dos homens, sem

descartar a possibilidade de sentido inscrita na história.

Ao poupar o caráter contingencial da ação, estabelecendo a equivalência

entre ação e liberdade, Arendt não sugere que o homem possa fazer qualquer coisa

e que se trate de uma contingência radical. Sua proposição é rejeitar a existência

de uma instância superior à ação, que lhe garanta sentido de fora, conservando a

possibilidade dos homens serem livres para traçar sua história e seu destino. Se os

atores não têm controle sobre suas ações não significa que não sejam responsáveis

por suas escolhas. A autora é veemente: os homens são livres e têm a capacidade

de agir sem que haja qualquer divindade ou desígnio secreto orientando suas

ações ou o rumo que elas devem tomar. Os homens escolhem agir e respondem

pelos eventos que desencadeiam e pela história que traçam, mesmo quando não

sabem ao certo seu significado.

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Nossa defesa é a de que a autora é bastante consciente do fato de que o

descrédito das filosofias da história leva consigo qualquer noção de racionalidade

absoluta da história. Sua obra nos deixa perceber como a noção da historicidade

não resolve completamente a questão do vazio de sentido que resta aos

acontecimentos destituídos de um telos específico ou de um processo geral de

desenvolvimento. Assim, apesar das diferenças fundamentais entre a subordinação

dos assuntos humanos pela teoria platônica, o enlace moderno dos fatos num

processo autônomo dotado de sentido, e a tentativa hermenêutica de considerar a

equivalência entre homem e temporalidade, todas essas concepções acabam

promovendo de uma forma ou de outra um tolhimento dos assuntos humanos e

daquilo que lhe é essencial – a liberdade do homem e a particularidade do

acontecimento. Nesse sentido, a retomada arendtiana dos negócios humanos – da

especificidade da esfera da ação – e da história estão intimamente relacionadas.

Sua resposta acerca da perplexidade da contingência não visa sucumbi-la numa

filosofia da história ou negá-la como a concepção platônica pode sugerir; nem

mesmo pretende considerá-la como uma manifestação do pensamento para, de

certo modo, amarrar sua imprevisibilidade. Arendt não concebe a história como

uma coibição da ação. Como uma instância que determine seu sentido e a faça

parecer menos casual. Talvez possamos dizer que ela ainda vem aparar as arestas

da contingência e nos salvar da radical perda de sentido do mundo, aliás, é nesse

sentido que Benhabib menciona o poder de redenção da narrativa.1

A ênfase arendtiana na ação, ao contrário de negar a história, alavanca

nova possibilidade de compreendê-la. Compactuando com as vertentes

contemporâneas, não há na sua concepção da história um sentido a priori

incrustado no processo ou que corra escondido da percepção humana, mas

também não há a possibilidade de dotar a história de sentido através da narração,

como se aquele que escreve a história tivesse algum poder de criar o sentido. Para

Arendt, imaginar isso é indicar o caminho para a sobreposição entre história real e

história escrita. Ou seja, não respeitar a própria autonomia da ação, fulminando-a

com um sentido inventado pelo pensamento. O que observamos é que a autora não

rejeita simplesmente a “invenção” de sentido das filosofias da história, mas

também a “criação” de sentido pelo autor da história. Se é certo que ela destaca a

1 BENHABIB, S., Hannah Arendt and the redemptive power of narrative. Social Research,

vol.57, n.1, p. 167-96.

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semelhança entre ficção e historiografia, isso não significa que o sentido da

realidade possa surgir apenas da imaginação daquele que compõe a história. Aliás,

tanto a escrita ficional como a escrita da história estão do mesmo lado no que se

refere ao acontecimento, qual seja, o lado reverso da ação. Ambas preservam a

separação entre autor e ator da história. Nesse sentido, a autora destaca a

possibilidade da reconciliação e compreensão do acontecido tanto na escrita

historiográfica como na ficcional, embora indique que a especificidade da

historiografia, que está irremediavelmente ligada à verdade factual.2

O destaque de Arendt à noção de ação está irremediavelmente ligado à sua

concepção de história porque sua suposição é a de que ao agir os homens dotam a

realidade de sentido – mesmo sem saber exatamente que sentido é esse. Não há

um sentido a priori, nem um sentido a posteriori que possa ser traçado pelo

escritor. O sentido surge exatamente quando a ação se interpõe, ou seja, quando

um evento se realiza eliminando, com a sua concretização, o horizonte de

possibilidades no qual se inseria para garantir a contingência dos fatos e a

liberdade do homem. Por isso, a autora sublinha a separação entre ação e

historiografia, ou entre a história real proveniente da ação e a história escrita, que,

em última instância se refere à distinção entre atores e autores da história. Essa

distinção ampara sua rejeição das filosofias da história tanto daquelas clássicas,

que supunham, para falar com Walsh, o sentido da história, como aquelas que

acreditavam poder visualizar o sentido depois do processo desenvolvido, às quais

imaginavam encontrar um sentido na história.3Além disso, fundamenta sua

argumentação sobre o engano de tomar a ação dos homens como um coletivo

singular – a humanidade, ou a História.

