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Happy End (1967) como forma de experimentação da prática de ensino e o ofício do historiador VERÔNICA D’AGOSTINO PIQUEIRA * E DÂNGELA NUNES ABIORANA A maior parte dos livros didáticos de História segue uma cronologia linear, demarcando a Guerra Fria logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Em muitos casos, esse recorte espera facilitar a compreensão e o encadeamento de fatos diversos, inseridos em um contexto mais amplo dentro da chamada “História Geral”. Essa abordagem, muitas vezes apresentada sem a introdução de outras fontes, limita a noção de que os sentidos atribuídos a esses dois períodos históricos são múltiplos. Nessa perspectiva, a mediação em sala de aula pode levar em consideração não apenas a análise de interpretações diversas, como também desafiar conceitos históricos mais tradicionais. Desse modo, o próprio conceito de “Segunda Guerra Mundial” pode ser apresentado como objeto de reformulações constantes, dependendo da perspectiva analisada. Tomando como exemplo os russos e os eslavos, durante a permanência do regime soviético, o mesmo período aparece nomeado como “Grande Guerra Pátria”. O que para nós encontra-se como parte de um enfoque mais geral, para a história oficial soviética o tema é indissociável de sua identidade nacional. Palco dos guetos, das frentes de batalha mais sangrentas e dos campos de concentração, a noção de como a Segunda Guerra Mundial foi sentida na Europa Oriental, muitas vezes escapa à nossa compreensão, como indica Daniel Aarão Reis Filho: A União Soviética, sem dúvida, suportou o maior fardo da guerra. As estimativas de perdas humanas alcançaram cerca de vinte milhões de pessoas (sete milhões de soldados e treze milhões de civis). O contraste com as potências ocidentais é revelador. Juntos, Estados Unidos, França e Inglaterra somaram 1,3 milhão de mortos. Se o sofrimento humano de cada morte é insuscetível de comparações, a medida do impacto social e econômicos das perdas nas respectivas sociedades é mensurável, conferindo à União Soviética um lugar único na grande luta que a * Verônica D’Agostino Piqueira é Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Dângela Nunes Abiorana é Doutoranda em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e bolsista através de programa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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Happy End (1967) como forma de experimentação da prática de ensino e o ofício do

historiador

VERÔNICA D’AGOSTINO PIQUEIRA* E DÂNGELA NUNES ABIORANA†

A maior parte dos livros didáticos de História segue uma cronologia linear, demarcando a

Guerra Fria logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Em muitos casos, esse recorte espera

facilitar a compreensão e o encadeamento de fatos diversos, inseridos em um contexto mais

amplo dentro da chamada “História Geral”. Essa abordagem, muitas vezes apresentada sem a

introdução de outras fontes, limita a noção de que os sentidos atribuídos a esses dois períodos

históricos são múltiplos. Nessa perspectiva, a mediação em sala de aula pode levar em

consideração não apenas a análise de interpretações diversas, como também desafiar conceitos

históricos mais tradicionais. Desse modo, o próprio conceito de “Segunda Guerra Mundial”

pode ser apresentado como objeto de reformulações constantes, dependendo da perspectiva

analisada.

Tomando como exemplo os russos e os eslavos, durante a permanência do regime soviético, o

mesmo período aparece nomeado como “Grande Guerra Pátria”. O que para nós encontra-se

como parte de um enfoque mais geral, para a história oficial soviética o tema é indissociável de

sua identidade nacional. Palco dos guetos, das frentes de batalha mais sangrentas e dos campos

de concentração, a noção de como a Segunda Guerra Mundial foi sentida na Europa Oriental,

muitas vezes escapa à nossa compreensão, como indica Daniel Aarão Reis Filho:

A União Soviética, sem dúvida, suportou o maior fardo da guerra. As estimativas de

perdas humanas alcançaram cerca de vinte milhões de pessoas (sete milhões de

soldados e treze milhões de civis). O contraste com as potências ocidentais é

revelador. Juntos, Estados Unidos, França e Inglaterra somaram 1,3 milhão de

mortos. Se o sofrimento humano de cada morte é insuscetível de comparações, a

medida do impacto social e econômicos das perdas nas respectivas sociedades é

mensurável, conferindo à União Soviética um lugar único na grande luta que a

* Verônica D’Agostino Piqueira é Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade

Presbiteriana Mackenzie. † Dângela Nunes Abiorana é Doutoranda em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade

Presbiteriana Mackenzie e bolsista através de programa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

Nível Superior (CAPES).

