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FELLIP AGNER TRINDADE ANDRADE
HARRY POTTER: A IMAGINAÇÃO DE UMA COMUNIDADE
São João del-Rei
Setembro de 2017
FELLIP AGNER TRINDADE ANDRADE
HARRY POTTER: A IMAGINAÇÃO DE UMA COMUNIDADE
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
-graduação em Letras da Universidade Federal de
São João del-Rei, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Letras.
Área de concentração: Teoria Literária e Crítica da
Cultura.
Linha de Pesquisa: Literatura e Memória Cultural
Orientador: Prof. Dr. Anderson Bastos Martins
São João del-Rei
Setembro de 2017
FELLIP AGNER TRINDADE ANDRADE
HARRY POTTER: A IMAGINAÇÃO DE UMA COMUNIDADE
Banca examinadora:
Prof. Dr. Anderson Bastos Martins – UFSJ Orientador
Profª. Dra. Nícea Helena de Almeida Nogueira – UFJF – Titular Externo
Profª. Dra. Eliana da Conceição Tolentino – UFSJ – Titular Interno
Prof. Dr. Luiz Manoel da Silva Oliveira – UFSJ – Suplente
Prof. Dr. Anderson Bastos Martins
Coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras
São João del-Rei, setembro de 2017
AGRADECIMENTOS
À Capes, pelo financiamento da pesquisa.
Ao Prof. Anderson Bastos Martins, pela orientação.
E a Todos que, de uma forma ou de outra, contribuíram para a conclusão deste trabalho.
“Ele vai ser famoso, uma lenda [...] Vão escrever
livros sobre Harry. Todas as crianças no nosso
mundo vão conhecer o nome dele!”
Minerva McGonagall (J. K. Rowling)
RESUMO
Esta dissertação tem como objetivo mapear a trajetória da série de livros Harry Potter desde
seu surgimento como coleção de romances infanto-juvenis até sua consolidação como signo
central de um fenômeno cultural global. Trabalhando os principais conceitos que são
tensionados pelo fenômeno Harry Potter (como os conceitos de autoria e recepção),
investigaremos a formação de uma comunidade global de leitores e fãs da série, apresentando
o fenômeno como uma referência sociocultural para a sua comunidade de leitores e para além
dela, bem como a relação entre a autora J. K. Rowling e essa comunidade quanto à manutenção
da série Harry Potter como obra inacabada.
Palavras-chave: globalização; referência cultural; comunidades interpretativas.
ABSTRACT
This MA thesis aims to map out the trajectory of the Harry Potter series since its emergence as
a collection of children's novels until its consolidation as a central sign of a global cultura l
phenomenon. Working on the main concepts that are strained by the Harry Potter phenomenon
(such as the concepts of authorship and reception), we will investigate the formation of a global
community of readers and fans of the series, presenting the phenomenon as a sociocultura l
reference for their community of readers and beyond it, as well as the relationship between
author J.K. Rowling and this community, regarding the maintenance of the Harry Potter series
as an unfinished work.
Key-words: globalization; cultural reference; interpretive communities.
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS.............................................................................................................. 8
INTRODUÇÃO......................................................................................................................... 9
CAPÍTULO 1 - “MAGIA É PODER” .................................................................................. 17
1.1 – De feitiços e encantamentos.................................................................................. 19
1.2 – A exumação do autor ............................................................................................ 27
CAPÍTULO 2 – “POTTERMORE” AND MORE ............................................................. 50
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 84
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 91
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 ...................................................................................................................................40
Figura 2 ...................................................................................................................................42
Figura 3 ...................................................................................................................................43
Figura 4 ...................................................................................................................................43
Figura 5 ...................................................................................................................................43
Figura 6 ...................................................................................................................................44
Figura 7 ...................................................................................................................................45
Figura 8 ...................................................................................................................................47
Figura 9 ...................................................................................................................................47
Figura 10 .................................................................................................................................48
Figura 11 .................................................................................................................................70
Figura 12 .................................................................................................................................70
Figura 13 .................................................................................................................................71
Figura 14 .................................................................................................................................71
Figura 15 .................................................................................................................................72
Figura 16 .................................................................................................................................72
Figura 17 .................................................................................................................................72
Figura 18 .................................................................................................................................75
Figura 19 .................................................................................................................................76
Figura 20 .................................................................................................................................77
Figura 21 .................................................................................................................................77
Figura 22 .................................................................................................................................78
Figura 23 .................................................................................................................................79
Figura 24 .................................................................................................................................79
Figura 25 .................................................................................................................................80
Figura 26 .................................................................................................................................80
9
INTRODUÇÃO
Cada vez mais, nossas ações culturais, nossas leituras e as mais diversas relações e
interações humanas vêm sendo modificadas de forma a se adaptarem aos dias atuais e aos
fenômenos culturais, sociais e políticos que hoje ocorrem.
Nossa relação com as novas tecnologias de informação e de comunicação, com as
influências do capitalismo, do pós-colonialismo e do pós-modernismo, bem como nossas
relações com os (re)arranjos globais, causaram e ainda hoje causam grande impacto em nossa
relação estética com a arte (JAMESON, 1984; ADORNO & HORKHEIMER, 1985;
HUTCHEON, 1987; APPIAH, 1993; MARCUSE, 1998), bem como no que se refere ao
consumo do bem cultural e artístico (APPIAH, 1993; BHABHA, 1994; GUPTA, 2009a).
O mercado de bens culturais, a indústria do entretenimento, dentre outros fatores que
influenciam nossa interação com o mundo e a arte, vêm modificando nosso olhar em relação a
conceitos teóricos já estabelecidos e em relação à própria ideia de arte e cultura (BOURDIEU,
2009). A reordenação e (re)criação de espaços físicos, conceituais e virtuais, os novos conceitos
de interatividade e de comunidades locais e globais, dentre outros fenômenos em atuação pelo
mundo, nos colocam em uma nova posição em relação à cultura; em especial, neste trabalho,
nossa relação com a literatura.
[O]s efeitos do desenvolvimento tecnológico das redes de informação e de comunicação, os motores das forças de globalização, não são meramente representados dentro da literatura; eles também atuam sobre a literatura de forma abrangente. Levar em conta a globalização muda a própria maneira em que a literatura é pensada, disseminada e consumida, e, até mesmo, constituída. (GUPTA, 2009a, p.53, tradução nossa)1
Para compreendermos essas mudanças operadas na literatura, desde os modos de
produção aos modos de recepção, precisamos ter em mente a ideia de globalização e os
diferentes fatores que a constituem, bem como seus efeitos sobre os mais diversos campos do
conhecimento e de nossas relações com o mundo.
[B]asta referir à globalização como um complexo de operações transculturais
1 “[…] the effects of technological enhancement of information and communication networks, the drives of
globalization forces, are not merely represented within literature; they also comprehensively act upon literature.
Reckoning with globalization changes the very way in which literature is thought about, disseminated and
consumed, and even constituted.”
10
caracterizado principalmente por três fatores: 1) a presença das novas tecnologias de informação e de comunicação; 2) o surgimento de novos mercados globais; e 3) a mobilidade dos povos e níveis de imigração sem precedentes, com os deslocamentos culturais que os acompanham. Os dois primeiros são causais, o terceiro geralmente é um efeito: isto é, as novas tecnologias de informação e o surgimento de novos mercados globais impulsionam a imigração - de fato, frequentemente mais forçam do que facilitam. (ZAMORA, 2002, p. 2, tradução nossa)2
Em seu livro Language and Globalization (2006), Norman Fairclough trata do termo
globalização de forma a evidenciar seu uso e sua justificativa em diversos discursos nos quais
esse processo se encontra de alguma forma inserido:
Não podemos fugir do fato de que, embora a ‘globalização’ seja um conjunto de mudanças que estão realmente acontecendo no mundo (e embora o que esse conjunto inclua seja altamente controverso), é também uma palavra que, muito recentemente, tornou-se proeminente nos meios em que tais modificações são representadas. Mas esta é uma simplificação, porque a palavra ‘globalização’ é usada em vários sentidos no âmbito de discursos mais complexos, os quais são caracterizados, em parte, por vocabulários distintos nos quais a ‘globalização’ está relacionada em particulares (e divergentes) maneiras com relação a outras ‘palavras-chave’, tais como 'modernização’, ‘democracia’, ‘mercados’, ‘livre comércio’, ‘flexibilidade’, ‘liberalização’, ‘segurança’, ‘terrorismo’, ‘cultura’, ‘cosmopolitismo’ e assim por diante. E esses discursos são mais do que vocabulários – eles também diferem em aspectos gramaticais [...], bem como as formas de narrativa, formas de argumentação e assim por diante. (FAIRCLOUGH, 2006, p. 4, tradução nossa)3
Dessa maneira, a utilização do termo globalização e as implicações de seu uso, bem
como suas interpretações (CONNELL & MARSH, 2011; PASSET, 2003; WARNIER, 2003),
estão em concordância com o trabalho aqui proposto.
A produção, recepção e circulação dos textos são apenas alguns dos aspectos
diretamente influenciados pela ação da globalização e pelo sistema capitalista na noção de
2 “[...] it is sufficient to refer to globalization as a complex of transcultural operations characterized primarily by
three factors: 1) the presence of new information and communication technologies; 2) the emergence of new global
markets; and 3) the unprecedented mobility of peoples and levels of immigration, with their accompanying cultural
displacements. The first two are causal, the third is usually an effect: that is, new information technologies and the
emergence of new global markets impel immigration - indeed, more often force than facilitate it.” 3 “We cannot get away from the fact that although ‘globalization’ is a set of changes which are actually happening
in the world (though what the set includes is highly controversial), it is also a word which has quite recently
become prominent in the ways in which such changes are represented. But this is a simplification because the word
‘globalization’ is used in various senses within more complex discourses, which are partly characterized by
distinctive vocabularies in which ‘globalization’ is related in particular (and differing) ways from other ‘keywords’
such as ‘modernization’, ‘democracy’, ‘markets’, ‘free trade’, ‘flexibility’, ‘liberalization’, ‘security’, ‘terrorism’,
‘culture’, ‘cosmopolitanism’ and so forth. And these discourses are more than vocab ularies – they also differ in
grammatical features […] as well as forms of narrative, forms of argumentation and so forth.”
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cultura, sobretudo no que diz respeito à indústria do entretenimento e ao mercado editorial.
Além disso, ainda temos a influência irreversível das novas tecnologias de
comunicação e informação, as quais permitem a troca imediata de conteúdo e ainda possibilitam
um contato amplo com diversos espaços virtuais e diferentes comunidades que hoje se
encontram a um clique de distância: “Agora a comunicação é tecnicamente multiplicada,
facilitada em larga escala [...]” (MARCUSE, 1998, p. 158).
Um dos exemplos da ação desses fatores na literatura é o fenômeno best-seller.
Alavancado e sustentado pela globalização dos mercados, dos bens culturais e, até mesmo, dos
bens de consumo, o fenômeno best-seller hoje se apresenta como devedor e, ao mesmo tempo,
credor da ação da globalização e do capitalismo na literatura, sobretudo quando se fala do
mercado editorial e da indústria do entretenimento.
Ele, o best-seller, nasce da influência capitalista dos desdobramentos sociais e
políticos, e ajuda na dinâmica desses mesmos processos, indo, até mesmo, além do nicho
literário. Os best-sellers, à medida que estabelecem diálogo com as diferentes mídias, tornam-
-se capazes de criar e manter redes mundiais de conexões e de interações, as quais, hoje, não
são mais apenas imaginadas ou idealizadas, mas são, de fato, compartilhadas por suas
comunidades.
É justamente no fato de transpor as mais diferentes fronteiras, das físicas às
ideológicas, que se encontra o fator globalizado e globalizante do best-seller em sua vertente
contemporânea. O seu poder de integralização é certamente sua principal característica: é essa
criação ou ocupação desse espaço comum, compartilhado pelos mais diversos tipos de sujeitos
e suas comunidades interpretativas de alcance global.
Um dos exemplos mais recentes e de grande destaque é a série de livros infanto-juvenis
Harry Potter, a qual se tornou referência da cultura de massa, da literatura em escala global e
dos números milionários do comércio editorial. A série de fantasia infanto-juvenil da autora
britânica Joanne (Kethleen) Rowling (1965-) se tornou, em um curto espaço de tempo,
referência na indústria literária, a qual se explica por seus números expressivos de venda e de
comercialização de seus subprodutos (TIME, 2013).
Publicado em 1997 na Inglaterra, o primeiro volume da série de sete livros, Harry
Potter e a Pedra Filosofal, conta a história do pequeno órfão Harry Potter, deixado no batente
da porta de seus tios em uma pequena cidade localizada no condado de Surrey, ao sul de
Londres. Tendo crescido no armário debaixo da escada e acreditando que seus pais haviam
morrido em um acidente de carro, Harry passa dez anos de sua vida como alvo do ódio de seus
12
tios Válter e Petúnia e de seu primo Duda.
Às vésperas de completar onze anos de idade, Harry recebe uma carta misteriosa. A
carta era nada menos que um convite para estudar na Escola de Magia e Bruxaria Hogwarts e
vinha acompanhada de uma lista de livros e equipamentos necessários. Só após a descoberta de
sua real condição como bruxo, Harry finalmente descobre fatos importantes de seu passado,
como a morte dos pais, assassinados por Lord Voldemort.
Cada vez mais poderoso e perigoso, Voldemort começou a procurar seguidores para
si, recrutando bruxos de grande poder para que o ajudassem em seus planos nefastos. Dentre
eles, os pais de Harry se tornaram alvo do desejo do Lorde das Trevas. Como os pais do garoto,
Lílian e Tiago Potter, eram muito ligados a Dumbledore, diretor de Hogwarts e um dos bruxos
mais poderosos e respeitados de todos os tempos, Voldemort manteve-se afastado dos Potter
durante muito tempo.
Talvez ele achasse que podia convencê-los... talvez quisesse tirar os dois do caminho. Só o que sabemos é que ele apareceu na vila em que vocês estavam morando, num dia das bruxas, faz dez anos. Na época você só tinha um ano de idade. Ele foi à sua casa e... e... (ROWLING, 2000a, p. 52)
E, então, Harry finalmente passa a conhecer a verdadeira história por trás da morte de
seus pais e de sua cicatriz na testa em forma de raio.
Você-Sabe-Quem matou os dois. E então, e esse é o verdadeiro mistério da coisa, ele tentou matar você. Queria fazer o serviço completo, acho, ou então tinha começado a gostar de matar. Mas não conseguiu. Você nunca se perguntou como arranjou essa marca na testa? Isso não foi um corte normal. Isso é o que se ganha quando um feitiço poderoso e maligno atinge a gente; destruiu os seus pais e até a sua casa, mas não fez efeito em você, e é por isso que você é famoso, Harry. Ninguém nunca sobreviveu depois que ele decidia matá-lo, ninguém a não ser você, e ele já havia matado alguns dos melhores bruxos da época [...], e você era apenas um bebê, e sobreviveu. (ROWLING, 2000a, p. 53)
A partir de então, Harry é apresentado ao mundo mágico na companhia dos leitores,
uma vez que estes só têm acesso à história e ao mundo dos bruxos por meio das experiências e
descobertas do personagem que, não por acaso, dá nome à série.
Tendo crescido longe das manchetes de jornais do mundo bruxo e de sua fama precoce,
Harry fora introduzido à sua própria história de forma tardia e inocente, o que lhe rendera grande
modéstia e ignorância acerca dos assuntos mágicos. Esse fato, por sinal, lhe garante grandes
descobertas durante toda a série, as quais são compartilhadas com os leitores até o fim, uma vez
13
que o leitor, ainda que por meio de um narrador onisciente, só tem acesso aos acontecimentos
por meio daquilo que Harry sabe ou passa a conhecer a respeito da história (exceto por cinco
capítulos em toda a série).
Uma vez no mundo bruxo, Harry começa a descobrir suas habilidades mágicas, bem
como a vida nesse mundo paralelo ao mundo dos trouxas, isto é, pessoas não mágicas (muggles,
na versão original). Aos poucos, Harry começa a descobrir fatos relacionados ao seu passado e
ao passado de seus pais. Como um garoto comum, Harry passa por diversas dificuldades em se
adaptar à nova vida na escola de magia e bruxaria (uma espécie de internato) e descobre logo
os dois lados da magia.
Nesse primeiro volume da série, além de começar a lidar com sua fama e tudo aquilo
de bom e de ruim que ela atrai, Harry percebe que o mundo mágico é tão perigoso quanto
encantador. Nos últimos capítulos de Harry Potter e a Pedra Filosofal, Harry é posto cara a
cara com o assassino de seus pais e seu maior inimigo, Lord Voldemort.
A partir de então, a série segue com mais seis volumes, os quais abordam a vida e as
aventuras de Harry e seus amigos na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts: Harry Potter e
a Câmara Secreta (2000); Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban (2000); Harry Potter e o
Cálice de Fogo (2001); Harry Potter e a Ordem da Fênix (2003); Harry Potter e o enigma do
Príncipe (2005); e Harry Potter e as Relíquias da Morte (2007).
Sendo um dos maiores exemplos do fenômeno best-seller (sobretudo por não se
restringir ao universo literário e muito menos a um segmento de leitores), Harry Potter alcançou
grande sucesso e vendas recordes ao redor do mundo, faturando cifras bilionárias, tanto com os
livros como com seus subprodutos dos mais diversos tipos: de roupas a jogos eletrônicos, de
filmes a parques temáticos.
Nenhum trabalho literário tem mais credibilidade no mercado de massa a nível global na primeira década do século XXI do que os sete romances de "fantasia infantil" da série Harry Potter de J. K. Rowling (1997-2007). [O]s livros da série venderam mais de 400 milhões de cópias em todo o mundo, foram traduzidos para mais de sessenta línguas, transformados em filmes que se tornaram, cada um, sucessos de bilheteria extraordinários, foram usados com sucesso para o benefício das indústrias de brinquedos e jogos eletrônicos, foram submetidos à mais sustentada e congratulatória exposição da mídia de massa de todos os tempos, transformaram a fortuna de várias empresas associadas aos produtos de Harry Potter (começando com a editora Bloomsbury) e ajudaram a fazer sua autora uma das escritoras mais ricas e célebres do mundo. (GUPTA, 2009a, p. 157, tradução nossa)4
4 “No literary work has more mass-market credibility, at a global level, in the first decade of the twenty-first
century than the seven ‘children’s fantasy’ novels in J. K. Rowling’s Harry Potter series (1997-2007). [B]ooks in
14
Servindo de referência cultural a uma multidão de leitores e fãs, Harry Potter se
apresenta como muito mais que uma série literária infanto-juvenil. Seus personagens e suas
cenas icônicas se tornaram, de fato, referências culturais. Desde comentários acerca da disputa
à Casa Branca a palestras de respeitados professores universitários, os personagens da série são
frequentemente tratados como alegorias ou simplesmente como referências de comportamento,
ideologia e, até mesmo, de caráter.
Seja o vilão da história, Lord Voldemort, “Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado”
(ROWLING, 2003, p. 683), ou a melhor amiga de Harry, Hermione, a “menina tão mandona e
metida a saber de tudo” (ROWLING, 2000a, p.143), a série Harry Potter se consolidou como
referência cultural para sua própria comunidade e para além dela, tornando-se um fenômeno
sociocultural em si.
Tão prodigioso foi o sucesso comercial e a recepção do público com a série Harry Potter que parece difícil explicar pelos textos – onde a crítica literária ainda se sente mais à vontade – e parece mais com um tipo de fenômeno sócio-político-econômico. (GUPTA, 2009a, p. 157, tradução nossa)5
Ainda hoje, anos após a publicação de seu último livro, a série e seus personagens são
frequentemente requisitados como referência cultural e (re)lidos por milhões em todo o mundo,
desde os Estados Unidos da América até o mercado negro da Coréia do Norte (ANG, 2005),
passando pela ilha de Cuba (UNITED STATES GOVERNMENT ACCOUNTABILITY
OFFICE, 2006) e pela República Popular da China (isso sem contar o alcance de seus
subprodutos, como filmes, jogos eletrônicos, brinquedos, roupas, dentre outros).
Sendo assim, sua característica de fenômeno globalizado (pois nasce da globalização)
e globalizante (uma vez que ajuda a afirmar aquilo que o criou) não pode ser deixado de lado,
pois talvez seja sua característica mais peculiar e, possivelmente, a de maior importância.
Com o objetivo de tratar do fenômeno Harry Potter e alguns de seus desdobramentos,
como produção e recepção (COMPAGNON, 2014), influência, noção de autoria (BAKHTIN,
the series have reportedly sold over 400 million copies worldwide, have been translated into over sixty languages,
have been turned into films which have each been extraordinary box office hits, have been used successfully for
the benefit of the toy and computer game industries, have been subjected to the most sustained and congratulatory
mass-media exposure ever, have turned the fortunes of several firms associated with Harry Potter products (starting
with the publisher Bloomsbury), and have helped make its author one of the richest and most celebrated in the
world.” 5 “So prodigious has the commercial success and popular reception of the Harry Potter series has b een that it
seems scarcely explicable through the texts – where literary criticism is still most comfortable – and appears
more as a kind of social-politico-economic phenomenon.”
15
1988, 1990; BAKHTIN & MEDVEDV, 1978; BARTHES, 2004) e referência cultura l
(GUPTA, 2009a, 2009b), a noção de globalização e seus desdobramentos é de total importânc ia
e justificativa para a pesquisa da performance literária da série e suas consequências, ou seja,
seu caráter de fenômeno cultural e sua comunidade global de leitores e fãs.
O sucesso comercial, por si só, certamente nos levaria a uma análise superficial do
fenômeno, uma vez que esse sucesso poderia ocupar apenas um segmento específico de público.
Entretanto, levando em conta o aprofundamento investigativo e o espaço singular ocupado pela
série, este trabalho pretende investigar as diferentes causas desse fenômeno cultural e da
comunidade global de Harry Potter: sua recepção, a questão de autoria e sua influência na obra,
sua referência cultural e os fatores que o caracterizam como um fenômeno global, e que, como
tal, é responsável pela criação e manutenção de uma extensa comunidade de leitores e fãs.
Ultrapassando as fronteiras do público infanto-juvenil e quebrando as barreiras da
literatura, a série, alavancada pelos avanços tecnológicos de comunicação, pela convergênc ia
de mídias e tomando proveito desses e outros fatores da era digital, consegue ainda hoje, anos
após o lançamento do último livro, manter-se relevante na indústria do entretenimento, como
uma matéria prima a ser manufaturada ao máximo.
Nesse contexto, não apenas a série se torna um produto de manufatura, mas, também,
a figura da autora. Com a consolidação e o crescimento dos best-sellers em geral, seus autores
passaram a ocupar um espaço até então desconhecido por grande parte dos escritores, sobretudo
aqueles que surgiram antes que a literatura sofresse grande influência da globalização e do
capitalismo. Os autores de best-sellers se tornam, quase que automaticamente, influenciado res
sociais, alçados a listas de vendas e de influência de respeitados jornais e revistas, como o The
New York Times e a Time.
J. K. Rowling é, certamente, um dos maiores exemplos dessa posição alcançada pelos
autores de best-sellers. Não bastasse ser o maior exemplo de autor celebridade na atualidade
(BBC, 2017), Rowling ainda é um dos maiores exemplos da influência direta do autor em sua
obra.