A historiografia procura, ao tentar compreender os feitos e realizações dos

homens, trazer um sentido ao mundo, tornando visível o que aos olhos dos atores

não é perceptível – aquele sentido que está instituído quando a história acontece

ou quando a ação irrompe. Mas o historiador não está ele mesmo isento da

companhia alheia. Mesmo sendo um espectador, por excelência, como quer

2 O importante é observar que, mesmo sem detalhar a questão das semelhanças e diferenças

entre historiografia e ficção, Arendt não sugere nem que se tratam do mesmo tipo de narrativa, nem que sejam completamente distintas, como se a história visasse à compreensão da realidade e a ficção fosse simples invencionisse. Em ambos os casos estão em jogo tentativas de interpretar a realidade.

3 WALSH, W. H. “Sentido” em História. In: GARDINER, P., Teorias da história, p. 359-374.

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Arendt, ele não pode estar sozinho assistindo ao espetáculo. Em suma, ele não

pode assumir a posição que se pensava ser a de Deus, não pode achar um lugar

fora do tempo humano. O importante nessa tentativa arendtiana de reconsiderar a

possibilidade de separar atores e espectadores é justamente que ambos estão no

mundo. Talvez ainda possamos duvidar que o historiador não se torna mais um

ator dentre outros quando escreve história, e considerar que sua narrativa não

deixe de ser apenas uma interpretação da história dentre várias formas possíveis

de compreender o que se passou entre os homens. Assim, poderíamos findar como

Reiner Rochlitz que em seu livro sobre Benjamin supõe que o autor concebe o

“processo de desencantamento ligado a uma exigência recorrente de salvação.”4

No entanto, é também nesse sentido que Rochlitz destaca o messianismo

benjaminiano. Não há messianismo em Arendt. Mesmo que seja possível dizer

que ainda há salvação, sua perspectiva, como notou Roviello está mais para a

exaltação do humano.5 A ênfase arendtiana sobre o humano só pode ser

compreendida quando se concebe o caráter plural de sua consideração. A autora

não glorifica o deus homem. Ao contrário, quer justamente humanizar o homem

abstrato, identificando seu aspecto mais concreto, o qual indica que o homem não

existe sozinho, mas está imerso num mundo plural. É o mundo entre os homens

que sustenta a humanidade do homem. É o fato de que um homem é sempre

“igual e diferente” de todos os outros com quem compartilha o mundo. O que

viemos supondo nesse trabalho é exatamente que, para entender a concepção

arendtiana da história, não se pode perder de vista essa relação entre o homem e o

mundo que se abre entre os homens – ou a noção de homem no singular e de

homem no plural. A história não é meramente a experiência que o homem

compartilha com seus “iguais e diferentes”, nem apenas a escrita da história. A

história enquanto historiografia se torna possível pela confluência e pela

separação da ação.

Essa separação nem sempre foi evidenciada pelos intérpretes de Arendt.

Parece que na esteira da retomada heideggeriana da hermenêutica se valorizou a

idéia de que a concepção arendtiana da história também se fundava com Faulkner

4 ROCHLITZ, R., O desencantamento da arte, p. 349. 5 ROVIELLO, A. M., loc. cit.

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na noção de que “O passado não está morto, e nem mesmo é passado”.6

Enfatizando esse viés hermenêutico, o qual não podemos ignorar que realmente

existe na obra arendtiana, pouco se explicou sua suposição sobre a verdade do fato

e a irreversibilidade do acontecido. Vejamos como sua biógrafa mais ilustre

Elizabeth Young-Bruehl explica em determinado momento a questão.

Comentando um trecho de Arendt, onde a autora menciona a irrevogalidade do

passado, Bruehl supõe que a concepção de um “passado que passa” não condiz

com a perspectiva da autora. Sua solução é considerar que a “passagem cheia de

apreensão, tão estranha a convicção de Arendt de que a retomada do passado é

sempre possível desde que haja quem conte a história”. A interpretação da

biógrafa tende a reduzir o comentário arendtiano a uma situação específica – o

contexto sem precedentes dos anos 1960 -, destacando que “Na vida e na obra de

Hannah Arendt, também [há] provas da lapidar percepção de Faulkner”.