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humanidade travou para abater o nazismo. [...] As estatísticas não mediam,

evidentemente, os traumas psicológicos, as neuroses adquiridas, as mutilações físicas

e espirituais, as patologias acumuladas... como estimá-las? Chagas que

permaneceriam como ferro em brasa, marcando aquela sociedade por gerações. Tão

logo a guerra acabou, e antes mesmo que se encerrasse, começaram, como sempre,

outras batalhas, historiográficas. (REIS FILHO, 2004, p. 105-106).

Inserida como um trecho, uma passagem, a ocultação dessas batalhas historiográficas também

restringe a percepção de significados atribuídos à construção narrativa sobre períodos históricos

posteriores, a exemplo da própria Guerra Fria.

Dessa forma, como a União Soviética [...] “naquela grande guerra que opusera a democracia e

a liberdade ao nazismo” (REIS FILHO, 2004, p. 106), formada por vários países satélites,

culturalmente e etnicamente diversos, comandados por Stalin com mãos de ferro, percebera o

conflito como a “Grande Guerra Pátria”? Ao mesmo tempo, como acontecimentos posteriores

poderiam indicar a natureza transitória das interpretações históricas, sua ponte do passado com

o presente, nos casos citados acima?

Esperando refletir essas questões, levantando novas perguntas, o caso da Checoslováquia será

abordado a partir da obra cinematográfica Happy End (1967) de Oldřich Lipský. Produzida

após o processo de desestalinização, momentos antes da Primavera de Praga, também se espera

que o sentido da narrativa, do tempo e do movimento, assim como a percepção variada de certas

permanências e rupturas nas abordagens históricas possam ser analisados.

Pensar a “Grande Guerra Pátria” como um importante componente que forjaria a sensação de

uma unidade nacional, fundamental para manutenção do regime soviético do pós-guerra,

levanta algumas questões na qual muitos historiadores afirmam, entre eles Tony Judt, que o

caso checo não entraria em choque, em um primeiro momento, com esses interesses:

Praga seria afável com Moscou pelo mesmo motivo que a levara a se aproximar de

Paris antes de 1938: porque a Tchecoslováquia era um país pequeno e vulnerável,

situado em plena Europa Central, e precisava de um protetor. Portanto, apesar de

ser, em vários sentidos, o mais ocidentalizado dos países do "Leste" europeu - com

uma cultura política historicamente pluralista, um importante setor industrial e

urbano, uma próspera economia capitalista (antes da guerra) e uma política

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socialdemocrata ocidentalizada (depois da guerra) -, a Tchecoslováquia, após 1945,

foi também a maior aliada da União Soviética na região, embora houvesse perdido o

seu distrito mais oriental (a Rutênia Cárpata), em decorrência dos "ajustes"

territoriais soviéticos. (JUDT, 2008, p. 241)

Nesse sentido, o forte vínculo que Oldřich Lipský (1924-1986) manteve ao longo da vida com

as expressões artísticas populares1 permitiria reexaminar os significados atribuídos à

determinados períodos históricos sob uma perspectiva ainda muito pouco explorada. Do mesmo

modo, incorporar as suas produções dentro de uma linha historiográfica, que considera os filmes

documentos históricos privilegiados2, auxilia a identificação dos “[..] pontos de ajustamento, os

das concordâncias e discordâncias com a ideologia, […] o latente por trás do aparente, o não-

visível através do visível” (MORETIN, 2007: p.41).