Por meio das redes sociais e da plataforma de leitura interativa Pottermore, a autora
mantém contato constante com sua comunidade virtual, modificando os desdobramentos da
história presente nos livros, bem como indo além de suas páginas, apresentando novas histórias
de seu mundo mágico (o qual continua a atrair milhões de fãs).
Esse encantamento pelo universo de Harry Potter é também um dos fatores que atraem
tamanha atenção à série. O mundo fantástico criado por Rowling se torna objeto de desejo de
16
milhões de leitores ao redor do mundo e, sobretudo, não se limita apenas ao universo literár io,
mas ao universo cultural. Seja por seu status de best-seller, pelo encantamento mágico
provocado pelos livros, ou ainda pela referência de cultura pop que a série se tornou, o
fenômeno Harry Potter, ainda hoje, atrai leitores e fãs ao redor do mundo.
Quebrando as barreiras impostas pelo livro e desbravando um novo espaço para a
(re)criação e sobrevivência de sua história e de seus personagens, a série se tornou referência
de longevidade e de adaptação ao mundo virtual. Sem perder sua aura mágica na era digita l
(muito pelo contrário, o aporte digital contribui para o encantamento da série), Harry Potter se
mantém presente na cultura global como referência icônica e imagética de toda uma geração de
leitores e fãs.
O ponto principal deste trabalho é, pois, a busca do fenômeno Harry Potter como um
fenômeno sociocultural e não apenas mercadológico, sobretudo no que diz respeito à criação e
manutenção de sua comunidade global. Levando em conta o aprofundamento investigativo e o
espaço singular ocupado pela série (o que também justifica sua tomada como objeto deste
trabalho), pretende-se mapear a formação dessa comunidade e alguns dos principais fatores que
a constituem, como as noções de autoria e de recepção da obra, bem como sua referência
cultural.
17
CAPÍTULO 1 - “MAGIA É PODER”
“Palavras são, na minha nada humilde opinião,
nossa inesgotável fonte de magia.”
Alvo Dumbledore (J. K. Rowling)
Na história da literatura, vários são os exemplos de trabalhos que se tornaram
referência cultural de seu tempo e para além dele, desde Dom Quixote de La Mancha (1605) a
Madame Bovary (1857); de Os Três Mosqueteiros (1884) a O Pequeno Príncipe (1943); dos
registros feitos pelos Irmãos Grimm (1785-1863/1786-1859) à mitologia criada por J. R. R.
Tolkien (1892-1973). Obras que transcenderam a ideia de valor literário e se tornaram mais que
referências literárias: tornaram-se referências culturais para além de seus próprios escritos.
Seja por seu ineditismo ou por sua controvérsia, algumas obras se tornaram ponto de
referência nos estudos literários, bem como nos estudos culturais. O destaque de uma obra
literária dentre as de seu tempo ou em relação aos trabalhos anteriores e posteriores a ela sempre
esteve presente na história da literatura.
No entanto, a extrapolação do campo literário para o campo cultural não se caracteriza
como via de regra a obras de destaque e de bons desempenhos críticos e mercadológicos; essa
é uma especificidade restrita a obras que, seja por sua importância literária ou simplesmente
por seu impacto social, tornaram-se referências culturais.
Um dos exemplos desse acontecimento, e também um dos mais recentes e de grande
repercussão, é a série de livros Harry Potter. Premiada, lida pelos mais diversos públicos,
adaptada para o cinema e tema recorrente em jornais e revistas, muito mais que um sucesso de
vendas, Harry Potter ultrapassou as fronteiras do fenômeno best-seller e se estabeleceu como
um fenômeno em si mesmo, como uma referência da cultura de massa.
Além de referência literária, comportamental e icônica de toda uma geração de leitores
em escala global, a série de livros de fantasia de J. K. Rowling ocupa um espaço singular na
literatura e na cultura mundial, desde vendas que ultrapassaram os 450 milhões de cópias
(MOIR, 2016) a referências socioculturais que ultrapassaram o universo literário e se
estabeleceram no imaginário de toda uma comunidade, a exemplo de outras obras, como Moby
Dick (1851).
18
A história da tripulação do Pequod e seu fatídico encontro com a grande baleia branca,
a qual empresta seu nome ao título da aclamada obra de Herman Melville (1819-1891), tornou-
-se um dos maiores símbolos culturais da sociedade estadunidense. Moby Dick passou a ser
uma de suas maiores referências, sendo esta frequentemente relembrada, desde comentários
esportivos acerca das campanhas dos times de futebol americano da NFL (National Football
League) a campanhas eleitorais à presidência norte americana (BUELL, 2014).
Em seu livro, The Great American Novel (2014), Lawrence Buell atenta ao capital
cultural do romance de Melville e todas as suas referências à sociedade americana, bem como
o fato de essas referências terem feito com que a própria história se tornasse um grande
catalisador do “espírito americano”, fazendo com que todas essas diversas referências à
sociedade estadunidense se tornassem uma só: o próprio romance.
Além de sua referência cultural na sociedade norte americana, Lawrence Buell também
ressalta o que ele chama de “Moby Dick industry” (BUELL, 2014, p. 359). Essa indústria em
torno do romance de Melville está presente, como bem ressalta Buell, desde a maior rede
internacional de cafeteria, a Starbucks (nome inspirado em um dos personagens do livro,
Starbuck, o jovem oficial chefe da embarcação), até os desenhos animados dos estúdios
americanos. Ou seja, seu capital cultural transita do bem de consumo à alegoria política e social.
A disseminação de Moby-Dick como texto e sua fertilidade como objeto de imitação, como ícone, como logotipo, como metáfora, não pararam nas fronteiras nacionais, da mesma forma que o Pequod também não. A icônica baleia de Melville foi “reencarnada como um ferry boat com dentes em Berlim e como um origami japonês; emerge em um bar de Paris, em um restaurante de Istambul, em uma cafeteria de Zagreb.” Ela inspirou o nome de um fornecedor de iate grego, bem como [...] a Starbucks. Como se não bastasse, a trama de Moby-Dick serviu por mais de meio século para alegorizar assuntos nacionais e internacionais em miniforma. Uma série de líderes nacionais, de Adolf Hitler a George W. Bush e Barack Obama, têm sido representados como o Capitão Ahab. Para aqueles que consideram aquela guerra um erro terrível, o romance "revela a abominável verdade da intervenção americana no Vietnã." (BUELL, 2014, p. 359, tradução nossa)6
6 “Moby-Dick’s dissemination as text, and its fertility as object of imitation, as icon, as logo, as metaphor, have no
more stopped at the nation’s borders than the Pequod did. Melville’s iconic whale has been ‘reincarnated as a
toothy ferry boat in Berlin and as Japanese origami; it emerges in a Paris bar, an Istanbul restaurant, a Zagreb
coffee shop.’ It has inspired the naming of a Greek yacht supplier as well […] Starbucks. On top of that, Moby-
Dick’s plot has served for more than half a century to allegorize national and world affairs in miniform. A series
of national leaders from Adolf Hitler to Georg W. Bush to Barack Obama have been framed as Capitan Ahabs. To
those who consider that war a dreadful mistake, the novel ‘speaks the awful truth of the American intervention in
Vietnam.’”
19
Da mesma forma que o romance de Melville, Harry Potter conseguiu o feito que
poucos trabalhos literários alcançaram (e muitos deles até mesmo pertencentes ao chamado
cânone); no entanto, diferentemente de Moby Dick, Harry Potter o fez em escala global.
1.1 – De feitiços e encantamentos
“Nenhuma história vive, a menos que alguém
queira ouvi-la...”
J. K. Rowling
Publicada pela primeira vez em 1997 pela até então modesta editora londrina
Bloomsbury, a série Harry Potter tornou-se um fenômeno, tanto em números quanto em
relevância cultural. Em um curto espaço de tempo, a série de livros inicialmente voltada para o
público infantil, rejeitada por mais de dez editoras e escrita por uma autora estreante, à época,
enfrentando grandes dificuldades financeiras (FARR, 2012) , tornou-se o centro de uma grande
comoção literária na Inglaterra, sobretudo no setor editorial infanto-juvenil.
Algum tempo depois, essa comoção ultrapassou as fronteiras da Grã-Bretanha e
resultou em vendas significativas dos livros ao redor do mundo, prêmios literár ios
(SCHOLASTIC, s.d.), assinaturas de contratos milionários, críticas favoráveis ao novo
tratamento dado à literatura infantil, e, até mesmo, alvo de críticas de setores conservadores das
religiões cristãs.
Nos primeiros anos que se seguiram ao lançamento de Harry Potter e a Pedra
Filosofal (título original em inglês publicado em 1997), a série tornou-se alvo declarado de
duras críticas da Igreja Católica, fosse por meio de entrevistas concedidas por padres e bispos
em diversos países (MORRIS, 2006), ou por meio de artigos e ensaios escritos por parte de
membros importantes do Clero, como o até então Cardeal Joseph Ratzinger (LIFESITE, 2005),
Papa Bento XVI, um dos teólogos mais respeitados do mundo, bem como por críticas
publicadas pelo L'Osservatore Romano (ESTADÃO, 2008).
As críticas vindas de vários ramos das religiões (sobretudo de grupos católicos,
protestantes e ortodoxos), ainda hoje (mas em proporções menores), baseiam-se no argumento
de que a série teria o poder de influenciar crianças e jovens para a prática do ocultismo e do
20
satanismo, distorcendo assim os valores cristãos, à medida que enalteceria práticas e crenças
pagãs como a feitiçaria.
Segunda as palavras escritas pelo Cardeal Ratzinger, então prefeito da Congregação
para a Doutrina da Fé (o antigo Santo Ofício), em uma carta à escritora alemã Gabriele Kuby:
“É bom que você esclareça às pessoas acerca de Harry Potter, pois essas são seduções sutis que
agem despercebidas e por isso distorcem o cristianismo na alma, antes que este possa crescer
adequadamente” (RATZINGER, 2003, tradução nossa).7 À época, Kuby escrevia seu livro :
Harry Potter: gut oder böse? (Harry Potter: bem ou mal?), de 2003.
Nascia aí um fenômeno cultural, fosse pelo fracasso obtido pelas duras críticas
religiosas, fosse pelo sucesso alcançado apesar das oposições à série (o que, em pouco tempo,
mostrou-se ser o resultado de toda essa ebulição). Todas essas discussões entre o sagrado e o
secular já imprimiam à série seus primeiros contornos de fenômeno sociocultural, uma vez que
o ponto central dessas discussões não era o valor literário da série, mas as questões cultura is
que orbitavam ao seu redor, como as práticas pagãs em detrimento dos valores religiosos.
Porém, nem tudo a respeito de Harry Potter está unicamente relacionado à questão
cultural. Um dos grandes impulsos à série, antes que as polêmicas religiosas ganhassem força,
fora justamente o tratamento dado a uma série de livros infantis.
Rejeitada por diversas editoras, por acharem que se tratava de um livro muito longo e
complexo para crianças, J. K. Rowling apresentou ao mercado literário uma “novidade” no
universo de livros infantis: histórias longas, perpassadas de mistérios e investigações com
dezenas de personagens, além de várias referências clássicas (tanto à história britânica como às
antigas culturas: desde nomes e feitiços em latim e grego até figuras e criaturas mitológicas).
Ficar fora do lugar comum reservado à literatura infanto-juvenil, ou, pelo menos, por
parte expressiva dos trabalhos desse tipo, fez com que, aos poucos, Harry Potter não se
limitasse apenas a um público específico; e fez também com que influenciasse trabalhos de
outros autores, sobretudo escritores de best-sellers fantásticos que surgiram após o sucesso da
série.
A forma de escrita, as construções e soluções de enigmas e os personagens complexos
fizeram com que Harry Potter ganhasse prestígio entre os críticos da literatura infanto-juvenil,
e fizeram também com que seu público se ampliasse de forma significativa. Esse interesse se
deu, em grande parte, pela curiosidade crescente acerca dos livros e pelo próprio mundo mágico
7 “It is good, that you enlighten people about Harry Potter, because those are subtle seductions, which act unnoticed
and by this deeply distort Christianity in the soul, before it can grow properly.”
21
criado por Rowling, uma vez que, como bem ressalta Muniz Sodré: “‘Curiosidade’ é, como
‘entretenimento’, outra palavra-chave” (SODRÉ, 1985, p. 16, grifo no original).
Em seu livro intitulado Best-seller: a literatura de mercado (1985), Muniz Sodré afirma
que “o texto de massa é precisamente o tipo de produto capaz de espicaçar a ‘curiosidade
universal’” (SODRÉ, 1985, p. 16). Aliás, o encantamento e a curiosidade pela magia, não em
um mundo antigo, mas em um mundo paralelo ao nosso, em uma sociedade que se mantém
escondida das pessoas não mágicas é um dos principais atrativos de Harry Potter.
Diferentemente de histórias fantásticas que se passam em tempos antigos e terras
desconhecidas (O Senhor dos Anéis, 1954-1955), ou em mundos secretos (As Crônicas de
Nárnia, 1950-1956), Harry Potter é uma história que se passa no Reino Unido dos dias atuais,
ao lado de referências culturais, arquitetônicas e geográficas das quais seus leitores têm
conhecimento ou, até mesmo, fazem parte.
Algumas dessas referências vão das localidades britânicas citadas na série até os
sistemas educacionais e políticos muito próximos dos nossos (como a existência de um
Ministério da Magia, com seus funcionários, departamentos e leis).
A ideia de um mundo tão mágico e suas “seduções” (Bento XVI não nega essa
característica, muito pelo contrário, ele a enfatiza) e, ainda assim, tão próximo de nossa ideia
de mundo e sociedade é, no mínimo, tentador. São vários os exemplos de livros e séries
fantásticas que abordam o tema pagão da feitiçaria, mas o posicionamento da Igreja em relação
a essas obras não se deu da mesma forma agressiva como em relação a Harry Potter, justamente
por seu grande poder de sedução.
O mundo e a sociedade criados por J. K. Rowling e suas riquezas de detalhes despertam
nos leitores e fãs mais apaixonados e fantasiosos a mínima, porém, significativa possibilidade
da existência de tal mundo (o qual não parece ser tão distante do “nosso”), bem como a
existência de tais práticas (as quais são extremamente sedutoras, como feitiços para a
longevidade ou a posse de uma capa capaz de torná-lo invisível).
A ideia de se obter facilidades com um passe de mágica (não em uma remota floresta
da época arturiana, mas em uma Inglaterra atual, em ações do dia-a-dia) é tão encantadora
quanto desejada, e não necessariamente apenas para os amantes da literatura fantástica ou para
o público mais jovem e de imaginação fértil.
A ideia de se transportar instantaneamente de um lugar a outro (por exemplo, por meio
22
de um feitiço8 ou com o uso de um pó mágico9) é tentadora para qualquer um que gaste horas
no tráfego das grandes cidades no caminho do trabalho para a casa, ou ainda àqueles que se
encontram atrasados para um compromisso importante. E isso não é uma novidade, como bem
nos lembra Muniz Sodré: “Hoje, como no passado, o leitor projeta-se nas aventuras [...], dando
vazão ao seu desejo de potência” (SODRÉ, 1985, p. 24), a fim de que assim possa “escapar às
leis do cotidiano repetitivo e monótono” (SODRÉ, 1985, p. 24).
Essas talvez sejam as “seduções sutis” alarmadas pelo Papa em sua carta, as quais
inclinariam seus fiéis a uma suposta prática que os distanciaria do cristianismo. Certamente,
essas seduções e, sobretudo, a curiosidade em conhecê-las são alguns dos principais atrativos
da série, mas não os únicos. Um outro exemplo desse encantamento pelo mundo mágico de
Harry Potter é sua referência à Era Vitoriana.
Em um artigo publicado no site The Conversation, 10 a propósito do aniversário de 150
anos de Alice no País das Maravilhas (1865), de Lewis Carroll (1832-1898), Dimitra Fimi, da
Cardiff Metropolitan University, ressalta que:
A visão nostálgica de uma sociedade vitoriana idealizada é certamente parte da atração. E este é um dos ingredientes que fazem com que Downton Abbey11 e a série Harry Potter sejam sucessos no mundo inteiro. (FIMI, 2015, tradução nossa)12
Não apenas as referências vitorianas, mas o próprio encantamento pelo mundo mágico
em uma sociedade cada vez mais sedenta por magia (e também pelas facilidades que ela
teoricamente poderia nos trazer) contribuíram para que Harry Potter se tornasse um fenômeno
cultural, ao qual é possível recorrer de modo alegórico e, de certa forma, alentador.
A ideia da existência de um mundo idealizado (de Platão a Thomas More) sempre foi
um atrativo à leitura, bem como motivo de controvérsia. Essa busca por um universo que nos
afaste de um mundo assustador no qual estamos inseridos e que nos traga novidades
encantadoras além da rotina dos estudos ou do trabalho, ainda que de forma fantasiosa,
8 No livro, a aparatação: é um método mágico de transporte que possibilita viajar de um ponto a outro. O usuário
precisa manter o foco no local desejado em sua mente. Em seguida, ele desaparecerá do local inicial e, quase
instantaneamente, reaparecerá no local desejado, como uma forma de teletransporte. 9 Igualmente, o Pó de Flu: é um pó utilizado pelos bruxos para viajarem por meio da Rede de Flu: uma rede
conectada às lareiras das casas e dos edifícios bruxos. O usuário deve atirar o pó nas chamas de uma lareira,
caminhar sobre o fogo (inofensivo) e falar em voz alta o nome do local desejado. 10 After 150 years, we still haven’t solved the puzzle of Alice in Wonderland. 11 Aclamada série dramática do canal britânico ITV, a qual retrata a vida de uma família aristocrática inglesa e de
seus criados. 12 “The nostalgic view of an idealised Victorian society is surely part of its attraction. These are some of the same
ingredients that have made Downton Abbey or the Harry Potter series so successful around the world.”
23
certamente é um dos fatores que atraíram e ainda hoje atraem milhões de leitores de Harry
Potter, bem como seus críticos.
O sucesso literário devido a abstrações fantásticas que algumas obras provocam no
leitor não é uma novidade na literatura, muito menos no universo dos best-sellers. Estes se
beneficiam justamente por sua leitura de entretenimento (aparentemente descompromissada) e
por suas histórias que causam mais encantamento do que reflexão (ainda que esta possa estar
presente, como em alguns trechos de Harry Potter).
A linguagem coloquial, mas não menos elaborada, adotada pela autora facilita a compreensão dos leitores mais novos [...] No entanto, uma pessoa com um repertório maior será capaz de entender as referências aos mitos e até visualizar questões sociais mais amplas, como nazismo, terrorismo e preconceito. (COLLETTA, s.d.)
No entanto, a causa do sucesso dos livros de Rowling não se limita ao seu universo
fantástico ou à curiosidade que desperta nos leitores, mas também aos atuais avanços das
tecnologias de comunicação, como as plataformas de mídia modernas, as quais facilitam o
trânsito de bens culturais (CHARTIER, 1999; GUPTA, 2009a; PRADO, 2002).
Devido a esses fatores e diferentemente de Moby Dick (que ganhara seu
reconhecimento como referência e produto cultural apenas em meados do século XX), o sucesso
de Harry Potter como referência e produto cultural foi alcançado antes mesmo do lançamento
do último livro da série: Harry Potter e as Relíquias da Morte (2007).
Ainda no primeiro volume dentre os sete livros, Harry Potter já havia alcançado 120
milhões de exemplares vendidos. Os três livros seguintes da série foram publicados nos três
anos consecutivos ao seu estrondoso lançamento. No ano de 2000 (mesmo ano de publicação
do quarto livro da série em inglês, Harry Potter and the Goblet of Fire), a autora já havia
assinado um contrato milionário com os estúdios Warner Bros. para a adaptação
cinematográfica de suas histórias, e o primeiro dos oito filmes da futura franquia bilionária já
se encontrava em fase de produção.
O que se viu a seguir foi um ineditismo na indústria literária e na indústria cultura l
como um todo: as publicações dos três livros seguintes ocorreram em pleno sucesso
cinematográfico de suas adaptações (bilheterias milionárias, indicações ao Oscar...), até o ano
de 2007 (ano de lançamento do último livro da série). Ou seja, um segmento cultura l
alimentando o outro.
Os fãs continuaram a formar filas quilométricas nas livrarias, bem como nas salas de
24
cinema; um evento midiático para cada lançamento, um frenesi tão grande com os livros quanto
com os filmes. Assim como os lançamentos mundiais dos livros, cada première dos filmes se
tornava um grande evento midiático, atraindo, por exemplo, celebridades como Madonna. A
presença de tal figura, obviamente, não passaria despercebida e nem seria em vão, tanto para a
promoção do filme quanto para a imagem da cantora.
Aliás, no mesmo período em que a Rainha do Pop compareceu acompanhada da filha
mais velha à première britânica (BRIGGS, 2005) do quarto filme da série, Harry Potter e o
Cálice de Fogo (Dir. Mike Newell. Warner Bros., 2005), ela estava em plena divulgação do seu
décimo álbum de estúdio, Confessions on a dance floor (2005), o qual seria lançado menos de
dez dias depois pela sua então gravadora Warner Music, pertencente ao conglomerado de mídia
Time Warner (ao qual também pertencem os estúdios responsáveis pelos oito filmes da série
Harry Potter).
Percebe-se, pois, uma extensa rede de conexões que, ainda que aparentemente casuais,
sustentam e são sustentadas por um movimento maior. Os filmes, os produtos, os atores, os
programas de televisão, o público celebridade, a fama do autor, tudo contribuiu e ainda hoje
contribui para com o fenômeno Harry Potter, o qual transcende as fronteiras do mercado
editorial e se torna também um sucesso da indústria cultural e do entretenimento.
[C]orporações de vários tipos [...] têm influência em catálogos de editoras e nas prateleiras em livrarias que categorizam os livros para a atenção do público alvo. Elas têm algo a ver com a maneira pela qual várias franquias de cafeteria fornecem espaços em livrarias ou espaços para leitores. Elas têm algo a ver com as celebridades da mídia que endossam livros literários para os seus seguidores (por exemplo, por meio dos ‘clubes de livros’ dos apresentadores de programas matinais da TV britânica [...] e da apresentadora americana Oprah Winfrey). As associações se desenrolam em uma rede de leitura fluente extremamente complexa que não ocorre apenas espontaneamente, mas é fabricada por uma variedade de setores. (GUPTA, 2009a, p. 166-167, tradução nossa)13
Já logo no início da última década do milênio passado, Fredric Jameson, em seu livro
intitulado Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio (2000), argumentava o fato
da arte estar cada vez mais ligada à ideia de mercado e aos valores capitalistas, os quais, segundo
13 “[…] corporations of various sorts [...] have something to do with publishers’ catalogues a nd shelves in
bookshops categorize books for attention of target audiences. They have something to do with the manner in which
various coffee-vending chains provide spaces in bookshops or spaces for readers. They have something to do with
media celebrities endorsing literary books for their followings (for instance, through the ‘book clubs’ of UK
television breakfast-show hosts […] and US chat-show host Oprah Winfrey […] The associations unwind in an
enormously complex web of readerly fluidity that does not just happen spontaneously but is manufactured by a
range of industries.”
