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FELLIP AGNER TRINDADE ANDRADE HARRY POTTER: A IMAGINAÇÃO DE UMA COMUNIDADE São João del-Rei Setembro de 2017

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FELLIP AGNER TRINDADE ANDRADE

HARRY POTTER: A IMAGINAÇÃO DE UMA COMUNIDADE

São João del-Rei

Setembro de 2017

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FELLIP AGNER TRINDADE ANDRADE

HARRY POTTER: A IMAGINAÇÃO DE UMA COMUNIDADE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

-graduação em Letras da Universidade Federal de

São João del-Rei, como requisito parcial para a

obtenção do título de Mestre em Letras.

Área de concentração: Teoria Literária e Crítica da

Cultura.

Linha de Pesquisa: Literatura e Memória Cultural

Orientador: Prof. Dr. Anderson Bastos Martins

São João del-Rei

Setembro de 2017

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FELLIP AGNER TRINDADE ANDRADE

HARRY POTTER: A IMAGINAÇÃO DE UMA COMUNIDADE

Banca examinadora:

Prof. Dr. Anderson Bastos Martins – UFSJ Orientador

Profª. Dra. Nícea Helena de Almeida Nogueira – UFJF – Titular Externo

Profª. Dra. Eliana da Conceição Tolentino – UFSJ – Titular Interno

Prof. Dr. Luiz Manoel da Silva Oliveira – UFSJ – Suplente

Prof. Dr. Anderson Bastos Martins

Coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras

São João del-Rei, setembro de 2017

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AGRADECIMENTOS

À Capes, pelo financiamento da pesquisa.

Ao Prof. Anderson Bastos Martins, pela orientação.

E a Todos que, de uma forma ou de outra, contribuíram para a conclusão deste trabalho.

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“Ele vai ser famoso, uma lenda [...] Vão escrever

livros sobre Harry. Todas as crianças no nosso

mundo vão conhecer o nome dele!”

Minerva McGonagall (J. K. Rowling)

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RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo mapear a trajetória da série de livros Harry Potter desde

seu surgimento como coleção de romances infanto-juvenis até sua consolidação como signo

central de um fenômeno cultural global. Trabalhando os principais conceitos que são

tensionados pelo fenômeno Harry Potter (como os conceitos de autoria e recepção),

investigaremos a formação de uma comunidade global de leitores e fãs da série, apresentando

o fenômeno como uma referência sociocultural para a sua comunidade de leitores e para além

dela, bem como a relação entre a autora J. K. Rowling e essa comunidade quanto à manutenção

da série Harry Potter como obra inacabada.

Palavras-chave: globalização; referência cultural; comunidades interpretativas.

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ABSTRACT

This MA thesis aims to map out the trajectory of the Harry Potter series since its emergence as

a collection of children's novels until its consolidation as a central sign of a global cultura l

phenomenon. Working on the main concepts that are strained by the Harry Potter phenomenon

(such as the concepts of authorship and reception), we will investigate the formation of a global

community of readers and fans of the series, presenting the phenomenon as a sociocultura l

reference for their community of readers and beyond it, as well as the relationship between

author J.K. Rowling and this community, regarding the maintenance of the Harry Potter series

as an unfinished work.

Key-words: globalization; cultural reference; interpretive communities.

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SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS.............................................................................................................. 8

INTRODUÇÃO......................................................................................................................... 9

CAPÍTULO 1 - “MAGIA É PODER” .................................................................................. 17

1.1 – De feitiços e encantamentos.................................................................................. 19

1.2 – A exumação do autor ............................................................................................ 27

CAPÍTULO 2 – “POTTERMORE” AND MORE ............................................................. 50

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 84

REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 91

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 ...................................................................................................................................40

Figura 2 ...................................................................................................................................42

Figura 3 ...................................................................................................................................43

Figura 4 ...................................................................................................................................43

Figura 5 ...................................................................................................................................43

Figura 6 ...................................................................................................................................44

Figura 7 ...................................................................................................................................45

Figura 8 ...................................................................................................................................47

Figura 9 ...................................................................................................................................47

Figura 10 .................................................................................................................................48

Figura 11 .................................................................................................................................70

Figura 12 .................................................................................................................................70

Figura 13 .................................................................................................................................71

Figura 14 .................................................................................................................................71

Figura 15 .................................................................................................................................72

Figura 16 .................................................................................................................................72

Figura 17 .................................................................................................................................72

Figura 18 .................................................................................................................................75

Figura 19 .................................................................................................................................76

Figura 20 .................................................................................................................................77

Figura 21 .................................................................................................................................77

Figura 22 .................................................................................................................................78

Figura 23 .................................................................................................................................79

Figura 24 .................................................................................................................................79

Figura 25 .................................................................................................................................80

Figura 26 .................................................................................................................................80

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INTRODUÇÃO

Cada vez mais, nossas ações culturais, nossas leituras e as mais diversas relações e

interações humanas vêm sendo modificadas de forma a se adaptarem aos dias atuais e aos

fenômenos culturais, sociais e políticos que hoje ocorrem.

Nossa relação com as novas tecnologias de informação e de comunicação, com as

influências do capitalismo, do pós-colonialismo e do pós-modernismo, bem como nossas

relações com os (re)arranjos globais, causaram e ainda hoje causam grande impacto em nossa

relação estética com a arte (JAMESON, 1984; ADORNO & HORKHEIMER, 1985;

HUTCHEON, 1987; APPIAH, 1993; MARCUSE, 1998), bem como no que se refere ao

consumo do bem cultural e artístico (APPIAH, 1993; BHABHA, 1994; GUPTA, 2009a).

O mercado de bens culturais, a indústria do entretenimento, dentre outros fatores que

influenciam nossa interação com o mundo e a arte, vêm modificando nosso olhar em relação a

conceitos teóricos já estabelecidos e em relação à própria ideia de arte e cultura (BOURDIEU,

2009). A reordenação e (re)criação de espaços físicos, conceituais e virtuais, os novos conceitos

de interatividade e de comunidades locais e globais, dentre outros fenômenos em atuação pelo

mundo, nos colocam em uma nova posição em relação à cultura; em especial, neste trabalho,

nossa relação com a literatura.

[O]s efeitos do desenvolvimento tecnológico das redes de informação e de comunicação, os motores das forças de globalização, não são meramente representados dentro da literatura; eles também atuam sobre a literatura de forma abrangente. Levar em conta a globalização muda a própria maneira em que a literatura é pensada, disseminada e consumida, e, até mesmo, constituída. (GUPTA, 2009a, p.53, tradução nossa)1

Para compreendermos essas mudanças operadas na literatura, desde os modos de

produção aos modos de recepção, precisamos ter em mente a ideia de globalização e os

diferentes fatores que a constituem, bem como seus efeitos sobre os mais diversos campos do

conhecimento e de nossas relações com o mundo.

[B]asta referir à globalização como um complexo de operações transculturais

1 “[…] the effects of technological enhancement of information and communication networks, the drives of

globalization forces, are not merely represented within literature; they also comprehensively act upon literature.

Reckoning with globalization changes the very way in which literature is thought about, disseminated and

consumed, and even constituted.”

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caracterizado principalmente por três fatores: 1) a presença das novas tecnologias de informação e de comunicação; 2) o surgimento de novos mercados globais; e 3) a mobilidade dos povos e níveis de imigração sem precedentes, com os deslocamentos culturais que os acompanham. Os dois primeiros são causais, o terceiro geralmente é um efeito: isto é, as novas tecnologias de informação e o surgimento de novos mercados globais impulsionam a imigração - de fato, frequentemente mais forçam do que facilitam. (ZAMORA, 2002, p. 2, tradução nossa)2

Em seu livro Language and Globalization (2006), Norman Fairclough trata do termo

globalização de forma a evidenciar seu uso e sua justificativa em diversos discursos nos quais

esse processo se encontra de alguma forma inserido:

Não podemos fugir do fato de que, embora a ‘globalização’ seja um conjunto de mudanças que estão realmente acontecendo no mundo (e embora o que esse conjunto inclua seja altamente controverso), é também uma palavra que, muito recentemente, tornou-se proeminente nos meios em que tais modificações são representadas. Mas esta é uma simplificação, porque a palavra ‘globalização’ é usada em vários sentidos no âmbito de discursos mais complexos, os quais são caracterizados, em parte, por vocabulários distintos nos quais a ‘globalização’ está relacionada em particulares (e divergentes) maneiras com relação a outras ‘palavras-chave’, tais como 'modernização’, ‘democracia’, ‘mercados’, ‘livre comércio’, ‘flexibilidade’, ‘liberalização’, ‘segurança’, ‘terrorismo’, ‘cultura’, ‘cosmopolitismo’ e assim por diante. E esses discursos são mais do que vocabulários – eles também diferem em aspectos gramaticais [...], bem como as formas de narrativa, formas de argumentação e assim por diante. (FAIRCLOUGH, 2006, p. 4, tradução nossa)3

Dessa maneira, a utilização do termo globalização e as implicações de seu uso, bem

como suas interpretações (CONNELL & MARSH, 2011; PASSET, 2003; WARNIER, 2003),

estão em concordância com o trabalho aqui proposto.

A produção, recepção e circulação dos textos são apenas alguns dos aspectos

diretamente influenciados pela ação da globalização e pelo sistema capitalista na noção de

2 “[...] it is sufficient to refer to globalization as a complex of transcultural operations characterized primarily by

three factors: 1) the presence of new information and communication technologies; 2) the emergence of new global

markets; and 3) the unprecedented mobility of peoples and levels of immigration, with their accompanying cultural

displacements. The first two are causal, the third is usually an effect: that is, new information technologies and the

emergence of new global markets impel immigration - indeed, more often force than facilitate it.” 3 “We cannot get away from the fact that although ‘globalization’ is a set of changes which are actually happening

in the world (though what the set includes is highly controversial), it is also a word which has quite recently

become prominent in the ways in which such changes are represented. But this is a simplification because the word

‘globalization’ is used in various senses within more complex discourses, which are partly characterized by

distinctive vocabularies in which ‘globalization’ is related in particular (and differing) ways from other ‘keywords’

such as ‘modernization’, ‘democracy’, ‘markets’, ‘free trade’, ‘flexibility’, ‘liberalization’, ‘security’, ‘terrorism’,

‘culture’, ‘cosmopolitanism’ and so forth. And these discourses are more than vocab ularies – they also differ in

grammatical features […] as well as forms of narrative, forms of argumentation and so forth.”

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cultura, sobretudo no que diz respeito à indústria do entretenimento e ao mercado editorial.

Além disso, ainda temos a influência irreversível das novas tecnologias de

comunicação e informação, as quais permitem a troca imediata de conteúdo e ainda possibilitam

um contato amplo com diversos espaços virtuais e diferentes comunidades que hoje se

encontram a um clique de distância: “Agora a comunicação é tecnicamente multiplicada,

facilitada em larga escala [...]” (MARCUSE, 1998, p. 158).

Um dos exemplos da ação desses fatores na literatura é o fenômeno best-seller.

Alavancado e sustentado pela globalização dos mercados, dos bens culturais e, até mesmo, dos

bens de consumo, o fenômeno best-seller hoje se apresenta como devedor e, ao mesmo tempo,

credor da ação da globalização e do capitalismo na literatura, sobretudo quando se fala do

mercado editorial e da indústria do entretenimento.

Ele, o best-seller, nasce da influência capitalista dos desdobramentos sociais e

políticos, e ajuda na dinâmica desses mesmos processos, indo, até mesmo, além do nicho

literário. Os best-sellers, à medida que estabelecem diálogo com as diferentes mídias, tornam-

-se capazes de criar e manter redes mundiais de conexões e de interações, as quais, hoje, não

são mais apenas imaginadas ou idealizadas, mas são, de fato, compartilhadas por suas

comunidades.

É justamente no fato de transpor as mais diferentes fronteiras, das físicas às

ideológicas, que se encontra o fator globalizado e globalizante do best-seller em sua vertente

contemporânea. O seu poder de integralização é certamente sua principal característica: é essa

criação ou ocupação desse espaço comum, compartilhado pelos mais diversos tipos de sujeitos

e suas comunidades interpretativas de alcance global.

Um dos exemplos mais recentes e de grande destaque é a série de livros infanto-juvenis

Harry Potter, a qual se tornou referência da cultura de massa, da literatura em escala global e

dos números milionários do comércio editorial. A série de fantasia infanto-juvenil da autora

britânica Joanne (Kethleen) Rowling (1965-) se tornou, em um curto espaço de tempo,

referência na indústria literária, a qual se explica por seus números expressivos de venda e de

comercialização de seus subprodutos (TIME, 2013).

Publicado em 1997 na Inglaterra, o primeiro volume da série de sete livros, Harry

Potter e a Pedra Filosofal, conta a história do pequeno órfão Harry Potter, deixado no batente

da porta de seus tios em uma pequena cidade localizada no condado de Surrey, ao sul de

Londres. Tendo crescido no armário debaixo da escada e acreditando que seus pais haviam

morrido em um acidente de carro, Harry passa dez anos de sua vida como alvo do ódio de seus

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tios Válter e Petúnia e de seu primo Duda.

Às vésperas de completar onze anos de idade, Harry recebe uma carta misteriosa. A

carta era nada menos que um convite para estudar na Escola de Magia e Bruxaria Hogwarts e

vinha acompanhada de uma lista de livros e equipamentos necessários. Só após a descoberta de

sua real condição como bruxo, Harry finalmente descobre fatos importantes de seu passado,

como a morte dos pais, assassinados por Lord Voldemort.

Cada vez mais poderoso e perigoso, Voldemort começou a procurar seguidores para

si, recrutando bruxos de grande poder para que o ajudassem em seus planos nefastos. Dentre

eles, os pais de Harry se tornaram alvo do desejo do Lorde das Trevas. Como os pais do garoto,

Lílian e Tiago Potter, eram muito ligados a Dumbledore, diretor de Hogwarts e um dos bruxos

mais poderosos e respeitados de todos os tempos, Voldemort manteve-se afastado dos Potter

durante muito tempo.

Talvez ele achasse que podia convencê-los... talvez quisesse tirar os dois do caminho. Só o que sabemos é que ele apareceu na vila em que vocês estavam morando, num dia das bruxas, faz dez anos. Na época você só tinha um ano de idade. Ele foi à sua casa e... e... (ROWLING, 2000a, p. 52)

E, então, Harry finalmente passa a conhecer a verdadeira história por trás da morte de

seus pais e de sua cicatriz na testa em forma de raio.

Você-Sabe-Quem matou os dois. E então, e esse é o verdadeiro mistério da coisa, ele tentou matar você. Queria fazer o serviço completo, acho, ou então tinha começado a gostar de matar. Mas não conseguiu. Você nunca se perguntou como arranjou essa marca na testa? Isso não foi um corte normal. Isso é o que se ganha quando um feitiço poderoso e maligno atinge a gente; destruiu os seus pais e até a sua casa, mas não fez efeito em você, e é por isso que você é famoso, Harry. Ninguém nunca sobreviveu depois que ele decidia matá-lo, ninguém a não ser você, e ele já havia matado alguns dos melhores bruxos da época [...], e você era apenas um bebê, e sobreviveu. (ROWLING, 2000a, p. 53)

A partir de então, Harry é apresentado ao mundo mágico na companhia dos leitores,

uma vez que estes só têm acesso à história e ao mundo dos bruxos por meio das experiências e

descobertas do personagem que, não por acaso, dá nome à série.

Tendo crescido longe das manchetes de jornais do mundo bruxo e de sua fama precoce,

Harry fora introduzido à sua própria história de forma tardia e inocente, o que lhe rendera grande

modéstia e ignorância acerca dos assuntos mágicos. Esse fato, por sinal, lhe garante grandes

descobertas durante toda a série, as quais são compartilhadas com os leitores até o fim, uma vez

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que o leitor, ainda que por meio de um narrador onisciente, só tem acesso aos acontecimentos

por meio daquilo que Harry sabe ou passa a conhecer a respeito da história (exceto por cinco

capítulos em toda a série).

Uma vez no mundo bruxo, Harry começa a descobrir suas habilidades mágicas, bem

como a vida nesse mundo paralelo ao mundo dos trouxas, isto é, pessoas não mágicas (muggles,

na versão original). Aos poucos, Harry começa a descobrir fatos relacionados ao seu passado e

ao passado de seus pais. Como um garoto comum, Harry passa por diversas dificuldades em se

adaptar à nova vida na escola de magia e bruxaria (uma espécie de internato) e descobre logo

os dois lados da magia.

Nesse primeiro volume da série, além de começar a lidar com sua fama e tudo aquilo

de bom e de ruim que ela atrai, Harry percebe que o mundo mágico é tão perigoso quanto

encantador. Nos últimos capítulos de Harry Potter e a Pedra Filosofal, Harry é posto cara a

cara com o assassino de seus pais e seu maior inimigo, Lord Voldemort.

A partir de então, a série segue com mais seis volumes, os quais abordam a vida e as

aventuras de Harry e seus amigos na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts: Harry Potter e

a Câmara Secreta (2000); Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban (2000); Harry Potter e o

Cálice de Fogo (2001); Harry Potter e a Ordem da Fênix (2003); Harry Potter e o enigma do

Príncipe (2005); e Harry Potter e as Relíquias da Morte (2007).

Sendo um dos maiores exemplos do fenômeno best-seller (sobretudo por não se

restringir ao universo literário e muito menos a um segmento de leitores), Harry Potter alcançou

grande sucesso e vendas recordes ao redor do mundo, faturando cifras bilionárias, tanto com os

livros como com seus subprodutos dos mais diversos tipos: de roupas a jogos eletrônicos, de

filmes a parques temáticos.

Nenhum trabalho literário tem mais credibilidade no mercado de massa a nível global na primeira década do século XXI do que os sete romances de "fantasia infantil" da série Harry Potter de J. K. Rowling (1997-2007). [O]s livros da série venderam mais de 400 milhões de cópias em todo o mundo, foram traduzidos para mais de sessenta línguas, transformados em filmes que se tornaram, cada um, sucessos de bilheteria extraordinários, foram usados com sucesso para o benefício das indústrias de brinquedos e jogos eletrônicos, foram submetidos à mais sustentada e congratulatória exposição da mídia de massa de todos os tempos, transformaram a fortuna de várias empresas associadas aos produtos de Harry Potter (começando com a editora Bloomsbury) e ajudaram a fazer sua autora uma das escritoras mais ricas e célebres do mundo. (GUPTA, 2009a, p. 157, tradução nossa)4

4 “No literary work has more mass-market credibility, at a global level, in the first decade of the twenty-first

century than the seven ‘children’s fantasy’ novels in J. K. Rowling’s Harry Potter series (1997-2007). [B]ooks in

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Servindo de referência cultural a uma multidão de leitores e fãs, Harry Potter se

apresenta como muito mais que uma série literária infanto-juvenil. Seus personagens e suas

cenas icônicas se tornaram, de fato, referências culturais. Desde comentários acerca da disputa

à Casa Branca a palestras de respeitados professores universitários, os personagens da série são

frequentemente tratados como alegorias ou simplesmente como referências de comportamento,

ideologia e, até mesmo, de caráter.

Seja o vilão da história, Lord Voldemort, “Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado”

(ROWLING, 2003, p. 683), ou a melhor amiga de Harry, Hermione, a “menina tão mandona e

metida a saber de tudo” (ROWLING, 2000a, p.143), a série Harry Potter se consolidou como

referência cultural para sua própria comunidade e para além dela, tornando-se um fenômeno

sociocultural em si.

Tão prodigioso foi o sucesso comercial e a recepção do público com a série Harry Potter que parece difícil explicar pelos textos – onde a crítica literária ainda se sente mais à vontade – e parece mais com um tipo de fenômeno sócio-político-econômico. (GUPTA, 2009a, p. 157, tradução nossa)5

Ainda hoje, anos após a publicação de seu último livro, a série e seus personagens são

frequentemente requisitados como referência cultural e (re)lidos por milhões em todo o mundo,

desde os Estados Unidos da América até o mercado negro da Coréia do Norte (ANG, 2005),

passando pela ilha de Cuba (UNITED STATES GOVERNMENT ACCOUNTABILITY

OFFICE, 2006) e pela República Popular da China (isso sem contar o alcance de seus

subprodutos, como filmes, jogos eletrônicos, brinquedos, roupas, dentre outros).

Sendo assim, sua característica de fenômeno globalizado (pois nasce da globalização)

e globalizante (uma vez que ajuda a afirmar aquilo que o criou) não pode ser deixado de lado,

pois talvez seja sua característica mais peculiar e, possivelmente, a de maior importância.

Com o objetivo de tratar do fenômeno Harry Potter e alguns de seus desdobramentos,

como produção e recepção (COMPAGNON, 2014), influência, noção de autoria (BAKHTIN,

the series have reportedly sold over 400 million copies worldwide, have been translated into over sixty languages,

have been turned into films which have each been extraordinary box office hits, have been used successfully for

the benefit of the toy and computer game industries, have been subjected to the most sustained and congratulatory

mass-media exposure ever, have turned the fortunes of several firms associated with Harry Potter products (starting

with the publisher Bloomsbury), and have helped make its author one of the richest and most celebrated in the

world.” 5 “So prodigious has the commercial success and popular reception of the Harry Potter series has b een that it

seems scarcely explicable through the texts – where literary criticism is still most comfortable – and appears

more as a kind of social-politico-economic phenomenon.”

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1988, 1990; BAKHTIN & MEDVEDV, 1978; BARTHES, 2004) e referência cultura l

(GUPTA, 2009a, 2009b), a noção de globalização e seus desdobramentos é de total importânc ia

e justificativa para a pesquisa da performance literária da série e suas consequências, ou seja,

seu caráter de fenômeno cultural e sua comunidade global de leitores e fãs.

O sucesso comercial, por si só, certamente nos levaria a uma análise superficial do

fenômeno, uma vez que esse sucesso poderia ocupar apenas um segmento específico de público.

Entretanto, levando em conta o aprofundamento investigativo e o espaço singular ocupado pela

série, este trabalho pretende investigar as diferentes causas desse fenômeno cultural e da

comunidade global de Harry Potter: sua recepção, a questão de autoria e sua influência na obra,

sua referência cultural e os fatores que o caracterizam como um fenômeno global, e que, como

tal, é responsável pela criação e manutenção de uma extensa comunidade de leitores e fãs.

Ultrapassando as fronteiras do público infanto-juvenil e quebrando as barreiras da

literatura, a série, alavancada pelos avanços tecnológicos de comunicação, pela convergênc ia

de mídias e tomando proveito desses e outros fatores da era digital, consegue ainda hoje, anos

após o lançamento do último livro, manter-se relevante na indústria do entretenimento, como

uma matéria prima a ser manufaturada ao máximo.

Nesse contexto, não apenas a série se torna um produto de manufatura, mas, também,

a figura da autora. Com a consolidação e o crescimento dos best-sellers em geral, seus autores

passaram a ocupar um espaço até então desconhecido por grande parte dos escritores, sobretudo

aqueles que surgiram antes que a literatura sofresse grande influência da globalização e do

capitalismo. Os autores de best-sellers se tornam, quase que automaticamente, influenciado res

sociais, alçados a listas de vendas e de influência de respeitados jornais e revistas, como o The

New York Times e a Time.

J. K. Rowling é, certamente, um dos maiores exemplos dessa posição alcançada pelos

autores de best-sellers. Não bastasse ser o maior exemplo de autor celebridade na atualidade

(BBC, 2017), Rowling ainda é um dos maiores exemplos da influência direta do autor em sua

obra.