Bem-sucedido no cinema popular, com produções do começo da década de 1950 até o ano de

sua morte em 1986, Lipský retrata temas que se confundem com as principais questões da

Guerra Fria. Citando um desses casos, se na análise de Tony Judt sobre o pós-guerra a perda da

Rutênia Cárpata não encontrou grandes resistências, essa mesma questão será recuperada pelo

diretor no filme O Misterioso Castelo nos Cárpatos, de 1981.

A adaptação para o cinema de uma obra de Júlio Verne que retrata o uso de parafernálias

diversas no controle e vigilância de uma aldeia nos Cárpatos, assinalaria conflitos que ainda

não foram resolvidos entre russos, checos e outras etnias, desde o final da Segunda Guerra

Mundial. Do mesmo modo, sua recuperação em um período de crise adiantaria conflitos

geopolíticos, étnicos e culturais, aflorados com o processo de desintegração do regime.

Dessa forma, do começo ao fim da Guerra Fria, Lipský satiriza assuntos diversos que fizeram

parte do conflito dentro e fora da União Soviética. Em Hvezda jede na jih, de 1958, podendo

ser traduzido como A estrela está indo para o sul, o excesso de controle e a burocracia

encontrada no trânsito de passageiros entre os países satélites serve como pano de fundo para

1 Apesar da sua formação em Filosofia e Direito, antes do seu trabalho na indústria cinematográfica, Lipský

trabalhou em comédias satíricas nos teatros da cidade de Praga. 2 Esse dado parte da reflexão de Eduardo Morettin sobre o cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro.

Em sua análise “o filme age como um “contra-poder” por ser autônomo em relação aos diversos poderes da

sociedade. Sua força reside na possibilidade de exprimir uma ideologia nova, independente, que se manifesta

mesmo nos regimes totalitários, onde o controle da produção artística é rígido. [...]. Aliás, é por se manifestar dessa

forma que a obra cinematográfica constitui um documento privilegiado. […]”. (MORETIN, 2007, p.41)

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uma comédia que narra os encontros e desencontros da Grande Orquestra de Praga em viagem

para a Iugoslávia.

Em Muz z prvního století (Um homem do primeiro século, traduzido em inglês como Man in

Outer Space), um ano após Yuri Gagarin inaugurar as viagens para o espaço, um trabalhador

comum é enviado por engano para o mesmo local. Para surtir um efeito cômico, no encontro

do personagem principal com um alienígena, bem como no seu retorno à Terra no ano de 2447,

o diretor faz uso do contraste entre a realidade dos homens comuns com a representação dos

novos heróis nacionais, ou seja, os cosmonautas da União Soviética.

Seguindo a mesma linha, mesclando comédia com ficção científica, em Zabil jsem Einsteina,

panove de 1969 (Eu matei Einstein, cavalheiros) Lipský consegue satirizar até mesmo o medo

da bomba atômica, mas não deixando de elucidar outros medos do período, como a ruptura com

o modelo de família tradicional e a liberação feminina. Após a explosão de uma bomba

atômica, mulheres ficam barbadas e perdem a sua capacidade reprodutiva. As Nações Unidas,

também representadas no filme, esperam solucionar o problema construindo uma máquina do

tempo para assassinar Albert Einstein. Vale recordar que não faltam autores que relacionam o

advento da bomba atômica com um novo tempo, principalmente de rupturas e permanências

com a sociedade moderna. Apesar do conceito de Pós-moderno ainda ser bastante discutido, a

percepção de uma nova perspectiva, em novo tempo, também se faz presente nesse filme.

Por último, em seu filme mais famoso de 1967, uma paródia musical dos filmes de faroeste

americanos, “[…] o personagem principal, Lemonade Joe, sabe que perderá suas habilidades

como atirador se beber álcool e, para o entusiasmo do persistente movimento de temperança,

beber apenas limonada Kola-Loka3” (DAUM, 2014, p.70, tradução nossa).