25
ele, criam a necessidade (quase que orgânica, poderíamos assim dizer) das novidades, mesmo
que de forma aparente:
O que ocorreu é que a produção estética hoje está integrada à produção das mercadorias em geral: a urgência desvairada da economia em produzir novas séries de produtos que pareçam novidades [...] com um ritmo de turn over cada vez maior (JAMESON, 1991, p. 30, grifo no original)
Essa integração da produção estética e da produção de mercadorias citada por Jameson
faz com que, dez anos após a publicação do último livro da série e seis anos após a estreia nos
cinemas do último filme, o sucesso de Harry Potter tenha resultado na construção de parques
temáticos e museus, em mais uma milionária adaptação cinematográfica,14 ou, ainda, no grande
número de edições especiais dos livros com novos designs de capas em um curto espaço de
tempo (10 anos, de 2007 a 2017).
A variedade de edições e capas dos livros ao redor do mundo nesses 20 anos de Harry
Potter reforça ainda mais o poder da série como uma referência da cultura pop global, a qual
deve se renovar constantemente a fim de não perder seu espaço já conquistado, bem como
reforça a ideia do livro como um produto em si: “É importante ter em mente o seguinte: o
circuito ideológico de uma obra não se perfaz apenas em sua produção, mas inclui
necessariamente o consumo” (SODRÉ, 1985, p. 6).
Mesmo que os leitores e fãs de Harry Potter já tenham lido e relido os livros inúmeras
vezes e mesmo que o conteúdo literário não se modifique de uma edição para outra, esses se
sentem atraídos pelos novos desenhos de capa e pelos subprodutos que acompanham as edições
especiais e de colecionador. “A constituição do público, que teoricamente e de fato favorece o
sistema da indústria cultural, faz parte do sistema e não o desculpa” (ADORNO &
HORKHEIMER; In: LIMA, 2000, 171).
Esse movimento ocorre, na maioria das vezes, pela chance de possuírem aquela
novidade em sua estante: ou seja, o próprio livro como um bem de consumo. “O ‘best-seller’,
enquanto produto da literatura folhetinesca ou de massa, é resultado do processo de
industrialização mercantil e efeito da ação capitalista sobre a cultura” (SODRÉ, 1985, p. 70).
Ao tratar do consumo como algo institucionalizado, em seu capítulo intitulado “Le
Fun-System, ou la contrainte de jouissance” (O Fun-System, ou o prazer compulsório), Jean
Baudrillard, em La société de consommation (1970), afirma que:
14 Animais fantásticos e onde habitam. Dir. David Yates. Warner Bros, 2016.
26
Você tem que experimentar tudo: pois o homem consumidor é assombrado pelo medo de “perder” alguma coisa, alguma forma de prazer qualquer. Você nunca sabe se um determinado contato, determinada experiência [...] irá provocar alguma “sensação”. Não se trata mais do desejo, nem mesmo do “gosto” ou uma inclinação específica que esteja em jogo, é uma curiosidade generalizada, movida por uma difusa obsessão – a “fun-morality”, ou o imperativo de se divertir, de explorar a fundo todas as possibilidades de se fazer vibrar, gozar ou gratificar-se. (BAUDRILLARD, 1970, p. 113, tradução nossa)15
Outro exemplo da ação do capitalismo e da indústria cultural sobre a série é o fato de
Harry Potter ter se tornado uma trademark ™ (marca registrada) pertencente à Warner Bros.
Entertainment Inc., a qual vem afixada ao lado do título da série nas edições dos livros que
estampam a mesma fonte utilizada nas aberturas das adaptações cinematográficas.
No entanto, essa mercantilização da obra literária não é uma novidade, como gostam
de pensar alguns críticos mais fervorosos do best-seller. Como bem nos lembra Muniz Sodré,
“o folhetim oitocentista [que contou com escritores como Eça de Queirós e Machado de Assis]
era determinado pelas exigências industriais e comerciais da imprensa” (SODRÉ, 1985, p. 70).
Além da mercantilização intensa da série, a ação do capitalismo e das tecnologias de
comunicação resultaram na criação de uma plataforma de interatividade na internet chamada
Pottermore.16 Nela, é possível fazer compras de audiolivros e livros digitais, experienciar a
leitura da série de forma interativa e, o mais importante para este trabalho, contribui de forma
significativa para que a história permaneça inacabada e ainda para a constituição e manutenção
de sua comunidade global de leitores e fãs.
É por meio dessa plataforma e das redes sociais que a história sofre recorrentes
interferências por parte da autora, a qual modifica a recepção de sua obra e abre novos caminhos
interpretativos e de sobrevivência da história e de seus personagens (os quais, diga-se de
passagem, ainda ganharam uma “sobrevida” em uma peça de teatro (Harry Potter and the
cursed child, 2016), escrita pela própria autora, a qual se passa 19 anos após os acontecimentos
narrados nos livros).
Além de reforçar os pensamentos de Fredric Jameson e Jean Baudrillard quanto à
15 “Il faut tout essayer: car l’homme de la consommation est hanté par la peur de “rater” quelque chose, une
jouissance quelle qu’elle soit. On ne sait jamais si tel ou tel contact, telle ou telle expérience [...] ne tirera pas de
vous une “sensation”. Ce n’est plus désir, ni même le “goût” ou l’inclination spécifique qui sont en jeu, c’est une
curiosité généralisée mue par une hantise diffuse - c’est la “fun-morality”, où l’impératif de s’amuser, d’exploiter
à fond toutes les possibilités de se faire vibrer, jouir, ou grat ifier.” 16 https://www.pottermore.com/
27
busca do mercado por novidades e quanto à necessidade do consumo, essa parte do fenômeno
evidencia o papel da autora para muito além daquele que escreve, uma vez que ela própria se
tornou um produto a ser capitalizado, seja pela própria série Harry Potter ou pelos meios de
comunicação e pela indústria do entretenimento que lucram com sua imagem.
1.2 – A exumação do autor
“Ninguém quer ler histórias de um velho bruxo
feio da Armênia, mesmo que tenha salvo uma
cidade dos lobisomens. Ele ficaria medonho na
capa.”
Gilderoy Lockhart (J. K. Rowling)
Na primavera de 2013, na Grã-Bretanha, um romance policial escrito por um autor
estreante, com um modesto histórico nas forças armadas e na indústria de segurança civil, foi
publicado pela editora Sphere Books, rendendo pouquíssimas críticas em modestos jornais e
sites, vendendo 1.500 exemplares durante os três primeiros meses que se seguiram à sua
publicação. No entanto, no verão do mesmo ano, o número de cópias vendidas, bem como o
número de críticas em jornais e revistas, saltou de forma espetacular, crescendo mais de
150.000% apenas no site da gigante do comércio eletrônico, a americana Amazon.
Os modos de produção e recepção literária hoje não são mais os mesmos da primeira
metade do século XX, para não irmos tão longe na história. Esse regresso no tempo evidencia
as rápidas mudanças operadas em um curto espaço de tempo. A consolidação do capitalismo e
os desdobramentos pelos quais ele passou e ainda hoje passa são também alguns dos fatores
que impulsionaram essas rápidas mudanças, além, é claro, das implicações tecnológicas de um
mundo cada vez mais globalizado, ou, pelo menos, percebido como tal.
Essas mudanças operadas sobre a literatura fazem com que lancemos um novo olhar,
ou, certamente, um olhar mais cuidadoso para os processos de produção e recepção dos
trabalhos literários na era da globalização. É inegável que as mudanças culturais e
comunicativas pelas quais passamos nos últimos anos influenciaram nossa posição em relação
28
à obra literária e seu entorno, estejamos nós frente a ela como autores, críticos ou leitores
comuns.
Uma das consequências dessas mudanças causadas pelo capitalismo e pela
globalização na literatura e nos estudos literários diz respeito à morte do autor e seus novos
desdobramentos.
Um dos pontos mais controversos da teoria literária é, de fato, a figura do autor. A
discussão a respeito de seu papel, de sua importância na produção, recepção e significação do
texto literário tem tomado grande parte dos estudos teóricos nas últimas décadas, e, ainda hoje,
ocupa um espaço conflituoso de ideias.
Quando Roland Barthes abalou as estruturas da crítica literária com seu artigo A morte
do autor (1968), o que ele fez foi substituir o humanismo e o individualismo que o autor
representava pela linguagem, a qual seria impessoal e anônima.
Sem dúvida sempre foi assim: desde que um fato é contado, para fins intransitivos, e não para agir diretamente sobre o real, isto é, finalmente, fora de qualquer função que não seja o exercício do símbolo, produz-se esse desligamento, a voz perde a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escritura começa. (BARTHES, 2004, p.58)
Barthes defende a anulação da voz daquele que está por trás das palavras. De acordo
com o professor e escritor francês, o texto existe e ele se basta, pois, segundo suas próprias
palavras, “a escrita é destruição de toda voz, de toda a origem. A escrita é esse neutro, esse
compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito” (BARTHES, 2004, p. 57).
Bem como Barthes, outros autores compartilham dessa mesma ideia, ainda que de
modos não totalmente iguais.
Foucault observa que há uma espécie de regra imanente que domina a escrita como prática. Essa regra pode ser especificada mediante dois grandes temas da escrita: o tema da expressão e o tema da morte. Com relação ao tema da expressão, Foucault destaca dois extremos, ou o texto diz tudo ou o leitor diz tudo. No primeiro caso, não importa quem escreve, já que a obra basta por si mesma; no segundo, há também um deslocamento do autor, mas, nesse caso, o sentido estaria estritamente com o leitor. (CAVALHEIRO, 2008, p. 69-70)
No entanto, levando em consideração as rápidas e intensas mudanças pelas quais a
produção e a recepção literária passaram (como os avanços tecnológicos de comunicação, a
influência capitalista sobre a produção artística e os mecanismos de mídia e de plataformas),
29
não apenas o leitor, mas também o autor se encontram em posições antes inatingíveis. A
inserção do autor dentro das comunidades globais e do próprio anseio do mercado e da indústr ia
de entretenimento faz com que ele ganhe novas posições até então desconhecidas.
Em uma época em que seu autor favorito ocupa as listas das personalidades mais
influentes do mundo e, ainda assim, encontra-se a um clique de distância em suas diversas redes
sociais ou em entrevistas e bate-papos pela internet, ou ainda em programas de rádio e televisão,
o autor de best-seller adquire a característica de celebridade e ocupa um papel quase que inédito.
O autor se encontra vivo e para muito além do que escreve, sobretudo no fenômeno
Harry Potter, no qual a autora exerce grande influência nos desdobramentos da história e na
sua manutenção como uma obra inacabada.
É inegável que a escrita seja capaz de destruir toda voz e toda origem, como bem
afirma Roland Barthes em seu célebre artigo (BARTHES, 2004, p. 57). No entanto,
frequentemente nos vemos influenciados por fatores extratexto que modificam nossa percepção
do autoral, bem como o próprio papel desempenhado pelo autor como escritor e sujeito.
Como parte da cultura, a literatura é formada de interações, e não poderia ser de outra
forma, uma vez que todo produto cultural nasce de inter-relações e interações sociais. A própria
morte do autor de Barthes nasce de uma negação da figura burguesa conferida à autoria. Ou
seja, um dos exemplos da influência extraliterária não apenas na literatura como arte e produto,
mas, também, em seus estudos teóricos.
O autor é uma personagem moderna, produzida sem dúvida por nossa sociedade na medida que, ao sair da Idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio do indivíduo, como se diz mais nobremente, da “pessoa humana”. (BARTHES, 2004, p. 58)
Cada vez mais, seja em nossas leituras de livros (muitas vezes acompanhadas pelas
telas dos computadores, smartphones e tablets), ou até mesmo em nossos ensaios críticos,
estamos tentados a exumar a imagem do autor. Isso ocorre principalmente se levarmos em conta
as facilidades tecnológicas e comunicativas dos dias atuais (em que se é possível estabelecer de
forma mais cômoda e imediata contato com as editoras, com os tradutores e com os próprios
autores), além da variedade de obras dos mais diferentes contextos ao redor do mundo, com as
quais a globalização nos possibilita entrar em contato como nunca antes na história da literatura.
Nesses casos, o autor vem à tona não para uma complementação do texto, mas, como
suplemento a ele, uma vez que a obra literária se encontra vulnerável a influências sociais mais
30
amplas (das quais algumas delas justificam este trabalho).
Complemento é parte de um todo, o todo estará incompleto se faltar o complemento. Suplemento é algo que se acrescenta a um todo. Portanto, sem o suplemento o todo continua completo. Ele apenas ficou privado
de algo a mais. (SANTIAGO, 2008a, p. 161-162)
Os traços sociopolíticos que hoje estão desenhados sobre o globo e que têm fortes
implicações culturais fazem com que a história biográfica de um autor seja levada em conta em
determinados contextos interpretativos.
A primeira questão a ser explorada é aquela que vincula a literatura a uma série de circunstâncias sociais mais amplas, isto é, que prescreve a necessidade de se avaliarem obras e autores determinados não como meras categorias estruturais do texto literário, fato que aponta para a problemática mais dilatada do ‘contexto’ literário. (SILVA, p.74, 2003)
A proliferação de obras heterogêneas cada vez mais voltadas para espaços sociais e
culturais específicos, faz com que cada vez mais leitores e críticos voltem seus olhares para os
mapas e deem maior atenção às orelhas dos livros, as quais trazem informações extratexto
relacionadas ao número de vendas da obra, à data de publicação e a seu contexto. Além, é claro,
de uma breve biografia do autor.
Ainda que o texto diga de si mesmo por si mesmo, sem que se tome a voz do autor e
assim mantenha sua autoridade (pois a pesquisa biográfica não tira isso do texto, ainda que
influencie em sua recepção), essa exumação do autor faz com que os processos de produção e
de recepção das obras sejam repensados de forma singular, até mesmo pela busca de uma
suposta autonomia de um discurso. Quem pode dizer de determinado assunto estando ou não
em determinado local de fala.
São muitos os críticos e pesquisadores que se debruçam cada vez mais sobre as
biografias de seus autores, ou melhor, dos autores de seus objetos. Eles partem em busca, por
exemplo, de uma suposta legitimação do discurso político (para nos determos em apenas um
fator), ou ainda em busca de uma suposta propriedade para escrever a respeito de algo (como
os conflitos no Oriente Médio ou as literaturas de gênero, por exemplo).
Com a proliferação e circulação crescente de trabalhos literários de diferentes partes
do mundo e dos mais diversos contextos sociais, os críticos insistem em exumar os autores de
seus objetos de crítica (basta ler os cadernos de cultura dos jornais e as dissertações das
universidades).
31
Não apenas os críticos, mas o leitor também é levado por essa ânsia em conhecer a
pessoa por trás do texto, por trás da história, bem como o mundo no qual ela está inserida. Isso
faz com que novas interpretações possam ser colocadas sobre o texto, o que, para muitos, seria
um crime contra este. Mas a verdade é que, sendo crime ou não, esse é um ato cada vez mais
cometido, de forma deliberada ou não.
Assim, parece-nos necessário, atualmente, adotar uma metodologia analítica que [...] estabeleça novos parâmetros epistemológicos para a relação entre literatura e sociedade. Tal metodologia pode ser encontrada em teorias que possuem, tanto em sua origem quanto em sua práxis hermenêutica, uma “natureza pragmática” (CALDERÓN, 1996; HOLMAN, 1992; REIS, 1994; SHAW, 1982), isto é, aquelas tendências que lograram realizar – dentro da própria Sociologia da Literatura – uma apreciação da obra literária a partir de uma série de fenômenos contextuais, indo da Estética da Recepção até a Ciência Empírica da Literatura, com incursões diversas pela Análise do Discurso ou pela Sociocrítica. (NEWTON, 1993; TADIÉ, 1987). (SILVA, p. 73, 2003)
Percebe-se, pois, que, na busca pelo autor, também se esconde a procura pelo contexto
de produção de uma obra literária. Muitas vezes, o que se busca não é exatamente a figura do
autor, mas, sim, o contexto da obra, principalmente se pensarmos nos exemplos já citados, em
que a compreensão do texto, em boa parte, se baseia em questões de contextos políticos e sociais
nem sempre claros nos textos literários (o que, muitas vezes, rende um número considerável de
notas de rodapé ou notas do tradutor, por exemplo).
Com efeito, uma análise que busca contemplar não apenas as particularidades mais estruturalmente intrínsecas de um determinado conjunto estético, mas também como tais particularidades puderam ser forjadas no bojo de uma série de condicionantes extraliterários, não pode prescindir de uma fundamentação metodológica que, de certo modo, privilegie aspectos circunstanciais e contextuais da produção artística, particularmente aqueles que – a partir da clivagem sofrida pelo atual quadro teórico-literário – acabaram ganhando estatuto de fatores condicionantes na conformação e consolidação das tendências estéticas. (SILVA, p. 74, 2003)
O mercado editorial, por exemplo, se interessa cada vez mais pela vida do autor e os
impactos que isso possa gerar na recepção (e venda) de livros. O mesmo se aplica aos programas
de rádio e televisão, às revistas, aos produtores cinematográficos, aos críticos (cada vez mais
cedendo parágrafos em seus textos dedicados exclusivamente ao autor e seu contexto
acadêmico, político, etc.), aos pesquisadores (quase sempre dedicando no mínimo um capítulo
de suas teses e dissertações exclusivamente para o autor) e, claro, aos leitores.
32
Ou seja, ainda que o texto não precise do autor para dizer ou deixar de dizer algo, o
leitor comum, o pesquisador e a crítica ainda se encontram, até certo ponto, agarrados à imagem
do autor e seu entorno. E, nos últimos tempos, agarrados também à própria imagem do leitor:
o público de uma obra ou de um autor diz muito a seu respeito nas críticas literárias e nas
discussões acadêmicas (basta tomarmos como exemplo os leitores de best-seller e seus
estereótipos).
Não se trata apenas do texto, mas, também, de sua recepção, do grau de abertura ou
não que o leitor, o pesquisador e o crítico dão à obra e à sua autoria, bem como os preconceitos
e pressupostos que antecedem a leitura.
A respeito do nosso crescente anseio, como leitores, críticos e pesquisadores, de irmos
além do texto (tentados, hoje, em grande parte, pelas facilidades tecnológicas e comunicat ivas
que exercem sua influência tanto na produção como na recepção literária), Suman Gupta
(2009a) comenta a respeito da morte do autor e seu espaço na produção e recepção literária na
pós-modernidade.
Tomando como exemplos os romances do escritor escocês Gilbert Aidar, Love and
Death in Long Island (1990), e do escritor turco Orhan Pamuk, Neve (2006), Gupta trata da
morte do autor frente às mudanças sofridas na recepção e na produção literária, sobretudo a
última, a qual diz respeito em grande parte ao autor. Em ambos os romances, seus protagonistas
são escritores que sofrem as influências dos novos mecanismos comunicativos e
mercadológicos operados pelo capitalismo e pelo sempre crescente processo de globalização.
No primeiro dos dois romances, o protagonista é um romancista residente em Londres,
de nome Giles, que se descobre fortemente atraído por um jovem ator chamado Ronnie
Benstock, criando em si uma obsessão por revistas de adolescentes nas quais Benstock é figura
garantida:
O protagonista de Aidar encontra o objeto de seus desejos primeiro dentro da vida conservadora de Londres, não de fato, mas improvavelmente refletida em imagens da mídia do ‘novo mundo’, naquilo que são, para ele, os insípidos produtos da cultura de consumo adolescente. (GUPTA, p. 153, 2009a, tradução nossa)17
Como o próprio título sugere, o aguardado encontro com Benstock acaba por se
17 “Aidar’s protagonist finds the object of his desires first within the conservative London life, not in the flash but
improbably shadowed in media images from the ‘new world’, in what is for him the tasteless products of teenage
consumer culture.”
33
desenrolar de forma trágica, mas a metaforização da morte do autor não se resume à sua morte
física. Primeiro, o personagem autor perde sua capacidade produtiva e artística, sofrendo
grandes influências dos textos consumidos por ele em função de seu desejo pelo jovem ator;
influências essas que se tornam visíveis em seus trabalhos.
A morte do autor aqui, portanto, não gira em torno apenas da tragédia humana, mas,
antes, da agonia artística. O “novo mundo” encontrado pelo protagonista de Aidar na mídia e
nos produtos de consumo adolescentes acaba por transcender sua vida sentimental e erótica e
se estabelece também em seus trabalhos literários. É o autor que sai da sua posição habitual e
encontra esse novo mundo discursivo, estético, e, porque não dizer, altamente sedutor.
Já no romance de Pamuk, o escritor protagonista é um “pseudopoeta” chamado Ka,
que visita a cidade turca de Kars a fim de escrever um artigo jornalístico a respeito de jovens
mulheres que cometeram suicídio em protesto contra a proibição do uso do véu. Imerso no
universo islâmico e desligado do “resto do mundo”, o protagonista se descobre no contexto
apropriado para a produção de sua literatura.
Também de fim trágico, o romance de Orhan Pamuk trata justamente do inverso
retratado no romance de Gilbert Aidar. Aqui, o autor se encontra finalmente em plena produção
artística, finalmente capaz de fazer um bom trabalho literário. Porém, frente às mudanças
operadas na produção e recepção literária (como o mercado, por exemplo), o autor de Pamuk
se encontra fora do contexto adequado para o novo cenário editorial/literário, e seus poemas
acabam esquecidos e desconhecidos (até mesmo para o leitor do romance). “A ironia é que os
inspirados poemas de Ka nunca veem a luz do dia. Eles são perdidos. Eles são descritos em
detalhes prosaicos no romance, mas não podem ser reproduzidos” (GUPTA, 2009a, p. 154,
tradução nossa).18
No primeiro romance, a morte do autor é consequência de seu encontro equivocado e
despreparado com esse “novo mundo”. Já no segundo, a morte do autor é resultado de uma fuga
equivocada e precipitada. O que fica de ensinamento desses dois exemplos é que tanto a fuga
precipitada quanto a procura desmedida por esse novo contexto em que a literatura se encontra
inserida pode ter resultados trágicos, tanto para os autores (que supostamente perdem a
capacidade artística, como no primeiro romance) como para os leitores (que perdem o contato
com novos trabalhos, como no segundo).
18 “The irony is that Ka’s inspired poems never see the light of day. They are lost. They are described in prosaic
detail in the novel but cannot be reproduced.”