Por meio das redes sociais e da plataforma de leitura interativa Pottermore, a autora

mantém contato constante com sua comunidade virtual, modificando os desdobramentos da

história presente nos livros, bem como indo além de suas páginas, apresentando novas histórias

de seu mundo mágico (o qual continua a atrair milhões de fãs).

Esse encantamento pelo universo de Harry Potter é também um dos fatores que atraem

tamanha atenção à série. O mundo fantástico criado por Rowling se torna objeto de desejo de

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milhões de leitores ao redor do mundo e, sobretudo, não se limita apenas ao universo literár io,

mas ao universo cultural. Seja por seu status de best-seller, pelo encantamento mágico

provocado pelos livros, ou ainda pela referência de cultura pop que a série se tornou, o

fenômeno Harry Potter, ainda hoje, atrai leitores e fãs ao redor do mundo.

Quebrando as barreiras impostas pelo livro e desbravando um novo espaço para a

(re)criação e sobrevivência de sua história e de seus personagens, a série se tornou referência

de longevidade e de adaptação ao mundo virtual. Sem perder sua aura mágica na era digita l

(muito pelo contrário, o aporte digital contribui para o encantamento da série), Harry Potter se

mantém presente na cultura global como referência icônica e imagética de toda uma geração de

leitores e fãs.

O ponto principal deste trabalho é, pois, a busca do fenômeno Harry Potter como um

fenômeno sociocultural e não apenas mercadológico, sobretudo no que diz respeito à criação e

manutenção de sua comunidade global. Levando em conta o aprofundamento investigativo e o

espaço singular ocupado pela série (o que também justifica sua tomada como objeto deste

trabalho), pretende-se mapear a formação dessa comunidade e alguns dos principais fatores que

a constituem, como as noções de autoria e de recepção da obra, bem como sua referência

cultural.

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CAPÍTULO 1 - “MAGIA É PODER”

“Palavras são, na minha nada humilde opinião,

nossa inesgotável fonte de magia.”

Alvo Dumbledore (J. K. Rowling)

Na história da literatura, vários são os exemplos de trabalhos que se tornaram

referência cultural de seu tempo e para além dele, desde Dom Quixote de La Mancha (1605) a

Madame Bovary (1857); de Os Três Mosqueteiros (1884) a O Pequeno Príncipe (1943); dos

registros feitos pelos Irmãos Grimm (1785-1863/1786-1859) à mitologia criada por J. R. R.

Tolkien (1892-1973). Obras que transcenderam a ideia de valor literário e se tornaram mais que

referências literárias: tornaram-se referências culturais para além de seus próprios escritos.

Seja por seu ineditismo ou por sua controvérsia, algumas obras se tornaram ponto de

referência nos estudos literários, bem como nos estudos culturais. O destaque de uma obra

literária dentre as de seu tempo ou em relação aos trabalhos anteriores e posteriores a ela sempre

esteve presente na história da literatura.

No entanto, a extrapolação do campo literário para o campo cultural não se caracteriza

como via de regra a obras de destaque e de bons desempenhos críticos e mercadológicos; essa

é uma especificidade restrita a obras que, seja por sua importância literária ou simplesmente

por seu impacto social, tornaram-se referências culturais.

Um dos exemplos desse acontecimento, e também um dos mais recentes e de grande

repercussão, é a série de livros Harry Potter. Premiada, lida pelos mais diversos públicos,

adaptada para o cinema e tema recorrente em jornais e revistas, muito mais que um sucesso de

vendas, Harry Potter ultrapassou as fronteiras do fenômeno best-seller e se estabeleceu como

um fenômeno em si mesmo, como uma referência da cultura de massa.

Além de referência literária, comportamental e icônica de toda uma geração de leitores

em escala global, a série de livros de fantasia de J. K. Rowling ocupa um espaço singular na

literatura e na cultura mundial, desde vendas que ultrapassaram os 450 milhões de cópias

(MOIR, 2016) a referências socioculturais que ultrapassaram o universo literário e se

estabeleceram no imaginário de toda uma comunidade, a exemplo de outras obras, como Moby

Dick (1851).

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A história da tripulação do Pequod e seu fatídico encontro com a grande baleia branca,

a qual empresta seu nome ao título da aclamada obra de Herman Melville (1819-1891), tornou-

-se um dos maiores símbolos culturais da sociedade estadunidense. Moby Dick passou a ser

uma de suas maiores referências, sendo esta frequentemente relembrada, desde comentários

esportivos acerca das campanhas dos times de futebol americano da NFL (National Football

League) a campanhas eleitorais à presidência norte americana (BUELL, 2014).

Em seu livro, The Great American Novel (2014), Lawrence Buell atenta ao capital

cultural do romance de Melville e todas as suas referências à sociedade americana, bem como

o fato de essas referências terem feito com que a própria história se tornasse um grande

catalisador do “espírito americano”, fazendo com que todas essas diversas referências à

sociedade estadunidense se tornassem uma só: o próprio romance.

Além de sua referência cultural na sociedade norte americana, Lawrence Buell também

ressalta o que ele chama de “Moby Dick industry” (BUELL, 2014, p. 359). Essa indústria em

torno do romance de Melville está presente, como bem ressalta Buell, desde a maior rede

internacional de cafeteria, a Starbucks (nome inspirado em um dos personagens do livro,

Starbuck, o jovem oficial chefe da embarcação), até os desenhos animados dos estúdios

americanos. Ou seja, seu capital cultural transita do bem de consumo à alegoria política e social.

A disseminação de Moby-Dick como texto e sua fertilidade como objeto de imitação, como ícone, como logotipo, como metáfora, não pararam nas fronteiras nacionais, da mesma forma que o Pequod também não. A icônica baleia de Melville foi “reencarnada como um ferry boat com dentes em Berlim e como um origami japonês; emerge em um bar de Paris, em um restaurante de Istambul, em uma cafeteria de Zagreb.” Ela inspirou o nome de um fornecedor de iate grego, bem como [...] a Starbucks. Como se não bastasse, a trama de Moby-Dick serviu por mais de meio século para alegorizar assuntos nacionais e internacionais em miniforma. Uma série de líderes nacionais, de Adolf Hitler a George W. Bush e Barack Obama, têm sido representados como o Capitão Ahab. Para aqueles que consideram aquela guerra um erro terrível, o romance "revela a abominável verdade da intervenção americana no Vietnã." (BUELL, 2014, p. 359, tradução nossa)6

6 “Moby-Dick’s dissemination as text, and its fertility as object of imitation, as icon, as logo, as metaphor, have no

more stopped at the nation’s borders than the Pequod did. Melville’s iconic whale has been ‘reincarnated as a

toothy ferry boat in Berlin and as Japanese origami; it emerges in a Paris bar, an Istanbul restaurant, a Zagreb

coffee shop.’ It has inspired the naming of a Greek yacht supplier as well […] Starbucks. On top of that, Moby-

Dick’s plot has served for more than half a century to allegorize national and world affairs in miniform. A series

of national leaders from Adolf Hitler to Georg W. Bush to Barack Obama have been framed as Capitan Ahabs. To

those who consider that war a dreadful mistake, the novel ‘speaks the awful truth of the American intervention in

Vietnam.’”

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Da mesma forma que o romance de Melville, Harry Potter conseguiu o feito que

poucos trabalhos literários alcançaram (e muitos deles até mesmo pertencentes ao chamado

cânone); no entanto, diferentemente de Moby Dick, Harry Potter o fez em escala global.

1.1 – De feitiços e encantamentos

“Nenhuma história vive, a menos que alguém

queira ouvi-la...”

J. K. Rowling

Publicada pela primeira vez em 1997 pela até então modesta editora londrina

Bloomsbury, a série Harry Potter tornou-se um fenômeno, tanto em números quanto em

relevância cultural. Em um curto espaço de tempo, a série de livros inicialmente voltada para o

público infantil, rejeitada por mais de dez editoras e escrita por uma autora estreante, à época,

enfrentando grandes dificuldades financeiras (FARR, 2012) , tornou-se o centro de uma grande

comoção literária na Inglaterra, sobretudo no setor editorial infanto-juvenil.

Algum tempo depois, essa comoção ultrapassou as fronteiras da Grã-Bretanha e

resultou em vendas significativas dos livros ao redor do mundo, prêmios literár ios

(SCHOLASTIC, s.d.), assinaturas de contratos milionários, críticas favoráveis ao novo

tratamento dado à literatura infantil, e, até mesmo, alvo de críticas de setores conservadores das

religiões cristãs.

Nos primeiros anos que se seguiram ao lançamento de Harry Potter e a Pedra

Filosofal (título original em inglês publicado em 1997), a série tornou-se alvo declarado de

duras críticas da Igreja Católica, fosse por meio de entrevistas concedidas por padres e bispos

em diversos países (MORRIS, 2006), ou por meio de artigos e ensaios escritos por parte de

membros importantes do Clero, como o até então Cardeal Joseph Ratzinger (LIFESITE, 2005),

Papa Bento XVI, um dos teólogos mais respeitados do mundo, bem como por críticas

publicadas pelo L'Osservatore Romano (ESTADÃO, 2008).

As críticas vindas de vários ramos das religiões (sobretudo de grupos católicos,

protestantes e ortodoxos), ainda hoje (mas em proporções menores), baseiam-se no argumento

de que a série teria o poder de influenciar crianças e jovens para a prática do ocultismo e do

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satanismo, distorcendo assim os valores cristãos, à medida que enalteceria práticas e crenças

pagãs como a feitiçaria.

Segunda as palavras escritas pelo Cardeal Ratzinger, então prefeito da Congregação

para a Doutrina da Fé (o antigo Santo Ofício), em uma carta à escritora alemã Gabriele Kuby:

“É bom que você esclareça às pessoas acerca de Harry Potter, pois essas são seduções sutis que

agem despercebidas e por isso distorcem o cristianismo na alma, antes que este possa crescer

adequadamente” (RATZINGER, 2003, tradução nossa).7 À época, Kuby escrevia seu livro :

Harry Potter: gut oder böse? (Harry Potter: bem ou mal?), de 2003.

Nascia aí um fenômeno cultural, fosse pelo fracasso obtido pelas duras críticas

religiosas, fosse pelo sucesso alcançado apesar das oposições à série (o que, em pouco tempo,

mostrou-se ser o resultado de toda essa ebulição). Todas essas discussões entre o sagrado e o

secular já imprimiam à série seus primeiros contornos de fenômeno sociocultural, uma vez que

o ponto central dessas discussões não era o valor literário da série, mas as questões cultura is

que orbitavam ao seu redor, como as práticas pagãs em detrimento dos valores religiosos.

Porém, nem tudo a respeito de Harry Potter está unicamente relacionado à questão

cultural. Um dos grandes impulsos à série, antes que as polêmicas religiosas ganhassem força,

fora justamente o tratamento dado a uma série de livros infantis.

Rejeitada por diversas editoras, por acharem que se tratava de um livro muito longo e

complexo para crianças, J. K. Rowling apresentou ao mercado literário uma “novidade” no

universo de livros infantis: histórias longas, perpassadas de mistérios e investigações com

dezenas de personagens, além de várias referências clássicas (tanto à história britânica como às

antigas culturas: desde nomes e feitiços em latim e grego até figuras e criaturas mitológicas).

Ficar fora do lugar comum reservado à literatura infanto-juvenil, ou, pelo menos, por

parte expressiva dos trabalhos desse tipo, fez com que, aos poucos, Harry Potter não se

limitasse apenas a um público específico; e fez também com que influenciasse trabalhos de

outros autores, sobretudo escritores de best-sellers fantásticos que surgiram após o sucesso da

série.

A forma de escrita, as construções e soluções de enigmas e os personagens complexos

fizeram com que Harry Potter ganhasse prestígio entre os críticos da literatura infanto-juvenil,

e fizeram também com que seu público se ampliasse de forma significativa. Esse interesse se

deu, em grande parte, pela curiosidade crescente acerca dos livros e pelo próprio mundo mágico

7 “It is good, that you enlighten people about Harry Potter, because those are subtle seductions, which act unnoticed

and by this deeply distort Christianity in the soul, before it can grow properly.”

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criado por Rowling, uma vez que, como bem ressalta Muniz Sodré: “‘Curiosidade’ é, como

‘entretenimento’, outra palavra-chave” (SODRÉ, 1985, p. 16, grifo no original).

Em seu livro intitulado Best-seller: a literatura de mercado (1985), Muniz Sodré afirma

que “o texto de massa é precisamente o tipo de produto capaz de espicaçar a ‘curiosidade

universal’” (SODRÉ, 1985, p. 16). Aliás, o encantamento e a curiosidade pela magia, não em

um mundo antigo, mas em um mundo paralelo ao nosso, em uma sociedade que se mantém

escondida das pessoas não mágicas é um dos principais atrativos de Harry Potter.

Diferentemente de histórias fantásticas que se passam em tempos antigos e terras

desconhecidas (O Senhor dos Anéis, 1954-1955), ou em mundos secretos (As Crônicas de

Nárnia, 1950-1956), Harry Potter é uma história que se passa no Reino Unido dos dias atuais,

ao lado de referências culturais, arquitetônicas e geográficas das quais seus leitores têm

conhecimento ou, até mesmo, fazem parte.

Algumas dessas referências vão das localidades britânicas citadas na série até os

sistemas educacionais e políticos muito próximos dos nossos (como a existência de um

Ministério da Magia, com seus funcionários, departamentos e leis).

A ideia de um mundo tão mágico e suas “seduções” (Bento XVI não nega essa

característica, muito pelo contrário, ele a enfatiza) e, ainda assim, tão próximo de nossa ideia

de mundo e sociedade é, no mínimo, tentador. São vários os exemplos de livros e séries

fantásticas que abordam o tema pagão da feitiçaria, mas o posicionamento da Igreja em relação

a essas obras não se deu da mesma forma agressiva como em relação a Harry Potter, justamente

por seu grande poder de sedução.

O mundo e a sociedade criados por J. K. Rowling e suas riquezas de detalhes despertam

nos leitores e fãs mais apaixonados e fantasiosos a mínima, porém, significativa possibilidade

da existência de tal mundo (o qual não parece ser tão distante do “nosso”), bem como a

existência de tais práticas (as quais são extremamente sedutoras, como feitiços para a

longevidade ou a posse de uma capa capaz de torná-lo invisível).

A ideia de se obter facilidades com um passe de mágica (não em uma remota floresta

da época arturiana, mas em uma Inglaterra atual, em ações do dia-a-dia) é tão encantadora

quanto desejada, e não necessariamente apenas para os amantes da literatura fantástica ou para

o público mais jovem e de imaginação fértil.

A ideia de se transportar instantaneamente de um lugar a outro (por exemplo, por meio

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de um feitiço8 ou com o uso de um pó mágico9) é tentadora para qualquer um que gaste horas

no tráfego das grandes cidades no caminho do trabalho para a casa, ou ainda àqueles que se

encontram atrasados para um compromisso importante. E isso não é uma novidade, como bem

nos lembra Muniz Sodré: “Hoje, como no passado, o leitor projeta-se nas aventuras [...], dando

vazão ao seu desejo de potência” (SODRÉ, 1985, p. 24), a fim de que assim possa “escapar às

leis do cotidiano repetitivo e monótono” (SODRÉ, 1985, p. 24).

Essas talvez sejam as “seduções sutis” alarmadas pelo Papa em sua carta, as quais

inclinariam seus fiéis a uma suposta prática que os distanciaria do cristianismo. Certamente,

essas seduções e, sobretudo, a curiosidade em conhecê-las são alguns dos principais atrativos

da série, mas não os únicos. Um outro exemplo desse encantamento pelo mundo mágico de

Harry Potter é sua referência à Era Vitoriana.

Em um artigo publicado no site The Conversation, 10 a propósito do aniversário de 150

anos de Alice no País das Maravilhas (1865), de Lewis Carroll (1832-1898), Dimitra Fimi, da

Cardiff Metropolitan University, ressalta que:

A visão nostálgica de uma sociedade vitoriana idealizada é certamente parte da atração. E este é um dos ingredientes que fazem com que Downton Abbey11 e a série Harry Potter sejam sucessos no mundo inteiro. (FIMI, 2015, tradução nossa)12

Não apenas as referências vitorianas, mas o próprio encantamento pelo mundo mágico

em uma sociedade cada vez mais sedenta por magia (e também pelas facilidades que ela

teoricamente poderia nos trazer) contribuíram para que Harry Potter se tornasse um fenômeno

cultural, ao qual é possível recorrer de modo alegórico e, de certa forma, alentador.

A ideia da existência de um mundo idealizado (de Platão a Thomas More) sempre foi

um atrativo à leitura, bem como motivo de controvérsia. Essa busca por um universo que nos

afaste de um mundo assustador no qual estamos inseridos e que nos traga novidades

encantadoras além da rotina dos estudos ou do trabalho, ainda que de forma fantasiosa,

8 No livro, a aparatação: é um método mágico de transporte que possibilita viajar de um ponto a outro. O usuário

precisa manter o foco no local desejado em sua mente. Em seguida, ele desaparecerá do local inicial e, quase

instantaneamente, reaparecerá no local desejado, como uma forma de teletransporte. 9 Igualmente, o Pó de Flu: é um pó utilizado pelos bruxos para viajarem por meio da Rede de Flu: uma rede

conectada às lareiras das casas e dos edifícios bruxos. O usuário deve atirar o pó nas chamas de uma lareira,

caminhar sobre o fogo (inofensivo) e falar em voz alta o nome do local desejado. 10 After 150 years, we still haven’t solved the puzzle of Alice in Wonderland. 11 Aclamada série dramática do canal britânico ITV, a qual retrata a vida de uma família aristocrática inglesa e de

seus criados. 12 “The nostalgic view of an idealised Victorian society is surely part of its attraction. These are some of the same

ingredients that have made Downton Abbey or the Harry Potter series so successful around the world.”

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certamente é um dos fatores que atraíram e ainda hoje atraem milhões de leitores de Harry

Potter, bem como seus críticos.

O sucesso literário devido a abstrações fantásticas que algumas obras provocam no

leitor não é uma novidade na literatura, muito menos no universo dos best-sellers. Estes se

beneficiam justamente por sua leitura de entretenimento (aparentemente descompromissada) e

por suas histórias que causam mais encantamento do que reflexão (ainda que esta possa estar

presente, como em alguns trechos de Harry Potter).

A linguagem coloquial, mas não menos elaborada, adotada pela autora facilita a compreensão dos leitores mais novos [...] No entanto, uma pessoa com um repertório maior será capaz de entender as referências aos mitos e até visualizar questões sociais mais amplas, como nazismo, terrorismo e preconceito. (COLLETTA, s.d.)

No entanto, a causa do sucesso dos livros de Rowling não se limita ao seu universo

fantástico ou à curiosidade que desperta nos leitores, mas também aos atuais avanços das

tecnologias de comunicação, como as plataformas de mídia modernas, as quais facilitam o

trânsito de bens culturais (CHARTIER, 1999; GUPTA, 2009a; PRADO, 2002).

Devido a esses fatores e diferentemente de Moby Dick (que ganhara seu

reconhecimento como referência e produto cultural apenas em meados do século XX), o sucesso

de Harry Potter como referência e produto cultural foi alcançado antes mesmo do lançamento

do último livro da série: Harry Potter e as Relíquias da Morte (2007).

Ainda no primeiro volume dentre os sete livros, Harry Potter já havia alcançado 120

milhões de exemplares vendidos. Os três livros seguintes da série foram publicados nos três

anos consecutivos ao seu estrondoso lançamento. No ano de 2000 (mesmo ano de publicação

do quarto livro da série em inglês, Harry Potter and the Goblet of Fire), a autora já havia

assinado um contrato milionário com os estúdios Warner Bros. para a adaptação

cinematográfica de suas histórias, e o primeiro dos oito filmes da futura franquia bilionária já

se encontrava em fase de produção.

O que se viu a seguir foi um ineditismo na indústria literária e na indústria cultura l

como um todo: as publicações dos três livros seguintes ocorreram em pleno sucesso

cinematográfico de suas adaptações (bilheterias milionárias, indicações ao Oscar...), até o ano

de 2007 (ano de lançamento do último livro da série). Ou seja, um segmento cultura l

alimentando o outro.

Os fãs continuaram a formar filas quilométricas nas livrarias, bem como nas salas de

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cinema; um evento midiático para cada lançamento, um frenesi tão grande com os livros quanto

com os filmes. Assim como os lançamentos mundiais dos livros, cada première dos filmes se

tornava um grande evento midiático, atraindo, por exemplo, celebridades como Madonna. A

presença de tal figura, obviamente, não passaria despercebida e nem seria em vão, tanto para a

promoção do filme quanto para a imagem da cantora.

Aliás, no mesmo período em que a Rainha do Pop compareceu acompanhada da filha

mais velha à première britânica (BRIGGS, 2005) do quarto filme da série, Harry Potter e o

Cálice de Fogo (Dir. Mike Newell. Warner Bros., 2005), ela estava em plena divulgação do seu

décimo álbum de estúdio, Confessions on a dance floor (2005), o qual seria lançado menos de

dez dias depois pela sua então gravadora Warner Music, pertencente ao conglomerado de mídia

Time Warner (ao qual também pertencem os estúdios responsáveis pelos oito filmes da série

Harry Potter).

Percebe-se, pois, uma extensa rede de conexões que, ainda que aparentemente casuais,

sustentam e são sustentadas por um movimento maior. Os filmes, os produtos, os atores, os

programas de televisão, o público celebridade, a fama do autor, tudo contribuiu e ainda hoje

contribui para com o fenômeno Harry Potter, o qual transcende as fronteiras do mercado

editorial e se torna também um sucesso da indústria cultural e do entretenimento.

[C]orporações de vários tipos [...] têm influência em catálogos de editoras e nas prateleiras em livrarias que categorizam os livros para a atenção do público alvo. Elas têm algo a ver com a maneira pela qual várias franquias de cafeteria fornecem espaços em livrarias ou espaços para leitores. Elas têm algo a ver com as celebridades da mídia que endossam livros literários para os seus seguidores (por exemplo, por meio dos ‘clubes de livros’ dos apresentadores de programas matinais da TV britânica [...] e da apresentadora americana Oprah Winfrey). As associações se desenrolam em uma rede de leitura fluente extremamente complexa que não ocorre apenas espontaneamente, mas é fabricada por uma variedade de setores. (GUPTA, 2009a, p. 166-167, tradução nossa)13

Já logo no início da última década do milênio passado, Fredric Jameson, em seu livro

intitulado Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio (2000), argumentava o fato

da arte estar cada vez mais ligada à ideia de mercado e aos valores capitalistas, os quais, segundo

13 “[…] corporations of various sorts [...] have something to do with publishers’ catalogues a nd shelves in

bookshops categorize books for attention of target audiences. They have something to do with the manner in which

various coffee-vending chains provide spaces in bookshops or spaces for readers. They have something to do with

media celebrities endorsing literary books for their followings (for instance, through the ‘book clubs’ of UK

television breakfast-show hosts […] and US chat-show host Oprah Winfrey […] The associations unwind in an

enormously complex web of readerly fluidity that does not just happen spontaneously but is manufactured by a

range of industries.”