Não faltam exemplos da genialidade do diretor. Em alguns casos, como em Lemonade Joe,

seus filmes desagradaram os censores de Moscou, que muitas vezes alegavam “[…] que os

espectadores soviéticos não identificavam a paródia contida nessas produções”. (RALEIGH,

2001, p. 133, tradução nossa). Isso não significou a saída de Lipský do cinema popular. Da

mesma maneira, seu envolvimento com a comédia satírica, não pertencendo aos movimentos

3 Lemonade Joe, intitulado Joe Kolaloka na Argentina, referência ao refrigerante Coca-Cola e ao imperialismo

americano

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considerados vanguarda na história do cinema, a exemplo da Nova Onda Tcheca, constituiu um

posicionamento acrítico diante dos acontecimentos de seu tempo.

A seleção de Šťastný konec, lançado mundialmente como Happy End, se justifica na medida

em que desconstruções diversas elaboradas pelo filme permitem refletir sobre o tempo, o

movimento e a narrativa. Trabalhando os mesmos temas que envolvem a prática de ensino e o

ofício do historiador, a crise das utopias elabora questões preciosas sobre o que julgamos ser o

princípio, o meio e o fim da humanidade, ou o princípio, o meio e o fim da própria História.

Vale destacar que no jogo entre a metafísica e a história, entre o passado o presente, a visão de

Lipský, dependendo do ponto de vista, se torna distante apenas geograficamente, ela também

reelabora desconfortos próprios de nossa sociedade, como assinala José Carlos Reis:

Ao longo do último milênio, os historiadores ocidentais manifestaram preocupação

constante com o destino de uma "humanidade universal". Aterrorizados com as

experiências cada vez mais frequentes e brutais de guerras e invasões, injustiças

sociais, epidemias, fomes, catástrofes naturais, interrogam-se obsessivamente sobre

a história universal, sobre o seu sentido, sobre o dever ser da humanidade, sobre a

perfectibilidade humana, que poderia realizar na história. Perguntas metafísicas

orientaram as reflexões e pesquisas históricas no Ocidente: "quem somos?", "para

onde vamos?", "para que viemos e qual será o nosso destino?", "como obter a

salvação? ”. Essas perguntas revelam uma angústia fundamental, a experiência de

um permanente mal-estar de ser-no-tempo. O Ocidente sofre com a própria ausência

e procura construir uma imagem global, reconhecível e aceitável, de si mesmo. A

cultura ocidental se interroga sobre sua identidade, que generaliza como problema

do homem universal. Esse esforço obsessivo para atribuir um sentido inteligível,

universal à "vida humana" se explica pelo fato de a cultura ocidental não possuir

uma identidade sem fissuras e de precisar justificar seu expansionismo pelo mundo.

Ela se esforça para se integrar, luta para reconhecer em sua totalidade, para poder

expandir com a legitimação de um discurso claro e distinto, irretorquível. (REIS,

2003: p.15)

É nessa perspectiva que também será analisado, a partir de uma fonte que ocupou a porção leste

do conflito, o happy ending dos dois lados de um mundo ainda bipolar.

O Happy Ending Checo

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O filme Happy End, de 1967, mostra a história do açougueiro Bedřich Frydrych (Vladimír

Menšík) do nascimento até a morte. Porém, ele se utiliza de um subterfúgio narrativo ao contar

sua história em ordem inversa. Se acompanhássemos a trajetória do protagonista em uma ordem

cronológica sequencial, estaríamos diante de uma trama de adultério, assassinato,

desmembramento, condenação e execução.

Ao apresentar a ordem dos eventos de forma inversa, o filme consegue um efeito cômico, de

humor negro, forçando seus espectadores a uma interpretação ambígua dos eventos. Dessa

forma, Bedřich nasce quando a lâmina da guilhotina une cabeça e corpo, e morre em seu parto.

Todo o filme se desenrola de trás para frente, mostrando as ações ao contrário, plano a plano.

Quanto ao diálogo, as respostas vêm antes de perguntas, que vêm antes da resposta anterior.

Assim como a historiografia questionou a elaboração de uma História mecanicista, linear,

fazendo frente principalmente ao Positivismo do século XIX, o filme também joga com os

problemas encontrados em estruturas narrativas aristotélicas (início, meio, fim). Em Happy

End, a percepção de uma cadeia linear de causas e consequências ganha um duplo sentido.