34
A ansiedade de autoria que esses autores fictícios expressam [...] e o tipo literário de “morte do autor” que é realizada nessas ficções tem algo a ver com o lugar da literatura no mercado sociocultural do final do século XX e início do século XXI. [...] A derrota do autor acima descrita está impregnada da opressão particular de uma cultura consumidora historicamente contingente , com modos de produção, venda e compra de cultura, com o tipo de consciência que é ao mesmo tempo moldada e atendida pelas indústrias culturais, no capitalismo global do final do século XX. Ficcionalmente, os ideais de literatura e autoria dão lugar ao impulso das tecnologias culturais e comodificações que marcam a teoria e a prática da globalização do final do século XX. Não de forma irrelevante, a morte dos autores acima citados ocorre literalmente além de suas fronteiras, longe do confinamento e dos confortos de ‘casa’[...] (GUPTA, 2009a, p. 155-156, tradução nossa)19
Ainda sobre a morte do autor, e para entramos de forma mais objetiva na discussão a
respeito de nosso objeto de estudo, Gupta cita dois exemplos retirados da série de J. K. Rowling;
para ser mais preciso, do segundo livro da série, Harry Potter and the Chamber of Secrets
(1998):
[...] o personagem Gilderoy Lockhart é introduzido: um célebre autor bruxo, herói de seus próprios livros, consolidado na atenção do público e amplamente adorado e reverenciado. A reviravolta é que este autor, Gilderoy Lockhart, que tem o interesse do público, é um herói cuidadosamente inventado e irreal, e não tem nenhuma relação com a pessoa e com o escritor Gilderoy Lockhart, que não é nem um autor, nem um herói, porque suas histórias são roubadas e os atos que seus livros descrevem são feitos por outros. (GUPTA, 2009a, p. 158, tradução nossa)20
E, ainda respeito do tema, Gupta continua dizendo que:
A “morte do autor” ficcionalizada por Rowling tem obviamente afinidades com as de [...] Aidar e Pamuk, mas está mais concentrada na dinâmica do mercado. [...] Em Harry Potter e a Câmara Secreta também aparece o diário
19 “The anxiety of authorship that these fictional authors expres s […] and the kind of literary ‘death of the author’
that is performed in these fictions, has something to do with the place of literature in the late twentieth - and early
twenty-first-century socio-cultural marketplace. […] The defeat of the author described above is redolent with the
oppression of a particular historically contingent consuming culture, with modes of production and selling and
buying of culture, with the kind of consciousness that is both moulded and catered for by cultural industries, in
late twentieth-century global capitalism. Fictionally here the ideals of literature and authorship give way to the
thrust of cultural technologies and commodifications that marks the theory and practice of late twentieth -century
globalization. Not irrelevantly, the death of authors in the above occurs literally across boundaries, away from the
confines and comforts of ‘home’ […]” 20 “[...] the character Gilderoy Lockhart is introduced – a celebrated wizard author, hero of his own books, firmly
in the public eye and widely adored and revered. The twist is that this author Gilderoy Lockhart who is in the
public eye is a carefully constructed and unreal author-hero, and bears no relation to the person and writer Gilderoy
Lockhart, who is neither an author, it turns out, nor a hero, because his stories are stolen and the deeds his books
describe are enacted by others.”
35
de T. [M.] Riddle: um livro também e um local da violação máxima da inocência, no qual os autores se tornam leitores e os leitores se tornam autores, local em que autores e leitores se encontram e mudam de lugar enquanto o texto muda incessantemente. Através dele, o autor e leitor sem escrúpulos Tom [Marvolo] Riddle (encarnação do maligno Voldemort) explora tanto a integridade do autor (“Levou muito tempo para a burrinha da Gina parar de confiar no diário” [ROWLING, 2000b, 262]) e a credulidade do leitor (“Respondi. Fui simpático, gentil. Gina simplesmente me adorou. [Ibid., 261]) para nefastos fins egoístas. (GUPTA, 2009a, p. 159, tradução nossa)21
Apesar de Gupta tratar da morte do autor, este não está, de fato, morto, como ele
mesmo nos faz perceber no último trecho acima: ele (o autor) troca de papéis e se encontra na
instabilidade, ora autor, ora leitor, assemelhando-se mais a um espectro, ocupando um estágio
temporariamente intermediário, indefinido.
Por esse motivo, iremos tratar neste trabalho essa nova posição do autor como a sua
exumação, pois, se estivesse apenas morto, não estaria aberto ao intercâmbio de papéis
enfatizado pelo próprio Gupta. Por mais que a visão romântica do autor possa estar, de fato,
morta em meio à indústria literária, ele ganha novos espaços para além dessa percepção e, até
mesmo, para além do simples fato de ser ele um agente escritor, criador.
O autor inserido nas novas estruturas da indústria literária e cultural (de modo ainda
mais especial, o autor de best-seller) toma também o papel de agente do mercado, de
celebridade, de peça da indústria, de rosto do produto. Ou seja, mais próximo a um corpo
exumado (o qual pode ser visto, contemplado, manipulado, mas que, ainda assim, carrega em
si as marcas da morte, da deterioração), do que simplesmente morto e enterrado, esquecido sob
as pás de terra dos formalistas.
[...] autores também são fabricados de forma constante e explícita [...] A extensão até onde as imagens e aparições públicas dos autores são agora criadas por entidades corporativas e seus agentes (agentes literários, editores, pessoas da mídia, anunciantes, designers de produtos e impulsionadores de mercadorias de vários tipos que trabalham em colaboração) para atrair certos leitores e suas expectativas é uma área ainda pouco explorada. (GUPTA, 2009a, p. 167, tradução nossa)22
21 “Rowling’s fictionalized ‘death of the author’ has obviously affinities with those of […] Aidar and Pamuk, but
is more squarely focused on the mechanics of the market. […] In The Chamber of Secrets also appears T. M.
Riddle’s diary – a book, too, and the site of the ultimate violation of innocence, where authors become readers and
readers authors, where authors and readers meet and change places while the text shifts ceaselessly. Through it the
unscrupulous author and reader Tom Marvolo Riddle (incarnation of the evil Voldemo rt) exploits both the integrity
of the author (‘It took a very long time for stupid Ginny to stop trusting her diary’ [Rowling 1998, 229]) and the
credulity of the reader (‘I wrote back, I was sympathetic, I was kind. Ginny simply loved me’ [ibid., 228]) for
nefarious self-serving ends.” 22 “[...] authors are also constantly and explicitly manufactured […] The degrees to which authors’ public images
and appearances and statements are now engineered by corporate entities and their agents (literary agents,
36
Não se trata, pois, da audácia de uma negação ou de uma resposta à morte do autor,
de Roland Barthes, mas uma constatação de que se trata, hoje, de um mecanismo da indústr ia,
e de uma escolha do leitor (público ou crítico) e que cabe a ele arcar com as consequências de
sua escolha.
[...] a presunção de intencionalidade permanece no princípio dos estudos literários, mesmo entre os antiintencionalistas mais extremados, mas a tese antiintencional, mesmo se ela é ilusória, previne legitimamente contra os excessos da contextualização histórica e biográfica. A responsabilidade crítica, frente ao sentido do autor, principalmente se esse sentido não é aquele diante do qual nos inclinamos, depende de um princípio ético de respeito ao outro. Nem as palavras sobre a página nem as intenções do autor possuem a chave da significação de uma obra e nenhuma interpretação satisfatória jamais se limitou à procura do sentido de umas ou de outras. Ainda uma vez, trata-se de sair da falsa alternativa: o texto ou o seu autor. Por conseguinte, nenhum método exclusivo é suficiente. (COMPAGNON, 1999, p. 95-96)
No entanto, ainda que caiba ao leitor fazer suas escolhas, ou, pelo menos, parte delas,
cada vez mais se torna difícil desprender o autor ou seu contexto do texto literário, sobretudo
quando se tem uma rede de informações e de contatos tão vasta e imediata como temos hoje a
nosso dispor. É isso que nos deixa ainda mais vulneráveis aos fatores extratexto, talvez, como
nunca antes estivemos.
Com as facilidades tecnológicas da pós-modernidade, cada vez mais nos vemos
tentados a conhecer a cara por trás do texto. Não satisfeitos, ainda queremos segui-la em nossas
redes sociais, curtir suas fotos, seguir seus passos além do ofício de escritor, conhecer seus
gostos e suas crenças (SOUZA, 2011).
O avanço da sociedade do espetáculo e da cultura de massa possibilitou o reconhecimento de diferentes modelos de valorização estética, da inserção do cotidiano como sendo o pequeno mundo íntimo das pessoas comuns. Trata-se de experiências da comunidade multicultural que se forma atualmente diante das telas do computador ou da TV. (SOUZA, 2011, p. 32-33)
Não se trata de julgar o valor de uma interpretação ou de uma crítica que tenha algumas
de suas bases na figura do autor e/ou em seu contexto, mas, sem dúvida, na constatação dessa
possibilidade interpretativa.
publishers, media persons, advertisers, product designers and commodity pushers of various sorts working in
collaboration) to appeal to certain readers and their expectations is an as yet underexplored area.”
37
Não é pelo fato de Roland Barthes ter atestado a morte do autor em 1968 que isso
impede os presentes leitores deste trabalho, por exemplo, de pesquisarem a respeito de J. K.
Rowling (caso já não o tenham feito) para conhecerem seu rosto, sua história, sua vida
acadêmica, sua fortuna..., ainda que se trate de um texto acadêmico. Imaginem, pois, o quão
maior deve ser o interesse por essas questões aos apaixonados leitores de seus livros.
Uma das grandes, porém, subestimadas influências do mercado sobre a literatura,
sobretudo no que diz respeito ao fenômeno best-seller, é a formação de autores exumados.
Quase que por via de regra, os autores de best-seller são alçados às listas de pessoas mais
influentes do mundo por revistas como Times e Forbes, simplesmente pelo fato de atingirem
números expressivos de vendas.
Além disso, esses autores frequentemente estampam grandes jornais como The New
York Times e The Guardian, concedendo entrevistas a rádios, canais de televisão e sites de
grande apelo do público. O autor de best-seller se torna, então, uma celebridade, o que é
consequência, e, paradoxalmente, uma das causas da criação de uma comunidade global, a qual
não se centra apenas nos livros, mas, também, na figura do autor.
[N]ão é apenas que a literatura representa os efeitos de tal conectividade global, mas ela própria é afetada por essa conectividade em seus modos expressivos, suas formas textuais, suas recepções como literatura. Tais conceitos como autoria literária, leitores e textualidade em si são tensionados e testados em novas formas, de modo que, provavelmente, a literatura, por assim dizer, cresce em alcance. (GUPTA, 2009a, p.53, tradução nossa)23
Como não poderia se esperar de outra forma, J. K. Rowling figura entre os principa is
autores de best-sellers tratados como celebridades pela indústria do entretenimento (caso não
seja ela a figura principal no meio literário e a maior evidenciação desse acontecimento).
Esse processo de fabricação dos autores de acordo com os contextos do mercado é, obviamente, coexistente com a fabricação de leitores. A produção de um é, de certo medo, a produção do outro, e ambos se dão de maneiras que não estão registradas dentro da literatura e dos estudos literários e que, ainda assim, com certeza influenciam a busca de ambos não apenas de maneira material, mas também em níveis textuais e interpretativos. (GUPTA, 2009a,
23 “[...] it is not merely that literature represents the effects of such global connectedness, but that it is itself affected
by that connectedness in its expressive modes, its textual forms, its receptions as literature. Such concepts as
literary authorship, readership and textuality themselves are stretched and tested in new ways, so that arguably
literature, so to speak, grows in scope.”
38
p. 167, tradução nossa)24
Colecionando entrevistas a programas de televisão como The Oprah Winfrey Show,25
entrevistas a jornais impressos e revistas, reportagens e séries especiais, J. K. Rowling é o
retrato dessa nova posição ocupada pelo autor, sobretudo por aqueles que atingem expressivos
números de venda, tanto de livros como de subprodutos, ou, até mesmo, como no caso de
Rowling, de sua própria imagem.
Aliás, o próprio nome da autora que estampa as capas dos livros de Harry Potter
mundo afora levou em conta sua figura como autor-a:
Em junho de 1997, o primeiro livro com as aventuras de Harry Potter foi lançado na Inglaterra. A Bloomsbury sugeriu que a escritora usasse as iniciais em vez do primeiro nome, por achar que leitores meninos poderiam ter preconceito em relação a um livro escrito por uma mulher. Como só tem um nome próprio, Joanne resolveu acrescentar a letra “K”, tirada do nome de sua avó favorita, Kathleen. Nasceu, assim, J. K. Rowling. (MONTELEONE, 2004)
Além de seu papel como autora da série, J. K. Rowling ganhou seu espaço como
celebridade na mídia e peça da indústria do entretenimento, fazendo com que seu nome, por si
só, seja capaz de conferir credibilidade, de mobilizar parte expressiva da imprensa e do público,
além, é claro, de movimentar a indústria em torno de seu nome.
Para o lançamento do filme Animais fantásticos e onde habitam, em 2016, a promoção
do filme se baseou no nome da autora para aumentar a expectativa do público e conferir à
produção a ideia de qualidade. Os trailers e pôsteres do filme traziam os dizeres: “Writer J. K.
Rowling invites you to return to the wizarding world”, ou “J. K. Rowling, criadora de Harry
Potter, convida você a explorar uma nova era no mundo bruxo”, enfatizando a participação da
autora na produção cinematográfica.
O autor que é comercializável, em outras palavras, é uma superfície pura, uma imagem, uma construção fictícia para satisfazer as demandas existentes do mercado e os gostos do consumidor, e tudo isso a indústria do livro poderia capitalizar e os meios de comunicação de massa poderiam acompanhar.
24 “This process of manufacturing authors according to market contexts is, obviously, coeval with manufacturing
readers. The production of one is in some sense the production of the other, and both unravel in ways that are
unregistered within literature and literary studies and yet surely influence the pursuit of both not just in material
ways but at textual and interpretative levels too.” 25 Talk-show de maior audiência nos Estados Unidos. “Oprah Winfrey encerra seu programa após 25 anos no ar”.
Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/televisao,oprah-winfrey-encerra-seu-programa-apos-25-
anos-no-ar,724410. Acesso em: 31 de maio de 2017.
39
(GUPTA, 2009a, p. 158, tradução nossa)26
Em 2016, uma cadeira de carvalho usada por J. K. Rowling para escrever os dois
primeiros livros da série Harry Potter foi leiloada em Nova Iorque por US$ 394 mil, cerca de
R$ 1.4 milhão na época (O GLOBO, 2016). Um manuscrito de Os contos de Beedle, O Bardo
(2007), escrito pela autora, foi leiloado em Londres pelo valor de £1.95 milhão, cerca de US$
3,98 milhões, ou exorbitantes R$ 7 milhões na época (ESTADÃO, 2007). E, por falar em
números fora da órbita, em 2006, o asteroide 43844 (NASA, s.d.) foi batizado de Rowling em
homenagem à autora de Harry Potter.
A figura do autor em uma comunidade global tão extensa e plural, como no caso de
Harry Potter, torna-se, também, se não um personagem dos livros, certamente um personagem
do fenômeno: a figura humana por trás do texto, da história, da marca. Uma vez que os
personagens e a história em si não podem ser atingidos, a não ser virtualmente, e ao passo que
o livro deixa de ser a única necessidade de posse ou de consumo, ter uma figura na qual o leitor
possa recorrer de forma mais concreta (em sua lista de seguidores no Twitter, por exemplo) é
altamente tentador.
Desde os primórdios da arte e do reconhecimento do artista como agente criador da
obra, seu público sempre se interessou em manter, de alguma forma, um contato que fosse além
daquele estabelecido pela obra: tomemos como exemplo as inúmeras cartas enviadas às editoras
e aos autores ao longo dos anos. Apenas a plataforma e a efetividade desse contato mudaram,
mas a proposta e o sentimento por trás desse contato continuam os mesmos, e ainda mais
acentuados nos dias de hoje.
A necessidade de uma figura na qual um grupo de pessoas possa se organizar ao redor
e que sirva de um ponto de referência está presente nas mais diversas comunidades, desde as
religiosas às políticas, dos movimentos sociais à economia internacional. Não seria diferente
em uma comunidade global tão vasta como a comunidade de leitores e fãs de Harry Potter.
De seus gostos pessoais às suas ideologias políticas, J. K. Rowling provoca uma
comoção global, seja trocando a foto de perfil em suas redes sociais ou tuitando uma crítica à
campanha de um dos candidatos republicanos à Casa Branca, o bilionário Donald Trump, em
2016, com referências aos livros (RHODAN, 2015). Ou seja, referências compartilhadas por
26 “The author that is marketable, in other words, is a pure surface, an image, a fictional construct to fulfil
existing market demands and consumer tastes, which the book industry could capitalize on and the mass media
could play to.”
40
sua comunidade global e de repercussão mundial em diversos e respeitáveis meios de
comunicação, como o site da Time.
Esse último exemplo evidencia o poder e a amplitude alcançados pelo fenômeno no
que diz respeito à criação e manutenção de sua comunidade global por meio da figura do autor.
O comentário de Rowling no Twitter só faz sentido e se torna relevante quando se leva em conta
a referência feita por ela em relação a um de seus personagens, no caso, o maior bruxo das
trevas de todos os tempos e o principal vilão da história, Lord Voldemort.
Ainda que a interpretação de seu comentário dependa de um conhecimento da história
(a escritora afirmou que Trump era pior que Voldemort), sua repercussão foi mundial, em
jornais e sites de notícias. Essa ação pressupõe a ideia de que o comentário de Rowling seria
entendido pelos leitores dos jornais e os internautas dos sites de notícia, tamanha a comunidade
global de leitores e fãs de Harry Potter, bem como sua referência cultural.
Figura 1 - BBC Newsbeat: "É por isso que as pessoas estão chamando o empresário americano Donald Trump de Lord
Voldemort" / J.K. Rowling: “Que horrível. Voldemort não era tão ruim quanto.”
Sendo assim, não apenas a história e os personagens se tornam uma referência de
cultura pop, mas, também, a autora. Não bastassem tomar como certo o pressuposto
conhecimento das referências presentes na história (no caso, o conhecimento do vilão
Voldemort), as agências de notícias e seus editores acreditaram que o comentário de Rowling
fosse, de alguma forma, relevante (sobretudo em um assunto tão importante como a sucessão à
Casa Branca). Dessa forma, Rowling deixa de ser simplesmente a autora de Harry Potter para
41
se tornar uma referência cultural ela mesma, seja dentro ou fora do fenômeno.
A autor(idade) de Rowling [...] encara os leitores na capa de cada um dos livros de Harry Potter, em todas as resenhas, entrevistas, todos os meios de cobertura da mídia. É perverso não levar em conta o autor. Compreensivelmente, o fenômeno Harry Potter inclui uma tempestade perfeita de interesse no autor: biografias admiráveis de Rowling estão crescendo constantemente em livrarias, entrevistas são publicadas em quantidade, ela é homenageada por várias instituições, o seu estatuto autoral é quantificado não apenas pelo prestígio, mas por seu valor financeiro, dificilmente uma resenha não mencionou as circunstâncias em que os primeiros livros de Harry Potter foram publicados (mãe solteira no auxílio-desemprego resume a imagem ainda que não inteiramente exata). Suas declarações sobre os livros de Harry Potter são tomadas como evangelho; ela é homenageada por crianças bem como por adultos. O autor foi incorporado ao fenômeno Harry Potter. Assim como os leitores, sem saber, se tornam participantes do fenômeno de Harry Potter, eles estão dentro do fenômeno mais do que em qualquer distância analítica, e Rowling também está, como autora. (GUPTA, 2009b, p. 33-34, tradução nossa)27
As palavras de Suman Gupta servem tanto para a justificativa deste capítulo, destinado
à figura do autor (J. K. Rowling, especificamente), como para a justificativa do capítulo
seguinte, o qual trata justamente da participação dos leitores e fãs na criação e manutenção da
comunidade global de Harry Potter.
O fenômeno Harry Potter e sua comunidade global de leitores e fãs, bem como suas
características como referência de bem cultural e de consumo fazem com que não apenas a
literatura e o livro sejam colocados em novas perspectivas, mas, também, as figuras do autor e
do leitor, assim como todos os outros envolvidos na criação e manutenção do fenômeno ; ou
seja: “aqueles outros criadores invisíveis que moldaram os livros juntamente com Rowling (os
designers/ilustradores, editores, anunciantes/publicitários, etc.)” (GUPTA, 2009b, p. 33,
tradução nossa). 28
É inegável o fato de que a obra sobrevive à intenção do autor, mas, se, por escolha ou
27 “Rowling’s author-ity […] stares readers in the face on the cover of every one of the Harry Potter books, in
every review, interview, every bit of media coverage. It is perverse not to take the author in account.
Understandably, the Harry Potter phenomenon includes a perfect storm of interest in the author: admiring
biographies of Rowling are cropping up steadily in book shops, interviews are published in quantity, she is
honoured by several institutions, her authorial status is quantified not just by prestige but by her financial worth,
hardly a review has failed to mention the circumstances in which the first Harry Potter books were published
(single mother on the dole, sums up the apparently not entirely accurate picture). Her statements on the Harry
Potter books are taken as gospel; she is honoured by children and adults alike. The author has been in corporated
into the Harry Potter phenomenon. Just as unthinking readers become participant in the Harry Potter phenomenon,
are within the phenomenon rather than at any analytical distance, so too is Rowling as the author.” 28 “[...] those other invisible creators who shape those books with Rowling (the cover designers, publishers,
advertisers, etc.)”
42
não, o leitor deixar se influenciar pelo autor ou pelo contexto no qual ele produziu o texto
literário, sua leitura certamente sofrerá a intervenção do contexto ou, até mesmo, do próprio
autor diretamente.
J. K. Rowling é, certamente, o maior exemplo dessa intervenção. Seja respondendo a
questões de seus seguidores no Twitter ou por meio da plataforma de leitura digital Pottermore,
a autora frequentemente revela segredos de seus livros, influenciando os desdobramentos da
história, bem como mantendo o interesse do público.
Por meio de sua conta oficial no Twitter, Rowling responde diretamente aos
comentários dos fãs e às perguntas dos leitores a respeito da série. Com esse contato direto e
recorrente com os fãs e leitores de Harry Potter, J. K. Rowling é sempre notícia por revelar
segredos e curiosidades da série e de seus personagens que não tenham sido contemplados pelos
livros. Um exemplo foi a notícia da autora de que o filho mais velho de Harry Potter havia sido
escolhido para a Grifinória (uma das casas da escola de magia).
Figura 2 – “Acabei de escutar que Tiago S. Potter foi selecionado (para a surpresa de ninguém) para a Grifinória. Teddy
Lupin (Monitor da Lula-lufa) está desapontado."
Outro exemplo que obteve grande repercussão entre os leitores e fãs da série, foi a
justificava dada por Rowling para o nome do segundo filho de Harry, dentre outras
interferências da autora na interpretação de acontecimentos da série e curiosidades a respeito
do mundo bruxo criado por ela.
43
Figura 3 – "Homenageando Snape, Harry esperava, em seu coração, que ele também fosse perdoado. As mortes na Batalha
de Hogwarts iriam assombrar Harry para sempre."
Figura 4- "Harry escolheu perpetuar os nomes das duas pessoas que não tinham ninguém em suas famílias para fazê-lo."
Figura 5- “Snape não morreu por 'ideais'. Ele morreu na tentativa de expiar sua própria culpa. Ele poderia ter fugido em
qualquer momento para se salvar, mas ele escolheu não contar a Voldemort que a carta cometia um erro fatal visando
Harry. O silêncio de Snape garantiu a vitória de Harry.”
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Figura 6 - "Não há mensalidades [em Hogwarts]! O Ministério da Magia cobre os gastos de todo a educação mágica!"
Além dessas e outras revelações, em 2007, ano de lançamento do último livro da série,
Rowling revelou aos fãs de Harry Potter que um dos principais personagens da série e um dos
bruxos mais poderosos de todos os tempos era gay. Alvo Dumbledore, diretor da Escola de
Magia e Bruxaria de Hogwarts, personagem mais poderoso e respeitado da série, passou por
todos os livros sem transparecer ao leitor ou ao público dos filmes sua sexualidade. Ou, como
noticiado pelo site de entretenimento da Folha de São Paulo: “Apesar da autora ter mencionado
isso em entrevistas, Dumbledore nunca ‘saiu do armário’ na série” (FOLHA, 2015).