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ele, criam a necessidade (quase que orgânica, poderíamos assim dizer) das novidades, mesmo

que de forma aparente:

O que ocorreu é que a produção estética hoje está integrada à produção das mercadorias em geral: a urgência desvairada da economia em produzir novas séries de produtos que pareçam novidades [...] com um ritmo de turn over cada vez maior (JAMESON, 1991, p. 30, grifo no original)

Essa integração da produção estética e da produção de mercadorias citada por Jameson

faz com que, dez anos após a publicação do último livro da série e seis anos após a estreia nos

cinemas do último filme, o sucesso de Harry Potter tenha resultado na construção de parques

temáticos e museus, em mais uma milionária adaptação cinematográfica,14 ou, ainda, no grande

número de edições especiais dos livros com novos designs de capas em um curto espaço de

tempo (10 anos, de 2007 a 2017).

A variedade de edições e capas dos livros ao redor do mundo nesses 20 anos de Harry

Potter reforça ainda mais o poder da série como uma referência da cultura pop global, a qual

deve se renovar constantemente a fim de não perder seu espaço já conquistado, bem como

reforça a ideia do livro como um produto em si: “É importante ter em mente o seguinte: o

circuito ideológico de uma obra não se perfaz apenas em sua produção, mas inclui

necessariamente o consumo” (SODRÉ, 1985, p. 6).

Mesmo que os leitores e fãs de Harry Potter já tenham lido e relido os livros inúmeras

vezes e mesmo que o conteúdo literário não se modifique de uma edição para outra, esses se

sentem atraídos pelos novos desenhos de capa e pelos subprodutos que acompanham as edições

especiais e de colecionador. “A constituição do público, que teoricamente e de fato favorece o

sistema da indústria cultural, faz parte do sistema e não o desculpa” (ADORNO &

HORKHEIMER; In: LIMA, 2000, 171).

Esse movimento ocorre, na maioria das vezes, pela chance de possuírem aquela

novidade em sua estante: ou seja, o próprio livro como um bem de consumo. “O ‘best-seller’,

enquanto produto da literatura folhetinesca ou de massa, é resultado do processo de

industrialização mercantil e efeito da ação capitalista sobre a cultura” (SODRÉ, 1985, p. 70).

Ao tratar do consumo como algo institucionalizado, em seu capítulo intitulado “Le

Fun-System, ou la contrainte de jouissance” (O Fun-System, ou o prazer compulsório), Jean

Baudrillard, em La société de consommation (1970), afirma que:

14 Animais fantásticos e onde habitam. Dir. David Yates. Warner Bros, 2016.

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Você tem que experimentar tudo: pois o homem consumidor é assombrado pelo medo de “perder” alguma coisa, alguma forma de prazer qualquer. Você nunca sabe se um determinado contato, determinada experiência [...] irá provocar alguma “sensação”. Não se trata mais do desejo, nem mesmo do “gosto” ou uma inclinação específica que esteja em jogo, é uma curiosidade generalizada, movida por uma difusa obsessão – a “fun-morality”, ou o imperativo de se divertir, de explorar a fundo todas as possibilidades de se fazer vibrar, gozar ou gratificar-se. (BAUDRILLARD, 1970, p. 113, tradução nossa)15

Outro exemplo da ação do capitalismo e da indústria cultural sobre a série é o fato de

Harry Potter ter se tornado uma trademark ™ (marca registrada) pertencente à Warner Bros.

Entertainment Inc., a qual vem afixada ao lado do título da série nas edições dos livros que

estampam a mesma fonte utilizada nas aberturas das adaptações cinematográficas.

No entanto, essa mercantilização da obra literária não é uma novidade, como gostam

de pensar alguns críticos mais fervorosos do best-seller. Como bem nos lembra Muniz Sodré,

“o folhetim oitocentista [que contou com escritores como Eça de Queirós e Machado de Assis]

era determinado pelas exigências industriais e comerciais da imprensa” (SODRÉ, 1985, p. 70).

Além da mercantilização intensa da série, a ação do capitalismo e das tecnologias de

comunicação resultaram na criação de uma plataforma de interatividade na internet chamada

Pottermore.16 Nela, é possível fazer compras de audiolivros e livros digitais, experienciar a

leitura da série de forma interativa e, o mais importante para este trabalho, contribui de forma

significativa para que a história permaneça inacabada e ainda para a constituição e manutenção

de sua comunidade global de leitores e fãs.

É por meio dessa plataforma e das redes sociais que a história sofre recorrentes

interferências por parte da autora, a qual modifica a recepção de sua obra e abre novos caminhos

interpretativos e de sobrevivência da história e de seus personagens (os quais, diga-se de

passagem, ainda ganharam uma “sobrevida” em uma peça de teatro (Harry Potter and the

cursed child, 2016), escrita pela própria autora, a qual se passa 19 anos após os acontecimentos

narrados nos livros).

Além de reforçar os pensamentos de Fredric Jameson e Jean Baudrillard quanto à

15 “Il faut tout essayer: car l’homme de la consommation est hanté par la peur de “rater” quelque chose, une

jouissance quelle qu’elle soit. On ne sait jamais si tel ou tel contact, telle ou telle expérience [...] ne tirera pas de

vous une “sensation”. Ce n’est plus désir, ni même le “goût” ou l’inclination spécifique qui sont en jeu, c’est une

curiosité généralisée mue par une hantise diffuse - c’est la “fun-morality”, où l’impératif de s’amuser, d’exploiter

à fond toutes les possibilités de se faire vibrer, jouir, ou grat ifier.” 16 https://www.pottermore.com/

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busca do mercado por novidades e quanto à necessidade do consumo, essa parte do fenômeno

evidencia o papel da autora para muito além daquele que escreve, uma vez que ela própria se

tornou um produto a ser capitalizado, seja pela própria série Harry Potter ou pelos meios de

comunicação e pela indústria do entretenimento que lucram com sua imagem.

1.2 – A exumação do autor

“Ninguém quer ler histórias de um velho bruxo

feio da Armênia, mesmo que tenha salvo uma

cidade dos lobisomens. Ele ficaria medonho na

capa.”

Gilderoy Lockhart (J. K. Rowling)

Na primavera de 2013, na Grã-Bretanha, um romance policial escrito por um autor

estreante, com um modesto histórico nas forças armadas e na indústria de segurança civil, foi

publicado pela editora Sphere Books, rendendo pouquíssimas críticas em modestos jornais e

sites, vendendo 1.500 exemplares durante os três primeiros meses que se seguiram à sua

publicação. No entanto, no verão do mesmo ano, o número de cópias vendidas, bem como o

número de críticas em jornais e revistas, saltou de forma espetacular, crescendo mais de

150.000% apenas no site da gigante do comércio eletrônico, a americana Amazon.

Os modos de produção e recepção literária hoje não são mais os mesmos da primeira

metade do século XX, para não irmos tão longe na história. Esse regresso no tempo evidencia

as rápidas mudanças operadas em um curto espaço de tempo. A consolidação do capitalismo e

os desdobramentos pelos quais ele passou e ainda hoje passa são também alguns dos fatores

que impulsionaram essas rápidas mudanças, além, é claro, das implicações tecnológicas de um

mundo cada vez mais globalizado, ou, pelo menos, percebido como tal.

Essas mudanças operadas sobre a literatura fazem com que lancemos um novo olhar,

ou, certamente, um olhar mais cuidadoso para os processos de produção e recepção dos

trabalhos literários na era da globalização. É inegável que as mudanças culturais e

comunicativas pelas quais passamos nos últimos anos influenciaram nossa posição em relação

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à obra literária e seu entorno, estejamos nós frente a ela como autores, críticos ou leitores

comuns.

Uma das consequências dessas mudanças causadas pelo capitalismo e pela

globalização na literatura e nos estudos literários diz respeito à morte do autor e seus novos

desdobramentos.

Um dos pontos mais controversos da teoria literária é, de fato, a figura do autor. A

discussão a respeito de seu papel, de sua importância na produção, recepção e significação do

texto literário tem tomado grande parte dos estudos teóricos nas últimas décadas, e, ainda hoje,

ocupa um espaço conflituoso de ideias.

Quando Roland Barthes abalou as estruturas da crítica literária com seu artigo A morte

do autor (1968), o que ele fez foi substituir o humanismo e o individualismo que o autor

representava pela linguagem, a qual seria impessoal e anônima.

Sem dúvida sempre foi assim: desde que um fato é contado, para fins intransitivos, e não para agir diretamente sobre o real, isto é, finalmente, fora de qualquer função que não seja o exercício do símbolo, produz-se esse desligamento, a voz perde a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escritura começa. (BARTHES, 2004, p.58)

Barthes defende a anulação da voz daquele que está por trás das palavras. De acordo

com o professor e escritor francês, o texto existe e ele se basta, pois, segundo suas próprias

palavras, “a escrita é destruição de toda voz, de toda a origem. A escrita é esse neutro, esse

compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito” (BARTHES, 2004, p. 57).

Bem como Barthes, outros autores compartilham dessa mesma ideia, ainda que de

modos não totalmente iguais.

Foucault observa que há uma espécie de regra imanente que domina a escrita como prática. Essa regra pode ser especificada mediante dois grandes temas da escrita: o tema da expressão e o tema da morte. Com relação ao tema da expressão, Foucault destaca dois extremos, ou o texto diz tudo ou o leitor diz tudo. No primeiro caso, não importa quem escreve, já que a obra basta por si mesma; no segundo, há também um deslocamento do autor, mas, nesse caso, o sentido estaria estritamente com o leitor. (CAVALHEIRO, 2008, p. 69-70)

No entanto, levando em consideração as rápidas e intensas mudanças pelas quais a

produção e a recepção literária passaram (como os avanços tecnológicos de comunicação, a

influência capitalista sobre a produção artística e os mecanismos de mídia e de plataformas),

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não apenas o leitor, mas também o autor se encontram em posições antes inatingíveis. A

inserção do autor dentro das comunidades globais e do próprio anseio do mercado e da indústr ia

de entretenimento faz com que ele ganhe novas posições até então desconhecidas.

Em uma época em que seu autor favorito ocupa as listas das personalidades mais

influentes do mundo e, ainda assim, encontra-se a um clique de distância em suas diversas redes

sociais ou em entrevistas e bate-papos pela internet, ou ainda em programas de rádio e televisão,

o autor de best-seller adquire a característica de celebridade e ocupa um papel quase que inédito.

O autor se encontra vivo e para muito além do que escreve, sobretudo no fenômeno

Harry Potter, no qual a autora exerce grande influência nos desdobramentos da história e na

sua manutenção como uma obra inacabada.

É inegável que a escrita seja capaz de destruir toda voz e toda origem, como bem

afirma Roland Barthes em seu célebre artigo (BARTHES, 2004, p. 57). No entanto,

frequentemente nos vemos influenciados por fatores extratexto que modificam nossa percepção

do autoral, bem como o próprio papel desempenhado pelo autor como escritor e sujeito.

Como parte da cultura, a literatura é formada de interações, e não poderia ser de outra

forma, uma vez que todo produto cultural nasce de inter-relações e interações sociais. A própria

morte do autor de Barthes nasce de uma negação da figura burguesa conferida à autoria. Ou

seja, um dos exemplos da influência extraliterária não apenas na literatura como arte e produto,

mas, também, em seus estudos teóricos.

O autor é uma personagem moderna, produzida sem dúvida por nossa sociedade na medida que, ao sair da Idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio do indivíduo, como se diz mais nobremente, da “pessoa humana”. (BARTHES, 2004, p. 58)

Cada vez mais, seja em nossas leituras de livros (muitas vezes acompanhadas pelas

telas dos computadores, smartphones e tablets), ou até mesmo em nossos ensaios críticos,

estamos tentados a exumar a imagem do autor. Isso ocorre principalmente se levarmos em conta

as facilidades tecnológicas e comunicativas dos dias atuais (em que se é possível estabelecer de

forma mais cômoda e imediata contato com as editoras, com os tradutores e com os próprios

autores), além da variedade de obras dos mais diferentes contextos ao redor do mundo, com as

quais a globalização nos possibilita entrar em contato como nunca antes na história da literatura.

Nesses casos, o autor vem à tona não para uma complementação do texto, mas, como

suplemento a ele, uma vez que a obra literária se encontra vulnerável a influências sociais mais

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amplas (das quais algumas delas justificam este trabalho).

Complemento é parte de um todo, o todo estará incompleto se faltar o complemento. Suplemento é algo que se acrescenta a um todo. Portanto, sem o suplemento o todo continua completo. Ele apenas ficou privado

de algo a mais. (SANTIAGO, 2008a, p. 161-162)

Os traços sociopolíticos que hoje estão desenhados sobre o globo e que têm fortes

implicações culturais fazem com que a história biográfica de um autor seja levada em conta em

determinados contextos interpretativos.

A primeira questão a ser explorada é aquela que vincula a literatura a uma série de circunstâncias sociais mais amplas, isto é, que prescreve a necessidade de se avaliarem obras e autores determinados não como meras categorias estruturais do texto literário, fato que aponta para a problemática mais dilatada do ‘contexto’ literário. (SILVA, p.74, 2003)

A proliferação de obras heterogêneas cada vez mais voltadas para espaços sociais e

culturais específicos, faz com que cada vez mais leitores e críticos voltem seus olhares para os

mapas e deem maior atenção às orelhas dos livros, as quais trazem informações extratexto

relacionadas ao número de vendas da obra, à data de publicação e a seu contexto. Além, é claro,

de uma breve biografia do autor.

Ainda que o texto diga de si mesmo por si mesmo, sem que se tome a voz do autor e

assim mantenha sua autoridade (pois a pesquisa biográfica não tira isso do texto, ainda que

influencie em sua recepção), essa exumação do autor faz com que os processos de produção e

de recepção das obras sejam repensados de forma singular, até mesmo pela busca de uma

suposta autonomia de um discurso. Quem pode dizer de determinado assunto estando ou não

em determinado local de fala.

São muitos os críticos e pesquisadores que se debruçam cada vez mais sobre as

biografias de seus autores, ou melhor, dos autores de seus objetos. Eles partem em busca, por

exemplo, de uma suposta legitimação do discurso político (para nos determos em apenas um

fator), ou ainda em busca de uma suposta propriedade para escrever a respeito de algo (como

os conflitos no Oriente Médio ou as literaturas de gênero, por exemplo).

Com a proliferação e circulação crescente de trabalhos literários de diferentes partes

do mundo e dos mais diversos contextos sociais, os críticos insistem em exumar os autores de

seus objetos de crítica (basta ler os cadernos de cultura dos jornais e as dissertações das

universidades).

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Não apenas os críticos, mas o leitor também é levado por essa ânsia em conhecer a

pessoa por trás do texto, por trás da história, bem como o mundo no qual ela está inserida. Isso

faz com que novas interpretações possam ser colocadas sobre o texto, o que, para muitos, seria

um crime contra este. Mas a verdade é que, sendo crime ou não, esse é um ato cada vez mais

cometido, de forma deliberada ou não.

Assim, parece-nos necessário, atualmente, adotar uma metodologia analítica que [...] estabeleça novos parâmetros epistemológicos para a relação entre literatura e sociedade. Tal metodologia pode ser encontrada em teorias que possuem, tanto em sua origem quanto em sua práxis hermenêutica, uma “natureza pragmática” (CALDERÓN, 1996; HOLMAN, 1992; REIS, 1994; SHAW, 1982), isto é, aquelas tendências que lograram realizar – dentro da própria Sociologia da Literatura – uma apreciação da obra literária a partir de uma série de fenômenos contextuais, indo da Estética da Recepção até a Ciência Empírica da Literatura, com incursões diversas pela Análise do Discurso ou pela Sociocrítica. (NEWTON, 1993; TADIÉ, 1987). (SILVA, p. 73, 2003)

Percebe-se, pois, que, na busca pelo autor, também se esconde a procura pelo contexto

de produção de uma obra literária. Muitas vezes, o que se busca não é exatamente a figura do

autor, mas, sim, o contexto da obra, principalmente se pensarmos nos exemplos já citados, em

que a compreensão do texto, em boa parte, se baseia em questões de contextos políticos e sociais

nem sempre claros nos textos literários (o que, muitas vezes, rende um número considerável de

notas de rodapé ou notas do tradutor, por exemplo).

Com efeito, uma análise que busca contemplar não apenas as particularidades mais estruturalmente intrínsecas de um determinado conjunto estético, mas também como tais particularidades puderam ser forjadas no bojo de uma série de condicionantes extraliterários, não pode prescindir de uma fundamentação metodológica que, de certo modo, privilegie aspectos circunstanciais e contextuais da produção artística, particularmente aqueles que – a partir da clivagem sofrida pelo atual quadro teórico-literário – acabaram ganhando estatuto de fatores condicionantes na conformação e consolidação das tendências estéticas. (SILVA, p. 74, 2003)

O mercado editorial, por exemplo, se interessa cada vez mais pela vida do autor e os

impactos que isso possa gerar na recepção (e venda) de livros. O mesmo se aplica aos programas

de rádio e televisão, às revistas, aos produtores cinematográficos, aos críticos (cada vez mais

cedendo parágrafos em seus textos dedicados exclusivamente ao autor e seu contexto

acadêmico, político, etc.), aos pesquisadores (quase sempre dedicando no mínimo um capítulo

de suas teses e dissertações exclusivamente para o autor) e, claro, aos leitores.

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Ou seja, ainda que o texto não precise do autor para dizer ou deixar de dizer algo, o

leitor comum, o pesquisador e a crítica ainda se encontram, até certo ponto, agarrados à imagem

do autor e seu entorno. E, nos últimos tempos, agarrados também à própria imagem do leitor:

o público de uma obra ou de um autor diz muito a seu respeito nas críticas literárias e nas

discussões acadêmicas (basta tomarmos como exemplo os leitores de best-seller e seus

estereótipos).

Não se trata apenas do texto, mas, também, de sua recepção, do grau de abertura ou

não que o leitor, o pesquisador e o crítico dão à obra e à sua autoria, bem como os preconceitos

e pressupostos que antecedem a leitura.

A respeito do nosso crescente anseio, como leitores, críticos e pesquisadores, de irmos

além do texto (tentados, hoje, em grande parte, pelas facilidades tecnológicas e comunicat ivas

que exercem sua influência tanto na produção como na recepção literária), Suman Gupta

(2009a) comenta a respeito da morte do autor e seu espaço na produção e recepção literária na

pós-modernidade.

Tomando como exemplos os romances do escritor escocês Gilbert Aidar, Love and

Death in Long Island (1990), e do escritor turco Orhan Pamuk, Neve (2006), Gupta trata da

morte do autor frente às mudanças sofridas na recepção e na produção literária, sobretudo a

última, a qual diz respeito em grande parte ao autor. Em ambos os romances, seus protagonistas

são escritores que sofrem as influências dos novos mecanismos comunicativos e

mercadológicos operados pelo capitalismo e pelo sempre crescente processo de globalização.

No primeiro dos dois romances, o protagonista é um romancista residente em Londres,

de nome Giles, que se descobre fortemente atraído por um jovem ator chamado Ronnie

Benstock, criando em si uma obsessão por revistas de adolescentes nas quais Benstock é figura

garantida:

O protagonista de Aidar encontra o objeto de seus desejos primeiro dentro da vida conservadora de Londres, não de fato, mas improvavelmente refletida em imagens da mídia do ‘novo mundo’, naquilo que são, para ele, os insípidos produtos da cultura de consumo adolescente. (GUPTA, p. 153, 2009a, tradução nossa)17

Como o próprio título sugere, o aguardado encontro com Benstock acaba por se

17 “Aidar’s protagonist finds the object of his desires first within the conservative London life, not in the flash but

improbably shadowed in media images from the ‘new world’, in what is for him the tasteless products of teenage

consumer culture.”

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desenrolar de forma trágica, mas a metaforização da morte do autor não se resume à sua morte

física. Primeiro, o personagem autor perde sua capacidade produtiva e artística, sofrendo

grandes influências dos textos consumidos por ele em função de seu desejo pelo jovem ator;

influências essas que se tornam visíveis em seus trabalhos.

A morte do autor aqui, portanto, não gira em torno apenas da tragédia humana, mas,

antes, da agonia artística. O “novo mundo” encontrado pelo protagonista de Aidar na mídia e

nos produtos de consumo adolescentes acaba por transcender sua vida sentimental e erótica e

se estabelece também em seus trabalhos literários. É o autor que sai da sua posição habitual e

encontra esse novo mundo discursivo, estético, e, porque não dizer, altamente sedutor.

Já no romance de Pamuk, o escritor protagonista é um “pseudopoeta” chamado Ka,

que visita a cidade turca de Kars a fim de escrever um artigo jornalístico a respeito de jovens

mulheres que cometeram suicídio em protesto contra a proibição do uso do véu. Imerso no

universo islâmico e desligado do “resto do mundo”, o protagonista se descobre no contexto

apropriado para a produção de sua literatura.

Também de fim trágico, o romance de Orhan Pamuk trata justamente do inverso

retratado no romance de Gilbert Aidar. Aqui, o autor se encontra finalmente em plena produção

artística, finalmente capaz de fazer um bom trabalho literário. Porém, frente às mudanças

operadas na produção e recepção literária (como o mercado, por exemplo), o autor de Pamuk

se encontra fora do contexto adequado para o novo cenário editorial/literário, e seus poemas

acabam esquecidos e desconhecidos (até mesmo para o leitor do romance). “A ironia é que os

inspirados poemas de Ka nunca veem a luz do dia. Eles são perdidos. Eles são descritos em

detalhes prosaicos no romance, mas não podem ser reproduzidos” (GUPTA, 2009a, p. 154,

tradução nossa).18

No primeiro romance, a morte do autor é consequência de seu encontro equivocado e

despreparado com esse “novo mundo”. Já no segundo, a morte do autor é resultado de uma fuga

equivocada e precipitada. O que fica de ensinamento desses dois exemplos é que tanto a fuga

precipitada quanto a procura desmedida por esse novo contexto em que a literatura se encontra

inserida pode ter resultados trágicos, tanto para os autores (que supostamente perdem a

capacidade artística, como no primeiro romance) como para os leitores (que perdem o contato

com novos trabalhos, como no segundo).

18 “The irony is that Ka’s inspired poems never see the light of day. They are lost. They are described in prosaic

detail in the novel but cannot be reproduced.”