Dessa forma, o filme exige muita atenção do espectador, e embora seja divertido, poderia se

tornar cansativo se fosse muito além de seus 69 minutos.

Do mesmo modo, para dar sentido ao filme, um dos estratagemas usados pelo diretor é a

narração pelo personagem principal, que ajuda a construir e dar sentido a uma linearidade na

trama invertida. Nesse sentido, a narração não desorienta, mas reorienta. O protagonista está

sempre comentando o que é mostrado com uma voz suave que soa autêntica e ingênua, mas que

tem função irônica. Ao mesmo tempo que confere coerência aos eventos em ordem invertida,

cria novas situações risíveis. Muito da comicidade se faz presente no contraste entre o narrado

e o visualizado.

Nesse contexto, o realizador monta o enredo selecionando momentos da trajetória da vida do

protagonista que sejam relevantes na construção da história de seu crime, mas que também

consigam ocasionar um comentário cômico.

Em uma cena, por exemplo, se fossemos considerar o tempo progressivo, o protagonista é

acordado por dois carcereiros para ser se vestir e se preparar para sua execução, mas na forma

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como o filme se apresenta, vemos Bedřich devolvendo a roupa com a qual “nasceu” aos

carcereiros, que o ajudam a repousar na cama para dormir. Na sequência, com a ajuda da

narração, a rotina da penitenciária é apresentada pelo protagonista como um seminário com um

sistema de ensino sofisticado, onde um dos passatempos é devolver comida no refeitório.

Com esse recurso, que antecipa inclusive o final da trama, presente no próprio título do filme,

estaria Lipský, em plena Guerra Fria, satirizando dois discursos rivais que se identificavam com

a “busca pela felicidade” nos dois lados do conflito?

Nesse contexto, para a complexidade narrativa funcionar sem maiores problemas, Lipský

apresenta um enredo simples e fácil. Dessa forma, ao passo que o espectador consegue entender

o funcionamento da narrativa, começam a ser apresentadas uma progressão de situações

regressivas relativas à vida de Bedřich. Seu crime, matar e desmembrar sua esposa infiel se

transforma na montagem de uma esposa para si. Em outro momento, surge Pavlinka, uma filha

da qual ele não conseguia se lembrar quando nasceu, e que tem a capacidade de produzir

dinheiro através de uma fogueira. Com o tempo, eles perdem a menina, que desaparece dentro

do ventre de sua mãe, cuja barriga aos poucos se esvazia. Em outra situação, sua esposa passeia

no zoológico com o amante, e os animais lhes cospem pães inteiros, pedaço por pedaço. E,

quando fica infeliz, ele se descasa com a presença de um padre, e em seguida, joga sua esposa

em um prédio em chamas e segue sua vida.

Segundo Tzvetan Todorov,

Ao nível mais geral, a obra literária [assim como qualquer narrativa] tem dois

aspectos: ela é ao mesmo tempo uma história e um discurso. Ela é história, no sentido

em que evoca uma certa realidade, acontecimentos que teriam ocorrido, personagens

que, deste ponto de vista, se confundem com os da vida real. Esta mesma história

poderia ter-nos sido relatada por outros meios; por um filme, por exemplo; ou poder-

se-ia tê-la ouvido pela narrativa oral de uma testemunha, sem que fosse expressa em

um livro. Mas, a obra é ao mesmo tempo discurso: existe um narrador que relata a

história; há diante dele um leitor que a percebe. Neste nível, não são os

acontecimentos relatados que contam, mas a maneira pela qual o narrador nos fez

conhecê-los. (TODOROV, 1973, pg. 211)

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Do mesmo modo, ao ressignificar os acontecimentos de sua própria vida, Bedřich Frydrych não

se assume como um mero narrador, mas como autor da própria história, assumindo o seu

próprio discurso e intervindo na narração, abordando diretamente o espectador.