O fato, inclusive, foi amplamente noticiado pela imprensa mundial nos sites dos
noticiários mais respeitados do mundo, como no site da BBC News sob a manchete: “JK
Rowling outs Dumbledore as gay” (BBC, 2007). Além da agência de notícias britânica, o site
da Time e de respeitados jornais como The Telegraph, The Guardian, The New York Times,
dentre outros ao redor do mundo, noticiaram o fato como se este tivesse relação com uma pessoa
pública de grande prestígio em nossa sociedade, isso sem contar a comoção causada nas redes
sociais após a revelação da autora.
Quando questionada no Twitter por um leitor que afirmou não conseguir ver
Dumbledore como gay, a resposta de Rowling movimentou a redes sociais e foi amplamente
compartilhada por seus seguidores.
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Figura 7- "Talvez porque pessoas gays se pareçam com... pessoas?"
É preciso ainda ressaltar que essa comoção acerca da sexualidade do diretor de
Hogwarts permanece ainda hoje nas redes sociais, com a apropriação da imagem de
Dumbledore por comunidades LGBTQ+, sobretudo pelos fãs da série. Mas, nem todos
comemoraram a atitude da autora. Algumas pessoas nas redes sociais e alguns ativistas gays
criticaram o fato de Rowling ter revelado a sexualidade de um personagem que poderia cair no
estereótipo dos personagens gays na cultura popular.
Ao mesmo tempo que Rowling deu enorme destaque em sua história a um personagem
do qual sua sexualidade não fazia a mínima diferença (pois isso não é revelado nos livros,
apenas após a declaração de Rowling é possível estabelecer essa conexão no último livro da
série), ela também correu o risco de reduzir tal personagem tão importante para o desenrolar da
história ao simples fato de ele ser gay.
É preciso destacar que a autora fez tal revelação ao ser indagada por um fã a respeito
da vida amorosa do personagem, e não por meio da própria série. Ainda que haja um curto
trecho em Harry Potter e as Relíquias da Morte (2007) no qual é tratada a relação de
Dumbledore com seu amor da adolescência (Gerardo Grindelwald29), essa relação entre os
personagens não é exposta no texto como uma relação amorosa. Apenas após a revelação de
Rowling é possível estabelecer uma relação com a orientação sexual do personagem. Ou seja,
um fato suplementar ao texto, o qual influencia diretamente na interpretação dos leitores e nos
desdobramentos da história por influência direta da autora. E a influência de Rowling nesse
assunto, em particular, não se resume apenas às declarações em entrevistas ou às respostas aos
seus fãs.
29 Poderoso bruxo das trevas derrotado por Dumbledore em uma batalha épica.
46
Responsável pelo roteiro de Animais fantásticos e onde habitam30 (Warner Bros.,
2016), o site da Time noticiou que a autora trataria de forma aberta a sexualidade de Dumbledore
na sequência do primeiro filme (McCLUSKEY, 2016). Ou seja, um diálogo transmídia
(JENKINS, 2009): um roteiro cinematográfico influenciando os desdobramentos da leitura (dos
novos fãs) e da releitura (dos antigos fãs) de uma série literária.
Entretanto, a sexualidade de Dumbledore não foi a única intervenção de Rowling em
sua história, mesmo após a publicação do último livro da série em 2007. São vários os exemplos
da interferência da autora na recepção de sua obra com informações suplementares ao texto ,
como as já citadas.
J. K. Rowling é notícia recorrente por seu contato com os leitores e fãs em suas redes
sociais, sobretudo em sua conta oficial no Twitter. É por meio dela que a autora responde às
indagações de seus seguidores a respeito de aberturas na história ou pontos não explicados ou
contemplados pelo texto (como a vida dos personagens após o encerramento da série, uma vez
que se trata de uma obra inacabada).
A história de sete volumes se encerra sem um fim: “Tudo estava bem.” (ROWLING,
2007, p 590). Os personagens continuam suas vidas além das páginas dos livros e o mundo
mágico de J. K. Rowling se mantém vivo em seu próprio curso, sobretudo como referência
cultural a uma multidão de leitores e fãs.
[...] O trem começou a se deslocar, e Harry acompanhou-o, olhando o rosto magro do filho já iluminado de excitação. Continuou a sorrir e acenar, embora tivesse a ligeira sensação de ter sido roubado ao vê-lo se distanciando dele...
O último vestígio de vapor se dispersou no ar de outono. O trem fez uma curva, a mão erguida de Harry acenava adeus.
– Ele ficará bem – murmurou Gina. Ao olhá-la, Harry baixou a mão distraidamente e tocou a cicatriz em
forma de raio em sua testa. – Sei que sim. A cicatriz não incomodara Harry nos últimos dezenove anos. Tudo
estava bem. (ROWLING, 2007, p. 590)
Fora dos sete livros da série, Rowling manteve seus personagens vivos, os quais
ganharam profissões após o último ano letivo em Hogwarts, construíram famílias e,
anualmente, completam aniversário. Todas essas são, obviamente, informações dadas pela
própria autora e após o encerramento da série (o que evidencia sua intervenção na obra e, ao
mesmo tempo, a mantém inacabada, pois esse encerramento se deu apenas na série de livros
30 Inicialmente, uma trilogia cinematográfica do mundo mágico criado por Rowling, a qu al conta a história de
eventos anteriores aos narrados na série Harry Potter.
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impressos).
Além das páginas dos livros, Rowling mantém a história inacabada em suas
declarações e em seus tweets que mobilizam a comunidade global de Harry Potter e parte
significativa da imprensa, a qual (é preciso destacar) ainda trata as questões da autora e de sua
obra com relevância editorial. O site do jornal britânico The Telegraph, por exemplo, fez uma
lista com 17 vezes em que J. K. Rowling chocou os fãs de Harry Potter com suas revelações
(VINCENT, 2016).
Ainda, anualmente, no aniversário da Batalha de Hogwarts (trecho do último livro da
série no qual muitos personagens queridos pelo público foram mortos), Rowling se desculpa
pela morte de um personagem por meio de sua conta no Twitter, fazendo com que seus leitores
e fãs já aguardem ansiosamente por seu pronunciamento como a pessoa revestida de autoridade
sobre a obra e, por consequência, revestida também de culpa pelas mortes.
Figura 8 - "Mais uma vez, é o aniversário da Batalha de Hogwarts, então, como prometido, eu devo me desculpar uma
morte. Este ano: Remo Lupin."
Figura 9- "No interesse da total honestidade, eu gostaria de confessar que eu não tinha decidido matar Lupin até eu ter
escrito a Ordem da Fênix."
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Figura 10- "Arthur sobreviveu, então Lupin tinha que morrer. Me desculpem. Eu não me diverti fazendo isso. A única vez
que meu editor me viu chorar foi sobre o destino de Teddy."
Seja pelas redes sociais ou pela plataforma de leitura Pottermore (na qual a autora
escreve textos inéditos a respeito de seu mundo mágico e dos personagens já conhecidos do
público), Rowling conseguiu manter o interesse de seu público em sua vida pessoal (seus gostos
e posicionamentos políticos, por exemplo) e em sua história, a qual se mantém viva por sua
presença e intervenção direta e incisiva como autora.
Por fim, para encerrarmos o texto dedicado aos novos e revisitados espaços ocupados
pelo autor na produção e recepção literária (sobretudo no fenômeno Harry Potter), retornemos
ao início deste subcapítulo, no qual tivemos a oportunidade de contar a pequena história do
repentino sucesso editorial de um romance policial inglês.
Essa curta passagem que abre o texto dedicado à controversa e polêmica discussão a
respeito do autor evidencia muito bem sua exumação (defendida neste trabalho), se não para os
formalistas, certamente para o público e, até mesmo, para a crítica literária.
No despretensioso e aparentemente deslocado trecho a abrir as discussões sobre o
autor, podemos evidenciar um dos maiores exemplos da exumação daquele que escreve pelo
poder (ou influência) de um nome, sem sequer levarmos em conta o texto ou, até mesmo, a
história que é contada no livro.
O relato breve e sem muitos detalhes do romance policial de sucesso repentino diz
respeito ao livro de Robert Galbraith, intitulado The Cuckoo’s Calling (2013), traduzido para o
Brasil como O Chamado do Cuco (2013), pela editora Rocco. O livro publicado na Inglaterra
em abril de 2013 havia vendido, até meados de julho do mesmo ano, 1.500 cópias, debutando
em críticas satisfatórias, porém, modestas em jornais britânicos.
No entanto, em menos de um mês, o livro saltou da 4709ª posição para o primeiro
lugar da lista de best-sellers da gigante do comércio eletrônico, a Amazon.com. Isso depois da
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revelação, em 13 de julho de 2013, de que Robert Galbraith era, na verdade, o pseudônimo de
J. K. Rowling (COX, 2013), o que rendeu críticas em grandes jornais, sites e revistas ao redor
do globo, exemplificando o argumento que, quanto à performance literária, sobretudo quando
se pensa em uma comunidade global de leitores, o autor não está completamente morto. Ele é
capaz, por si só, no exemplo de Rowling, de causar comoção em uma parcela significativa de
leitores e fãs, movimentando parte da indústria cultural, além, é claro, da própria crítica.
50
CAPÍTULO 2 – “POTTERMORE” AND MORE
“Claro que está acontecendo em sua mente, Harry,
mas por que isto significaria que não é real?”
Alvo Dumbledore (J. K. Rowling)
Desde Mallarmé (1945), o qual afirmava que o livro existia por si só, como volume,
impersonificado, ou seja, sem a necessidade sequer da leitura, as teorias que dizem respeito à
relação entre livro e leitor evoluíram, nos tempos atuais, em direção a um vínculo de
dependência mútua, mais do que a um domínio do livro sobre o leitor ou vice-versa; isso, ainda,
sem falarmos do papel do autor nessa relação entre o texto e sua leitura, como tratado no
capítulo anterior.
Afirmar que o texto literário é totalmente isento da intenção do autor é uma visão
demasiado radical. Quando um escritor escolhe uma palavra em detrimento da outra, quando
constrói as personalidades e características dos seus personagens, quando faz escolhas de
espaços e ações, é a partir de uma decisão refletida e informada que faz essas escolhas.
É muito óbvia a certeza de que o texto não se materializa por si só, o que o deixa
vulnerável à ação do autor, mesmo que este tente ao máximo anular sua voz (o que, por
consequência, teria repercussões estilísticas no próprio texto literário). No entanto, também
seria igualmente radical colocar o autor como o principal ou único fator de significação da obra,
assim como o é quando se privilegia apenas o texto, o qual existe materialmente, mas apenas
carrega significado no ato de leitura, ou seja, apenas com a presença de um leitor, seja o autor
(primeiro leitor de sua obra) ou o público.
Uma vez que a criação só pode encontrar sua realização final na leitura, uma vez que o artista deve confiar a outrem a tarefa de completar aquilo que iniciou, uma vez que é só através da consciência do leitor que ele pode perceber-se como essencial à sua obra, toda obra literária é um apelo. Escrever é apelar ao leitor para que este faça passar à existência objetiva o desvendamento que empreendi por meio da linguagem. (SARTRE, 2004, p. 39)
As radicalizações nos estudos literários talvez sejam a maior problemática e o principa l
fator de controvérsia: fugir de um ponto na teoria para se atracar a outro tão delimitado e
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delimitador quanto o primeiro. Fugir, por exemplo, do humanismo e do individualismo do autor
para passarmos ao humanismo e individualismo do leitor.
Essas radicalizações quanto aos agentes da literatura servem apenas para uma
discussão elíptica e, ainda assim, polarizada, calcada na necessidade de solidez e fixação dos
agentes, como se fosse da natureza humana e de suas relações a rigidez, a previsibilidade
imutável. Dessa forma, a teoria estaria apenas substituindo as peças no tabuleiro, sem levar em
conta o jogo.
É certo que a morte do autor traz, como consequência, a polissemia do texto, a promoção do leitor, e uma liberdade de comentário até então desconhecida, mas, por falta de uma verdadeira reflexão sobre a natureza das relações de intenção e de interpretação, não é do leitor como substituto do autor de que se estaria falando? (COMPAGNON, 2014, p. 52)
Devido ao recente contato entre leitor e autor e o sucesso que o best-seller alcança,
esses agentes passam por um certo deslocamento: o alcance do autor se torna maior, bem como
a participação do leitor, não necessariamente no processo de escrita, mas na recepção, no
processo de consumo da obra (GUPTA, 2009b). O leitor de best-sellers se sente participante do
fenômeno, e o é, de fato, pois é o principal responsável por sua consolidação.
Durante muito tempo, o historicismo e o formalismo excluíram o leitor de qualquer
relação com a obra. Segundo os New Critics americanos, a obra seria “uma unidade orgânica
autossuficiente, da qual convinha praticar uma leitura fechada” (COMPAGNON, 2014, p. 138).
Essa perspectiva, obviamente, não abre espaço para o leitor, a não ser como mera peça de uso
por parte da obra. A leitura seria, dessa forma, objetiva, fechada, planejada e controlada, sem a
necessidade de ceder qualquer espaço ao leitor. Em outras palavras, sua interpretação estaria
unicamente calcada no desejo do texto.
Essa resistência ao leitor perdurou por muitos anos, e, ainda hoje, perdura entre muitos
teóricos e críticos. Proust foi um dos primeiros dentre os de prestígio crítico e acadêmico a se
posicionar a favor da leitura (e de forma muito contundente). Contrariando as ideias de Lanson
(1925), o qual afirmava uma superioridade do texto em relação à sua leitura, Proust afirmava
que a leitura se constituía de uma experienciação, o que, obrigatoriamente, recorreria à figura
do outro, no caso, a figura do leitor.
Em O tempo redescoberto (2012), Proust sustenta a ideia de que as impressões acerca
da leitura de um livro e do mundo ao redor, do cenário e da experiência de leitura é que ficam
em nossa memória, e não o livro em si. Dessa forma, não se trata do texto, mas da interação
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estabelecida entre o texto e seu leitor, ou seja, a leitura.
Por mais que recordemos com riqueza de detalhes a história e, até mesmo, o estilo de
escrita de um texto literário (mesmo daqueles que gozam de nossa total predileção), jamais
seríamos capazes de recuperar o próprio livro, o texto em si, mas, certamente, os pontos
principais da leitura (ou aqueles que, de alguma forma, se tornaram particulares para o leitor).
Além, é claro, das lembranças que guardamos dos momentos de leitura, o que parece
razoavelmente lógico.
Contudo, ainda assim, alguns teóricos tentaram estabelecer formas de interpretações
universais, que não levassem em conta a individualidade do leitor, como se o texto fosse um
monumento, um estatuto, uma partitura estritamente seguida e compreendida por todos aqueles
que fizessem sua leitura.
Lanson, por exemplo, mesmo após as postulações de Proust, acreditava na existênc ia
de reações ao texto que não fossem absolutamente inclassificáveis ou de todo singulares. Ele
acreditava que pudesse haver um fio interpretativo do qual os leitores não poderiam se
desprender (ainda que houvesse alguns espaços reservados para as suas respostas individuais à
leitura), como se determinados pontos interpretativos não pudessem ser deixados de lado ou
simplesmente desviados. No entanto, apesar das tentativas de Lanson, a visão individual de
leitura defendida por Proust ganhou ainda mais força, pois não houve estudos convincentes que
afirmassem a existência de um fator comum e permanente na interpretação dos textos.
Os estudos da recepção, por sua vez, têm se interessado cada vez mais pelo efeito de
uma obra produzido no leitor, seja ele individual ou coletivo, ativo ou passivo, tomando dessa
forma o texto como um estímulo ao leitor, mais do que uma imposição.
O objeto literário não é nem o texto objetivo nem a experiência subjetiva, mas o esquema virtual [...] feito de lacunas, de buracos e de indeterminações. Em outros termos, o texto instrui e o leitor constrói. Em todo texto os pontos de indeterminação são numerosos, como falhas, lacunas, que são reduzidas, suprimidas pela leitura. (COMPAGNON, 2014, p.147)
Atualmente, também, é esse efeito que leva os recentes estudos da recepção a se
interessarem pela resposta dos leitores a essa interação estabelecida entre o leitor, o texto e o
contexto, ou seja, sua resposta à leitura.
A análise da recepção visa ao efeito produzido no leitor, individual ou coletivo, e sua resposta [...] ao texto considerado como estímulo. Os trabalhos desse gênero se repartem em duas grandes categorias: por um lado, os que dizem respeito à fenomenologia do ato individual de leitura [...], por outro
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lado, aqueles que se interessam pela hermenêutica da resposta pública ao texto. (COMPAGNON, 2014, p. 145)
Os estudos da recepção (Iser, 1972, 1976; Jauss, 1978, 1988) são, pois, herdeiros dos
estudos da estética fenomenológica de Roman Ingarden (1931), a qual coloca o texto em
interação com valores e normas extraliterários, como a política e a religião, por exemplo.
Fatores que influenciariam a leitura de um texto, uma vez que caberia ao leitor construir suas
compreensões baseado em suas próprias normas e em seus próprios valores e conhecimentos
anteriores à leitura. É o que Wolfgang Iser chamou de repertório, e Hans Robert Jauss de
horizonte de expectativa.
No entanto, essas mesmas normas e esses mesmos conhecimentos e valores do leitor
não estão estáticos e muito menos são imutáveis, muito pelo contrário: eles também são
modificados ou mantidos durante a própria leitura: “A leitura procede, pois, em duas direções
ao mesmo tempo, para frente e para trás” (COMPAGNON, 2014, p.146), ora retomando nossas
leituras passadas e o conhecimento e os valores adquiridos com elas, ora reformulando -os
durante o processo ou, até mesmo, inserindo novos modelos. “O sentido é, pois, um efeito
experimentado pelo leitor, e não um objeto definido, preexistente à leitura.” (COMPAGNON,
2014, p. 147).
Ainda na tentativa de reservar um espaço ao leitor e, ao mesmo tempo, justificar sua
inclusão nos estudos literários, surge, então, a imagem do leitor implícito. Este seria uma
“estrutura textual”, segundo a definição de Iser (1972), a qual serviria de modelo para o leitor
real. Ou seja, ainda no processo de produção, haveria a prefiguração de um receptor. Dessa
forma, o leitor real seria guiado pelo leitor implícito, ora sendo ativo (baseado em suas próprias
experiências de leitura), ora tomando sua posição passiva (baseado na estrutura textual, ou seja,
guiado pelo leitor implícito).
Esse pensamento de Iser (ainda que implicitamente voltado para a ação do autor, o
qual prefigura um leitor ideal para o seu texto) não deixa de fora da leitura aquilo que Ingarden
defendia: que a leitura se baseava em normas e conhecimentos prévios do leitor, e, muitos deles,
calcados em representações, normas e valores sociais extraliterários.
No entanto, a ideia de Iser ainda era muito voltada para a imagem do autor, segundo
seus críticos. “Sob a aparência do mais tolerante liberalismo, o leitor implícito, na verdade, só
tem como escolha obedecer às instruções do autor implícito, pois é o alter ego ou o substituto
dele” (COMPAGNON, 2014, p. 150).
Um desses críticos de Iser é o teórico americano Stanley Fish (1980), o qual levou em
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grande consideração a ideia da leitura baseada em pressupostos, normas e valores comunitár ios,
o que nos leva, agora, às comunidades interpretativas (as quais são baseadas em convenções,
códigos e ideologias compartilhadas por um grupo).
[A] comunicação ocorre somente dentro de um tal sistema (ou contexto, ou situação, ou comunidade interpretativa) e que a compreensão conseguida por duas ou mais pessoas é específica a esse sistema e determinada unicamente dentro dos seus limites [...] é somente em situações – com suas respectivas especificações quanto ao que interessa como fato, quanto ao que se pode dizer, quanto ao que será entendido como argumento – que somos solicitados a entender. (FISH, 1992, p. 192)
Após uma radicalização teórica, na qual Fish transferiu para o leitor toda a
responsabilidade em relação à significação, o crítico americano percebeu que passar toda essa
carga unicamente para o leitor era o mesmo que voltar ao passado, quando essa
responsabilidade era única e inteiramente do autor e, depois, do texto. Sendo assim, Fish optou
por “descartar” os três agentes de uma só vez: o autor, o texto e o leitor, e optou pela ideia de
“comunidade interpretava”, a qual seria responsável pela significação do texto, sem que se
tomasse, dessa forma, os agentes como objetos de estudo, mas, sim, todo o processo de
significação e os envolvidos nele.
Ou seja, como se um dos agentes não pudesse ser explicado (e entendido) sem a
presença do outro, uma vez que todas as partes do processo de significação e todos os agentes
se encontram interligados apenas no processo como um todo, e não quando se pensa de forma
a distingui- los em espaços reclusos e supostamente revestidos de valores (os quais assegurariam
uma posição de prestígio maior de um em relação a outro, o que vem sendo feito pela crítica e
pela teoria literária há décadas).
Nas comunidades interpretativas, o formalismo é, pois, anulado, da mesma forma que a teoria da recepção como projeto alternativo: não existe mais dilema entre partidários do texto e defensores do leitor, já que essas duas noções não são percebidas como concorrentes e são relativamente independentes. (COMPAGNON, 2014, p. 160)
Os críticos de Fish, no entanto, argumentaram a respeito do risco que se teria de cair
em um relativismo nos estudos literários, o qual, na prática, tornaria qualquer interpretação
válida. Porém, a teoria de Fish não se baseia em um relativismo, mas em contextos que
influenciam o entendimento de uma comunicação ou a interpretação de um texto.
O teórico americano, por sua vez, saiu em defesa de seu pensamento argumentando
55
que não haveria a possibilidade de um relativismo que antes não fosse influenciado pela visão
de mundo do sujeito, como suas crenças, ou a ideia de certo ou errado, por exemplo. Ou seja,
esse suposto relativismo não partiria do sujeito, mas da comunidade interpretativa da qual ele
faz parte ou dos conhecimentos e pressupostos já adquiridos por ele dentro dessa comunidade
anteriormente ao enunciado ou ao texto.
Em outras palavras, enquanto o relativismo é uma posição que pode ser mantida por algumas pessoas, não é uma posição que possa ser ocupada por ninguém. Ninguém pode ser relativista, porque ninguém pode obter um tal distanciamento das suas próprias crenças e pressuposições até o ponto de conseguir que estas não tenham mais autoridades para ele do que as crenças e pressuposições mantidas por outros [...] O caso é que nunca há um momento em que uma pessoa não acredite em nada, em que a consciência seja inocente de toda e qualquer categoria de pensamento [...] (FISH, 1992, p. 204)
Ou seja, ninguém pode ser relativista, mas estar em uma posição relativista de acordo
com suas crenças e pressuposições diante de um contexto interpretativo. Ainda em resposta
direta a seus principais críticos (Abrams, 1977; Hirsch, 1976), os quais acusavam sua teoria de
ser calcada no solipsismo, Stanley Fish ressalta que:
[S]e, em lugar de agir por sua conta, os intérpretes agem como extensões de uma comunidade institucional, o solipsismo e o relativismo desaparecem como fatores a serem temidos porque eles não constituem modos possíveis de ser. Quer isso dizer que a condição requerida para que alguém seja solipsista ou relativista, a condição de ser independente de pressuposições institucionais e de ser livre para criar seus próprios objetivos e propósitos, nunca poderia realizar-se e, portanto, não há motivos para tratar de proteger-se contra ela. (FISH, 1992, p. 205)
Segundo Fish, essas comunidades interpretativas diferem umas das outras de acordo
com seus contextos. O exemplo utilizado por ele para defender seu conceito foi o contexto
universitário. Em seu polêmico artigo Is there a text in this class? (1992), Fish descreve a
comunicação real entre uma de suas alunas e um de seus colegas, também professor da Johns
Hopkins University, em Baltimore, nos EUA.