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A ansiedade de autoria que esses autores fictícios expressam [...] e o tipo literário de “morte do autor” que é realizada nessas ficções tem algo a ver com o lugar da literatura no mercado sociocultural do final do século XX e início do século XXI. [...] A derrota do autor acima descrita está impregnada da opressão particular de uma cultura consumidora historicamente contingente , com modos de produção, venda e compra de cultura, com o tipo de consciência que é ao mesmo tempo moldada e atendida pelas indústrias culturais, no capitalismo global do final do século XX. Ficcionalmente, os ideais de literatura e autoria dão lugar ao impulso das tecnologias culturais e comodificações que marcam a teoria e a prática da globalização do final do século XX. Não de forma irrelevante, a morte dos autores acima citados ocorre literalmente além de suas fronteiras, longe do confinamento e dos confortos de ‘casa’[...] (GUPTA, 2009a, p. 155-156, tradução nossa)19

Ainda sobre a morte do autor, e para entramos de forma mais objetiva na discussão a

respeito de nosso objeto de estudo, Gupta cita dois exemplos retirados da série de J. K. Rowling;

para ser mais preciso, do segundo livro da série, Harry Potter and the Chamber of Secrets

(1998):

[...] o personagem Gilderoy Lockhart é introduzido: um célebre autor bruxo, herói de seus próprios livros, consolidado na atenção do público e amplamente adorado e reverenciado. A reviravolta é que este autor, Gilderoy Lockhart, que tem o interesse do público, é um herói cuidadosamente inventado e irreal, e não tem nenhuma relação com a pessoa e com o escritor Gilderoy Lockhart, que não é nem um autor, nem um herói, porque suas histórias são roubadas e os atos que seus livros descrevem são feitos por outros. (GUPTA, 2009a, p. 158, tradução nossa)20

E, ainda respeito do tema, Gupta continua dizendo que:

A “morte do autor” ficcionalizada por Rowling tem obviamente afinidades com as de [...] Aidar e Pamuk, mas está mais concentrada na dinâmica do mercado. [...] Em Harry Potter e a Câmara Secreta também aparece o diário

19 “The anxiety of authorship that these fictional authors expres s […] and the kind of literary ‘death of the author’

that is performed in these fictions, has something to do with the place of literature in the late twentieth - and early

twenty-first-century socio-cultural marketplace. […] The defeat of the author described above is redolent with the

oppression of a particular historically contingent consuming culture, with modes of production and selling and

buying of culture, with the kind of consciousness that is both moulded and catered for by cultural industries, in

late twentieth-century global capitalism. Fictionally here the ideals of literature and authorship give way to the

thrust of cultural technologies and commodifications that marks the theory and practice of late twentieth -century

globalization. Not irrelevantly, the death of authors in the above occurs literally across boundaries, away from the

confines and comforts of ‘home’ […]” 20 “[...] the character Gilderoy Lockhart is introduced – a celebrated wizard author, hero of his own books, firmly

in the public eye and widely adored and revered. The twist is that this author Gilderoy Lockhart who is in the

public eye is a carefully constructed and unreal author-hero, and bears no relation to the person and writer Gilderoy

Lockhart, who is neither an author, it turns out, nor a hero, because his stories are stolen and the deeds his books

describe are enacted by others.”

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de T. [M.] Riddle: um livro também e um local da violação máxima da inocência, no qual os autores se tornam leitores e os leitores se tornam autores, local em que autores e leitores se encontram e mudam de lugar enquanto o texto muda incessantemente. Através dele, o autor e leitor sem escrúpulos Tom [Marvolo] Riddle (encarnação do maligno Voldemort) explora tanto a integridade do autor (“Levou muito tempo para a burrinha da Gina parar de confiar no diário” [ROWLING, 2000b, 262]) e a credulidade do leitor (“Respondi. Fui simpático, gentil. Gina simplesmente me adorou. [Ibid., 261]) para nefastos fins egoístas. (GUPTA, 2009a, p. 159, tradução nossa)21

Apesar de Gupta tratar da morte do autor, este não está, de fato, morto, como ele

mesmo nos faz perceber no último trecho acima: ele (o autor) troca de papéis e se encontra na

instabilidade, ora autor, ora leitor, assemelhando-se mais a um espectro, ocupando um estágio

temporariamente intermediário, indefinido.

Por esse motivo, iremos tratar neste trabalho essa nova posição do autor como a sua

exumação, pois, se estivesse apenas morto, não estaria aberto ao intercâmbio de papéis

enfatizado pelo próprio Gupta. Por mais que a visão romântica do autor possa estar, de fato,

morta em meio à indústria literária, ele ganha novos espaços para além dessa percepção e, até

mesmo, para além do simples fato de ser ele um agente escritor, criador.

O autor inserido nas novas estruturas da indústria literária e cultural (de modo ainda

mais especial, o autor de best-seller) toma também o papel de agente do mercado, de

celebridade, de peça da indústria, de rosto do produto. Ou seja, mais próximo a um corpo

exumado (o qual pode ser visto, contemplado, manipulado, mas que, ainda assim, carrega em

si as marcas da morte, da deterioração), do que simplesmente morto e enterrado, esquecido sob

as pás de terra dos formalistas.

[...] autores também são fabricados de forma constante e explícita [...] A extensão até onde as imagens e aparições públicas dos autores são agora criadas por entidades corporativas e seus agentes (agentes literários, editores, pessoas da mídia, anunciantes, designers de produtos e impulsionadores de mercadorias de vários tipos que trabalham em colaboração) para atrair certos leitores e suas expectativas é uma área ainda pouco explorada. (GUPTA, 2009a, p. 167, tradução nossa)22

21 “Rowling’s fictionalized ‘death of the author’ has obviously affinities with those of […] Aidar and Pamuk, but

is more squarely focused on the mechanics of the market. […] In The Chamber of Secrets also appears T. M.

Riddle’s diary – a book, too, and the site of the ultimate violation of innocence, where authors become readers and

readers authors, where authors and readers meet and change places while the text shifts ceaselessly. Through it the

unscrupulous author and reader Tom Marvolo Riddle (incarnation of the evil Voldemo rt) exploits both the integrity

of the author (‘It took a very long time for stupid Ginny to stop trusting her diary’ [Rowling 1998, 229]) and the

credulity of the reader (‘I wrote back, I was sympathetic, I was kind. Ginny simply loved me’ [ibid., 228]) for

nefarious self-serving ends.” 22 “[...] authors are also constantly and explicitly manufactured […] The degrees to which authors’ public images

and appearances and statements are now engineered by corporate entities and their agents (literary agents,

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Não se trata, pois, da audácia de uma negação ou de uma resposta à morte do autor,

de Roland Barthes, mas uma constatação de que se trata, hoje, de um mecanismo da indústr ia,

e de uma escolha do leitor (público ou crítico) e que cabe a ele arcar com as consequências de

sua escolha.

[...] a presunção de intencionalidade permanece no princípio dos estudos literários, mesmo entre os antiintencionalistas mais extremados, mas a tese antiintencional, mesmo se ela é ilusória, previne legitimamente contra os excessos da contextualização histórica e biográfica. A responsabilidade crítica, frente ao sentido do autor, principalmente se esse sentido não é aquele diante do qual nos inclinamos, depende de um princípio ético de respeito ao outro. Nem as palavras sobre a página nem as intenções do autor possuem a chave da significação de uma obra e nenhuma interpretação satisfatória jamais se limitou à procura do sentido de umas ou de outras. Ainda uma vez, trata-se de sair da falsa alternativa: o texto ou o seu autor. Por conseguinte, nenhum método exclusivo é suficiente. (COMPAGNON, 1999, p. 95-96)

No entanto, ainda que caiba ao leitor fazer suas escolhas, ou, pelo menos, parte delas,

cada vez mais se torna difícil desprender o autor ou seu contexto do texto literário, sobretudo

quando se tem uma rede de informações e de contatos tão vasta e imediata como temos hoje a

nosso dispor. É isso que nos deixa ainda mais vulneráveis aos fatores extratexto, talvez, como

nunca antes estivemos.

Com as facilidades tecnológicas da pós-modernidade, cada vez mais nos vemos

tentados a conhecer a cara por trás do texto. Não satisfeitos, ainda queremos segui-la em nossas

redes sociais, curtir suas fotos, seguir seus passos além do ofício de escritor, conhecer seus

gostos e suas crenças (SOUZA, 2011).

O avanço da sociedade do espetáculo e da cultura de massa possibilitou o reconhecimento de diferentes modelos de valorização estética, da inserção do cotidiano como sendo o pequeno mundo íntimo das pessoas comuns. Trata-se de experiências da comunidade multicultural que se forma atualmente diante das telas do computador ou da TV. (SOUZA, 2011, p. 32-33)

Não se trata de julgar o valor de uma interpretação ou de uma crítica que tenha algumas

de suas bases na figura do autor e/ou em seu contexto, mas, sem dúvida, na constatação dessa

possibilidade interpretativa.

publishers, media persons, advertisers, product designers and commodity pushers of various sorts working in

collaboration) to appeal to certain readers and their expectations is an as yet underexplored area.”

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Não é pelo fato de Roland Barthes ter atestado a morte do autor em 1968 que isso

impede os presentes leitores deste trabalho, por exemplo, de pesquisarem a respeito de J. K.

Rowling (caso já não o tenham feito) para conhecerem seu rosto, sua história, sua vida

acadêmica, sua fortuna..., ainda que se trate de um texto acadêmico. Imaginem, pois, o quão

maior deve ser o interesse por essas questões aos apaixonados leitores de seus livros.

Uma das grandes, porém, subestimadas influências do mercado sobre a literatura,

sobretudo no que diz respeito ao fenômeno best-seller, é a formação de autores exumados.

Quase que por via de regra, os autores de best-seller são alçados às listas de pessoas mais

influentes do mundo por revistas como Times e Forbes, simplesmente pelo fato de atingirem

números expressivos de vendas.

Além disso, esses autores frequentemente estampam grandes jornais como The New

York Times e The Guardian, concedendo entrevistas a rádios, canais de televisão e sites de

grande apelo do público. O autor de best-seller se torna, então, uma celebridade, o que é

consequência, e, paradoxalmente, uma das causas da criação de uma comunidade global, a qual

não se centra apenas nos livros, mas, também, na figura do autor.

[N]ão é apenas que a literatura representa os efeitos de tal conectividade global, mas ela própria é afetada por essa conectividade em seus modos expressivos, suas formas textuais, suas recepções como literatura. Tais conceitos como autoria literária, leitores e textualidade em si são tensionados e testados em novas formas, de modo que, provavelmente, a literatura, por assim dizer, cresce em alcance. (GUPTA, 2009a, p.53, tradução nossa)23

Como não poderia se esperar de outra forma, J. K. Rowling figura entre os principa is

autores de best-sellers tratados como celebridades pela indústria do entretenimento (caso não

seja ela a figura principal no meio literário e a maior evidenciação desse acontecimento).

Esse processo de fabricação dos autores de acordo com os contextos do mercado é, obviamente, coexistente com a fabricação de leitores. A produção de um é, de certo medo, a produção do outro, e ambos se dão de maneiras que não estão registradas dentro da literatura e dos estudos literários e que, ainda assim, com certeza influenciam a busca de ambos não apenas de maneira material, mas também em níveis textuais e interpretativos. (GUPTA, 2009a,

23 “[...] it is not merely that literature represents the effects of such global connectedness, but that it is itself affected

by that connectedness in its expressive modes, its textual forms, its receptions as literature. Such concepts as

literary authorship, readership and textuality themselves are stretched and tested in new ways, so that arguably

literature, so to speak, grows in scope.”

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p. 167, tradução nossa)24

Colecionando entrevistas a programas de televisão como The Oprah Winfrey Show,25

entrevistas a jornais impressos e revistas, reportagens e séries especiais, J. K. Rowling é o

retrato dessa nova posição ocupada pelo autor, sobretudo por aqueles que atingem expressivos

números de venda, tanto de livros como de subprodutos, ou, até mesmo, como no caso de

Rowling, de sua própria imagem.

Aliás, o próprio nome da autora que estampa as capas dos livros de Harry Potter

mundo afora levou em conta sua figura como autor-a:

Em junho de 1997, o primeiro livro com as aventuras de Harry Potter foi lançado na Inglaterra. A Bloomsbury sugeriu que a escritora usasse as iniciais em vez do primeiro nome, por achar que leitores meninos poderiam ter preconceito em relação a um livro escrito por uma mulher. Como só tem um nome próprio, Joanne resolveu acrescentar a letra “K”, tirada do nome de sua avó favorita, Kathleen. Nasceu, assim, J. K. Rowling. (MONTELEONE, 2004)

Além de seu papel como autora da série, J. K. Rowling ganhou seu espaço como

celebridade na mídia e peça da indústria do entretenimento, fazendo com que seu nome, por si

só, seja capaz de conferir credibilidade, de mobilizar parte expressiva da imprensa e do público,

além, é claro, de movimentar a indústria em torno de seu nome.

Para o lançamento do filme Animais fantásticos e onde habitam, em 2016, a promoção

do filme se baseou no nome da autora para aumentar a expectativa do público e conferir à

produção a ideia de qualidade. Os trailers e pôsteres do filme traziam os dizeres: “Writer J. K.

Rowling invites you to return to the wizarding world”, ou “J. K. Rowling, criadora de Harry

Potter, convida você a explorar uma nova era no mundo bruxo”, enfatizando a participação da

autora na produção cinematográfica.

O autor que é comercializável, em outras palavras, é uma superfície pura, uma imagem, uma construção fictícia para satisfazer as demandas existentes do mercado e os gostos do consumidor, e tudo isso a indústria do livro poderia capitalizar e os meios de comunicação de massa poderiam acompanhar.

24 “This process of manufacturing authors according to market contexts is, obviously, coeval with manufacturing

readers. The production of one is in some sense the production of the other, and both unravel in ways that are

unregistered within literature and literary studies and yet surely influence the pursuit of both not just in material

ways but at textual and interpretative levels too.” 25 Talk-show de maior audiência nos Estados Unidos. “Oprah Winfrey encerra seu programa após 25 anos no ar”.

Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/televisao,oprah-winfrey-encerra-seu-programa-apos-25-

anos-no-ar,724410. Acesso em: 31 de maio de 2017.

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39

(GUPTA, 2009a, p. 158, tradução nossa)26

Em 2016, uma cadeira de carvalho usada por J. K. Rowling para escrever os dois

primeiros livros da série Harry Potter foi leiloada em Nova Iorque por US$ 394 mil, cerca de

R$ 1.4 milhão na época (O GLOBO, 2016). Um manuscrito de Os contos de Beedle, O Bardo

(2007), escrito pela autora, foi leiloado em Londres pelo valor de £1.95 milhão, cerca de US$

3,98 milhões, ou exorbitantes R$ 7 milhões na época (ESTADÃO, 2007). E, por falar em

números fora da órbita, em 2006, o asteroide 43844 (NASA, s.d.) foi batizado de Rowling em

homenagem à autora de Harry Potter.

A figura do autor em uma comunidade global tão extensa e plural, como no caso de

Harry Potter, torna-se, também, se não um personagem dos livros, certamente um personagem

do fenômeno: a figura humana por trás do texto, da história, da marca. Uma vez que os

personagens e a história em si não podem ser atingidos, a não ser virtualmente, e ao passo que

o livro deixa de ser a única necessidade de posse ou de consumo, ter uma figura na qual o leitor

possa recorrer de forma mais concreta (em sua lista de seguidores no Twitter, por exemplo) é

altamente tentador.

Desde os primórdios da arte e do reconhecimento do artista como agente criador da

obra, seu público sempre se interessou em manter, de alguma forma, um contato que fosse além

daquele estabelecido pela obra: tomemos como exemplo as inúmeras cartas enviadas às editoras

e aos autores ao longo dos anos. Apenas a plataforma e a efetividade desse contato mudaram,

mas a proposta e o sentimento por trás desse contato continuam os mesmos, e ainda mais

acentuados nos dias de hoje.

A necessidade de uma figura na qual um grupo de pessoas possa se organizar ao redor

e que sirva de um ponto de referência está presente nas mais diversas comunidades, desde as

religiosas às políticas, dos movimentos sociais à economia internacional. Não seria diferente

em uma comunidade global tão vasta como a comunidade de leitores e fãs de Harry Potter.

De seus gostos pessoais às suas ideologias políticas, J. K. Rowling provoca uma

comoção global, seja trocando a foto de perfil em suas redes sociais ou tuitando uma crítica à

campanha de um dos candidatos republicanos à Casa Branca, o bilionário Donald Trump, em

2016, com referências aos livros (RHODAN, 2015). Ou seja, referências compartilhadas por

26 “The author that is marketable, in other words, is a pure surface, an image, a fictional construct to fulfil

existing market demands and consumer tastes, which the book industry could capitalize on and the mass media

could play to.”

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sua comunidade global e de repercussão mundial em diversos e respeitáveis meios de

comunicação, como o site da Time.

Esse último exemplo evidencia o poder e a amplitude alcançados pelo fenômeno no

que diz respeito à criação e manutenção de sua comunidade global por meio da figura do autor.

O comentário de Rowling no Twitter só faz sentido e se torna relevante quando se leva em conta

a referência feita por ela em relação a um de seus personagens, no caso, o maior bruxo das

trevas de todos os tempos e o principal vilão da história, Lord Voldemort.

Ainda que a interpretação de seu comentário dependa de um conhecimento da história

(a escritora afirmou que Trump era pior que Voldemort), sua repercussão foi mundial, em

jornais e sites de notícias. Essa ação pressupõe a ideia de que o comentário de Rowling seria

entendido pelos leitores dos jornais e os internautas dos sites de notícia, tamanha a comunidade

global de leitores e fãs de Harry Potter, bem como sua referência cultural.

Figura 1 - BBC Newsbeat: "É por isso que as pessoas estão chamando o empresário americano Donald Trump de Lord

Voldemort" / J.K. Rowling: “Que horrível. Voldemort não era tão ruim quanto.”

Sendo assim, não apenas a história e os personagens se tornam uma referência de

cultura pop, mas, também, a autora. Não bastassem tomar como certo o pressuposto

conhecimento das referências presentes na história (no caso, o conhecimento do vilão

Voldemort), as agências de notícias e seus editores acreditaram que o comentário de Rowling

fosse, de alguma forma, relevante (sobretudo em um assunto tão importante como a sucessão à

Casa Branca). Dessa forma, Rowling deixa de ser simplesmente a autora de Harry Potter para

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se tornar uma referência cultural ela mesma, seja dentro ou fora do fenômeno.

A autor(idade) de Rowling [...] encara os leitores na capa de cada um dos livros de Harry Potter, em todas as resenhas, entrevistas, todos os meios de cobertura da mídia. É perverso não levar em conta o autor. Compreensivelmente, o fenômeno Harry Potter inclui uma tempestade perfeita de interesse no autor: biografias admiráveis de Rowling estão crescendo constantemente em livrarias, entrevistas são publicadas em quantidade, ela é homenageada por várias instituições, o seu estatuto autoral é quantificado não apenas pelo prestígio, mas por seu valor financeiro, dificilmente uma resenha não mencionou as circunstâncias em que os primeiros livros de Harry Potter foram publicados (mãe solteira no auxílio-desemprego resume a imagem ainda que não inteiramente exata). Suas declarações sobre os livros de Harry Potter são tomadas como evangelho; ela é homenageada por crianças bem como por adultos. O autor foi incorporado ao fenômeno Harry Potter. Assim como os leitores, sem saber, se tornam participantes do fenômeno de Harry Potter, eles estão dentro do fenômeno mais do que em qualquer distância analítica, e Rowling também está, como autora. (GUPTA, 2009b, p. 33-34, tradução nossa)27

As palavras de Suman Gupta servem tanto para a justificativa deste capítulo, destinado

à figura do autor (J. K. Rowling, especificamente), como para a justificativa do capítulo

seguinte, o qual trata justamente da participação dos leitores e fãs na criação e manutenção da

comunidade global de Harry Potter.

O fenômeno Harry Potter e sua comunidade global de leitores e fãs, bem como suas

características como referência de bem cultural e de consumo fazem com que não apenas a

literatura e o livro sejam colocados em novas perspectivas, mas, também, as figuras do autor e

do leitor, assim como todos os outros envolvidos na criação e manutenção do fenômeno ; ou

seja: “aqueles outros criadores invisíveis que moldaram os livros juntamente com Rowling (os

designers/ilustradores, editores, anunciantes/publicitários, etc.)” (GUPTA, 2009b, p. 33,

tradução nossa). 28

É inegável o fato de que a obra sobrevive à intenção do autor, mas, se, por escolha ou

27 “Rowling’s author-ity […] stares readers in the face on the cover of every one of the Harry Potter books, in

every review, interview, every bit of media coverage. It is perverse not to take the author in account.

Understandably, the Harry Potter phenomenon includes a perfect storm of interest in the author: admiring

biographies of Rowling are cropping up steadily in book shops, interviews are published in quantity, she is

honoured by several institutions, her authorial status is quantified not just by prestige but by her financial worth,

hardly a review has failed to mention the circumstances in which the first Harry Potter books were published

(single mother on the dole, sums up the apparently not entirely accurate picture). Her statements on the Harry

Potter books are taken as gospel; she is honoured by children and adults alike. The author has been in corporated

into the Harry Potter phenomenon. Just as unthinking readers become participant in the Harry Potter phenomenon,

are within the phenomenon rather than at any analytical distance, so too is Rowling as the author.” 28 “[...] those other invisible creators who shape those books with Rowling (the cover designers, publishers,

advertisers, etc.)”

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não, o leitor deixar se influenciar pelo autor ou pelo contexto no qual ele produziu o texto

literário, sua leitura certamente sofrerá a intervenção do contexto ou, até mesmo, do próprio

autor diretamente.

J. K. Rowling é, certamente, o maior exemplo dessa intervenção. Seja respondendo a

questões de seus seguidores no Twitter ou por meio da plataforma de leitura digital Pottermore,

a autora frequentemente revela segredos de seus livros, influenciando os desdobramentos da

história, bem como mantendo o interesse do público.

Por meio de sua conta oficial no Twitter, Rowling responde diretamente aos

comentários dos fãs e às perguntas dos leitores a respeito da série. Com esse contato direto e

recorrente com os fãs e leitores de Harry Potter, J. K. Rowling é sempre notícia por revelar

segredos e curiosidades da série e de seus personagens que não tenham sido contemplados pelos

livros. Um exemplo foi a notícia da autora de que o filho mais velho de Harry Potter havia sido

escolhido para a Grifinória (uma das casas da escola de magia).

Figura 2 – “Acabei de escutar que Tiago S. Potter foi selecionado (para a surpresa de ninguém) para a Grifinória. Teddy

Lupin (Monitor da Lula-lufa) está desapontado."

Outro exemplo que obteve grande repercussão entre os leitores e fãs da série, foi a

justificava dada por Rowling para o nome do segundo filho de Harry, dentre outras

interferências da autora na interpretação de acontecimentos da série e curiosidades a respeito

do mundo bruxo criado por ela.

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Figura 3 – "Homenageando Snape, Harry esperava, em seu coração, que ele também fosse perdoado. As mortes na Batalha

de Hogwarts iriam assombrar Harry para sempre."

Figura 4- "Harry escolheu perpetuar os nomes das duas pessoas que não tinham ninguém em suas famílias para fazê-lo."

Figura 5- “Snape não morreu por 'ideais'. Ele morreu na tentativa de expiar sua própria culpa. Ele poderia ter fugido em

qualquer momento para se salvar, mas ele escolheu não contar a Voldemort que a carta cometia um erro fatal visando

Harry. O silêncio de Snape garantiu a vitória de Harry.”

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Figura 6 - "Não há mensalidades [em Hogwarts]! O Ministério da Magia cobre os gastos de todo a educação mágica!"

Além dessas e outras revelações, em 2007, ano de lançamento do último livro da série,

Rowling revelou aos fãs de Harry Potter que um dos principais personagens da série e um dos

bruxos mais poderosos de todos os tempos era gay. Alvo Dumbledore, diretor da Escola de

Magia e Bruxaria de Hogwarts, personagem mais poderoso e respeitado da série, passou por

todos os livros sem transparecer ao leitor ou ao público dos filmes sua sexualidade. Ou, como

noticiado pelo site de entretenimento da Folha de São Paulo: “Apesar da autora ter mencionado

isso em entrevistas, Dumbledore nunca ‘saiu do armário’ na série” (FOLHA, 2015).