Em plena Era Brejnev, ainda sofrendo os reflexos do processo de desestalinização, a narrativa

do açougueiro permite elucidar os conflitos gerados pela desconstrução de mitos, executada de

cima para baixo, em constante disputa e negociação com as vítimas da história. Nesse jogo,

longe de conferir respostas imediatas à grande leva de ressentidos, a efervescência da década

de 1960 provocou os limites de todo esse processo histórico.

Do mesmo modo, interessante notar como a interação entre o narrador/personagem, diretor e

espectador, esbarra com questões bastante similares com aquelas encontradas pela prática de

ensino em história. Esse dado pode ser ilustrado por meio de algumas perguntas da obra

Professores de história: entre saberes e práticas de Ana Maria Monteiro:

Quanto à utilização da narrativa, muitas questões podem ser levantadas: os

professores, ao desenvolver suas aulas, agiam como narradores? Construíram

narrativas para "contar" a História que ensinaram? Ou trabalharam na perspectiva

da história-problema, problematizando e argumentando, criando oportunidades para

que seus alunos desenvolvessem suas argumentações? A construção discursiva

elaborada pode ser considerada narrativa? Como as aulas de História foram

construídas? Elas expressavam a concepção da História 'evenementielle' do século

XIX? Qual o domínio que os professores tiveram sobre sua elaboração? Ela resultou

de uma problematização? Ou elas foram a expressão da História processo-progresso

cujos nexos de causalidade são dados pela dimensão temporal, pela cronologia, de

forma aparentemente naturalizada? (MONTEIRO, 2007, p. 187)

No diálogo com o espectador, o diretor se aproxima da história-problema, aproveitando o meio

audiovisual de forma inovadora, permitindo ao espectador reelaborar a história, interpretando

a narração em voz com as imagens mostradas.

Do mesmo modo, Todorov comenta a importância dos formalistas russos para tornar explícita

a distinção entre os acontecimentos e seus relatos: “Chklovski declarava que a história não é

um elemento artístico, mas um material pré-literário; somente o discurso era para ele uma

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construção estética. [...] Entretanto os dois aspectos, a história e o discurso, são todos os dois

igualmente literários” (TODOROV, 1973, pg. 212).

Trazendo um novo questionamento, que muitas vezes reconhece a história como uma abstração,

seguindo a lógica de que ela não existe no nível de acontecimentos compartimentados, mas é

sempre percebida e narrada por alguém, Jacques Le Goff orienta logo no prefácio de Apologia

da História ou ofício do historiador:

Escutemos bem Marc Bloch. Ele não diz: a história é uma arte, a história é literatura.

Frisa: a história é uma ciência, mas uma ciência que tem como uma de suas

características, o que pode significar sua fraqueza, mas também sua virtude, ser

poética, pois não pode ser reduzida a abstrações, a leis, a estruturas. (BLOCH, 2002:

p.19)

E é em uma atmosfera de crise e efervescência na Checoslováquia, de transformação e resgate,

que novas reelaborações do passado buscam novos sentidos, questionando a própria noção de

tempo e de narrativa. Vale ressaltar o choque que esse novo tempo provocou em uma memória

oficial, que geralmente faz uso de uma narrativa mais geral, esperando forjar mitos e uma

identidade nacional única.

Produzido um ano antes da Primavera de Praga, Happy End não lida diretamente com temas

comuns na Nova Onda Tcheca. Ao lado das produções mais sérias da época, ele foi considerado

uma piada banal. No entanto, considerando o contexto político em que o filme surgiu, sua trama

denota um subtexto de alegria, liberdade e emoção, seguindo as intenções de Alexander Dubček

de abrandar a influência da Moscou soviética sobre o povo tcheco. Logo, longe de representar

apenas um filme sobre a vida de um prisioneiro, com as suas sequências apresentadas de forma

inversa, no experimento de Lipský somos levados perceber que “uma vez rompido o tabu, uma

vez que as memórias subterrâneas conseguem invadir o espaço público, reivindicações

múltiplas e dificilmente previsíveis se acoplam a essa disputa da memória” (POLLAK, 1989,

p. 5). A memória do açougueiro serve como uma metáfora das memórias em disputa durante a

desestalinização. O roteiro e abordagem narrativa confirmariam a emergência de novas

metodologias para a compreensão da realidade.