No primeiro dia do semestre, o colega de Fish foi abordado por uma aluna que lhe
perguntou: “Is there a text in this class?” (Tem um texto nesta aula?). Assumindo que a moça
estaria se referindo ao texto de leitura que seria utilizado no curso, o professor respondeu à
pergunta com o título do livro que os alunos deveriam ler: “Sim, é a Antologia Norton de
Literatura.” (FISH, 193, 1992). No entanto, após a resposta do professor, a aluna disse que não
se referia ao texto que seria lido na aula, mas ao texto no sentindo teórico.
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Dessa forma, Fish demonstra um exemplo de comunidade interpretativa. Tanto a
primeira interpretação da pergunta (a do professor) quanto a segunda interpretação da mesma
(a da aluna) só foram possíveis e coerentes porque ambos estavam incluídos em uma mesma
comunidade interpretativa. Ou seja, tanto o texto como objeto material (como inicialmente
entendido pelo professor) quanto o texto em seu conceito teórico (como a intenção da aluna em
sua pergunta) fazem parte de um mesmo universo contextual do qual os dois compartilham
conhecimentos: no caso, o primeiro dia de aula em uma universidade.
Com o advento da internet e, sobretudo, com a propagação das redes sociais em escala
global, o mundo virtual se tornou um local propício ao surgimento dessas comunidades
interpretativas, e das mais diversas. Nessas comunidades globais, seus membros compartilham
as mesmas ideias, os mesmos gostos, interesses e conhecimentos de uma forma menos abstrata
que nas comunidades imaginadas definidas por Benedict Anderson (2015).
Ela [a nação] é imaginada porque mesmo os membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão, encontrão ou nem sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva de comunhão entre eles. (ANDERSON, 2015, p. 32)
No entanto, nem sempre essa comunhão é compartilhada de fato entre os membros de
uma comunidade imaginada, ou seja, uma nação. O conceito de nacional debatido por Anderson
está muito mais (ou quase que inteiramente) calcado em uma imaginação coletiva,
compartilhada entre um grupo de pessoas que se consideram uma grande comunidade, do que
calcado em elementos que realmente os unam como comunidade. Basta pensarmos nas
disparidades culturais e sociais entre regiões de diversos países (como no Brasil, por exemplo)
para percebermos que a noção de nacionalidade não se baseia em fatores comuns, mas, antes,
em fatores políticos.
Os elementos menos abstratos que constituem o senso de uma nação são suas fronteiras
terrestres e marítimas, sendo estas o elemento mais concreto, uma vez que delimitam um espaço
físico de pertencimento e de posse com valor jurídico. Os outros elementos que contribuem à
noção de pertencimento a uma nação são todos elementos imaginados, concebidos em uma
suposta coletividade e socialmente institucionalizados por leis e códigos de conduta. Ou, ainda,
como bem ressalta Benedict Anderson, pela escrita e sua “reprodutibilidade e disseminação”
(ANDERSON, 2015, p. 71) por meio da imprensa, bem como pela criação dos romances
nacionais (ANDERSON, 2015, p. 71).
Já nas comunidades virtuais de alcance global (CASTELLS, 2003), o senso de
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pertencimento está muito mais ligado a elementos compartilhados de fato entre seus membros
do que aqueles apenas imaginados. O que faz um leitor de Harry Potter no Brasil se identificar
com um leitor de Harry Potter no Peru, por exemplo, é algo muito mais “concreto” do que
aquilo que os une (ou, pelo menos, deveria uni-los) como latino-americanos.
Estar política e juridicamente incluso no que se chama de América Latina não é estar
cultural ou afetivamente incluso na ideia de latino-americano. Isso não significa que todos
aqueles denominados dessa forma se considerem ou se sintam pertencentes a essa comunidade
imaginada, a esse espaço imagético, ainda que compartilhem e pertençam ao mesmo espaço
físico e político.
No entanto, para que um sujeito seja incluído na comunidade global de leitores e fãs
de Harry Potter, basta que esse sujeito tenha lido os livros ou consumido seus subprodutos,
como os filmes, os jogos e os recursos interativos na internet. Ou seja, a ligação entre os
membros dessa comunidade é muito mais direta e menos abstrata. É da ordem do comum, dos
mesmos interesses e gostos compartilhados, ainda que estes possam se limitar apenas à leitura
de um livro. “As singularidades interagem e se comunicam socialmente com base no comum,
e sua comunicação social por sua vez produz o comum. A multidão é a subjetividade que surge
dessa dinâmica de singularidade e partilha” (HARDT & NEGRI, 2014, p. 258).
O que constrói a gigantesca comunidade de leitores e fãs de Harry Potter são seus
próprios interesses e conhecimentos comuns, gostos e sentimentos compartilhados que unem,
por exemplo, um leitor do norte da Espanha a um leitor separatista da região da Catalunha. O
que os une como membros dessa comunidade global são elementos sem o peso opressor da
imposição política ou da herança cultural, elementos mais genuínos, por assim dizer (menos
política e historicamente influenciáveis), e, por isso, mais compreensíveis e aceitáveis do que
aqueles elementos que falharam em uni-los como “espanhóis”.
Ainda que de forma virtual, os conceitos e as imagens que servem de fator comum às
comunidades globais, como a de Harry Potter (ou seja, aquilo que une seus membros em torno
de uma referência cultural), são mais facilmente percebidos e ainda mais significáveis que o
senso comum das comunidades imaginadas: as chamadas nações.
Isso ocorre pelo fato de o senso de pertencimento a uma nação ser algo histórico,
política e culturalmente imposto, diferentemente do senso de pertencimento à comunidade
global de Harry Potter, o qual se baseia em fatores temporais e sentimentais mais próximos de
seus membros (como a relação afetiva com a série, a qual é compartilhada entre os membros
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de sua comunidade de leitores e fãs).
Para o sociólogo canadense Barry Wellman (2005), as comunidades, no geral, por
meio de laços interpessoais, proporcionam sociabilidade, apoio, informação, além de um senso
de pertencimento e identidade social.
No entanto, esse senso de pertencimento em uma comunidade virtual como a de Harry
Potter é maior, mais perceptível e compreensível que o senso de pertencimento a uma
comunidade imaginada, pois os fatores que determinam a inclusão de um sujeito em uma nação
não levam em conta a vontade e os gostos dos membros dessas comunidades. Eles são, antes
de tudo, impostos. Já quanto ao senso de identidade social citado por Wellman, esse é maior
quando se fala das comunidades imaginadas (as nações), justamente por se tratar de algo
juridicamente imposto, no qual o comum se limita ao local de nascimento ou radicação, e não
ao compartilhamento (de fato) de interesses comuns.
A ideia de nacionalidade de um sujeito, de sua identidade história e política, está mais
ligada ao seu território de nascimento ou de radicação do que na ideia de comunidade de fato.
É isso que torna possível, por exemplo, no Brasil, a disseminação de movimentos separatistas
nas redes sociais, ainda que todos sejam juridicamente “brasileiros”, e este é um grande
exemplo da ineficácia parcial da noção de nação.
O que levou o Brasil a uma onda separatista (A TRIBUNA, 2014) e discriminató r ia
(iG, 2014) que se seguiu logo após as eleições de 2014 foram justamente aqueles elementos que
não são compartilhados por todos os sujeitos da comunidade imaginada: visões políticas,
econômicas, heranças culturais e, até mesmo, dialetos e características físicas, ainda que todos
os envolvidos no jogo democrático fossem considerados, perante a Lei e os acordos sociais,
como brasileiros.
Ainda que todos estivessem sob os mesmos símbolos pátrios, compartilhando a mesma
bandeira, o mesmo hino, o mesmo espaço físico (ou seja, supostamente a mesma ideia de
nação), tudo isso não foi capaz de manter a comunidade indissolúvel, uma vez que seu senso
de comum é fraco, pois não é, de fato, comum.
Aquilo que afirma um sujeito como sendo pertencente a uma comunidade virtual é
muito mais objetivo do que aquilo que o afirma como pertencente a uma comunidade
imaginada, ou seja, uma nação. Um sujeito não se torna membro da comunidade de leitores e
fãs de Harry Potter porque seus pais o são, porque o disseram ser dessa maneira, ou pela
existência de um documento ou acordo sociopolítico que ateste tal, mas, sim, pelo simples fato
de compartilhar uma leitura comum, gostos, interesses, sentimentos e conhecimentos comuns
59
entre os membros dessa comunidade. Esses elementos são, pois, compartilhados de fato, e não
apenas imaginados como supostamente compartilhados por todos os membros de uma
comunidade (a exemplo do que é feito com a nação).
Ao justificar o seu conceito de nação, Benedict Anderson argumenta que a falta de
contato entre os sujeitos de uma comunidade é o fator principal que a caracteriza como sendo
imaginada. “Na verdade, qualquer comunidade maior que a aldeia primordial do contato face
a face (e talvez mesmo ela) é imaginada. As comunidades se distinguem não por sua
falsidade/autenticidade, mas pelo estilo em que são imaginadas” (ANDERSON, 2015, p. 33).
No entanto, Anderson não pôde levar em conta em seu trabalho (escrito nos anos de
1980) as novas tecnologias de informação e de comunicação que se desenvolveram nos anos
1990 e tiveram um crescimento significativo a partir da primeira década do século XXI e início
da segunda. Época em que as redes sociais se consolidaram como agentes de comunidades
virtuais, locais e globais, permitindo o contato que antes, como bem afirma Benedict Anderson,
era apenas imaginado. Hoje, no entanto, esse contato se torna mais possível, ainda que não
alcance sua improvável totalidade.
É esse contato alcançado pelas tecnologias de comunicação e seu acesso que
possibilitou, por exemplo, a ocorrência histórica da Primavera Árabe. Enquanto os sujeitos
apenas se imaginavam membros de uma comunidade, nada havia sido feito. Apenas quando
realmente se viram compartilhando dos mesmos elementos que os uniam de uma forma ou de
outra, e quando se tornaram uma grande comunidade virtual por meio das redes sociais
(BORGES, 2012), é que algo de concreto e revolucionário pôde ser feito (ainda que seus
resultados sejam discutíveis).
São também esses mesmos elementos compartilhados, os quais deixam de ser
simplesmente imaginados e passam a ser expostos em comunidades virtuais pela internet, que
possibilitam a ocorrência de grupos terroristas internacionais, a exemplo do Estado Islâmico e
sua difusão e recrutamento ao redor do mundo por meio da rede (BERCITO, 2016), bem como
a ocorrência de grupos separatistas, neonazistas, dentre outros; os quais ganham força no mundo
virtual a partir do momento que ganham um espaço de compartilhamento e passam a ser, de
fato, elementos comuns de uma comunidade.
Esse compartilhamento virtual possibilita, sobretudo, a evidenciação de tais grupos
como nunca antes da revolução comunicativa e tecnológica fora possível. Isso ocorre, pois essas
comunidades, ainda que virtuais, têm grandes elementos comuns que unem diversos sujeitos de
diferentes comunidades imaginadas: as mesmas crenças, visões políticas, os mesmos valores,
60
ou, como no caso do fenômeno Harry Potter, o mesmo produto cultural compartilhado pelos
membros de sua comunidade.
De forma geral, podemos afirmar que o best-seller se encontra em uma posição
favorável à formação de grandes comunidades interpretativas, por se tratar, em sua grande
maioria, de histórias e textos mais acessíveis aos diversos públicos de diferentes partes do
mundo. O best-seller, seja por sua escrita mais acessível ou por sua história tão acessível quanto
agradável, lúdica, envolvente (SODRÉ, 1985), é um aglutinador de pequenas comunidades
interpretativas (podemos levar em conta as comunidades interpretativas divididas por idiomas,
por exemplo), as quais formam uma grande comunidade global (GUPTA, 2009a, 2009b;
HARDT & NEGRI, 2014).
Ainda que todos os leitores de um livro ao redor do mundo leiam a mesma história e
se identifiquem uns com os outros por essa leitura em comum, não lhes é negado uma
subjetividade interpretativa, seja do próprio leitor ou de sua pequena comunidade interpretat iva
(como podemos citar, mais uma vez, a questão da língua). As próprias traduções em escala
global31 permitem uma subjetividade interpretativa em comunidades ao redor do mundo de
acordo com suas características linguísticas e culturais.
Um exemplo é a tradução da série feita por Lia Wyler para a editora Rocco. Criticada
por alguns e elogiada por outros (inclusive pela própria J. K. Rowling), Wyler adaptou muitos
dos nomes da série para o português do Brasil (diferentemente da tradução dos livros em
Portugal, a qual manteve todos os nomes em latim e inglês). Essa escolha da tradutora, ainda
que criticada por alguns fãs, ajudou no sucesso e na apropriação das referências à série no
Brasil.
No entanto, ainda que haja certa “individualidade” interpretativa dessas comunidades
(algumas referências da série são mais fortes em alguns países do que em outros), há também
um fator comum entre as diferentes comunidades interpretativas ao redor do mundo, o que faz
com que, juntas, se tornem uma grande comunidade global.
Cada leitor, para cada uma de suas leituras, em cada circunstância, é singular. Mas esta singularidade é ela própria atravessada por aquilo que faz que este leitor seja semelhante a todos aqueles que pertencem à mesma comunidade. (CHARTIER, 1999, p. 91-92)
31 Harry Potter, a partir do quinto volume da série, passou a contar com publicações simultâneas ao redor do
mundo, incluindo o Brasil e os principais mercados literários.
61
O que garante a constituição e manutenção da comunidade global de Harry Potter é
tanto sua enorme disseminação como bem cultural ao redor do mundo quanto as referências
culturais da série que não modificam de um lugar para o outro e são facilmente compreensíve is
por seus leitores e fãs.
Ainda que uma referência à série tenha mais uso ou relevância em um contexto
específico do que em outros, ou um personagem seja mais querido em uma faixa do público do
que em outras, essas referências, ainda que possam variar de intensidade e uso, são as mesmas
para toda a comunidade.
Tendo surgido na virada do milênio e se consolidado como um sucesso da indústria do
entretenimento já no início da primeira década, Harry Potter se beneficiou em grande parte das
novidades tecnológicas da era digital, sobretudo com a proliferação dos sites, blogs e redes
sociais. Neles e por meio deles, a série encontrou um espaço de sobrevivência além das páginas
dos livros e das telas de cinema.
Incialmente, esse espaço virtual foi ocupado pelos próprios leitores e fãs da série.
Fosse por meio de debates ou por histórias paralelas à série escritas e compartilhadas na internet
pelos próprios fãs, os leitores de Harry Potter encontraram na rede um local produtivo para
suas discussões e intervenções na história.
O novo suporte do texto permite usos, manuseios e intervenções do leitor infinitamente mais numerosos e mais livres do que qualquer uma das formas antigas do livro. No livro de rolo, como no códex, é certo, o leitor pode intervir. Sempre lhe é possível insinuar sua escrita nos espaços deixados em branco, mas permanece uma clara divisão, que se marca tanto no rolo antigo como no códex medieval e moderno, entre a autoridade do texto, oferecido pela cópia manuscrita ou pela composição tipográfica, e as intervenções do leitor, necessariamente indicadas nas margens, como um lugar periférico com relação à autoridade. (CHARTIER, 1999, p. 88)
A longa era do leitor passivo, o qual se submetia aos comandos do texto, foi
confrontada pela era digital, na qual o leitor reivindica sua participação efetiva no processo
literário, seja na leitura das obras ou na recriação das mesmas (mesmo que sem a autoridade do
autor e, talvez, justamente por essa liberdade descompromissada).
É a tela do computador como suporte textual que inaugura a possibilidade de diálogo (e/ou cooperação) entre escritores e leitores, diálogo esse que pode ocorrer no espaço do próprio suporte. Segundo Chartier (2002), essa inovação é tão radical que faz com que os leitores possam se transformar em co-autores, dado que seus comentários e intervenções podem chegar aos escritores rápida e diretamente, sem passar por intermediários como antes. A tela do
62
computador como suporte textual permite que qualquer pessoa com acesso à internet possa publicar textos livremente e sem mediações, e a mesma tela permite que o escritor peça a colaboração do leitor que pode, agora, intervir no próprio conteúdo do texto. (DI LUCCIO; NICOLACI-DA-COSTA, 2007, p. 667-668)
Colecionando inúmeras fanfics32 na internet, fóruns de discussão e sites de notícias do
universo relacionado à série, o fenômeno Harry Potter, inicialmente limitado a um único
suporte (o livro), encontrou um espaço no qual a série se dissemina de forma rápida e em escala
global, tanto pela iniciativa de seus leitores e fãs quanto pela busca de seus investidores por
novos mercados e novas plataformas para o produto. “A tela e a internet fazem surgir espaços
textuais públicos – como os fóruns de discussão, as famosas salas de bate-papo, os espaços de
trocas instantâneas de mensagem [...] e os blogs – dos quais todos podem participar” (DI
LUCCIO; NICOLACI-DA-COSTA, 2007, p. 668).
Dessa forma, a comunidade global de leitores e fãs encontrou um espaço virtual no
qual seus membros poderiam interagir entre si, entretendo-se e, ao mesmo tempo, reforçando o
fenômeno Harry Potter e sua disseminação como produto e referência cultural. É nesse ponto,
em especial, que os fãs da série se tornam, em grande parte, responsáveis por seu sucesso no
mundo virtual. Ainda que haja uma ação calculada das partes que detêm os direitos econômicos
da marca Harry Potter, a sua disseminação na rede se dá, em sua ampla maioria, de forma
espontânea.
Seja construindo referências à série ou simplesmente demonstrando seu apreço pelo
universo de Harry Potter nas redes sociais, compartilhando fotos, vídeos ou notícias, os fãs
acabam por reforçar a consistência e o alcance do fenômeno, sem a necessidade de uma ação
direta da autora ou dos demais detentores da marca. Ainda que possa haver ações de marketing,
por exemplo, a disseminação de notícias relacionadas à série e a seus produtos se dá quase que
de forma orgânica nas redes sociais. Porém, nem tudo no mundo virtual se resume à ação dos
fãs de Harry Potter.
Em julho de 2011, a Warner Bros. Entertainment Inc. e a autora da série anunciaram a
criação de um site sobre o universo de Harry Potter que funcionaria como uma plataforma de
32 “É uma narrativa ficcional, escrita e divulgada por fãs em blogs, sites e em outras plataformas pertencentes
ao ciberespaço, que parte da apropriação de personagens e enredos provenientes de produtos midiáticos como
filmes, séries, quadrinhos, videogames, etc, sem que haja a intenção de ferir direitos autorais ou obter de lucros.
Portanto, tem como finalidade a construção de um universo paralelo ao original e também a ampliação do contato
dos fãs com as obras que apreciam para limites mais extensos.” Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Fanfic. Acesso em: 09 de junho de 2017.
63
leitura interativa para os fãs. Em abril de 2012, o site Pottermore foi lançado para todo o
público. A partir de então, o mundo bruxo de J. K. Rowling (J. K. ROWLING’S WIZARDING
WORLD) se tornou uma marca registrada da própria autora e da gigante americana do
entretenimento.
Mais do que um simples site de notícias sobre os livros ou sobre a autora, Pottermore
é uma empresa limitada (Pottermore Ltd.), baseada em Londres, a qual oferece publicação de
livros digitais, entretenimento e outros serviços relacionados à série Harry Potter e ao Mundo
Bruxo de J. K. Rowling (BLOOMBERG, s.d.).
Como o próprio nome do site sugere, Pottermore é o lugar em que os leitores e fãs da
série podem encontrar informações e histórias adicionais aos sete livros publicados. Mais que
um espaço virtual dedicado aos personagens da série, Pottermore se tornou a ferramenta oficia l
pela qual Rowling mantém viva sua história, abordando não apenas a escola de magia, mas seu
mundo mágico como um todo, ou, como escrito na apresentação do site, “o coração digital do
Mundo Bruxo”: “Welcome to the digital heart of the Wizarding World”.
Além de tratar dos lugares e personagens já conhecidos e suas vidas para além das
páginas dos sete livros da série, Pottermore é o suporte pelo qual a história de Harry Potter se
amplia para fatos não contemplados nos sete volumes já publicados e para além do nicho
literário.
O site se tornou o espaço no qual os fãs podem encontrar os livros em formato digita l,
produtos, novidades e informações oficiais das edições comemorativas (como a edição de 20
anos da série, em 2017, a qual traz novidades e curiosidades dos personagens nunca antes
reveladas nos livros), bem como se tornou a fonte oficial de notícias da nova franquia
cinematográfica e da peça de teatro de Harry Potter.
Ainda a fim de buscar cada vez mais seu espaço no mundo virtual, em junho de 2017,
a autora anunciou por meio de seu perfil oficial no Facebook o lançamento de um clube do livro
destinado exclusivamente à série, como parte do site Pottermore:33 “Wizarding World Book
Club - Read and discuss the Harry Potter stories with anyone, anywhere.” (Clube do Livro do
Mundo Bruxo - Leia e discuta as histórias de Harry Potter com qualquer um, em qualquer
lugar).
Em um curto vídeo que questiona o leitor, “Think you know everything about the Harry
Potter books?” (Acha que sabe tudo sobre os livros de Harry Potter?), o novo espaço virtua l,
mais que um convite, é um desafio aos fãs da série a testarem seus conhecimentos e suas leituras
33 https://my.pottermore.com/wizarding-world-book-club
64
dos livros em uma comunidade mundial de leitores.
Tomando como exemplo alguns dos pontos mais controversos da série e convidando
os fãs à leitura ou releitura dos livros, o intuito do clube do livro é fazer com que os fãs ao redor
do mundo leiam juntos as histórias e discutam entre si os temas abordados nos livros e elencados
pelo próprio site: “Join the discussion, delve into the stories and read along with the rest of the
world.” (Junte-se à discussão, mergulhe nas histórias e leia junto com o resto do mundo).
Seguindo as leituras dos livros de acordo com o site, os antigos e novos fãs (como dito
na própria apresentação do clube) poderão, a cada semana, discutir os temas apresentados pelo
Pottermore. A leitura de artigos a respeito dos livros e os temas a serem discutidos estarão todos
presentes no site. No entanto, o clube do livro, de fato, se encontra no Twitter,34 onde as
discussões realmente acontecerão, atraindo novos leitores à série e desafiando os fãs mais
antigos a retomarem a leitura de Harry Potter; o que reforça ainda mais sua comunidade global
de leitores e fãs e mantém a leitura de seus livros relevante e necessária para aqueles que
queriam se unir ao Wizarding World Book Club.
Além de toda essa conexão virtual e em escala global que o site proporciona aos fãs
da série, Pottermore é a plataforma pela qual os leitores de Harry Potter participam da história
de forma interativa com as ferramentas disponíveis no site. Para ter acesso a essa interatividade,
o usuário deve, inicialmente, registrar-se em uma conta no site. Após escolher seu nome de
usuário e senha, o fã da série estará apto a fazer parte da história e se tornar um membro efetivo
da comunidade global que se forma ao redor de Pottermore.
Uma vez dentro do mundo virtual de Harry Potter, o usuário pode ser escolhido para
uma das casas de Hogwarts, descobrir qual é sua varinha mágica e praticar feitiços. Todas essas
funcionalidades, é preciso ressaltar, contam com a opção de compartilhamento nas redes
sociais, para que todos os seus seguidores e amigos possam saber de sua vida no mundo bruxo
(e, claro, para que o fenômeno seja ainda mais disseminado).