O fato, inclusive, foi amplamente noticiado pela imprensa mundial nos sites dos

noticiários mais respeitados do mundo, como no site da BBC News sob a manchete: “JK

Rowling outs Dumbledore as gay” (BBC, 2007). Além da agência de notícias britânica, o site

da Time e de respeitados jornais como The Telegraph, The Guardian, The New York Times,

dentre outros ao redor do mundo, noticiaram o fato como se este tivesse relação com uma pessoa

pública de grande prestígio em nossa sociedade, isso sem contar a comoção causada nas redes

sociais após a revelação da autora.

Quando questionada no Twitter por um leitor que afirmou não conseguir ver

Dumbledore como gay, a resposta de Rowling movimentou a redes sociais e foi amplamente

compartilhada por seus seguidores.

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Figura 7- "Talvez porque pessoas gays se pareçam com... pessoas?"

É preciso ainda ressaltar que essa comoção acerca da sexualidade do diretor de

Hogwarts permanece ainda hoje nas redes sociais, com a apropriação da imagem de

Dumbledore por comunidades LGBTQ+, sobretudo pelos fãs da série. Mas, nem todos

comemoraram a atitude da autora. Algumas pessoas nas redes sociais e alguns ativistas gays

criticaram o fato de Rowling ter revelado a sexualidade de um personagem que poderia cair no

estereótipo dos personagens gays na cultura popular.

Ao mesmo tempo que Rowling deu enorme destaque em sua história a um personagem

do qual sua sexualidade não fazia a mínima diferença (pois isso não é revelado nos livros,

apenas após a declaração de Rowling é possível estabelecer essa conexão no último livro da

série), ela também correu o risco de reduzir tal personagem tão importante para o desenrolar da

história ao simples fato de ele ser gay.

É preciso destacar que a autora fez tal revelação ao ser indagada por um fã a respeito

da vida amorosa do personagem, e não por meio da própria série. Ainda que haja um curto

trecho em Harry Potter e as Relíquias da Morte (2007) no qual é tratada a relação de

Dumbledore com seu amor da adolescência (Gerardo Grindelwald29), essa relação entre os

personagens não é exposta no texto como uma relação amorosa. Apenas após a revelação de

Rowling é possível estabelecer uma relação com a orientação sexual do personagem. Ou seja,

um fato suplementar ao texto, o qual influencia diretamente na interpretação dos leitores e nos

desdobramentos da história por influência direta da autora. E a influência de Rowling nesse

assunto, em particular, não se resume apenas às declarações em entrevistas ou às respostas aos

seus fãs.

29 Poderoso bruxo das trevas derrotado por Dumbledore em uma batalha épica.

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Responsável pelo roteiro de Animais fantásticos e onde habitam30 (Warner Bros.,

2016), o site da Time noticiou que a autora trataria de forma aberta a sexualidade de Dumbledore

na sequência do primeiro filme (McCLUSKEY, 2016). Ou seja, um diálogo transmídia

(JENKINS, 2009): um roteiro cinematográfico influenciando os desdobramentos da leitura (dos

novos fãs) e da releitura (dos antigos fãs) de uma série literária.

Entretanto, a sexualidade de Dumbledore não foi a única intervenção de Rowling em

sua história, mesmo após a publicação do último livro da série em 2007. São vários os exemplos

da interferência da autora na recepção de sua obra com informações suplementares ao texto ,

como as já citadas.

J. K. Rowling é notícia recorrente por seu contato com os leitores e fãs em suas redes

sociais, sobretudo em sua conta oficial no Twitter. É por meio dela que a autora responde às

indagações de seus seguidores a respeito de aberturas na história ou pontos não explicados ou

contemplados pelo texto (como a vida dos personagens após o encerramento da série, uma vez

que se trata de uma obra inacabada).

A história de sete volumes se encerra sem um fim: “Tudo estava bem.” (ROWLING,

2007, p 590). Os personagens continuam suas vidas além das páginas dos livros e o mundo

mágico de J. K. Rowling se mantém vivo em seu próprio curso, sobretudo como referência

cultural a uma multidão de leitores e fãs.

[...] O trem começou a se deslocar, e Harry acompanhou-o, olhando o rosto magro do filho já iluminado de excitação. Continuou a sorrir e acenar, embora tivesse a ligeira sensação de ter sido roubado ao vê-lo se distanciando dele...

O último vestígio de vapor se dispersou no ar de outono. O trem fez uma curva, a mão erguida de Harry acenava adeus.

– Ele ficará bem – murmurou Gina. Ao olhá-la, Harry baixou a mão distraidamente e tocou a cicatriz em

forma de raio em sua testa. – Sei que sim. A cicatriz não incomodara Harry nos últimos dezenove anos. Tudo

estava bem. (ROWLING, 2007, p. 590)

Fora dos sete livros da série, Rowling manteve seus personagens vivos, os quais

ganharam profissões após o último ano letivo em Hogwarts, construíram famílias e,

anualmente, completam aniversário. Todas essas são, obviamente, informações dadas pela

própria autora e após o encerramento da série (o que evidencia sua intervenção na obra e, ao

mesmo tempo, a mantém inacabada, pois esse encerramento se deu apenas na série de livros

30 Inicialmente, uma trilogia cinematográfica do mundo mágico criado por Rowling, a qu al conta a história de

eventos anteriores aos narrados na série Harry Potter.

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impressos).

Além das páginas dos livros, Rowling mantém a história inacabada em suas

declarações e em seus tweets que mobilizam a comunidade global de Harry Potter e parte

significativa da imprensa, a qual (é preciso destacar) ainda trata as questões da autora e de sua

obra com relevância editorial. O site do jornal britânico The Telegraph, por exemplo, fez uma

lista com 17 vezes em que J. K. Rowling chocou os fãs de Harry Potter com suas revelações

(VINCENT, 2016).

Ainda, anualmente, no aniversário da Batalha de Hogwarts (trecho do último livro da

série no qual muitos personagens queridos pelo público foram mortos), Rowling se desculpa

pela morte de um personagem por meio de sua conta no Twitter, fazendo com que seus leitores

e fãs já aguardem ansiosamente por seu pronunciamento como a pessoa revestida de autoridade

sobre a obra e, por consequência, revestida também de culpa pelas mortes.

Figura 8 - "Mais uma vez, é o aniversário da Batalha de Hogwarts, então, como prometido, eu devo me desculpar uma

morte. Este ano: Remo Lupin."

Figura 9- "No interesse da total honestidade, eu gostaria de confessar que eu não tinha decidido matar Lupin até eu ter

escrito a Ordem da Fênix."

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Figura 10- "Arthur sobreviveu, então Lupin tinha que morrer. Me desculpem. Eu não me diverti fazendo isso. A única vez

que meu editor me viu chorar foi sobre o destino de Teddy."

Seja pelas redes sociais ou pela plataforma de leitura Pottermore (na qual a autora

escreve textos inéditos a respeito de seu mundo mágico e dos personagens já conhecidos do

público), Rowling conseguiu manter o interesse de seu público em sua vida pessoal (seus gostos

e posicionamentos políticos, por exemplo) e em sua história, a qual se mantém viva por sua

presença e intervenção direta e incisiva como autora.

Por fim, para encerrarmos o texto dedicado aos novos e revisitados espaços ocupados

pelo autor na produção e recepção literária (sobretudo no fenômeno Harry Potter), retornemos

ao início deste subcapítulo, no qual tivemos a oportunidade de contar a pequena história do

repentino sucesso editorial de um romance policial inglês.

Essa curta passagem que abre o texto dedicado à controversa e polêmica discussão a

respeito do autor evidencia muito bem sua exumação (defendida neste trabalho), se não para os

formalistas, certamente para o público e, até mesmo, para a crítica literária.

No despretensioso e aparentemente deslocado trecho a abrir as discussões sobre o

autor, podemos evidenciar um dos maiores exemplos da exumação daquele que escreve pelo

poder (ou influência) de um nome, sem sequer levarmos em conta o texto ou, até mesmo, a

história que é contada no livro.

O relato breve e sem muitos detalhes do romance policial de sucesso repentino diz

respeito ao livro de Robert Galbraith, intitulado The Cuckoo’s Calling (2013), traduzido para o

Brasil como O Chamado do Cuco (2013), pela editora Rocco. O livro publicado na Inglaterra

em abril de 2013 havia vendido, até meados de julho do mesmo ano, 1.500 cópias, debutando

em críticas satisfatórias, porém, modestas em jornais britânicos.

No entanto, em menos de um mês, o livro saltou da 4709ª posição para o primeiro

lugar da lista de best-sellers da gigante do comércio eletrônico, a Amazon.com. Isso depois da

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revelação, em 13 de julho de 2013, de que Robert Galbraith era, na verdade, o pseudônimo de

J. K. Rowling (COX, 2013), o que rendeu críticas em grandes jornais, sites e revistas ao redor

do globo, exemplificando o argumento que, quanto à performance literária, sobretudo quando

se pensa em uma comunidade global de leitores, o autor não está completamente morto. Ele é

capaz, por si só, no exemplo de Rowling, de causar comoção em uma parcela significativa de

leitores e fãs, movimentando parte da indústria cultural, além, é claro, da própria crítica.

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CAPÍTULO 2 – “POTTERMORE” AND MORE

“Claro que está acontecendo em sua mente, Harry,

mas por que isto significaria que não é real?”

Alvo Dumbledore (J. K. Rowling)

Desde Mallarmé (1945), o qual afirmava que o livro existia por si só, como volume,

impersonificado, ou seja, sem a necessidade sequer da leitura, as teorias que dizem respeito à

relação entre livro e leitor evoluíram, nos tempos atuais, em direção a um vínculo de

dependência mútua, mais do que a um domínio do livro sobre o leitor ou vice-versa; isso, ainda,

sem falarmos do papel do autor nessa relação entre o texto e sua leitura, como tratado no

capítulo anterior.

Afirmar que o texto literário é totalmente isento da intenção do autor é uma visão

demasiado radical. Quando um escritor escolhe uma palavra em detrimento da outra, quando

constrói as personalidades e características dos seus personagens, quando faz escolhas de

espaços e ações, é a partir de uma decisão refletida e informada que faz essas escolhas.

É muito óbvia a certeza de que o texto não se materializa por si só, o que o deixa

vulnerável à ação do autor, mesmo que este tente ao máximo anular sua voz (o que, por

consequência, teria repercussões estilísticas no próprio texto literário). No entanto, também

seria igualmente radical colocar o autor como o principal ou único fator de significação da obra,

assim como o é quando se privilegia apenas o texto, o qual existe materialmente, mas apenas

carrega significado no ato de leitura, ou seja, apenas com a presença de um leitor, seja o autor

(primeiro leitor de sua obra) ou o público.

Uma vez que a criação só pode encontrar sua realização final na leitura, uma vez que o artista deve confiar a outrem a tarefa de completar aquilo que iniciou, uma vez que é só através da consciência do leitor que ele pode perceber-se como essencial à sua obra, toda obra literária é um apelo. Escrever é apelar ao leitor para que este faça passar à existência objetiva o desvendamento que empreendi por meio da linguagem. (SARTRE, 2004, p. 39)

As radicalizações nos estudos literários talvez sejam a maior problemática e o principa l

fator de controvérsia: fugir de um ponto na teoria para se atracar a outro tão delimitado e

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delimitador quanto o primeiro. Fugir, por exemplo, do humanismo e do individualismo do autor

para passarmos ao humanismo e individualismo do leitor.

Essas radicalizações quanto aos agentes da literatura servem apenas para uma

discussão elíptica e, ainda assim, polarizada, calcada na necessidade de solidez e fixação dos

agentes, como se fosse da natureza humana e de suas relações a rigidez, a previsibilidade

imutável. Dessa forma, a teoria estaria apenas substituindo as peças no tabuleiro, sem levar em

conta o jogo.

É certo que a morte do autor traz, como consequência, a polissemia do texto, a promoção do leitor, e uma liberdade de comentário até então desconhecida, mas, por falta de uma verdadeira reflexão sobre a natureza das relações de intenção e de interpretação, não é do leitor como substituto do autor de que se estaria falando? (COMPAGNON, 2014, p. 52)

Devido ao recente contato entre leitor e autor e o sucesso que o best-seller alcança,

esses agentes passam por um certo deslocamento: o alcance do autor se torna maior, bem como

a participação do leitor, não necessariamente no processo de escrita, mas na recepção, no

processo de consumo da obra (GUPTA, 2009b). O leitor de best-sellers se sente participante do

fenômeno, e o é, de fato, pois é o principal responsável por sua consolidação.

Durante muito tempo, o historicismo e o formalismo excluíram o leitor de qualquer

relação com a obra. Segundo os New Critics americanos, a obra seria “uma unidade orgânica

autossuficiente, da qual convinha praticar uma leitura fechada” (COMPAGNON, 2014, p. 138).

Essa perspectiva, obviamente, não abre espaço para o leitor, a não ser como mera peça de uso

por parte da obra. A leitura seria, dessa forma, objetiva, fechada, planejada e controlada, sem a

necessidade de ceder qualquer espaço ao leitor. Em outras palavras, sua interpretação estaria

unicamente calcada no desejo do texto.

Essa resistência ao leitor perdurou por muitos anos, e, ainda hoje, perdura entre muitos

teóricos e críticos. Proust foi um dos primeiros dentre os de prestígio crítico e acadêmico a se

posicionar a favor da leitura (e de forma muito contundente). Contrariando as ideias de Lanson

(1925), o qual afirmava uma superioridade do texto em relação à sua leitura, Proust afirmava

que a leitura se constituía de uma experienciação, o que, obrigatoriamente, recorreria à figura

do outro, no caso, a figura do leitor.

Em O tempo redescoberto (2012), Proust sustenta a ideia de que as impressões acerca

da leitura de um livro e do mundo ao redor, do cenário e da experiência de leitura é que ficam

em nossa memória, e não o livro em si. Dessa forma, não se trata do texto, mas da interação

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estabelecida entre o texto e seu leitor, ou seja, a leitura.

Por mais que recordemos com riqueza de detalhes a história e, até mesmo, o estilo de

escrita de um texto literário (mesmo daqueles que gozam de nossa total predileção), jamais

seríamos capazes de recuperar o próprio livro, o texto em si, mas, certamente, os pontos

principais da leitura (ou aqueles que, de alguma forma, se tornaram particulares para o leitor).

Além, é claro, das lembranças que guardamos dos momentos de leitura, o que parece

razoavelmente lógico.

Contudo, ainda assim, alguns teóricos tentaram estabelecer formas de interpretações

universais, que não levassem em conta a individualidade do leitor, como se o texto fosse um

monumento, um estatuto, uma partitura estritamente seguida e compreendida por todos aqueles

que fizessem sua leitura.

Lanson, por exemplo, mesmo após as postulações de Proust, acreditava na existênc ia

de reações ao texto que não fossem absolutamente inclassificáveis ou de todo singulares. Ele

acreditava que pudesse haver um fio interpretativo do qual os leitores não poderiam se

desprender (ainda que houvesse alguns espaços reservados para as suas respostas individuais à

leitura), como se determinados pontos interpretativos não pudessem ser deixados de lado ou

simplesmente desviados. No entanto, apesar das tentativas de Lanson, a visão individual de

leitura defendida por Proust ganhou ainda mais força, pois não houve estudos convincentes que

afirmassem a existência de um fator comum e permanente na interpretação dos textos.

Os estudos da recepção, por sua vez, têm se interessado cada vez mais pelo efeito de

uma obra produzido no leitor, seja ele individual ou coletivo, ativo ou passivo, tomando dessa

forma o texto como um estímulo ao leitor, mais do que uma imposição.

O objeto literário não é nem o texto objetivo nem a experiência subjetiva, mas o esquema virtual [...] feito de lacunas, de buracos e de indeterminações. Em outros termos, o texto instrui e o leitor constrói. Em todo texto os pontos de indeterminação são numerosos, como falhas, lacunas, que são reduzidas, suprimidas pela leitura. (COMPAGNON, 2014, p.147)

Atualmente, também, é esse efeito que leva os recentes estudos da recepção a se

interessarem pela resposta dos leitores a essa interação estabelecida entre o leitor, o texto e o

contexto, ou seja, sua resposta à leitura.

A análise da recepção visa ao efeito produzido no leitor, individual ou coletivo, e sua resposta [...] ao texto considerado como estímulo. Os trabalhos desse gênero se repartem em duas grandes categorias: por um lado, os que dizem respeito à fenomenologia do ato individual de leitura [...], por outro

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lado, aqueles que se interessam pela hermenêutica da resposta pública ao texto. (COMPAGNON, 2014, p. 145)

Os estudos da recepção (Iser, 1972, 1976; Jauss, 1978, 1988) são, pois, herdeiros dos

estudos da estética fenomenológica de Roman Ingarden (1931), a qual coloca o texto em

interação com valores e normas extraliterários, como a política e a religião, por exemplo.

Fatores que influenciariam a leitura de um texto, uma vez que caberia ao leitor construir suas

compreensões baseado em suas próprias normas e em seus próprios valores e conhecimentos

anteriores à leitura. É o que Wolfgang Iser chamou de repertório, e Hans Robert Jauss de

horizonte de expectativa.

No entanto, essas mesmas normas e esses mesmos conhecimentos e valores do leitor

não estão estáticos e muito menos são imutáveis, muito pelo contrário: eles também são

modificados ou mantidos durante a própria leitura: “A leitura procede, pois, em duas direções

ao mesmo tempo, para frente e para trás” (COMPAGNON, 2014, p.146), ora retomando nossas

leituras passadas e o conhecimento e os valores adquiridos com elas, ora reformulando -os

durante o processo ou, até mesmo, inserindo novos modelos. “O sentido é, pois, um efeito

experimentado pelo leitor, e não um objeto definido, preexistente à leitura.” (COMPAGNON,

2014, p. 147).

Ainda na tentativa de reservar um espaço ao leitor e, ao mesmo tempo, justificar sua

inclusão nos estudos literários, surge, então, a imagem do leitor implícito. Este seria uma

“estrutura textual”, segundo a definição de Iser (1972), a qual serviria de modelo para o leitor

real. Ou seja, ainda no processo de produção, haveria a prefiguração de um receptor. Dessa

forma, o leitor real seria guiado pelo leitor implícito, ora sendo ativo (baseado em suas próprias

experiências de leitura), ora tomando sua posição passiva (baseado na estrutura textual, ou seja,

guiado pelo leitor implícito).

Esse pensamento de Iser (ainda que implicitamente voltado para a ação do autor, o

qual prefigura um leitor ideal para o seu texto) não deixa de fora da leitura aquilo que Ingarden

defendia: que a leitura se baseava em normas e conhecimentos prévios do leitor, e, muitos deles,

calcados em representações, normas e valores sociais extraliterários.

No entanto, a ideia de Iser ainda era muito voltada para a imagem do autor, segundo

seus críticos. “Sob a aparência do mais tolerante liberalismo, o leitor implícito, na verdade, só

tem como escolha obedecer às instruções do autor implícito, pois é o alter ego ou o substituto

dele” (COMPAGNON, 2014, p. 150).

Um desses críticos de Iser é o teórico americano Stanley Fish (1980), o qual levou em

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grande consideração a ideia da leitura baseada em pressupostos, normas e valores comunitár ios,

o que nos leva, agora, às comunidades interpretativas (as quais são baseadas em convenções,

códigos e ideologias compartilhadas por um grupo).

[A] comunicação ocorre somente dentro de um tal sistema (ou contexto, ou situação, ou comunidade interpretativa) e que a compreensão conseguida por duas ou mais pessoas é específica a esse sistema e determinada unicamente dentro dos seus limites [...] é somente em situações – com suas respectivas especificações quanto ao que interessa como fato, quanto ao que se pode dizer, quanto ao que será entendido como argumento – que somos solicitados a entender. (FISH, 1992, p. 192)

Após uma radicalização teórica, na qual Fish transferiu para o leitor toda a

responsabilidade em relação à significação, o crítico americano percebeu que passar toda essa

carga unicamente para o leitor era o mesmo que voltar ao passado, quando essa

responsabilidade era única e inteiramente do autor e, depois, do texto. Sendo assim, Fish optou

por “descartar” os três agentes de uma só vez: o autor, o texto e o leitor, e optou pela ideia de

“comunidade interpretava”, a qual seria responsável pela significação do texto, sem que se

tomasse, dessa forma, os agentes como objetos de estudo, mas, sim, todo o processo de

significação e os envolvidos nele.

Ou seja, como se um dos agentes não pudesse ser explicado (e entendido) sem a

presença do outro, uma vez que todas as partes do processo de significação e todos os agentes

se encontram interligados apenas no processo como um todo, e não quando se pensa de forma

a distingui- los em espaços reclusos e supostamente revestidos de valores (os quais assegurariam

uma posição de prestígio maior de um em relação a outro, o que vem sendo feito pela crítica e

pela teoria literária há décadas).

Nas comunidades interpretativas, o formalismo é, pois, anulado, da mesma forma que a teoria da recepção como projeto alternativo: não existe mais dilema entre partidários do texto e defensores do leitor, já que essas duas noções não são percebidas como concorrentes e são relativamente independentes. (COMPAGNON, 2014, p. 160)

Os críticos de Fish, no entanto, argumentaram a respeito do risco que se teria de cair

em um relativismo nos estudos literários, o qual, na prática, tornaria qualquer interpretação

válida. Porém, a teoria de Fish não se baseia em um relativismo, mas em contextos que

influenciam o entendimento de uma comunicação ou a interpretação de um texto.

O teórico americano, por sua vez, saiu em defesa de seu pensamento argumentando

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que não haveria a possibilidade de um relativismo que antes não fosse influenciado pela visão

de mundo do sujeito, como suas crenças, ou a ideia de certo ou errado, por exemplo. Ou seja,

esse suposto relativismo não partiria do sujeito, mas da comunidade interpretativa da qual ele

faz parte ou dos conhecimentos e pressupostos já adquiridos por ele dentro dessa comunidade

anteriormente ao enunciado ou ao texto.

Em outras palavras, enquanto o relativismo é uma posição que pode ser mantida por algumas pessoas, não é uma posição que possa ser ocupada por ninguém. Ninguém pode ser relativista, porque ninguém pode obter um tal distanciamento das suas próprias crenças e pressuposições até o ponto de conseguir que estas não tenham mais autoridades para ele do que as crenças e pressuposições mantidas por outros [...] O caso é que nunca há um momento em que uma pessoa não acredite em nada, em que a consciência seja inocente de toda e qualquer categoria de pensamento [...] (FISH, 1992, p. 204)

Ou seja, ninguém pode ser relativista, mas estar em uma posição relativista de acordo

com suas crenças e pressuposições diante de um contexto interpretativo. Ainda em resposta

direta a seus principais críticos (Abrams, 1977; Hirsch, 1976), os quais acusavam sua teoria de

ser calcada no solipsismo, Stanley Fish ressalta que:

[S]e, em lugar de agir por sua conta, os intérpretes agem como extensões de uma comunidade institucional, o solipsismo e o relativismo desaparecem como fatores a serem temidos porque eles não constituem modos possíveis de ser. Quer isso dizer que a condição requerida para que alguém seja solipsista ou relativista, a condição de ser independente de pressuposições institucionais e de ser livre para criar seus próprios objetivos e propósitos, nunca poderia realizar-se e, portanto, não há motivos para tratar de proteger-se contra ela. (FISH, 1992, p. 205)

Segundo Fish, essas comunidades interpretativas diferem umas das outras de acordo

com seus contextos. O exemplo utilizado por ele para defender seu conceito foi o contexto

universitário. Em seu polêmico artigo Is there a text in this class? (1992), Fish descreve a

comunicação real entre uma de suas alunas e um de seus colegas, também professor da Johns

Hopkins University, em Baltimore, nos EUA.