As palavras de Arendt, consideradas por Bruehl, podem ser aqui retomadas

“em que, entre os muitos acontecimentos sem precedentes desse século, o rápido declínio de poder dos Estados Unidos deveria merecer a devida consideração. Este, também, é quase sem precedentes. Podemos muito bem estar diante de um desses momentos críticos e decisivos da história que separam eras inteiras umas das outras. Para os contemporâneos, enredados, como estamos, nas inexoráveis exigências da vida diária, as linhas divisórias entre as eras dificilmente estarão visíveis ao serem cruzadas; só depois que as pessoas tropeçam nelas essas linhas se transformam em muros que deixam o passado irremediavelmente de fora.”7 Ao destacar a delimitação entre história real, proveniente da ação, e

história escrita, a historiografia, pode-se compreender que a noção arendtiana da

história não sugere apenas uma leitura hermenêutica do passado. A ação dos

homens interpõe uma ruptura irrevogável entre passado e futuro. A retomada do

passado pela narrativa história concede sentido ao acontecido, mas não reverte a

história. Não pode desfazer o que a ação humana concretizou, não pode fazer o

passado voltar a ser contingência, como se ainda estivesse imerso em

possibilidade. Há certamente diversas chaves de leitura interpretativas, mas é

6 Arendt mesma cita por mais de uma vez em sua obra essa passagem de Faulkner. Veja

ARENDT, H., A condição humana, p. 193; Id., Entre o passado e o futuro, p. 37. 7 YOUNG-BRUEHL, E., Hannah Arendt. Por amor ao mundo p. 340-1.

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importante observar que a ação desencadeia um processo irreversível. Arendt

desenvolve esse tema também ao considerar as prerrogativas do perdão. A

competência do perdão torna possível prosseguir mesmo diante de fato que

aconteceu e não pode ser desfeito. Sua implicação está diretamente relacionada à

irrevogabilidade do passado. A compreensão não implica necessariamente no

perdão, mas é também uma outra forma de se apaziguar com o passado. Apenas

concebendo a proximidade e a ruptura entre passado e futuro, pode-se entender o

significado das linhas divisórias entre as épocas, das rupturas, dos hiatos

temporais no seio do próprio tempo. O pensamento pode rememorar o passado,

pode intentar uma reprodução do fluxo vivo da ação pela imaginação, produzindo

até mesmo uma re-experimentação ou descobrir “pérolas” que foram esquecidas

pela tradição, mas não é possível revertê-lo. Lembremos que a possibilidade de

andar pela diagonal do tempo, de circular livremente entre o passado e o futuro é

uma característica própria da competência do pensamento, e só pode se realizar a

partir do afastamento momentâneo da realidade mundana, que existe entre os

homens. Os homens de ação, ao interromperem a ‘continuidade’ vigente entre

passado e futuro também têm a possibilidade de considerar ‘exemplos’ do

passado, como vimos no caso dos revolucionários americanos. Pode-se entrever

que a retomada dos romanos pelos homens da revolução também é uma espécie

de diálogo hermenêutico entre o passado e o futuro. De fato, a autora sugere que

diante da “perplexidade do início”, os americanos procuraram inspiração na

experiência política de fundação dos romanos. No entanto, entendemos que, ao

sublinhar essa retomada, Arendt está indicando justamente que a novidade nunca

pode ser uma novidade absoluta, como se surgisse do nada. Por certo essa é uma

grande temática do livro e, talvez, de toda a sua obra. Trata-se da fundamental

questão sobre a própria possibilidade do início. Ao se desgarrar da noção de uma

novidade que provém do alto ou de fora da história, a autora concebe com

Virgílio, Agostinho e Kant que a novidade é menos alguma coisa completamente

inédita e mais a ruptura de uma continuidade. Nesse sentido, o importante para

caracterizar a novidade não é a completa ausência de elementos pré-existentes

(palavras, idéias, símbolos, materiais), mas os novos sentidos que irrompem

quando a novidade advém. Assim, se a fundação de Roma inspira a experiência

revolucionária para os americanos, de modo algum, eles pretendem fundar Roma

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mais uma vez, perpetuando a tradicional re-fundação de Tróia. Seu intuito é mais,

como destaca Arendt, fundar uma nova Roma.

O mais importante para a distinção entre ação e pensamento é observar que

a possibilidade da retomada do passado é diferente em ambos os casos. A ação

enquanto início de uma novidade no mundo não se limita a retomar o passado ou

reinterpretá-lo. O hiato do pensamento, como vimos, também se interpõe entre o

passado e o futuro, no entanto, embora possa re-pensar o passado à vontade,

encontrando novidades jamais vistas, para Arendt, ele não pode erigir a novidade

no mundo do qual se evade momentaneamente. Nesse sentido, a autora se esforça

por indicar que as transformações da realidade estiveram ligadas aos eventos e

não às idéias. No caso da passagem para a idade moderna destaca a invenção do

telescópio, a Reforma, a descoberta do Novo mundo. Também a ruptura com a

tradição só vem à tona com o evento totalitário.

Com a reconsideração da distinção entre ação e pensamento e a indicação

acerca da especificidade dessas esferas, entendemos que Arendt deixa lançada

novas possibilidades de compreender a história e a historiografia.

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