O leitor, incialmente preso às páginas dos livros, entra nesse universo antes apenas
apreendido pelas palavras impressas no papel ou, até mesmo, presentes na tela do computador.
Agora, ainda que de forma virtual, o leitor passa a ser parte daquele universo por meio de uma
funcionalidade e de uma interatividade inatingíveis no livro como suporte.
O leitor não é mais constrangido a intervir na margem, no sentindo literal ou no sentido figurado. Ele pode intervir no coração, no centro. Que resta então da definição do sagrado, que supunha uma autoridade impondo uma atitude
34 https://twitter.com/wwbookclub
65
feita de reverência, de obediência ou de meditação, quando o suporte material confunde a distinção entre o autor e o leitor, entre a autoridade e a apropriação? (CHARTIER, 1999, p. 91)
Antes restrita à ação dos fãs nas redes sociais, a disseminação da série no espaço digita l
passou a contar com a produção e a tutela dos donos da marca Harry Potter. Com a
credibilidade do nome da autora, o site, ainda que criado e gerenciado por muitos, se apresenta
ao público sob a jurisprudência autoral de Rowling, a qual atrai o público e confere
credibilidade ao trabalho: “Pottermore, from J. K. Rowling”.35
Não bastasse o nome de J. K. Rowling resguardando esse novo suporte digital, a autora
ainda é a pessoa por trás desse mundo virtual responsável por dar as boas-vindas ao público do
site em uma mensagem de áudio. Na curta gravação, Rowling apresenta a nova ferramenta de
interatividade com o público, a qual assegura a sobrevivência do fenômeno Harry Potter e
reforça a manutenção de sua comunidade:
Bem-vindo ao Pottermore! Este é o meu canto mágico na internet. Um lugar no qual você pode explorar meus textos (tanto os já conhecidos como os novos), e no qual você pode ler matérias, artigos e notícias da equipe Pottermore. Novas informações serão reveladas sobre os personagens, os lugares e a magia aos quais você já está familiarizado, assim como introduções a novos personagens, lugares e noções. O Pottermore é um lugar no qual você pode liberar sua imaginação e permiti-la a guiá-lo em aventuras. Se você
precisa de um pouco mais de magia na sua vida, você veio ao lugar certo.
(ROWLING, s.d., tradução nossa)36
Como a própria autora reivindica esse espaço como sendo seu, o site Pottermore, além
de proporcionar uma interatividade maior dos leitores com a série, possibilita a J. K. Rowling
manter sua história inacabada. O site se tornou a plataforma de leitura para os novos textos da
autora, os quais retornam à história dos livros, dando novos contornos aos acontecimentos e
novas informações a respeito dos personagens, bem como ampliando cada vez mais o mundo
criado por Rowling, em novas histórias.
Seja em suas próprias redes sociais ou por meio do “canal oficial” do universo da série
35 https://www.pottermore.com/ 36 “Welcome to Pottermore! This is my magical corner of the internet, a place where you can explore my writing,
both familiar and new, and where you can read features, articles and news from the Pottermore Team. New
information will be revealed about the characters, places and magic you’re familiar with, as well as introductions
to a few new characters, places and notions. Pottermore is a place where you can unleash your imagination and
allow it to lead you on adventures; if you need a little extra magic in your life, well, you've come to the right
place.” Disponível em: https://www.pottermore.com/news/j-k-rowling-welcome-message Acesso em: 10 de junho
de 2017.
66
Harry Potter, J. K. Rowling e seus colaboradores e investidores mantêm tanto a curiosidade do
público quanto o seu entretenimento. Além de manter sua obra inacabada, as ferramentas
digitais possibilitam de forma ágil e eficaz a manutenção de sua comunidade global de leitores
e fãs.
Essa comunidade virtual formada por Harry Potter se destaca por seu alcance e por
sua longevidade. Uma de suas maiores características e um dos principais fatores que a mantêm
coesa (ainda que global) é o fato de seus membros compartilharem das mesmas referências
culturais encontradas na série.
Vários são os exemplos dessa apropriação cultural, desde referências ao vilão da série
(Lord Voldemort) à amiga sabe-tudo de Harry (Hermione Granger), passando ainda por outros
personagens secundários e por cenários e trechos icônicos da série, com muitos dos quais os fãs
criam uma ligação afetiva, como o embarque na Plataforma 9 ½ (9 ¾ na versão original):
– Com licença – dirigiu-se Harry à mulher gorda. – Olá, querido, é a primeira vez que vai a Hogwarts? O Rony é novo
também. Ela apontou o último filho, o mais moço. Era alto, magro e
desengonçado, com sardas, mãos e pés grandes e um nariz comprido. – É – respondeu Harry. – A coisa é... a coisa é que não sei como... – Como chegar à plataforma? – disse ela com bondade, e Harry
concordou com a cabeça. – Não se preocupe. Basta caminhar diretamente para a barreira entre
as plataformas nove e dez. Não pare e não tenha medo de bater nela, isto é muito importante. Melhor fazer isso meio correndo se estiver nervoso. Vá, vá antes de Rony.
– Hum... OK. E Harry virou o carrinho e encarou a barreira. Parecia muito sólida. Ele começou a andar em direção a ela. As pessoas a caminho das
plataformas nove e dez o empurravam. Harry apressou o passo. Ia bater direto no coletor de bilhetes e então ia se complicar – curvando-se para o carrinho ele desatou a correr – a barreira estava cada vez mais próxima – não poderia parar – o carrinho estava descontrolado – ele estava a um passo de distância – fechou os olhos se preparando para a colisão...
E ela não aconteceu... ele continuou correndo... abriu os olhos. Uma locomotiva vermelha a vapor estava parada à plataforma
apinhada de gente. Um letreiro no alto informava Expresso de Hogwarts, 11 horas. Harry olhou para trás e viu um arco de ferro forjado no lugar onde estivera o coletor de bilhetes, com os dizeres Plataforma nove e meia. Conseguira. (ROWLING, 2000a, p. 84)
Após a adaptação da icônica cena para o cinema (na qual Harry atravessa uma parede
sólida empurrando o carrinho de bagagens), a administração de King’s Cross, em Londres,
67
homenageou a série com a construção da fictícia plataforma criada por Rowling, localizada
entre as plataformas nove e dez.37
A passagem para a plataforma do Expresso de Hogwarts construída na icônica estação
londrina conta com uma placa informando sua localização e um carrinho do qual se vê apenas
a metade que ainda não atravessou para o outro lado. A referência à série, evidentemente, atrai
fãs do mundo todo diariamente para registrar em fotos e vídeos suas visitas à plataforma, como
se estivessem atravessando a “passagem secreta”. Ao lado, é claro, os fãs podem fazer suas
compras em uma loja dedicada a diversos produtos da série. 38
Ainda a respeito da plataforma eternizada pelo primeiro livro de Harry Potter, a
administração do Aeroporto Internacional de Brasília postou uma foto em seu perfil oficial no
Facebook em homenagem aos 20 anos da série. A foto se tratava de uma montagem da
plataforma 9 ¾ no aeroporto, a qual atraiu muitos fãs à procura do fictício portão de embarque
(LUIZ, 2017).
Ainda a respeito das comemorações dos 20 anos do lançamento do primeiro livro da
série, no dia 27 de junho de 2017, o Facebook lançou uma ferramenta para todos os seus
membros em homenagem a Harry Potter. Bastava comentar ou escrever o nome do personagem
título da série que ele automaticamente se tornava vermelho, bem como as quatro casas de
Hogwarts ganhavam cada uma a sua cor característica quando escritas (em inglês) na rede
social. Quando o usuário do Facebook clicava em cima de uma dessas palavras no aplicativo
da rede social, uma varinha mágica surgia na tela do smartphone soltando traços e estrelas
coloridas em homenagem à série, acompanhada de um curto trecho do tema principal da trilha
sonora dos filmes (G1, 2017).
Já quanto aos trechos e falas dos livros que se tornaram referência para a comunidade
de Harry Potter, “Dez pontos para a Grifinória” talvez seja a frase mais famosa e a mais
lembrada pelos fãs.
A Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts é formada por quatro casas, Grifinó r ia,
Corvinal, Lufa-Lufa e Sonserina (Gryffindor, Ravenclaw, Hufllepuff e Slytherin, na versão
original). No primeiro dia em Hogwarts, os alunos passam pela cerimônia da escolha das casas,
na qual o Chapéu Seletor (um chapéu encantado que pensa e fala) escolhe qual a casa de que
cada um dos alunos deverá fazer parte. No fim de cada ano letivo, ocorre a premiação da Taça
37 https://www.kingscross.co.uk/harry-potters-platform-9-34 38 https://www.harrypotterplatform934.com/
68
das Casas. Ela nada mais é que uma disputa entre as quatro casas na qual a casa que obtiver
maior número de pontos vence a competição. Os pontos são creditados ou retirados de acordo
com o comportamento e o desempenho escolar dos alunos.
Uma aluna, em especial, se destacava:
– Oho! “Uma das minhas melhores amigas é trouxa e é a melhor da nossa série!” Presumo que seja esta a amiga de quem me falou, Harry!
– É, sim, senhor. (ROWLING, 2005, p. 137)
Hermione Granger, melhor amiga de Harry e a mente por trás de todas as aventuras
vividas pelo trio principal da série (Harry, Rony e Hermione), foi responsável por grande parte
dos pontos creditados à Grifinória nos seus sete anos de estudos em Hogwarts. Toda vez que a
garota respondia corretamente a uma das questões indagadas pelos professores (e foram várias),
a casa da qual Hermione fazia parte ganhava pontos de seus professores: “Dez pontos para a
Grifinória” (ROWLING, 2000b, 83).
– Oho! – exclamou novamente o professor. Harry tinha certeza de que o professor não esquecera a poção, mas esperou que lhe perguntassem para produzir um efeito teatral. – Sim. Aquela. Bem, aquela ali, senhoras e senhores, é uma poçãozinha curiosa chamada Felix Felicis. Suponho – e ele se voltou sorridente para Hermione, que deixara escapar uma exclamação audível – que a senhorita saiba o que faz a Felix Felicis, srta. Granger?
– É sorte líquida – respondeu Hermione excitada. – Faz a pessoa ter sorte!
A classe inteira pareceu sentar mais aprumada [...] – Correto, mais dez pontos para a Grifinória [...] (ROWLING, 2005,
p. 138)
Muitos leitores e fãs da série se apropriam da fala dos professores quando alguém
responde corretamente a uma pergunta ou se destaca durante determinada aula, além da própria
personagem ter se tornado referência de inteligência entre os fãs de Harry Potter. Não só os
livros, mas também os filmes contribuíram muito para essa imagem da personagem e sua
consequente referência para a comunidade: “Das bruxas da sua idade, você é a mais
inteligente.” (Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban, Warner Bros., 2004).
Aliás, a atriz que interpretou Hermione nos cinemas, Emma Watson, é recorrentemente
comparada nas redes sociais à personagem (FACEBOOK, 2017), seja por seu interesse pelos
livros (Watson se formou em Literatura Inglesa pela Brown University) ou por seu ativismo
feminista como embaixadora da ONU (FACEBOOK, 2017).
69
Quanto a outros personagens da série, nas Olimpíadas Rio 2016, três meses após
Michel Temer assumir a presidência da república interinamente após a instauração do processo
de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff no Senado Federal, protestos políticos contra
Temer foram proibidos (G1, 2016). Os cartazes e faixas escritos “Fora, Temer” eram
confiscados pelas forças de segurança nos estádios e arenas olímpicas da Rio 2016. A solução
encontrada por alguns manifestantes foi substituir o nome de Temer por “Você-Sabe-Quem”,
ou por “Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado”, títulos dados ao personagem Voldemort na
série.
“Temer ‘Voldemort’: aquele cujo nome não deve ser pronunciado”, foi uma das manifestações do público. A brincadeira faz referência a Lord Voldemort (dos livros da série Harry Potter de J. K. Rowlin[g]), poderoso bruxo das trevas de todos os tempos, cujos objetivos eram controlar o mundo mágico. Ao contrário de Voldemort, o nome de Temer não representa força e poder, embora ambos sejam sinônimos de trevas e destruição. (UBES, 2016)
Não só a proibição do nome de Temer nos estádios, mas também sua semelhança física
com o personagem Voldemort no primeiro filme da série (Harry Potter e a Pedra Filosofal,
Warner Bros., 2000) serviu de referência da comunidade de fãs para memes39 e comparações
de cunho político nas redes sociais (HUFFPOST, 2016).
39 Meme deriva do termo grego mimema, mesma raiz de mimesis: imitação. “O termo é bastante conhecido e
utilizado no ‘mundo da internet’, referindo-se ao fenômeno de ‘viralização’ de uma informação, ou seja, qualquer
vídeo, imagem, frase, ideia, música e etc, que se espalhe entre vários usuários rapidamente , alcançando muita
popularidade”. Disponível em: https://www.significados.com.br/meme/. Acesso em: 28 de maio de 2017.
70
Figura 11
Figura 12
Assim como Temer, seu ministro nomeado para uma das cadeiras do Supremo
Tribunal Federal foi comparado ao personagem de J. K. Rowling. Alexandre de Morais,
71
nomeado para a vaga de Teori Zavascki (morto na queda de um avião), foi também comparado
a Lord Voldemort. A imagem do Ministro vestindo sua toga na posse como magistrado da
Suprema Corte circulou pelas redes sociais em referência ao Lorde das Trevas (ESTADÃO,
2017).
Figura 13
Figura 14
72
Figura 15
Figura 16
Figura 17
73
Ainda no cenário político, em um ato da UNICAMP contra a redução da maioridade
penal, o historiador Leandro Karnal, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
universidade, também se utilizou de uma referência à série em sua fala. Ao tratar do
conservadorismo na política brasileira e seus principais representantes, o historiador citou o
nome de um deputado com visões machistas, racistas e homofóbicas em sua explicação. No
entanto, ao introduzir o político em sua argumentação (e incomodado por tê-lo feito), Karnal
disse que ele seria como Voldemort: “Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado”. A partir de
então, o professor passou a mencionar a figura do deputado com referência aos títulos dados ao
Lorde das Trevas na série, ou seja: “Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado” e “Você-Sabe-
Quem” (YOUTUBE, 2016). E, ainda na mesma universidade, uma das mais respeitadas do país,
em agosto de 2017, foi oferecido um curso de história, no qual o tema era Harry Potter, em
uma das oficinas do projeto UniversIDADE, destinado ao público acima de 50 anos (EVENS,
2017).
Não apenas os internautas (ou professores e alunos universitários), mas parte
considerável da imprensa se apropria dessas referências a Harry Potter, seja noticiando os virais
que se espalham pelas redes sociais ou se utilizando diretamente de tais referências. Em uma
edição do Jornal das Dez, a jornalista Renata Lo Prete, ao comentar a respeito das delações
premiadas e das gravações de áudio que serviram de prova para a denúncia de corrupção e
obstrução da justiça contra Temer, a jornalista do canal de notícias Globo News afirmou que
“Eduardo Cunha é uma espécie de Voldemort para Michel Temer” (G1, 2017), uma vez que
este se recusava a citar o nome do ex-deputado, preso por corrupção, e o qual as delações
ligavam diretamente a Temer em relações escusas, como a compra do seu silêncio.
A partir do momento em que tais referências são feitas, não apenas as imagens dos
personagens são acionadas na mente do leitores e fãs, mas, também, as características morais,
psicológicas e comportamentais que constituem esses personagens. O desenho imagético é
formado como um todo, associando, por exemplo, a vilania de Voldemort às personalidades
que eventualmente sejam associadas ao personagem, como os exemplos citados acima.
Essa apropriação feita pela comunidade de Harry Potter dos diferentes ícones de
referência à série (personagens, locais, trechos da história) e sua imediata interpretação se
encaixam no que Stanley Fish chama de “compreensão compartilhada” (FISH, 1992, p. 205).
Fish argumenta que:
[A] comunicação se dá dentro de situações e que estar em uma situação é estar já em possessão de (ou ser possuído por) uma estrutura de
74
pressuposições, de práticas entendidas como relevantes com relação a
objetivos e propósitos que já preexistem; é, justamente, na pressuposição destes objetivos e propósitos que qualquer enunciado é
imediatamente entendido. (FISH, 1992, p. 203)
Ainda que essas referências pertençam ao universo e à comunidade de Harry Potter e
sejam imediatamente compreensíveis por seus membros, elas não se limitam apenas aos fãs.
Não bastasse a apropriação de tais referências pela comunidade de leitores e fãs, os meios de
comunicação (como os citados nas notas acima) noticiam o uso das referências culturais da
série, tornando-as compreensíveis àqueles que não estão inclusos na comunidade e que, por
isso, não estão familiarizados com os personagens.
No entanto, a pluralidade e o alcance da comunidade de Harry Potter são tão amplos
que essas mesmas pessoas que se encontram fora dela ainda assim são atingidas por sua
influência, como no caso de filmes, programas e séries de televisão que fazem referência à série
(LEGIÃO DOS HERÓIS, 2017), bem como os memes disseminados pelas redes sociais e pelos
sites de notícias e variedades.
Não só no conturbado cenário político brasileiro, mas também na política britânica, o
universo de Harry Potter é apropriado para críticas e posicionamentos políticos na internet (sem
contar o próprio posicionamento de J. K. Rowling nas redes sociais, apoiadora declarada do
Labour Party (LEACH, 2008), o Partido Trabalhista da Inglaterra).
Em plena campanha eleitoral, em maio de 2017, a Primeira Ministra Theresa May
(Partido Conservador), em visita a uma escola em Birmingham, disse ter lido todos os livros da
série Harry Potter (PRESS ASSOCIATION, 2017). Mais tarde, no mesmo dia, questionada por
um jornalista do The Telegraph com qual personagem da série ela se considerava parecida, May
recusou a responder, dizendo que não se considerava similar a nenhum dos personagens de
Harry Potter, mas que os livros, segundo ela, são uma ótima leitura, tanto para adultos como
para crianças (HORTON; HUGHES, 2017).
Entretanto, a recusa da Primeira Ministra em responder à pergunta resultou na
mobilização dos fãs da série na internet, sobretudo os mais jovens, faixa etária na qual Theresa
May gozava de baixa popularidade (NELSON, 2017), comparando-a a um dos personagens de
Harry Potter. Especificamente, Dolores Umbridge, funcionária do Ministério da Magia e um
dos personagens mais odiados pelos fãs da série (O’CONNOR, 2017).
75
Figura 18- "Perguntaram com qual personagem de Harry Potter ela se parecia (suspiro), Theresa May diz nenhum deles...
*cof-cof*"
As questões sociopolíticas, por sinal, estão sempre em voga na comunidade global de
Harry Potter, seja pelo ativismo da autora nas redes sociais ou pelo próprio pensamento crítico
que os livros despertam (como questões de gênero, racismo e fascismo, por exemplo; tópicos
tratados ao longo da série, sobretudo nos últimos volumes, os quais amadureceram junto de
grande parte de seu público).
J. K. Rowling é notícia recorrente por suas declarações políticas nas redes sociais, as
76
quais movimentam o debate sociopolítico de sua comunidade de leitores e fãs. Com mais de
11.4 milhões de seguidores em seu Twitter (à data final desta dissertação), Rowling mantém
sempre ativas as discussões políticas e sociais, as quais acabam por refletir em boa parte da
comunidade global de Harry Potter, sobretudo seus seguidores no microblog.
Seja tuitando contra o conservadorismo político (sobretudo contra o Presidente
americano Donald Trump e a Primeira Ministra britânica Theresa May), ou seja se posicionando
abertamente a favor dos direitos das minorias, Rowling acaba por influenciar grande parte de
seus seguidores, os quais a veem como um exemplo a ser admirado.
Figura 19- "Opinião | A viagem britânica à isolação inglória: Brexit foi culpa do populismo, certo? Errado. Foi culpa de
toda a elite."
As posições mais polêmicas de Rowling (ou, pelo menos, polêmicas aos que pensam
contrários a ela), como suas declarações contra o Brexit ou a favor do casamento entre pessoas
do mesmo sexo, diversidade sexual e de gênero, terrorismo e migração, geram sempre
discussões de seus seguidores em sua conta do Twitter, os quais expõem suas opiniões entre si.
Porém, nem sempre o que há é um debate de ideias.
Muitas vezes, essa movimentação toda em torno de suas declarações no Twitter se
resume a ataques de ambas as partes: os que pensam como a autora e os que discordam de suas
ideias e de seu posicionamento político. No entanto, toda essa comoção acaba por contribuir
77
para a formação do caráter dessa comunidade, a qual tenta se assemelhar ao máximo aos valores
enaltecidos por Rowling em suas redes sociais e pela própria série.
Figura 20- J.K. Rowling: "'Nação de verdade’ é o novo 'homem de verdade.'" / Tim Montgomerie: "Há um ano, as pessoas
votaram para nos colocarem no comando das leis, fronteiras e relações com o mundo. Em outras palavras: para sermos uma
nação de verdade de novo.”
Uma vez questionada por um de seus seguidores no Twitter se haveria diversidade
sexual entre os alunos de Hogwarts, Rowling respondeu afirmando que sim (“Mas é claro.”), e
postou uma imagem feita por fãs com referência à série e à diversidade sexual:
Figura 21- "Se Harry Potter nos ensinou alguma coisa, foi que ninguém deveria viver dentro de um armário"
78
Uma rápida pesquisa pelo nome da autora nas ferramentas de busca dos sites de
notícia, como o da Time,40 revelará um número considerável de manchetes relacionadas ao
posicionamento político e ideológico de Rowling nas redes sociais. É nelas e por meio delas
que a comunidade global de Harry Potter se constrói e se mantém; além, é claro, de serem o
espaço no qual ela se manifesta. Dessa maneira, não apenas os personagens e as cenas icônicas
da série servem de referência a essa comunidade, mas também seus valores (os quais, por vezes,
se confundem com os valores da autora e são disseminados pela rede).
Segundo um estudo feito pela University of Pennsylvania e publicado na revista PS:
Political Science and Politics, leitores de Harry Potter são mais propensos a não gostarem do
Presidente Americano Donald Trump (HIGGINS, 2016). Ainda segundo outro estudo feito pela
Johns Hopkins University, fãs de Harry Potter são mais abertos à diversidade e mais tolerantes
politicamente do que aqueles que não são fãs da série (GIERZYNSKI; EDDY, 2013).
Um exemplo desse engajamento político de parte dos fãs da série e a consequente
referência cultural que fazem aos personagens e aos trechos marcantes dos livros foi a Marcha
das Mulheres (Women’s March), em fevereiro de 2017, na qual vários cartazes em referência a
Harry Potter surgiram em meio às multidões e foram compartilhados na internet.
Figura 22 - "Harry Potter na Marcha das Mulheres"
40 http://time.com/
79
Figura 23- "Embora venhamos de lugares diferentes e falemos línguas diferentes, nossos corações batem como um só - Alvo
Dumbledore"
Figura 24 - Imagem: "Isso não aconteceria em Hogwarts" / Tweet: "Nós somos a próxima geração da Armada de
Dumbledore!"
80
Figura 25- Imagem: "Sem Hermione, Harry teria morrido no primeiro livro #girlpower (poder feminino)” / Tweet: Cartaz
forte! Não poderia estar mais orgulhosa.”