No primeiro dia do semestre, o colega de Fish foi abordado por uma aluna que lhe

perguntou: “Is there a text in this class?” (Tem um texto nesta aula?). Assumindo que a moça

estaria se referindo ao texto de leitura que seria utilizado no curso, o professor respondeu à

pergunta com o título do livro que os alunos deveriam ler: “Sim, é a Antologia Norton de

Literatura.” (FISH, 193, 1992). No entanto, após a resposta do professor, a aluna disse que não

se referia ao texto que seria lido na aula, mas ao texto no sentindo teórico.

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Dessa forma, Fish demonstra um exemplo de comunidade interpretativa. Tanto a

primeira interpretação da pergunta (a do professor) quanto a segunda interpretação da mesma

(a da aluna) só foram possíveis e coerentes porque ambos estavam incluídos em uma mesma

comunidade interpretativa. Ou seja, tanto o texto como objeto material (como inicialmente

entendido pelo professor) quanto o texto em seu conceito teórico (como a intenção da aluna em

sua pergunta) fazem parte de um mesmo universo contextual do qual os dois compartilham

conhecimentos: no caso, o primeiro dia de aula em uma universidade.

Com o advento da internet e, sobretudo, com a propagação das redes sociais em escala

global, o mundo virtual se tornou um local propício ao surgimento dessas comunidades

interpretativas, e das mais diversas. Nessas comunidades globais, seus membros compartilham

as mesmas ideias, os mesmos gostos, interesses e conhecimentos de uma forma menos abstrata

que nas comunidades imaginadas definidas por Benedict Anderson (2015).

Ela [a nação] é imaginada porque mesmo os membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão, encontrão ou nem sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva de comunhão entre eles. (ANDERSON, 2015, p. 32)

No entanto, nem sempre essa comunhão é compartilhada de fato entre os membros de

uma comunidade imaginada, ou seja, uma nação. O conceito de nacional debatido por Anderson

está muito mais (ou quase que inteiramente) calcado em uma imaginação coletiva,

compartilhada entre um grupo de pessoas que se consideram uma grande comunidade, do que

calcado em elementos que realmente os unam como comunidade. Basta pensarmos nas

disparidades culturais e sociais entre regiões de diversos países (como no Brasil, por exemplo)

para percebermos que a noção de nacionalidade não se baseia em fatores comuns, mas, antes,

em fatores políticos.

Os elementos menos abstratos que constituem o senso de uma nação são suas fronteiras

terrestres e marítimas, sendo estas o elemento mais concreto, uma vez que delimitam um espaço

físico de pertencimento e de posse com valor jurídico. Os outros elementos que contribuem à

noção de pertencimento a uma nação são todos elementos imaginados, concebidos em uma

suposta coletividade e socialmente institucionalizados por leis e códigos de conduta. Ou, ainda,

como bem ressalta Benedict Anderson, pela escrita e sua “reprodutibilidade e disseminação”

(ANDERSON, 2015, p. 71) por meio da imprensa, bem como pela criação dos romances

nacionais (ANDERSON, 2015, p. 71).

Já nas comunidades virtuais de alcance global (CASTELLS, 2003), o senso de

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pertencimento está muito mais ligado a elementos compartilhados de fato entre seus membros

do que aqueles apenas imaginados. O que faz um leitor de Harry Potter no Brasil se identificar

com um leitor de Harry Potter no Peru, por exemplo, é algo muito mais “concreto” do que

aquilo que os une (ou, pelo menos, deveria uni-los) como latino-americanos.

Estar política e juridicamente incluso no que se chama de América Latina não é estar

cultural ou afetivamente incluso na ideia de latino-americano. Isso não significa que todos

aqueles denominados dessa forma se considerem ou se sintam pertencentes a essa comunidade

imaginada, a esse espaço imagético, ainda que compartilhem e pertençam ao mesmo espaço

físico e político.

No entanto, para que um sujeito seja incluído na comunidade global de leitores e fãs

de Harry Potter, basta que esse sujeito tenha lido os livros ou consumido seus subprodutos,

como os filmes, os jogos e os recursos interativos na internet. Ou seja, a ligação entre os

membros dessa comunidade é muito mais direta e menos abstrata. É da ordem do comum, dos

mesmos interesses e gostos compartilhados, ainda que estes possam se limitar apenas à leitura

de um livro. “As singularidades interagem e se comunicam socialmente com base no comum,

e sua comunicação social por sua vez produz o comum. A multidão é a subjetividade que surge

dessa dinâmica de singularidade e partilha” (HARDT & NEGRI, 2014, p. 258).

O que constrói a gigantesca comunidade de leitores e fãs de Harry Potter são seus

próprios interesses e conhecimentos comuns, gostos e sentimentos compartilhados que unem,

por exemplo, um leitor do norte da Espanha a um leitor separatista da região da Catalunha. O

que os une como membros dessa comunidade global são elementos sem o peso opressor da

imposição política ou da herança cultural, elementos mais genuínos, por assim dizer (menos

política e historicamente influenciáveis), e, por isso, mais compreensíveis e aceitáveis do que

aqueles elementos que falharam em uni-los como “espanhóis”.

Ainda que de forma virtual, os conceitos e as imagens que servem de fator comum às

comunidades globais, como a de Harry Potter (ou seja, aquilo que une seus membros em torno

de uma referência cultural), são mais facilmente percebidos e ainda mais significáveis que o

senso comum das comunidades imaginadas: as chamadas nações.

Isso ocorre pelo fato de o senso de pertencimento a uma nação ser algo histórico,

política e culturalmente imposto, diferentemente do senso de pertencimento à comunidade

global de Harry Potter, o qual se baseia em fatores temporais e sentimentais mais próximos de

seus membros (como a relação afetiva com a série, a qual é compartilhada entre os membros

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de sua comunidade de leitores e fãs).

Para o sociólogo canadense Barry Wellman (2005), as comunidades, no geral, por

meio de laços interpessoais, proporcionam sociabilidade, apoio, informação, além de um senso

de pertencimento e identidade social.

No entanto, esse senso de pertencimento em uma comunidade virtual como a de Harry

Potter é maior, mais perceptível e compreensível que o senso de pertencimento a uma

comunidade imaginada, pois os fatores que determinam a inclusão de um sujeito em uma nação

não levam em conta a vontade e os gostos dos membros dessas comunidades. Eles são, antes

de tudo, impostos. Já quanto ao senso de identidade social citado por Wellman, esse é maior

quando se fala das comunidades imaginadas (as nações), justamente por se tratar de algo

juridicamente imposto, no qual o comum se limita ao local de nascimento ou radicação, e não

ao compartilhamento (de fato) de interesses comuns.

A ideia de nacionalidade de um sujeito, de sua identidade história e política, está mais

ligada ao seu território de nascimento ou de radicação do que na ideia de comunidade de fato.

É isso que torna possível, por exemplo, no Brasil, a disseminação de movimentos separatistas

nas redes sociais, ainda que todos sejam juridicamente “brasileiros”, e este é um grande

exemplo da ineficácia parcial da noção de nação.

O que levou o Brasil a uma onda separatista (A TRIBUNA, 2014) e discriminató r ia

(iG, 2014) que se seguiu logo após as eleições de 2014 foram justamente aqueles elementos que

não são compartilhados por todos os sujeitos da comunidade imaginada: visões políticas,

econômicas, heranças culturais e, até mesmo, dialetos e características físicas, ainda que todos

os envolvidos no jogo democrático fossem considerados, perante a Lei e os acordos sociais,

como brasileiros.

Ainda que todos estivessem sob os mesmos símbolos pátrios, compartilhando a mesma

bandeira, o mesmo hino, o mesmo espaço físico (ou seja, supostamente a mesma ideia de

nação), tudo isso não foi capaz de manter a comunidade indissolúvel, uma vez que seu senso

de comum é fraco, pois não é, de fato, comum.

Aquilo que afirma um sujeito como sendo pertencente a uma comunidade virtual é

muito mais objetivo do que aquilo que o afirma como pertencente a uma comunidade

imaginada, ou seja, uma nação. Um sujeito não se torna membro da comunidade de leitores e

fãs de Harry Potter porque seus pais o são, porque o disseram ser dessa maneira, ou pela

existência de um documento ou acordo sociopolítico que ateste tal, mas, sim, pelo simples fato

de compartilhar uma leitura comum, gostos, interesses, sentimentos e conhecimentos comuns

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entre os membros dessa comunidade. Esses elementos são, pois, compartilhados de fato, e não

apenas imaginados como supostamente compartilhados por todos os membros de uma

comunidade (a exemplo do que é feito com a nação).

Ao justificar o seu conceito de nação, Benedict Anderson argumenta que a falta de

contato entre os sujeitos de uma comunidade é o fator principal que a caracteriza como sendo

imaginada. “Na verdade, qualquer comunidade maior que a aldeia primordial do contato face

a face (e talvez mesmo ela) é imaginada. As comunidades se distinguem não por sua

falsidade/autenticidade, mas pelo estilo em que são imaginadas” (ANDERSON, 2015, p. 33).

No entanto, Anderson não pôde levar em conta em seu trabalho (escrito nos anos de

1980) as novas tecnologias de informação e de comunicação que se desenvolveram nos anos

1990 e tiveram um crescimento significativo a partir da primeira década do século XXI e início

da segunda. Época em que as redes sociais se consolidaram como agentes de comunidades

virtuais, locais e globais, permitindo o contato que antes, como bem afirma Benedict Anderson,

era apenas imaginado. Hoje, no entanto, esse contato se torna mais possível, ainda que não

alcance sua improvável totalidade.

É esse contato alcançado pelas tecnologias de comunicação e seu acesso que

possibilitou, por exemplo, a ocorrência histórica da Primavera Árabe. Enquanto os sujeitos

apenas se imaginavam membros de uma comunidade, nada havia sido feito. Apenas quando

realmente se viram compartilhando dos mesmos elementos que os uniam de uma forma ou de

outra, e quando se tornaram uma grande comunidade virtual por meio das redes sociais

(BORGES, 2012), é que algo de concreto e revolucionário pôde ser feito (ainda que seus

resultados sejam discutíveis).

São também esses mesmos elementos compartilhados, os quais deixam de ser

simplesmente imaginados e passam a ser expostos em comunidades virtuais pela internet, que

possibilitam a ocorrência de grupos terroristas internacionais, a exemplo do Estado Islâmico e

sua difusão e recrutamento ao redor do mundo por meio da rede (BERCITO, 2016), bem como

a ocorrência de grupos separatistas, neonazistas, dentre outros; os quais ganham força no mundo

virtual a partir do momento que ganham um espaço de compartilhamento e passam a ser, de

fato, elementos comuns de uma comunidade.

Esse compartilhamento virtual possibilita, sobretudo, a evidenciação de tais grupos

como nunca antes da revolução comunicativa e tecnológica fora possível. Isso ocorre, pois essas

comunidades, ainda que virtuais, têm grandes elementos comuns que unem diversos sujeitos de

diferentes comunidades imaginadas: as mesmas crenças, visões políticas, os mesmos valores,

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ou, como no caso do fenômeno Harry Potter, o mesmo produto cultural compartilhado pelos

membros de sua comunidade.

De forma geral, podemos afirmar que o best-seller se encontra em uma posição

favorável à formação de grandes comunidades interpretativas, por se tratar, em sua grande

maioria, de histórias e textos mais acessíveis aos diversos públicos de diferentes partes do

mundo. O best-seller, seja por sua escrita mais acessível ou por sua história tão acessível quanto

agradável, lúdica, envolvente (SODRÉ, 1985), é um aglutinador de pequenas comunidades

interpretativas (podemos levar em conta as comunidades interpretativas divididas por idiomas,

por exemplo), as quais formam uma grande comunidade global (GUPTA, 2009a, 2009b;

HARDT & NEGRI, 2014).

Ainda que todos os leitores de um livro ao redor do mundo leiam a mesma história e

se identifiquem uns com os outros por essa leitura em comum, não lhes é negado uma

subjetividade interpretativa, seja do próprio leitor ou de sua pequena comunidade interpretat iva

(como podemos citar, mais uma vez, a questão da língua). As próprias traduções em escala

global31 permitem uma subjetividade interpretativa em comunidades ao redor do mundo de

acordo com suas características linguísticas e culturais.

Um exemplo é a tradução da série feita por Lia Wyler para a editora Rocco. Criticada

por alguns e elogiada por outros (inclusive pela própria J. K. Rowling), Wyler adaptou muitos

dos nomes da série para o português do Brasil (diferentemente da tradução dos livros em

Portugal, a qual manteve todos os nomes em latim e inglês). Essa escolha da tradutora, ainda

que criticada por alguns fãs, ajudou no sucesso e na apropriação das referências à série no

Brasil.

No entanto, ainda que haja certa “individualidade” interpretativa dessas comunidades

(algumas referências da série são mais fortes em alguns países do que em outros), há também

um fator comum entre as diferentes comunidades interpretativas ao redor do mundo, o que faz

com que, juntas, se tornem uma grande comunidade global.

Cada leitor, para cada uma de suas leituras, em cada circunstância, é singular. Mas esta singularidade é ela própria atravessada por aquilo que faz que este leitor seja semelhante a todos aqueles que pertencem à mesma comunidade. (CHARTIER, 1999, p. 91-92)

31 Harry Potter, a partir do quinto volume da série, passou a contar com publicações simultâneas ao redor do

mundo, incluindo o Brasil e os principais mercados literários.

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O que garante a constituição e manutenção da comunidade global de Harry Potter é

tanto sua enorme disseminação como bem cultural ao redor do mundo quanto as referências

culturais da série que não modificam de um lugar para o outro e são facilmente compreensíve is

por seus leitores e fãs.

Ainda que uma referência à série tenha mais uso ou relevância em um contexto

específico do que em outros, ou um personagem seja mais querido em uma faixa do público do

que em outras, essas referências, ainda que possam variar de intensidade e uso, são as mesmas

para toda a comunidade.

Tendo surgido na virada do milênio e se consolidado como um sucesso da indústria do

entretenimento já no início da primeira década, Harry Potter se beneficiou em grande parte das

novidades tecnológicas da era digital, sobretudo com a proliferação dos sites, blogs e redes

sociais. Neles e por meio deles, a série encontrou um espaço de sobrevivência além das páginas

dos livros e das telas de cinema.

Incialmente, esse espaço virtual foi ocupado pelos próprios leitores e fãs da série.

Fosse por meio de debates ou por histórias paralelas à série escritas e compartilhadas na internet

pelos próprios fãs, os leitores de Harry Potter encontraram na rede um local produtivo para

suas discussões e intervenções na história.

O novo suporte do texto permite usos, manuseios e intervenções do leitor infinitamente mais numerosos e mais livres do que qualquer uma das formas antigas do livro. No livro de rolo, como no códex, é certo, o leitor pode intervir. Sempre lhe é possível insinuar sua escrita nos espaços deixados em branco, mas permanece uma clara divisão, que se marca tanto no rolo antigo como no códex medieval e moderno, entre a autoridade do texto, oferecido pela cópia manuscrita ou pela composição tipográfica, e as intervenções do leitor, necessariamente indicadas nas margens, como um lugar periférico com relação à autoridade. (CHARTIER, 1999, p. 88)

A longa era do leitor passivo, o qual se submetia aos comandos do texto, foi

confrontada pela era digital, na qual o leitor reivindica sua participação efetiva no processo

literário, seja na leitura das obras ou na recriação das mesmas (mesmo que sem a autoridade do

autor e, talvez, justamente por essa liberdade descompromissada).

É a tela do computador como suporte textual que inaugura a possibilidade de diálogo (e/ou cooperação) entre escritores e leitores, diálogo esse que pode ocorrer no espaço do próprio suporte. Segundo Chartier (2002), essa inovação é tão radical que faz com que os leitores possam se transformar em co-autores, dado que seus comentários e intervenções podem chegar aos escritores rápida e diretamente, sem passar por intermediários como antes. A tela do

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computador como suporte textual permite que qualquer pessoa com acesso à internet possa publicar textos livremente e sem mediações, e a mesma tela permite que o escritor peça a colaboração do leitor que pode, agora, intervir no próprio conteúdo do texto. (DI LUCCIO; NICOLACI-DA-COSTA, 2007, p. 667-668)

Colecionando inúmeras fanfics32 na internet, fóruns de discussão e sites de notícias do

universo relacionado à série, o fenômeno Harry Potter, inicialmente limitado a um único

suporte (o livro), encontrou um espaço no qual a série se dissemina de forma rápida e em escala

global, tanto pela iniciativa de seus leitores e fãs quanto pela busca de seus investidores por

novos mercados e novas plataformas para o produto. “A tela e a internet fazem surgir espaços

textuais públicos – como os fóruns de discussão, as famosas salas de bate-papo, os espaços de

trocas instantâneas de mensagem [...] e os blogs – dos quais todos podem participar” (DI

LUCCIO; NICOLACI-DA-COSTA, 2007, p. 668).

Dessa forma, a comunidade global de leitores e fãs encontrou um espaço virtual no

qual seus membros poderiam interagir entre si, entretendo-se e, ao mesmo tempo, reforçando o

fenômeno Harry Potter e sua disseminação como produto e referência cultural. É nesse ponto,

em especial, que os fãs da série se tornam, em grande parte, responsáveis por seu sucesso no

mundo virtual. Ainda que haja uma ação calculada das partes que detêm os direitos econômicos

da marca Harry Potter, a sua disseminação na rede se dá, em sua ampla maioria, de forma

espontânea.

Seja construindo referências à série ou simplesmente demonstrando seu apreço pelo

universo de Harry Potter nas redes sociais, compartilhando fotos, vídeos ou notícias, os fãs

acabam por reforçar a consistência e o alcance do fenômeno, sem a necessidade de uma ação

direta da autora ou dos demais detentores da marca. Ainda que possa haver ações de marketing,

por exemplo, a disseminação de notícias relacionadas à série e a seus produtos se dá quase que

de forma orgânica nas redes sociais. Porém, nem tudo no mundo virtual se resume à ação dos

fãs de Harry Potter.

Em julho de 2011, a Warner Bros. Entertainment Inc. e a autora da série anunciaram a

criação de um site sobre o universo de Harry Potter que funcionaria como uma plataforma de

32 “É uma narrativa ficcional, escrita e divulgada por fãs em blogs, sites e em outras plataformas pertencentes

ao ciberespaço, que parte da apropriação de personagens e enredos provenientes de produtos midiáticos como

filmes, séries, quadrinhos, videogames, etc, sem que haja a intenção de ferir direitos autorais ou obter de lucros.

Portanto, tem como finalidade a construção de um universo paralelo ao original e também a ampliação do contato

dos fãs com as obras que apreciam para limites mais extensos.” Disponível em:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Fanfic. Acesso em: 09 de junho de 2017.

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leitura interativa para os fãs. Em abril de 2012, o site Pottermore foi lançado para todo o

público. A partir de então, o mundo bruxo de J. K. Rowling (J. K. ROWLING’S WIZARDING

WORLD) se tornou uma marca registrada da própria autora e da gigante americana do

entretenimento.

Mais do que um simples site de notícias sobre os livros ou sobre a autora, Pottermore

é uma empresa limitada (Pottermore Ltd.), baseada em Londres, a qual oferece publicação de

livros digitais, entretenimento e outros serviços relacionados à série Harry Potter e ao Mundo

Bruxo de J. K. Rowling (BLOOMBERG, s.d.).

Como o próprio nome do site sugere, Pottermore é o lugar em que os leitores e fãs da

série podem encontrar informações e histórias adicionais aos sete livros publicados. Mais que

um espaço virtual dedicado aos personagens da série, Pottermore se tornou a ferramenta oficia l

pela qual Rowling mantém viva sua história, abordando não apenas a escola de magia, mas seu

mundo mágico como um todo, ou, como escrito na apresentação do site, “o coração digital do

Mundo Bruxo”: “Welcome to the digital heart of the Wizarding World”.

Além de tratar dos lugares e personagens já conhecidos e suas vidas para além das

páginas dos sete livros da série, Pottermore é o suporte pelo qual a história de Harry Potter se

amplia para fatos não contemplados nos sete volumes já publicados e para além do nicho

literário.

O site se tornou o espaço no qual os fãs podem encontrar os livros em formato digita l,

produtos, novidades e informações oficiais das edições comemorativas (como a edição de 20

anos da série, em 2017, a qual traz novidades e curiosidades dos personagens nunca antes

reveladas nos livros), bem como se tornou a fonte oficial de notícias da nova franquia

cinematográfica e da peça de teatro de Harry Potter.

Ainda a fim de buscar cada vez mais seu espaço no mundo virtual, em junho de 2017,

a autora anunciou por meio de seu perfil oficial no Facebook o lançamento de um clube do livro

destinado exclusivamente à série, como parte do site Pottermore:33 “Wizarding World Book

Club - Read and discuss the Harry Potter stories with anyone, anywhere.” (Clube do Livro do

Mundo Bruxo - Leia e discuta as histórias de Harry Potter com qualquer um, em qualquer

lugar).

Em um curto vídeo que questiona o leitor, “Think you know everything about the Harry

Potter books?” (Acha que sabe tudo sobre os livros de Harry Potter?), o novo espaço virtua l,

mais que um convite, é um desafio aos fãs da série a testarem seus conhecimentos e suas leituras

33 https://my.pottermore.com/wizarding-world-book-club

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dos livros em uma comunidade mundial de leitores.

Tomando como exemplo alguns dos pontos mais controversos da série e convidando

os fãs à leitura ou releitura dos livros, o intuito do clube do livro é fazer com que os fãs ao redor

do mundo leiam juntos as histórias e discutam entre si os temas abordados nos livros e elencados

pelo próprio site: “Join the discussion, delve into the stories and read along with the rest of the

world.” (Junte-se à discussão, mergulhe nas histórias e leia junto com o resto do mundo).

Seguindo as leituras dos livros de acordo com o site, os antigos e novos fãs (como dito

na própria apresentação do clube) poderão, a cada semana, discutir os temas apresentados pelo

Pottermore. A leitura de artigos a respeito dos livros e os temas a serem discutidos estarão todos

presentes no site. No entanto, o clube do livro, de fato, se encontra no Twitter,34 onde as

discussões realmente acontecerão, atraindo novos leitores à série e desafiando os fãs mais

antigos a retomarem a leitura de Harry Potter; o que reforça ainda mais sua comunidade global

de leitores e fãs e mantém a leitura de seus livros relevante e necessária para aqueles que

queriam se unir ao Wizarding World Book Club.

Além de toda essa conexão virtual e em escala global que o site proporciona aos fãs

da série, Pottermore é a plataforma pela qual os leitores de Harry Potter participam da história

de forma interativa com as ferramentas disponíveis no site. Para ter acesso a essa interatividade,

o usuário deve, inicialmente, registrar-se em uma conta no site. Após escolher seu nome de

usuário e senha, o fã da série estará apto a fazer parte da história e se tornar um membro efetivo

da comunidade global que se forma ao redor de Pottermore.