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Não perdendo de vista as diferenças entre um filme ficcional e a ciência histórica, mas

aproximando e relacionando objetos de análise em comum, percebemos que em Happy End o

personagem principal é também narrador, mas dentro de uma outra lógica, que na verdade

marcaria uma dupla narração: a do protagonista e a do próprio cineasta. Nesse contexto, a

importância do presente e o posicionamento do diretor também se fazem presente. E embora o

esforço narrativo de Lipský não seja ostensivamente político, ainda assim:

(...) pode ser interpretado como uma sátira tanto sobre a sociedade capitalista que

representa e (potencialmente) sobre a promessa marxista implícita de uma reversão

da injustiça social. Parte dessa ambiguidade, e muito do humor, está no uso de uma

simples inversão técnica para gerar novos significados a partir de um texto

previamente existente, sugerindo que a confusão pode de fato ser estendida para além

da ideia de uma simples reflexão invertida da realidade percebida. (ATTARDO,

2013, p. 397, tradução nossa)

Considerações Finais

Até os dias atuais, muitos opõem e hierarquizam as ciências naturais e as exatas frente às

humanidades. Entre as justificativas apontadas, como no caso das ciências naturais, o “acerto”

e a “verdade” se relacionam apenas ao primeiro campo do conhecimento, ressaltando por meio

do caráter empírico de suas análises, uma maior exatidão em suas conclusões.

Essa visão, bastante presente no senso comum, pauta algumas políticas públicas que incluem

muitas aulas dessas áreas do conhecimento no sistema de ensino em detrimento das disciplinas

de história, sociologia e filosofia. Outros tantos radicalizam, discutindo inclusive o fim do

ensino de algumas disciplinas das humanidades, concluindo erroneamente que os seus objetivos

se prestam apenas para o dogmatismo político e ideológico. De um extremo ao outro, escapa a

noção de que campos do conhecimento partem de metodologias distintas, com objetos variados.

Essa concepção simplista, reducionista, que transpõe a lógica de um saber para o outro sem as

devidas precauções, auxilia inclusive na reprodução desse equívoco. Do mesmo modo, não

permite desconstruir determinadas intenções, presentes em discursos que geralmente projetam

apenas nos outros, principalmente em representantes de alguma oposição política, a presença

de uma ideologia e um dogmatismo. Esse dado, sozinho, já poderia justificar a importância do

ensino e estudo da História.

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Mesmo com um significativo avanço na reflexão sobre a produção dos historiadores e o ensino

da história, ainda existe um grande distanciamento entre o que é produzido nas universidades e

de como as pessoas fora do âmbito acadêmico percebem essa área do conhecimento. Nesse

sentido, não importa a busca por uma verdade, mas o questionamento da própria verdade

apresentada, nem uma conclusão fixa no tempo e no espaço, mas a revisão contínua, a avaliação

e reavaliação de como percebemos o tempo passado no nosso tempo.

Tudo quanto se diz ou se escreve, tudo quanto se produz e se fabrica pode se tornar um objeto

de estudo no laboratório reflexivo da história. A forma como examinamos determinadas fontes

revela quem somos, os nossos interesses. Do mesmo modo, as representações que construímos

dos outros, como nós nos identificamos diante do mundo. Conhecer a história significa

conhecermos a nós mesmos. Como José Carlos Reis observa, a própria noção de como “O

Ocidente sofre com a própria ausência e procura construir uma imagem global, reconhecível e

aceitável de si mesmo” (REIS, 2003, p.15) merece ser avaliada.

A riqueza do trabalho junto aos documentos atesta não apenas a necessidade de construção de

fatos históricos importantes. Como exemplificou o exame da obra de Oldřich Lipský, serve

como um excelente pretexto para refletir e exercitar a desconstrução de paradigmas diversos,

capacidade que deveria ser considerada cara não apenas aos historiadores.

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