Figura 26 - Imagem: "Destrua as horcruxes de Trump" / Tweet: "Melhor cartaz"
81
Dessa forma, não apenas o interesse pelo universo de Harry Potter se constitui como
fator comum entre os membros de sua comunidade global, mas, também, os valores sociais e
políticos defendidos na série, ainda que nem todos os leitores e fãs compartilhem das mesmas
ideias e visões políticas que a autora ou que a maioria de sua comunidade.
Entretanto, nem só de política vive o fenômeno, mas, também, de ciência.
Como se já não bastasse o asteroide (43844) Rowling, o universo de Harry Potter
serviu de referência ao nome de um fóssil de dinossauro de 66 milhões de anos no Children’s
Museum, em Indianópolis (ASSOCIATED PRESS, 2006), nos Estados Unidos, bem como uma
espécie de caranguejo descoberto em Guam, na Micronésia, há 20 anos atrás.
A equipe que revelou esse achado ao mundo decidiu homenagear o biólogo
responsável por ela e, também, um dos personagens da série, batizando a nova espécie com o
nome de Harryplax severus. Harry pelo nome do cientista responsável pela descoberta (Harry
Conley) e severus pelo personagem de Harry Potter, Severo Snape. A homenagem se deu por
sua habilidade em guardar um dos segredos mais importantes de toda a série durante muito
tempo, assim como a espécie de caranguejo que foi vista pela primeira vez há duas décadas
atrás e que, até então, não havia sido vista novamente, mantendo-se em segredo por todos esses
anos (KEAN, 2017).
Outro exemplo na ciência é a nova espécie de aranha descoberta recentemente no
estado de Karnataka, no sul da Índia. Pela anatomia de seu corpo, em formato de cone, a aranha
descoberta pelos cientistas se assemelha muito ao Chapéu Seletor: o objeto animado que
seleciona os alunos de Hogwarts para as quatro casas da escola, e o qual pertencia a Godrico
Gryffindor, fundador da casa Grifinória. Em homenagem ao dono do chapéu, os cientis tas
batizaram a nova espécie com o nome de Eriovixia gryffindori (ALEXANDER, 2016).
Ainda na biologia, uma espécie de vespa nativa da Tailândia foi também nomeada em
homenagem à série Harry Potter após uma votação feita pelos visitantes do Museu de História
Natural de Berlim (BRUMFIELD, 2015). Sob a manchete “New ‘Soul-Sucking Dementor’ wasp
buzzes to fame on Harry Potter name”, o site da CNN noticiou o batismo da espécie de vespa
capaz de injetar neurotoxinas na cabeça de suas presas, as quais entram em uma espécie de
estado zumbi e passam a seguir seu predador. Por essas características, o inseto foi batizado
como Ampulex dementor, em homenagem aos dementadores: criaturas sombrias criadas por
Rowling que são capazes de voar e sugar a alma de uma pessoa por meio do “beijo do
dementador” (ROWLING, 2000c, p. 305).
Ao mesmo tempo que nomear um asteroide em homenagem à autora ou batizar as
82
novas espécies em homenagem à série reforçam o fenômeno, tais ações atraem também a
atenção imediata e viral da comunidade para essas descobertas, as quais, como ressalta a
manchete da CNN, se beneficiam do sucesso e da fama de Harry Potter.
Ações políticas, sociais e culturais que tomam a série como referência icônica e
imagética ganham grande repercussão, e não apenas dentro da comunidade de leitores e fãs,
mas também em parte significativa da imprensa. De analogias políticas a nomeações científicas
de novas espécies descobertas por biólogos, Harry Potter movimenta tanto o próprio fenômeno
quanto os tópicos que passam a se relacionar à série e à sua comunidade global. Até mesmo os
estudos acadêmicos que tomam a série como objeto de pesquisa atraem a atenção dos fãs e
reforçam o caráter de fenômeno sociocultural (COLLETTA, s. d.).
Essa amplitude do fenômeno se dá justamente pela formação de sua comunidade de
leitores e fãs ao redor do mundo. Ainda que essa grande comunidade global seja dividida em
pequenas comunidades interpretativas (como as mais de 60 traduções), as referências à série
são tomadas com valor universal por todos os membros de sua comunidade, uma vez que a
referência cultural do fenômeno Harry Potter se baseia em características imutáveis da série,
como o caráter de seus personagens, por exemplo. Isso sem levarmos em conta o valor
sentimental que seus fãs dão à série.
Mais que uma referência literária (e ainda que essa não lhe seja negada), Harry Potter
se tornou uma referência da cultura de massa em sua amplitude. Levando em conta o
multidiálogo da série literária com as diferentes mídias (cinema, rádio, televisão, internet,
imprensa), suas referências podem ser requisitadas pelo mais jovem de seus leitores ao mais
intelectual deles.
Do ex-Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama (KOSSOFF, 2007), ao
desconhecido que se senta ao seu lado no transporte público, passando pelos mais diferentes
sujeitos ao redor do mundo, todos fazem parte de uma mesma comunidade global, a qual se
mantém em torno de uma mesma referência: o fenômeno Harry Potter.
Dessa forma, “busca-se no outro a identificação que lhe dá direito de pertencer a um
grupo ou a uma tribo”, e essa “passagem da atitude narcisista em direção à identificação tribal
e comunitária implica mudanças quanto à abordagem de questões identitárias [...]” (SOUZA,
2011, p. 33), sobretudo na era da internet e das redes sociais.
Esse senso de pertencimento a uma comunidade virtual que abriga tantas pessoas e tão
diversas entre si é certamente um de seus maiores atrativos. Sentir-se conectado a um
desconhecido na rua ou a um sujeito a milhares de quilômetros em outro país simplesmente por
83
estar usando uma camisa da série, por exemplo, ou por compartilhar uma referência a Harry
Potter nas redes cosias, é algo atraente e encantador.
Ainda que a língua não seja o fator comum entre esses sujeitos, que o nível social não
seja o mesmo, ou o posicionamento político, ou ainda que o personagem favorito da série não
seja o mesmo, esses e outros fatores se tornam secundários dentro da comunidade, pois o que
os une, o que os faz se reconhecerem ainda que tão diferentes e diversos, são fatores comuns
encontrados dentro da própria comunidade e os quais são imediatamente reconhecidos por seus
membros.
Ainda que haja disparidades de uma tradução em relação a outras, por exemplo, a
formação dessa grande comunidade interpretativa não é prejudicada, pois a própria série em si
se tornou o signo central desse fenômeno. A referência cultural de Harry Potter se baseia mais
nas questões imagéticas, culturais e sociais do que nas linguísticas e literárias. O texto deixou
as páginas dos livros (para lembrarmos de Mallarmé, citado no início deste capítulo) para se
instaurar em espaços menos materiais e, por isso, mais dinâmicos: o mundo virtual e a
consciência de toda uma comunidade global.
84
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Os livros podem ser enganosos.”
Gilderoy Lockhart (J. K. Rowling)
Esse curto regresso na teoria literária e uma rápida passagem por alguns dos seus
principais conceitos são suficientes para evidenciar as mudanças operadas em nossa relação
com a literatura. Dos modos de produção à recepção, da circulação de obras literárias à sua
interatividade com o leitor, nossa interação com a literatura na era digital não é mais a mesma
que a do último século (época em que a grande maioria dessas teorias foram formuladas).
No entanto, ainda que haja um número grandioso de críticos a essas revoluções (da
invenção da prensa ao e-book), mudanças não são novidades à literatura. Ainda que muitas
delas tenham sido inéditas, como a revolução da era digital pela qual passamos, mudanças e
adaptações não são novidades nos estudos teóricos e na própria literatura.
Os gestos mudam segundo os tempos e lugares, os objetos lidos e as razões de ler. Novas atitudes são inventadas, outras se extinguem. Do rolo antigo ao códex medieval, do livro impresso ao texto eletrônico, várias rupturas maiores dividem a longa história das maneiras de ler. (CHARTIER, 1999, p. 77)
Historicamente, nossas leituras modificam tanto a sociedade como são modificadas
por ela. A teoria, em si, já é responsável por nos mostrar essas mudanças, ainda que muitos
teóricos, ironicamente, sejam avessos a essa palavra e ao seu conceito no contexto literário. No
entanto, se não fossem essas mesmas mudanças operadas na história dos estudos literários e na
própria literatura, ainda estaríamos fadados a um elitismo do qual nem mesmo os críticos às
mudanças fariam parte. Se não fosse a comercialização dos livros, por exemplo, dificilmente
teríamos Dostoiévski traduzido e espalhado pelas bibliotecas do mundo todo (quanto menos
ainda tê-lo em casa, ao alcance da mão).
Como apresentado e discutido neste trabalho, houve um longo caminho teórico feito
até aqui (e o qual não há de parar por onde está). Do livro como monumento às comunidades
interpretativas, a teoria empreendeu um caminho de retas, curvas e vários cruzamentos (dos
quais um possibilitou a produção deste trabalho: os estudos culturais).
No intuito de apresentarmos algumas das principais influências da globalização e da
85
era digital na literatura, abordamos nesta dissertação alguns dos pontos mais influentes e
relevantes desses processos em nossa relação com a literatura. Mapeando parte do fenômeno
Harry Potter, o qual se encontra em um espaço privilegiado para discutirmos várias dessas
questões, apresentamos os novos contornos teóricos, e, sobretudo, práticos, que a produção e a
recepção literárias ganham frente às novas revoluções, dos quais se destacam o texto e as figuras
do autor e do leitor.
A própria instabilidade nos estudos literários evidencia, pois, a dificuldade em se
estabelecer papéis estritamente definidos ao autor, ao texto e ao leitor. Se a literatura se faz por
meio da interatividade estabelecida entre os três, nada mais sábio do que colocá-los em comum
espaço e valor, uma vez que dependem uns dos outros para que coexistam, não apenas como
intenção, escritura ou interpretação, separadamente, mas como objeto literário em sua
totalidade.
O objeto literário é como um pião, que só existe em movimento. Para fazê-lo surgir é necessário um ato concreto que se chama leitura, e ele só dura enquanto essa leitura dura. Fora daí há apenas traços negros no papel. (SARTRE, 1993, p. 35)
Nada mais coerente do que tratar a literatura como um processo no qual seus agentes
participam de forma integrada, e não separadamente como muitos ainda insistem. Como
qualquer outro processo cultural, a literatura se faz do contato e da interação social, intelectua l,
histórica, política, dentre vários outros fatores, sobretudo quando se pensa no pós-modernismo.
A cultura pós-moderna é, certamente, a mais ampla e influente, pois se adapta como
nenhuma outra aos movimentos sociopolíticos e aos adventos tecnológicos. Não restrito apenas
a esses fatores, o pós-modernismo é flexível o bastante para comportar os novos rearranjos
culturais e apresentar-se como campo fértil a novos estudos teóricos.
Ainda que a revolução digital possa inaugurar um novo tempo nos estudos
sociológicos e culturais (e certamente o fará nos próximos anos), essa nova era cultural terá
sido influenciada em grande parte pelo pós-modernismo, pois esse novo tempo não se
caracterizaria como uma ruptura, mas como uma adaptação da própria cultura pós-moderna à
era digital.
A cultura pós-moderna é a cultura em que operam todos os pós-modernismos, ora em sinergia, ora em competição; uma vez que a cultura contemporânea [...] é transnacional, a cultura pós-moderna é global – embora isso não signifique, de maneira alguma, que ela seja a cultura de todas as pessoas do mundo. (APPIAH, 1997, p. 201)
86
Alvo de críticas dos teóricos dos mais diversos campos dos estudos da arte e da
sociologia (HARVEY, 1991; JAMESON, 1991; dentre tantos outros), o pós-modernismo é, por
vezes, acusado de transformar a arte em objeto de mercado, quando, na verdade, ele funciona
mais como um espaço conceitual no qual essas interações entre capitalismo e arte, globalização
e cultura, dentre outras, encontram um aporte teórico e podem ser estudadas para muito além
de sua superficialidade.
[O]s estudos literários podem superar o elitismo enraizado (como cada vez mais aspiram a fazê-lo) abordando a literatura tanto como textos no mundo quanto como objetos materiais comoditizados – como fenômenos comerciais – no mundo. Ou, em outras palavras, a democratização dos estudos literários pode acontecer trazendo os aspectos do mercado da literatura nas equações analíticas dos estudos literários. (GUPTA, 2009a, p. 157, tradução nossa)41
Historicamente trabalhado por críticos e teóricos simplesmente como um fenômeno de
venda, resultante, em grande parte, das influências dos pós-modernismos e da ação do
capitalismo na produção artística, foram negados por muito tempo ao best-seller (e ainda hoje
o é!) estudos mais profundos de seu caráter sociocultural antes que simplesmente
mercadológico.
Entretanto, se deslocarmos o lugar de onde produzimos juízos cultos e assumirmos a perspicácia popular, poderemos enxergar as ‘operações mediadoras’ através das quais a indústria cultural se aproxima do ‘povo’ (categoria diferente da ‘classe social’). Vai-se poder localizar, então, na cultura industrializada para o consumo das massas, elementos da tradição narrativa e imagística do povo [...] Ao se indagarem sobre os usos populares do produto de massa, ao procurarem ir além das frias avaliações de audiência ou das sondagens do mercado, professores secundários e universitários poderão inclusive aproximar-se da literatura de massa como material de ensino.” (SODRÉ, 1985, p. 71-72)
Apelar unicamente aos números de venda é minimizar os fatores sociais e políticos
que orbitam ao redor do fenômeno best-seller que não apenas o capitalismo, como o fazem
muitos de seus críticos. “O fascínio duradouro dessa literatura indica que não se pode estudá- la
com uma visão simplista e redutora” (SODRÉ, 1985, p. 71).
41 “[…] literary studies may overcome its ingrained elitism (as it increasingly aspires to do) by approaching
literature as consisting both of texts in the world and of commodified material objects – as commercial phenomena
– in the world. Or, in other words, the democratization of literary studies may happen by bringing the market
aspects of literature within analytical equations of literary studies.”
87
O estudo freqüente da produção dos best-sellers no mundo da edição impressa é agora uma questão quase obsoleta. O problema do presente é a cadeia de produtos derivados. É inútil manter um discurso de rejeição total, absoluta, como se a qualidade fosse por essência estranha à cultura de massa. É preciso antes compreender os critérios que vigoram na construção das produções que dão origem a esses produtos derivados. E a meu ver é a partir daí que se deve raciocinar para além de um discurso nostálgico e melancólico ou de uma cólera denunciadora, que tem suas razões, mas é impotente diante de uma evolução demasiado poderosa. (CHARTIER, 1999, p. 148)
Diferentemente do que muitos críticos dos best-sellers pensam e até mesmo
argumentam, a mercantilização da obra literária não é exclusivamente produto do capitalismo
tardio, muito menos se limita às influências pós-modernistas na arte.
Como foi notado, em 1500 já haviam sido impressos pelo menos 20 milhões de livros, assinalando o começo da “era da reprodução mecânica” de Benjamin. Se o conhecimento pelos manuscritos era um saber restrito e arcano, o conhecimento pela letra impressa vivia da reprodutibilidade e da disseminação. (ANDERSON, 2015, p. 71)
Ainda segundo Benedict Anderson, e ao encontro de uma das ações do mercado
tratadas neste trabalho, “[c]om efeito, Lutero se tornou o primeiro autor de best-sellers
conhecido como tal. Ou, em outras palavras, o primeiro autor capaz de ‘vender’ os seus novos
livros pela fama do próprio nome” (ANDERSON, 2015, p. 74). Dessa forma, podemos perceber
que a influência dos best-sellers em novas perspectivas de conceitos teóricos consagrados
(como o de autoria) não é uma novidade.
Utilizando-se de um discurso alarmista e aparentemente zeloso, a grande maioria dos
críticos do best-seller atentam para o suposto risco que a (L)iteratura corre hoje ao “render-se”
às tentações do mercado (como se o capitalismo existisse somente após Marx e Engels terem
denunciado as opressões do mercado e da indústria em seu Manifesto Comunista, em 1848),
quando, na verdade, a mercantilização das obras literárias não é uma novidade dos dois últimos
séculos, mas, no mínimo, de quatro séculos atrás.
Sendo uma das primeiras formas de empreendimento capitalista, o setor editorial teve de proceder à busca incansável de mercado, como é próprio ao capitalismo. Os primeiros editores estabeleceram ramificações por toda a Europa [...] E, como os anos de 1500-50 foram um período de excepcional prosperidade europeia, o setor editorial participou desse boom geral. (ANDERSON, 2015, p. 72)
88
Considerando as devidas proporções, o best-seller não é uma exclusividade de nosso
tempo. Ainda que estejamos em uma época propícia para a sua produção e para uma ação mais
coordenada do mercado na produção cultural (em especial, nesta dissertação, na produção
literária e em seus subprodutos), o sucesso mercadológico dos livros não é nenhuma novidade.
No entanto, esse sucesso não se resume aos números.
Com o objetivo de mapear parte do fenômeno Harry Potter, sobretudo a criação e
manutenção de sua comunidade global, este trabalho se pautou nos principais fatores que
influenciaram a ocorrência da série como um fenômeno sociocultura l mais do que simplesmente
um fenômeno literário ou mercadológico.
Reconhecer as indissociáveis, porém, muitas vezes negadas intervenções
socioculturais na literatura é reconhecer que os estudos teóricos não serão para todo sempre
satisfatórios (como já visto neste trabalho), e que os papéis dos críticos e dos pesquisadores e
acadêmicos nem sempre serão requisitados, e nem sempre as fontes estarão diretamente ligadas
aos estudos literários, mas, antes, aos estudos socioculturais.
O papel do crítico é ao mesmo tempo reduzido e ampliado. Ampliado na medida em que todo mundo pode tornar-se crítico. Este foi o sonho das Luzes e, talvez, o do fim do século XVIII: por que todo leitor não poderia ser considerado capaz de criticar as obras fora das instituições oficiais, das academias, dos sábios? É a querela dos Antigos e dos Modernos na França, no fim do século XVIII, que faz nascer uma ideia segundo a qual cada leitor dispõe de uma legitimidade própria, do direito a um julgamento pessoal. (CHARTIER, 1999, p. 17)
Muitas foram as re-formulações na teoria literária e tantas outras ainda surgirão frente
ao impacto da globalização e da era digital na cultura como um todo. Enquanto não pensarmos
a literatura como um processo cultural, o qual se adapta aos cenários históricos e sociais nos
quais se encontra inserido, estaremos fadados aos conflitos em vez dos debates, mais presos ao
ideal do que à prática, e continuaremos ainda pautados em valores mais do que em conceitos.
Textos literários não são tratados como objetos autônomos ou atemporais; estão articulados com atores e suas condições socioculturais de ação. Conseqüentemente, os textos não são vistos como possuindo seu significado e sendo literários; em vez disso são os sujeitos que constroem significados a partir de textos e eles percebem e tratam textos como fenômenos literários em seu domínio cognitivo pela aplicação de normas linguísticas e convenções que internalizaram no processo de socialização nos seus respectivos grupos sociais. (SCHMIDT, 1996, p. 113)
Ainda que nossa fundamentação teórica tenha se baseado em grande parte nos estudos
89
teóricos da literatura, esta pesquisa requer um olhar cultural acima de tudo. O mundo
globalizado no qual vivemos, a ação do capitalismo em nossas relações com esse mundo e a era
digital na qual fomos inseridos nos últimos anos (e da qual não há prognósticos de sairmos tão
cedo), são apenas alguns dos fatores socioculturais que justificam este trabalho.
Se antes alguns teóricos já atentavam para a importância do diálogo entre a literatura
e os estudos socioculturais (RAMA, 1982; POLAR, 2000; SAID, 2007; dentre outros), quanto
mais agora e nos próximos anos.
Acho que estamos passando por uma fase em que teremos também de dialogar com as formas canônicas do saber, como a filosofia, a história, a sociologia, pois só assim iremos perceber que a literatura é um diálogo extremamente rico. (SANTIAGO, 2008b)
As influências tecnológicas em nossa relação com o mundo vêm ocorrendo em um
ritmo cada vez mais acelerado e aparentemente sem retorno. Sem entrarmos no mérito das
vantagens ou desvantagens resultantes dos avanços tecnológicos, talvez sejamos as últimas
gerações a presenciarmos as mudanças radicais da tecnologia em nossa relação com a arte e
com o mundo como um todo.
Se as gerações mais recentes já não sofrem o mesmo impacto dessas tecnologias como
aqueles que nasceram em um mundo analógico, quanto menos sofrerão aqueles que já nascem
na era digital, em um mundo sem fio e, ainda assim, conectado como nunca antes na história.
Em uma época em que a senha do Wi-Fi antecede o abraço de boas-vindas e o contato e
compartilhamento virtual de imagens e textos digitais se prolifera pela rede mundial em ritmo
acelerado, isso não significa o fim do livro como o conhecemos hoje, mas, certamente, implica
modificações significativas em nossas leituras.
O número de usuários de aplicativos e plataformas de leitura digital teve um aumento
significativo nos últimos anos, bem como a busca por críticas e resenhas feitas em blogs e sites
de literatura, canais no YouTube, fóruns de discussão ou em grupos de leitura no Facebook.
Além dessa busca por novas plataformas de leitura (a exemplo do Pottermore) e a
procura por resenhas e críticas feitas por leitores não acadêmicos ou especializados em
literatura, é preciso destacar o crescente número de autores independentes no universo digita l,
os quais lançam seus livros em formato e-book e os publicam diretamente em plataformas de
leitura, como o Kindle, sem a necessidade de um aporte editorial.
90
[N]a medida em que estes espaços virtuais de comunicação ganham maior visibilidade, com um público heterogêneo acessando conteúdos artísticos existentes neles, é possível reconhecê-los como alternativas a suportes hoje tidos como legitimadores da arte, como espaços expositivos (museus, galerias, cinemas, teatros) e produtos editoriais (livros, revistas). (MATOS, 2009, p. 1-2)
Assim como o contínuo aprimoramento das técnicas cinematográficas não apaga o
cinema como arte, mas, ao contrário, dá novo fôlego a ele, a literatura não corre o risco de ser
ofuscada pelas telas dos computadores, tablets e smartphones, a menos que ela (por meio de
seus escritores, críticos e pesquisadores) insista em negar a revolução pela qual estamos
passando. “[R]efletir sobre as revoluções do livro e, mais amplamente, sobre os usos da escrita,
é examinar a tensão fundamental que atravessa o mundo contemporâneo, dilacerado entre a
afirmação das particularidades e o desejo do universal” (CHARTIER, 1999, p. 133).
Assim como a prensa de Gutenberg revolucionou o acesso ao texto (isso sem levarmos
em conta suas consequências políticas e sociais, como a alfabetização na Europa e o
fortalecimento da Reforma), ou como o livro ilustrado é (ainda hoje) um atrativo ao leitor, as
novas plataformas de leitura e as ferramentas das quais o texto digital pode dispor são tanto
uma revolução quanto um atrativo à leitura.
No entanto, é preciso nos distanciarmos um pouco do presente para percebermos o
tamanho e a importância dessas revoluções, seja voltando ao passado ou projetando o futuro,
pois ainda nos encontramos dentro de todo o processo. Coube a nós, por sorte ou azar, sermos
a geração de transição, à qual resta arcar com as consequências de adaptar-se ou negar-se às
mudanças em nossa relação com a literatura.
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