Uma vez dentro do mundo virtual de Harry Potter, o usuário pode ser escolhido para

uma das casas de Hogwarts, descobrir qual é sua varinha mágica e praticar feitiços. Todas essas

funcionalidades, é preciso ressaltar, contam com a opção de compartilhamento nas redes

sociais, para que todos os seus seguidores e amigos possam saber de sua vida no mundo bruxo

(e, claro, para que o fenômeno seja ainda mais disseminado).

O leitor, incialmente preso às páginas dos livros, entra nesse universo antes apenas

apreendido pelas palavras impressas no papel ou, até mesmo, presentes na tela do computador.

Agora, ainda que de forma virtual, o leitor passa a ser parte daquele universo por meio de uma

funcionalidade e de uma interatividade inatingíveis no livro como suporte.

O leitor não é mais constrangido a intervir na margem, no sentindo literal ou no sentido figurado. Ele pode intervir no coração, no centro. Que resta então da definição do sagrado, que supunha uma autoridade impondo uma atitude

34 https://twitter.com/wwbookclub

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feita de reverência, de obediência ou de meditação, quando o suporte material confunde a distinção entre o autor e o leitor, entre a autoridade e a apropriação? (CHARTIER, 1999, p. 91)

Antes restrita à ação dos fãs nas redes sociais, a disseminação da série no espaço digita l

passou a contar com a produção e a tutela dos donos da marca Harry Potter. Com a

credibilidade do nome da autora, o site, ainda que criado e gerenciado por muitos, se apresenta

ao público sob a jurisprudência autoral de Rowling, a qual atrai o público e confere

credibilidade ao trabalho: “Pottermore, from J. K. Rowling”.35

Não bastasse o nome de J. K. Rowling resguardando esse novo suporte digital, a autora

ainda é a pessoa por trás desse mundo virtual responsável por dar as boas-vindas ao público do

site em uma mensagem de áudio. Na curta gravação, Rowling apresenta a nova ferramenta de

interatividade com o público, a qual assegura a sobrevivência do fenômeno Harry Potter e

reforça a manutenção de sua comunidade:

Bem-vindo ao Pottermore! Este é o meu canto mágico na internet. Um lugar no qual você pode explorar meus textos (tanto os já conhecidos como os novos), e no qual você pode ler matérias, artigos e notícias da equipe Pottermore. Novas informações serão reveladas sobre os personagens, os lugares e a magia aos quais você já está familiarizado, assim como introduções a novos personagens, lugares e noções. O Pottermore é um lugar no qual você pode liberar sua imaginação e permiti-la a guiá-lo em aventuras. Se você

precisa de um pouco mais de magia na sua vida, você veio ao lugar certo.

(ROWLING, s.d., tradução nossa)36

Como a própria autora reivindica esse espaço como sendo seu, o site Pottermore, além

de proporcionar uma interatividade maior dos leitores com a série, possibilita a J. K. Rowling

manter sua história inacabada. O site se tornou a plataforma de leitura para os novos textos da

autora, os quais retornam à história dos livros, dando novos contornos aos acontecimentos e

novas informações a respeito dos personagens, bem como ampliando cada vez mais o mundo

criado por Rowling, em novas histórias.

Seja em suas próprias redes sociais ou por meio do “canal oficial” do universo da série

35 https://www.pottermore.com/ 36 “Welcome to Pottermore! This is my magical corner of the internet, a place where you can explore my writing,

both familiar and new, and where you can read features, articles and news from the Pottermore Team. New

information will be revealed about the characters, places and magic you’re familiar with, as well as introductions

to a few new characters, places and notions. Pottermore is a place where you can unleash your imagination and

allow it to lead you on adventures; if you need a little extra magic in your life, well, you've come to the right

place.” Disponível em: https://www.pottermore.com/news/j-k-rowling-welcome-message Acesso em: 10 de junho

de 2017.

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Harry Potter, J. K. Rowling e seus colaboradores e investidores mantêm tanto a curiosidade do

público quanto o seu entretenimento. Além de manter sua obra inacabada, as ferramentas

digitais possibilitam de forma ágil e eficaz a manutenção de sua comunidade global de leitores

e fãs.

Essa comunidade virtual formada por Harry Potter se destaca por seu alcance e por

sua longevidade. Uma de suas maiores características e um dos principais fatores que a mantêm

coesa (ainda que global) é o fato de seus membros compartilharem das mesmas referências

culturais encontradas na série.

Vários são os exemplos dessa apropriação cultural, desde referências ao vilão da série

(Lord Voldemort) à amiga sabe-tudo de Harry (Hermione Granger), passando ainda por outros

personagens secundários e por cenários e trechos icônicos da série, com muitos dos quais os fãs

criam uma ligação afetiva, como o embarque na Plataforma 9 ½ (9 ¾ na versão original):

– Com licença – dirigiu-se Harry à mulher gorda. – Olá, querido, é a primeira vez que vai a Hogwarts? O Rony é novo

também. Ela apontou o último filho, o mais moço. Era alto, magro e

desengonçado, com sardas, mãos e pés grandes e um nariz comprido. – É – respondeu Harry. – A coisa é... a coisa é que não sei como... – Como chegar à plataforma? – disse ela com bondade, e Harry

concordou com a cabeça. – Não se preocupe. Basta caminhar diretamente para a barreira entre

as plataformas nove e dez. Não pare e não tenha medo de bater nela, isto é muito importante. Melhor fazer isso meio correndo se estiver nervoso. Vá, vá antes de Rony.

– Hum... OK. E Harry virou o carrinho e encarou a barreira. Parecia muito sólida. Ele começou a andar em direção a ela. As pessoas a caminho das

plataformas nove e dez o empurravam. Harry apressou o passo. Ia bater direto no coletor de bilhetes e então ia se complicar – curvando-se para o carrinho ele desatou a correr – a barreira estava cada vez mais próxima – não poderia parar – o carrinho estava descontrolado – ele estava a um passo de distância – fechou os olhos se preparando para a colisão...

E ela não aconteceu... ele continuou correndo... abriu os olhos. Uma locomotiva vermelha a vapor estava parada à plataforma

apinhada de gente. Um letreiro no alto informava Expresso de Hogwarts, 11 horas. Harry olhou para trás e viu um arco de ferro forjado no lugar onde estivera o coletor de bilhetes, com os dizeres Plataforma nove e meia. Conseguira. (ROWLING, 2000a, p. 84)

Após a adaptação da icônica cena para o cinema (na qual Harry atravessa uma parede

sólida empurrando o carrinho de bagagens), a administração de King’s Cross, em Londres,

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homenageou a série com a construção da fictícia plataforma criada por Rowling, localizada

entre as plataformas nove e dez.37

A passagem para a plataforma do Expresso de Hogwarts construída na icônica estação

londrina conta com uma placa informando sua localização e um carrinho do qual se vê apenas

a metade que ainda não atravessou para o outro lado. A referência à série, evidentemente, atrai

fãs do mundo todo diariamente para registrar em fotos e vídeos suas visitas à plataforma, como

se estivessem atravessando a “passagem secreta”. Ao lado, é claro, os fãs podem fazer suas

compras em uma loja dedicada a diversos produtos da série. 38

Ainda a respeito da plataforma eternizada pelo primeiro livro de Harry Potter, a

administração do Aeroporto Internacional de Brasília postou uma foto em seu perfil oficial no

Facebook em homenagem aos 20 anos da série. A foto se tratava de uma montagem da

plataforma 9 ¾ no aeroporto, a qual atraiu muitos fãs à procura do fictício portão de embarque

(LUIZ, 2017).

Ainda a respeito das comemorações dos 20 anos do lançamento do primeiro livro da

série, no dia 27 de junho de 2017, o Facebook lançou uma ferramenta para todos os seus

membros em homenagem a Harry Potter. Bastava comentar ou escrever o nome do personagem

título da série que ele automaticamente se tornava vermelho, bem como as quatro casas de

Hogwarts ganhavam cada uma a sua cor característica quando escritas (em inglês) na rede

social. Quando o usuário do Facebook clicava em cima de uma dessas palavras no aplicativo

da rede social, uma varinha mágica surgia na tela do smartphone soltando traços e estrelas

coloridas em homenagem à série, acompanhada de um curto trecho do tema principal da trilha

sonora dos filmes (G1, 2017).

Já quanto aos trechos e falas dos livros que se tornaram referência para a comunidade

de Harry Potter, “Dez pontos para a Grifinória” talvez seja a frase mais famosa e a mais

lembrada pelos fãs.

A Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts é formada por quatro casas, Grifinó r ia,

Corvinal, Lufa-Lufa e Sonserina (Gryffindor, Ravenclaw, Hufllepuff e Slytherin, na versão

original). No primeiro dia em Hogwarts, os alunos passam pela cerimônia da escolha das casas,

na qual o Chapéu Seletor (um chapéu encantado que pensa e fala) escolhe qual a casa de que

cada um dos alunos deverá fazer parte. No fim de cada ano letivo, ocorre a premiação da Taça

37 https://www.kingscross.co.uk/harry-potters-platform-9-34 38 https://www.harrypotterplatform934.com/

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das Casas. Ela nada mais é que uma disputa entre as quatro casas na qual a casa que obtiver

maior número de pontos vence a competição. Os pontos são creditados ou retirados de acordo

com o comportamento e o desempenho escolar dos alunos.

Uma aluna, em especial, se destacava:

– Oho! “Uma das minhas melhores amigas é trouxa e é a melhor da nossa série!” Presumo que seja esta a amiga de quem me falou, Harry!

– É, sim, senhor. (ROWLING, 2005, p. 137)

Hermione Granger, melhor amiga de Harry e a mente por trás de todas as aventuras

vividas pelo trio principal da série (Harry, Rony e Hermione), foi responsável por grande parte

dos pontos creditados à Grifinória nos seus sete anos de estudos em Hogwarts. Toda vez que a

garota respondia corretamente a uma das questões indagadas pelos professores (e foram várias),

a casa da qual Hermione fazia parte ganhava pontos de seus professores: “Dez pontos para a

Grifinória” (ROWLING, 2000b, 83).

– Oho! – exclamou novamente o professor. Harry tinha certeza de que o professor não esquecera a poção, mas esperou que lhe perguntassem para produzir um efeito teatral. – Sim. Aquela. Bem, aquela ali, senhoras e senhores, é uma poçãozinha curiosa chamada Felix Felicis. Suponho – e ele se voltou sorridente para Hermione, que deixara escapar uma exclamação audível – que a senhorita saiba o que faz a Felix Felicis, srta. Granger?

– É sorte líquida – respondeu Hermione excitada. – Faz a pessoa ter sorte!

A classe inteira pareceu sentar mais aprumada [...] – Correto, mais dez pontos para a Grifinória [...] (ROWLING, 2005,

p. 138)

Muitos leitores e fãs da série se apropriam da fala dos professores quando alguém

responde corretamente a uma pergunta ou se destaca durante determinada aula, além da própria

personagem ter se tornado referência de inteligência entre os fãs de Harry Potter. Não só os

livros, mas também os filmes contribuíram muito para essa imagem da personagem e sua

consequente referência para a comunidade: “Das bruxas da sua idade, você é a mais

inteligente.” (Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban, Warner Bros., 2004).

Aliás, a atriz que interpretou Hermione nos cinemas, Emma Watson, é recorrentemente

comparada nas redes sociais à personagem (FACEBOOK, 2017), seja por seu interesse pelos

livros (Watson se formou em Literatura Inglesa pela Brown University) ou por seu ativismo

feminista como embaixadora da ONU (FACEBOOK, 2017).

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Quanto a outros personagens da série, nas Olimpíadas Rio 2016, três meses após

Michel Temer assumir a presidência da república interinamente após a instauração do processo

de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff no Senado Federal, protestos políticos contra

Temer foram proibidos (G1, 2016). Os cartazes e faixas escritos “Fora, Temer” eram

confiscados pelas forças de segurança nos estádios e arenas olímpicas da Rio 2016. A solução

encontrada por alguns manifestantes foi substituir o nome de Temer por “Você-Sabe-Quem”,

ou por “Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado”, títulos dados ao personagem Voldemort na

série.

“Temer ‘Voldemort’: aquele cujo nome não deve ser pronunciado”, foi uma das manifestações do público. A brincadeira faz referência a Lord Voldemort (dos livros da série Harry Potter de J. K. Rowlin[g]), poderoso bruxo das trevas de todos os tempos, cujos objetivos eram controlar o mundo mágico. Ao contrário de Voldemort, o nome de Temer não representa força e poder, embora ambos sejam sinônimos de trevas e destruição. (UBES, 2016)

Não só a proibição do nome de Temer nos estádios, mas também sua semelhança física

com o personagem Voldemort no primeiro filme da série (Harry Potter e a Pedra Filosofal,

Warner Bros., 2000) serviu de referência da comunidade de fãs para memes39 e comparações

de cunho político nas redes sociais (HUFFPOST, 2016).

39 Meme deriva do termo grego mimema, mesma raiz de mimesis: imitação. “O termo é bastante conhecido e

utilizado no ‘mundo da internet’, referindo-se ao fenômeno de ‘viralização’ de uma informação, ou seja, qualquer

vídeo, imagem, frase, ideia, música e etc, que se espalhe entre vários usuários rapidamente , alcançando muita

popularidade”. Disponível em: https://www.significados.com.br/meme/. Acesso em: 28 de maio de 2017.

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Figura 11

Figura 12

Assim como Temer, seu ministro nomeado para uma das cadeiras do Supremo

Tribunal Federal foi comparado ao personagem de J. K. Rowling. Alexandre de Morais,

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nomeado para a vaga de Teori Zavascki (morto na queda de um avião), foi também comparado

a Lord Voldemort. A imagem do Ministro vestindo sua toga na posse como magistrado da

Suprema Corte circulou pelas redes sociais em referência ao Lorde das Trevas (ESTADÃO,

2017).

Figura 13

Figura 14

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Figura 15

Figura 16

Figura 17

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Ainda no cenário político, em um ato da UNICAMP contra a redução da maioridade

penal, o historiador Leandro Karnal, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da

universidade, também se utilizou de uma referência à série em sua fala. Ao tratar do

conservadorismo na política brasileira e seus principais representantes, o historiador citou o

nome de um deputado com visões machistas, racistas e homofóbicas em sua explicação. No

entanto, ao introduzir o político em sua argumentação (e incomodado por tê-lo feito), Karnal

disse que ele seria como Voldemort: “Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado”. A partir de

então, o professor passou a mencionar a figura do deputado com referência aos títulos dados ao

Lorde das Trevas na série, ou seja: “Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado” e “Você-Sabe-

Quem” (YOUTUBE, 2016). E, ainda na mesma universidade, uma das mais respeitadas do país,

em agosto de 2017, foi oferecido um curso de história, no qual o tema era Harry Potter, em

uma das oficinas do projeto UniversIDADE, destinado ao público acima de 50 anos (EVENS,

2017).

Não apenas os internautas (ou professores e alunos universitários), mas parte

considerável da imprensa se apropria dessas referências a Harry Potter, seja noticiando os virais

que se espalham pelas redes sociais ou se utilizando diretamente de tais referências. Em uma

edição do Jornal das Dez, a jornalista Renata Lo Prete, ao comentar a respeito das delações

premiadas e das gravações de áudio que serviram de prova para a denúncia de corrupção e

obstrução da justiça contra Temer, a jornalista do canal de notícias Globo News afirmou que

“Eduardo Cunha é uma espécie de Voldemort para Michel Temer” (G1, 2017), uma vez que

este se recusava a citar o nome do ex-deputado, preso por corrupção, e o qual as delações

ligavam diretamente a Temer em relações escusas, como a compra do seu silêncio.

A partir do momento em que tais referências são feitas, não apenas as imagens dos

personagens são acionadas na mente do leitores e fãs, mas, também, as características morais,

psicológicas e comportamentais que constituem esses personagens. O desenho imagético é

formado como um todo, associando, por exemplo, a vilania de Voldemort às personalidades

que eventualmente sejam associadas ao personagem, como os exemplos citados acima.

Essa apropriação feita pela comunidade de Harry Potter dos diferentes ícones de

referência à série (personagens, locais, trechos da história) e sua imediata interpretação se

encaixam no que Stanley Fish chama de “compreensão compartilhada” (FISH, 1992, p. 205).

Fish argumenta que:

[A] comunicação se dá dentro de situações e que estar em uma situação é estar já em possessão de (ou ser possuído por) uma estrutura de

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pressuposições, de práticas entendidas como relevantes com relação a

objetivos e propósitos que já preexistem; é, justamente, na pressuposição destes objetivos e propósitos que qualquer enunciado é

imediatamente entendido. (FISH, 1992, p. 203)

Ainda que essas referências pertençam ao universo e à comunidade de Harry Potter e

sejam imediatamente compreensíveis por seus membros, elas não se limitam apenas aos fãs.

Não bastasse a apropriação de tais referências pela comunidade de leitores e fãs, os meios de

comunicação (como os citados nas notas acima) noticiam o uso das referências culturais da

série, tornando-as compreensíveis àqueles que não estão inclusos na comunidade e que, por

isso, não estão familiarizados com os personagens.

No entanto, a pluralidade e o alcance da comunidade de Harry Potter são tão amplos

que essas mesmas pessoas que se encontram fora dela ainda assim são atingidas por sua

influência, como no caso de filmes, programas e séries de televisão que fazem referência à série

(LEGIÃO DOS HERÓIS, 2017), bem como os memes disseminados pelas redes sociais e pelos

sites de notícias e variedades.

Não só no conturbado cenário político brasileiro, mas também na política britânica, o

universo de Harry Potter é apropriado para críticas e posicionamentos políticos na internet (sem

contar o próprio posicionamento de J. K. Rowling nas redes sociais, apoiadora declarada do

Labour Party (LEACH, 2008), o Partido Trabalhista da Inglaterra).

Em plena campanha eleitoral, em maio de 2017, a Primeira Ministra Theresa May

(Partido Conservador), em visita a uma escola em Birmingham, disse ter lido todos os livros da

série Harry Potter (PRESS ASSOCIATION, 2017). Mais tarde, no mesmo dia, questionada por

um jornalista do The Telegraph com qual personagem da série ela se considerava parecida, May

recusou a responder, dizendo que não se considerava similar a nenhum dos personagens de

Harry Potter, mas que os livros, segundo ela, são uma ótima leitura, tanto para adultos como

para crianças (HORTON; HUGHES, 2017).

Entretanto, a recusa da Primeira Ministra em responder à pergunta resultou na

mobilização dos fãs da série na internet, sobretudo os mais jovens, faixa etária na qual Theresa

May gozava de baixa popularidade (NELSON, 2017), comparando-a a um dos personagens de

Harry Potter. Especificamente, Dolores Umbridge, funcionária do Ministério da Magia e um

dos personagens mais odiados pelos fãs da série (O’CONNOR, 2017).

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Figura 18- "Perguntaram com qual personagem de Harry Potter ela se parecia (suspiro), Theresa May diz nenhum deles...

*cof-cof*"

As questões sociopolíticas, por sinal, estão sempre em voga na comunidade global de

Harry Potter, seja pelo ativismo da autora nas redes sociais ou pelo próprio pensamento crítico

que os livros despertam (como questões de gênero, racismo e fascismo, por exemplo; tópicos

tratados ao longo da série, sobretudo nos últimos volumes, os quais amadureceram junto de

grande parte de seu público).

J. K. Rowling é notícia recorrente por suas declarações políticas nas redes sociais, as

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quais movimentam o debate sociopolítico de sua comunidade de leitores e fãs. Com mais de

11.4 milhões de seguidores em seu Twitter (à data final desta dissertação), Rowling mantém

sempre ativas as discussões políticas e sociais, as quais acabam por refletir em boa parte da

comunidade global de Harry Potter, sobretudo seus seguidores no microblog.

Seja tuitando contra o conservadorismo político (sobretudo contra o Presidente

americano Donald Trump e a Primeira Ministra britânica Theresa May), ou seja se posicionando

abertamente a favor dos direitos das minorias, Rowling acaba por influenciar grande parte de

seus seguidores, os quais a veem como um exemplo a ser admirado.

Figura 19- "Opinião | A viagem britânica à isolação inglória: Brexit foi culpa do populismo, certo? Errado. Foi culpa de

toda a elite."

As posições mais polêmicas de Rowling (ou, pelo menos, polêmicas aos que pensam

contrários a ela), como suas declarações contra o Brexit ou a favor do casamento entre pessoas

do mesmo sexo, diversidade sexual e de gênero, terrorismo e migração, geram sempre

discussões de seus seguidores em sua conta do Twitter, os quais expõem suas opiniões entre si.

Porém, nem sempre o que há é um debate de ideias.

Muitas vezes, essa movimentação toda em torno de suas declarações no Twitter se

resume a ataques de ambas as partes: os que pensam como a autora e os que discordam de suas

ideias e de seu posicionamento político. No entanto, toda essa comoção acaba por contribuir

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para a formação do caráter dessa comunidade, a qual tenta se assemelhar ao máximo aos valores

enaltecidos por Rowling em suas redes sociais e pela própria série.

Figura 20- J.K. Rowling: "'Nação de verdade’ é o novo 'homem de verdade.'" / Tim Montgomerie: "Há um ano, as pessoas

votaram para nos colocarem no comando das leis, fronteiras e relações com o mundo. Em outras palavras: para sermos uma

nação de verdade de novo.”

Uma vez questionada por um de seus seguidores no Twitter se haveria diversidade

sexual entre os alunos de Hogwarts, Rowling respondeu afirmando que sim (“Mas é claro.”), e

postou uma imagem feita por fãs com referência à série e à diversidade sexual:

Figura 21- "Se Harry Potter nos ensinou alguma coisa, foi que ninguém deveria viver dentro de um armário"

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Uma rápida pesquisa pelo nome da autora nas ferramentas de busca dos sites de

notícia, como o da Time,40 revelará um número considerável de manchetes relacionadas ao

posicionamento político e ideológico de Rowling nas redes sociais. É nelas e por meio delas

que a comunidade global de Harry Potter se constrói e se mantém; além, é claro, de serem o

espaço no qual ela se manifesta. Dessa maneira, não apenas os personagens e as cenas icônicas

da série servem de referência a essa comunidade, mas também seus valores (os quais, por vezes,

se confundem com os valores da autora e são disseminados pela rede).

Segundo um estudo feito pela University of Pennsylvania e publicado na revista PS:

Political Science and Politics, leitores de Harry Potter são mais propensos a não gostarem do

Presidente Americano Donald Trump (HIGGINS, 2016). Ainda segundo outro estudo feito pela

Johns Hopkins University, fãs de Harry Potter são mais abertos à diversidade e mais tolerantes

politicamente do que aqueles que não são fãs da série (GIERZYNSKI; EDDY, 2013).

Um exemplo desse engajamento político de parte dos fãs da série e a consequente

referência cultural que fazem aos personagens e aos trechos marcantes dos livros foi a Marcha

das Mulheres (Women’s March), em fevereiro de 2017, na qual vários cartazes em referência a

Harry Potter surgiram em meio às multidões e foram compartilhados na internet.

Figura 22 - "Harry Potter na Marcha das Mulheres"

40 http://time.com/

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Figura 23- "Embora venhamos de lugares diferentes e falemos línguas diferentes, nossos corações batem como um só - Alvo

Dumbledore"

Figura 24 - Imagem: "Isso não aconteceria em Hogwarts" / Tweet: "Nós somos a próxima geração da Armada de

Dumbledore!"

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Figura 25- Imagem: "Sem Hermione, Harry teria morrido no primeiro livro #girlpower (poder feminino)” / Tweet: Cartaz

forte! Não poderia estar mais orgulhosa.”

Figura 26 - Imagem: "Destrua as horcruxes de Trump" / Tweet: "Melhor cartaz"

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Dessa forma, não apenas o interesse pelo universo de Harry Potter se constitui como

fator comum entre os membros de sua comunidade global, mas, também, os valores sociais e

políticos defendidos na série, ainda que nem todos os leitores e fãs compartilhem das mesmas

ideias e visões políticas que a autora ou que a maioria de sua comunidade.

Entretanto, nem só de política vive o fenômeno, mas, também, de ciência.

Como se já não bastasse o asteroide (43844) Rowling, o universo de Harry Potter

serviu de referência ao nome de um fóssil de dinossauro de 66 milhões de anos no Children’s

Museum, em Indianópolis (ASSOCIATED PRESS, 2006), nos Estados Unidos, bem como uma

espécie de caranguejo descoberto em Guam, na Micronésia, há 20 anos atrás.

A equipe que revelou esse achado ao mundo decidiu homenagear o biólogo

responsável por ela e, também, um dos personagens da série, batizando a nova espécie com o

nome de Harryplax severus. Harry pelo nome do cientista responsável pela descoberta (Harry

Conley) e severus pelo personagem de Harry Potter, Severo Snape. A homenagem se deu por

sua habilidade em guardar um dos segredos mais importantes de toda a série durante muito

tempo, assim como a espécie de caranguejo que foi vista pela primeira vez há duas décadas

atrás e que, até então, não havia sido vista novamente, mantendo-se em segredo por todos esses

anos (KEAN, 2017).

Outro exemplo na ciência é a nova espécie de aranha descoberta recentemente no

estado de Karnataka, no sul da Índia. Pela anatomia de seu corpo, em formato de cone, a aranha

descoberta pelos cientistas se assemelha muito ao Chapéu Seletor: o objeto animado que

seleciona os alunos de Hogwarts para as quatro casas da escola, e o qual pertencia a Godrico

Gryffindor, fundador da casa Grifinória. Em homenagem ao dono do chapéu, os cientis tas

batizaram a nova espécie com o nome de Eriovixia gryffindori (ALEXANDER, 2016).

Ainda na biologia, uma espécie de vespa nativa da Tailândia foi também nomeada em

homenagem à série Harry Potter após uma votação feita pelos visitantes do Museu de História

Natural de Berlim (BRUMFIELD, 2015). Sob a manchete “New ‘Soul-Sucking Dementor’ wasp

buzzes to fame on Harry Potter name”, o site da CNN noticiou o batismo da espécie de vespa

capaz de injetar neurotoxinas na cabeça de suas presas, as quais entram em uma espécie de

estado zumbi e passam a seguir seu predador. Por essas características, o inseto foi batizado

como Ampulex dementor, em homenagem aos dementadores: criaturas sombrias criadas por

Rowling que são capazes de voar e sugar a alma de uma pessoa por meio do “beijo do

dementador” (ROWLING, 2000c, p. 305).

Ao mesmo tempo que nomear um asteroide em homenagem à autora ou batizar as

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novas espécies em homenagem à série reforçam o fenômeno, tais ações atraem também a

atenção imediata e viral da comunidade para essas descobertas, as quais, como ressalta a

manchete da CNN, se beneficiam do sucesso e da fama de Harry Potter.

Ações políticas, sociais e culturais que tomam a série como referência icônica e

imagética ganham grande repercussão, e não apenas dentro da comunidade de leitores e fãs,

mas também em parte significativa da imprensa. De analogias políticas a nomeações científicas

de novas espécies descobertas por biólogos, Harry Potter movimenta tanto o próprio fenômeno

quanto os tópicos que passam a se relacionar à série e à sua comunidade global. Até mesmo os

estudos acadêmicos que tomam a série como objeto de pesquisa atraem a atenção dos fãs e

reforçam o caráter de fenômeno sociocultural (COLLETTA, s. d.).

Essa amplitude do fenômeno se dá justamente pela formação de sua comunidade de

leitores e fãs ao redor do mundo. Ainda que essa grande comunidade global seja dividida em

pequenas comunidades interpretativas (como as mais de 60 traduções), as referências à série

são tomadas com valor universal por todos os membros de sua comunidade, uma vez que a

referência cultural do fenômeno Harry Potter se baseia em características imutáveis da série,

como o caráter de seus personagens, por exemplo. Isso sem levarmos em conta o valor

sentimental que seus fãs dão à série.

Mais que uma referência literária (e ainda que essa não lhe seja negada), Harry Potter

se tornou uma referência da cultura de massa em sua amplitude. Levando em conta o

multidiálogo da série literária com as diferentes mídias (cinema, rádio, televisão, internet,

imprensa), suas referências podem ser requisitadas pelo mais jovem de seus leitores ao mais

intelectual deles.

Do ex-Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama (KOSSOFF, 2007), ao

desconhecido que se senta ao seu lado no transporte público, passando pelos mais diferentes

sujeitos ao redor do mundo, todos fazem parte de uma mesma comunidade global, a qual se

mantém em torno de uma mesma referência: o fenômeno Harry Potter.

Dessa forma, “busca-se no outro a identificação que lhe dá direito de pertencer a um

grupo ou a uma tribo”, e essa “passagem da atitude narcisista em direção à identificação tribal

e comunitária implica mudanças quanto à abordagem de questões identitárias [...]” (SOUZA,

2011, p. 33), sobretudo na era da internet e das redes sociais.

Esse senso de pertencimento a uma comunidade virtual que abriga tantas pessoas e tão

diversas entre si é certamente um de seus maiores atrativos. Sentir-se conectado a um

desconhecido na rua ou a um sujeito a milhares de quilômetros em outro país simplesmente por

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estar usando uma camisa da série, por exemplo, ou por compartilhar uma referência a Harry

Potter nas redes cosias, é algo atraente e encantador.

Ainda que a língua não seja o fator comum entre esses sujeitos, que o nível social não

seja o mesmo, ou o posicionamento político, ou ainda que o personagem favorito da série não

seja o mesmo, esses e outros fatores se tornam secundários dentro da comunidade, pois o que

os une, o que os faz se reconhecerem ainda que tão diferentes e diversos, são fatores comuns

encontrados dentro da própria comunidade e os quais são imediatamente reconhecidos por seus

membros.

Ainda que haja disparidades de uma tradução em relação a outras, por exemplo, a

formação dessa grande comunidade interpretativa não é prejudicada, pois a própria série em si

se tornou o signo central desse fenômeno. A referência cultural de Harry Potter se baseia mais

nas questões imagéticas, culturais e sociais do que nas linguísticas e literárias. O texto deixou

as páginas dos livros (para lembrarmos de Mallarmé, citado no início deste capítulo) para se

instaurar em espaços menos materiais e, por isso, mais dinâmicos: o mundo virtual e a

consciência de toda uma comunidade global.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Os livros podem ser enganosos.”

Gilderoy Lockhart (J. K. Rowling)

Esse curto regresso na teoria literária e uma rápida passagem por alguns dos seus

principais conceitos são suficientes para evidenciar as mudanças operadas em nossa relação

com a literatura. Dos modos de produção à recepção, da circulação de obras literárias à sua

interatividade com o leitor, nossa interação com a literatura na era digital não é mais a mesma

que a do último século (época em que a grande maioria dessas teorias foram formuladas).

No entanto, ainda que haja um número grandioso de críticos a essas revoluções (da

invenção da prensa ao e-book), mudanças não são novidades à literatura. Ainda que muitas

delas tenham sido inéditas, como a revolução da era digital pela qual passamos, mudanças e

adaptações não são novidades nos estudos teóricos e na própria literatura.

Os gestos mudam segundo os tempos e lugares, os objetos lidos e as razões de ler. Novas atitudes são inventadas, outras se extinguem. Do rolo antigo ao códex medieval, do livro impresso ao texto eletrônico, várias rupturas maiores dividem a longa história das maneiras de ler. (CHARTIER, 1999, p. 77)

Historicamente, nossas leituras modificam tanto a sociedade como são modificadas

por ela. A teoria, em si, já é responsável por nos mostrar essas mudanças, ainda que muitos

teóricos, ironicamente, sejam avessos a essa palavra e ao seu conceito no contexto literário. No

entanto, se não fossem essas mesmas mudanças operadas na história dos estudos literários e na

própria literatura, ainda estaríamos fadados a um elitismo do qual nem mesmo os críticos às

mudanças fariam parte. Se não fosse a comercialização dos livros, por exemplo, dificilmente

teríamos Dostoiévski traduzido e espalhado pelas bibliotecas do mundo todo (quanto menos

ainda tê-lo em casa, ao alcance da mão).

Como apresentado e discutido neste trabalho, houve um longo caminho teórico feito

até aqui (e o qual não há de parar por onde está). Do livro como monumento às comunidades

interpretativas, a teoria empreendeu um caminho de retas, curvas e vários cruzamentos (dos

quais um possibilitou a produção deste trabalho: os estudos culturais).

No intuito de apresentarmos algumas das principais influências da globalização e da

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era digital na literatura, abordamos nesta dissertação alguns dos pontos mais influentes e

relevantes desses processos em nossa relação com a literatura. Mapeando parte do fenômeno

Harry Potter, o qual se encontra em um espaço privilegiado para discutirmos várias dessas

questões, apresentamos os novos contornos teóricos, e, sobretudo, práticos, que a produção e a

recepção literárias ganham frente às novas revoluções, dos quais se destacam o texto e as figuras

do autor e do leitor.

A própria instabilidade nos estudos literários evidencia, pois, a dificuldade em se

estabelecer papéis estritamente definidos ao autor, ao texto e ao leitor. Se a literatura se faz por

meio da interatividade estabelecida entre os três, nada mais sábio do que colocá-los em comum

espaço e valor, uma vez que dependem uns dos outros para que coexistam, não apenas como

intenção, escritura ou interpretação, separadamente, mas como objeto literário em sua

totalidade.

O objeto literário é como um pião, que só existe em movimento. Para fazê-lo surgir é necessário um ato concreto que se chama leitura, e ele só dura enquanto essa leitura dura. Fora daí há apenas traços negros no papel. (SARTRE, 1993, p. 35)

Nada mais coerente do que tratar a literatura como um processo no qual seus agentes

participam de forma integrada, e não separadamente como muitos ainda insistem. Como

qualquer outro processo cultural, a literatura se faz do contato e da interação social, intelectua l,

histórica, política, dentre vários outros fatores, sobretudo quando se pensa no pós-modernismo.

A cultura pós-moderna é, certamente, a mais ampla e influente, pois se adapta como

nenhuma outra aos movimentos sociopolíticos e aos adventos tecnológicos. Não restrito apenas

a esses fatores, o pós-modernismo é flexível o bastante para comportar os novos rearranjos

culturais e apresentar-se como campo fértil a novos estudos teóricos.

Ainda que a revolução digital possa inaugurar um novo tempo nos estudos

sociológicos e culturais (e certamente o fará nos próximos anos), essa nova era cultural terá

sido influenciada em grande parte pelo pós-modernismo, pois esse novo tempo não se

caracterizaria como uma ruptura, mas como uma adaptação da própria cultura pós-moderna à

era digital.

A cultura pós-moderna é a cultura em que operam todos os pós-modernismos, ora em sinergia, ora em competição; uma vez que a cultura contemporânea [...] é transnacional, a cultura pós-moderna é global – embora isso não signifique, de maneira alguma, que ela seja a cultura de todas as pessoas do mundo. (APPIAH, 1997, p. 201)

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Alvo de críticas dos teóricos dos mais diversos campos dos estudos da arte e da

sociologia (HARVEY, 1991; JAMESON, 1991; dentre tantos outros), o pós-modernismo é, por

vezes, acusado de transformar a arte em objeto de mercado, quando, na verdade, ele funciona

mais como um espaço conceitual no qual essas interações entre capitalismo e arte, globalização

e cultura, dentre outras, encontram um aporte teórico e podem ser estudadas para muito além

de sua superficialidade.

[O]s estudos literários podem superar o elitismo enraizado (como cada vez mais aspiram a fazê-lo) abordando a literatura tanto como textos no mundo quanto como objetos materiais comoditizados – como fenômenos comerciais – no mundo. Ou, em outras palavras, a democratização dos estudos literários pode acontecer trazendo os aspectos do mercado da literatura nas equações analíticas dos estudos literários. (GUPTA, 2009a, p. 157, tradução nossa)41

Historicamente trabalhado por críticos e teóricos simplesmente como um fenômeno de

venda, resultante, em grande parte, das influências dos pós-modernismos e da ação do

capitalismo na produção artística, foram negados por muito tempo ao best-seller (e ainda hoje

o é!) estudos mais profundos de seu caráter sociocultural antes que simplesmente

mercadológico.

Entretanto, se deslocarmos o lugar de onde produzimos juízos cultos e assumirmos a perspicácia popular, poderemos enxergar as ‘operações mediadoras’ através das quais a indústria cultural se aproxima do ‘povo’ (categoria diferente da ‘classe social’). Vai-se poder localizar, então, na cultura industrializada para o consumo das massas, elementos da tradição narrativa e imagística do povo [...] Ao se indagarem sobre os usos populares do produto de massa, ao procurarem ir além das frias avaliações de audiência ou das sondagens do mercado, professores secundários e universitários poderão inclusive aproximar-se da literatura de massa como material de ensino.” (SODRÉ, 1985, p. 71-72)

Apelar unicamente aos números de venda é minimizar os fatores sociais e políticos

que orbitam ao redor do fenômeno best-seller que não apenas o capitalismo, como o fazem

muitos de seus críticos. “O fascínio duradouro dessa literatura indica que não se pode estudá- la

com uma visão simplista e redutora” (SODRÉ, 1985, p. 71).

41 “[…] literary studies may overcome its ingrained elitism (as it increasingly aspires to do) by approaching

literature as consisting both of texts in the world and of commodified material objects – as commercial phenomena

– in the world. Or, in other words, the democratization of literary studies may happen by bringing the market

aspects of literature within analytical equations of literary studies.”

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O estudo freqüente da produção dos best-sellers no mundo da edição impressa é agora uma questão quase obsoleta. O problema do presente é a cadeia de produtos derivados. É inútil manter um discurso de rejeição total, absoluta, como se a qualidade fosse por essência estranha à cultura de massa. É preciso antes compreender os critérios que vigoram na construção das produções que dão origem a esses produtos derivados. E a meu ver é a partir daí que se deve raciocinar para além de um discurso nostálgico e melancólico ou de uma cólera denunciadora, que tem suas razões, mas é impotente diante de uma evolução demasiado poderosa. (CHARTIER, 1999, p. 148)

Diferentemente do que muitos críticos dos best-sellers pensam e até mesmo

argumentam, a mercantilização da obra literária não é exclusivamente produto do capitalismo

tardio, muito menos se limita às influências pós-modernistas na arte.

Como foi notado, em 1500 já haviam sido impressos pelo menos 20 milhões de livros, assinalando o começo da “era da reprodução mecânica” de Benjamin. Se o conhecimento pelos manuscritos era um saber restrito e arcano, o conhecimento pela letra impressa vivia da reprodutibilidade e da disseminação. (ANDERSON, 2015, p. 71)

Ainda segundo Benedict Anderson, e ao encontro de uma das ações do mercado

tratadas neste trabalho, “[c]om efeito, Lutero se tornou o primeiro autor de best-sellers

conhecido como tal. Ou, em outras palavras, o primeiro autor capaz de ‘vender’ os seus novos

livros pela fama do próprio nome” (ANDERSON, 2015, p. 74). Dessa forma, podemos perceber

que a influência dos best-sellers em novas perspectivas de conceitos teóricos consagrados

(como o de autoria) não é uma novidade.

Utilizando-se de um discurso alarmista e aparentemente zeloso, a grande maioria dos

críticos do best-seller atentam para o suposto risco que a (L)iteratura corre hoje ao “render-se”

às tentações do mercado (como se o capitalismo existisse somente após Marx e Engels terem

denunciado as opressões do mercado e da indústria em seu Manifesto Comunista, em 1848),

quando, na verdade, a mercantilização das obras literárias não é uma novidade dos dois últimos

séculos, mas, no mínimo, de quatro séculos atrás.

Sendo uma das primeiras formas de empreendimento capitalista, o setor editorial teve de proceder à busca incansável de mercado, como é próprio ao capitalismo. Os primeiros editores estabeleceram ramificações por toda a Europa [...] E, como os anos de 1500-50 foram um período de excepcional prosperidade europeia, o setor editorial participou desse boom geral. (ANDERSON, 2015, p. 72)

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Considerando as devidas proporções, o best-seller não é uma exclusividade de nosso

tempo. Ainda que estejamos em uma época propícia para a sua produção e para uma ação mais

coordenada do mercado na produção cultural (em especial, nesta dissertação, na produção

literária e em seus subprodutos), o sucesso mercadológico dos livros não é nenhuma novidade.

No entanto, esse sucesso não se resume aos números.

Com o objetivo de mapear parte do fenômeno Harry Potter, sobretudo a criação e

manutenção de sua comunidade global, este trabalho se pautou nos principais fatores que

influenciaram a ocorrência da série como um fenômeno sociocultura l mais do que simplesmente

um fenômeno literário ou mercadológico.

Reconhecer as indissociáveis, porém, muitas vezes negadas intervenções

socioculturais na literatura é reconhecer que os estudos teóricos não serão para todo sempre

satisfatórios (como já visto neste trabalho), e que os papéis dos críticos e dos pesquisadores e

acadêmicos nem sempre serão requisitados, e nem sempre as fontes estarão diretamente ligadas

aos estudos literários, mas, antes, aos estudos socioculturais.

O papel do crítico é ao mesmo tempo reduzido e ampliado. Ampliado na medida em que todo mundo pode tornar-se crítico. Este foi o sonho das Luzes e, talvez, o do fim do século XVIII: por que todo leitor não poderia ser considerado capaz de criticar as obras fora das instituições oficiais, das academias, dos sábios? É a querela dos Antigos e dos Modernos na França, no fim do século XVIII, que faz nascer uma ideia segundo a qual cada leitor dispõe de uma legitimidade própria, do direito a um julgamento pessoal. (CHARTIER, 1999, p. 17)

Muitas foram as re-formulações na teoria literária e tantas outras ainda surgirão frente

ao impacto da globalização e da era digital na cultura como um todo. Enquanto não pensarmos

a literatura como um processo cultural, o qual se adapta aos cenários históricos e sociais nos

quais se encontra inserido, estaremos fadados aos conflitos em vez dos debates, mais presos ao

ideal do que à prática, e continuaremos ainda pautados em valores mais do que em conceitos.

Textos literários não são tratados como objetos autônomos ou atemporais; estão articulados com atores e suas condições socioculturais de ação. Conseqüentemente, os textos não são vistos como possuindo seu significado e sendo literários; em vez disso são os sujeitos que constroem significados a partir de textos e eles percebem e tratam textos como fenômenos literários em seu domínio cognitivo pela aplicação de normas linguísticas e convenções que internalizaram no processo de socialização nos seus respectivos grupos sociais. (SCHMIDT, 1996, p. 113)

Ainda que nossa fundamentação teórica tenha se baseado em grande parte nos estudos

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teóricos da literatura, esta pesquisa requer um olhar cultural acima de tudo. O mundo

globalizado no qual vivemos, a ação do capitalismo em nossas relações com esse mundo e a era

digital na qual fomos inseridos nos últimos anos (e da qual não há prognósticos de sairmos tão

cedo), são apenas alguns dos fatores socioculturais que justificam este trabalho.

Se antes alguns teóricos já atentavam para a importância do diálogo entre a literatura

e os estudos socioculturais (RAMA, 1982; POLAR, 2000; SAID, 2007; dentre outros), quanto

mais agora e nos próximos anos.

Acho que estamos passando por uma fase em que teremos também de dialogar com as formas canônicas do saber, como a filosofia, a história, a sociologia, pois só assim iremos perceber que a literatura é um diálogo extremamente rico. (SANTIAGO, 2008b)

As influências tecnológicas em nossa relação com o mundo vêm ocorrendo em um

ritmo cada vez mais acelerado e aparentemente sem retorno. Sem entrarmos no mérito das

vantagens ou desvantagens resultantes dos avanços tecnológicos, talvez sejamos as últimas

gerações a presenciarmos as mudanças radicais da tecnologia em nossa relação com a arte e

com o mundo como um todo.

Se as gerações mais recentes já não sofrem o mesmo impacto dessas tecnologias como

aqueles que nasceram em um mundo analógico, quanto menos sofrerão aqueles que já nascem

na era digital, em um mundo sem fio e, ainda assim, conectado como nunca antes na história.

Em uma época em que a senha do Wi-Fi antecede o abraço de boas-vindas e o contato e

compartilhamento virtual de imagens e textos digitais se prolifera pela rede mundial em ritmo

acelerado, isso não significa o fim do livro como o conhecemos hoje, mas, certamente, implica

modificações significativas em nossas leituras.

O número de usuários de aplicativos e plataformas de leitura digital teve um aumento

significativo nos últimos anos, bem como a busca por críticas e resenhas feitas em blogs e sites

de literatura, canais no YouTube, fóruns de discussão ou em grupos de leitura no Facebook.

Além dessa busca por novas plataformas de leitura (a exemplo do Pottermore) e a

procura por resenhas e críticas feitas por leitores não acadêmicos ou especializados em

literatura, é preciso destacar o crescente número de autores independentes no universo digita l,

os quais lançam seus livros em formato e-book e os publicam diretamente em plataformas de

leitura, como o Kindle, sem a necessidade de um aporte editorial.

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[N]a medida em que estes espaços virtuais de comunicação ganham maior visibilidade, com um público heterogêneo acessando conteúdos artísticos existentes neles, é possível reconhecê-los como alternativas a suportes hoje tidos como legitimadores da arte, como espaços expositivos (museus, galerias, cinemas, teatros) e produtos editoriais (livros, revistas). (MATOS, 2009, p. 1-2)

Assim como o contínuo aprimoramento das técnicas cinematográficas não apaga o

cinema como arte, mas, ao contrário, dá novo fôlego a ele, a literatura não corre o risco de ser

ofuscada pelas telas dos computadores, tablets e smartphones, a menos que ela (por meio de

seus escritores, críticos e pesquisadores) insista em negar a revolução pela qual estamos

passando. “[R]efletir sobre as revoluções do livro e, mais amplamente, sobre os usos da escrita,

é examinar a tensão fundamental que atravessa o mundo contemporâneo, dilacerado entre a

afirmação das particularidades e o desejo do universal” (CHARTIER, 1999, p. 133).

Assim como a prensa de Gutenberg revolucionou o acesso ao texto (isso sem levarmos

em conta suas consequências políticas e sociais, como a alfabetização na Europa e o

fortalecimento da Reforma), ou como o livro ilustrado é (ainda hoje) um atrativo ao leitor, as

novas plataformas de leitura e as ferramentas das quais o texto digital pode dispor são tanto

uma revolução quanto um atrativo à leitura.

No entanto, é preciso nos distanciarmos um pouco do presente para percebermos o

tamanho e a importância dessas revoluções, seja voltando ao passado ou projetando o futuro,

pois ainda nos encontramos dentro de todo o processo. Coube a nós, por sorte ou azar, sermos

a geração de transição, à qual resta arcar com as consequências de adaptar-se ou negar-se às

mudanças em nossa relação com a literatura.

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