Haveria Uma Arte Após o Fim Da Arte - Ansel Jappe

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    HAVERIA UMA ARTE APS O FIM DA ARTE?

    de Ansel Jappe

    Traduo de Juliano Bonamigo

    Os situacionistas anunciaram, nos anos cinquenta e sessenta o ultrapassamento

    [dpassement] e a realizao da arte. Para eles, a arte havia perdido sua razo de ser e sua histria

    estava terminada. Guy Debord reafirmou em 1985 que esta proclamao no era exagerada, pois

    aps 1954 jamais vimos aparecer, onde quer que seja, um s artista ao qual pudssemos

    reconhecer um verdadeiro interesse1.

    Se levamos as teses situacionistas a srio e tornou-se difcil no faz-lo ento surge,

    inevitavelmente, a questo: como colocar-se hoje em dia frente produo artstica quecontinuou no meio-sculo que nos separa da fundao da I.S. (Internacional Situacionista), e em

    propores antes inimaginveis? Condenar em bloco essa produo com certeza muito

    coerente, e ela mesma oferece numerosas razes para faz-lo. Mas isso no d nenhuma

    explicao sobre o fracasso do projeto histrico de realizar a arte na vida, fracasso que igualmente

    caracterizou esse meio-sculo. O ultrapassamento da arte tentado pelos situacionistas foi, em

    verdade, um projeto de salvar a arte2, uma ltima grande declarao de amor pela arte e pela

    poesia, julgadas demasiado importante para serem deixadas aos artistas e s instituies culturais.

    No era a criatividade artstica que os situacionistas consideravam como vencida, mas a funosocial da arte, tornada, segundo eles, incapaz de conter as riquezas possveis da vida humana3.

    A realizao da arte ao menos tal como os situacionistas a imaginavam no

    aconteceu. A tomada do cu caiu por terra, a sociedade capitalista espetacular, seriamente

    sacudida em meados de 1970 (e havia somente revolucionrios exaltados para afirm-la basta

    ler os relatrios do patronato da poca4) restabeleceu seu reino sem divises, que v agora

    despontar em seu horizonte no mais a revoluo, mas a queda definitiva na anomia. Nessa

    1Guy DEBORD, prefcio de Potlach 1954-1957, ditions Grard Lebovici, Paris, 1985 (agora em Guy DEBORD,uvres, Gallimard, collection Quarto, Paris, 2006, p. 131).

    2Talvez essa tenha sido a nica tentativa possvel, a nica possibilidade de progredir no mesmo momento em que osneo-dadaismos no faziam outra coisa que retomar aquilo que j havia sido feito, admitindo implicitamente que ahistria da arte estava terminada e que tratava-se somente de despojar seu cadver. Nesse sentido, a I.S. foiefetivamente a ltima vanguarda.

    3Em geral, negligencia-se o fato de que os situacionistas utilizavam o termo ultrapassar [dpasser] a arte em doissentidos diferentes: num caso, ultrapassado vale como obsoleto, vencido, caduco, defasado em relao aotempo e este tipo de ultrapassamento era, segundo eles, um fato j dado em sua poca. O outro sentido deultrapassar o aufhebenhegeliano: ir mais alm, criar o novo conservando os elementos vlidos do antigo. Esse tipode ultrapassamento restava por ser efetuado, para eles, em sua poca no mais na esfera artstica, mas graas auma revoluo social.

    4Por exemplo, aqueles citados em Luc BOLTANSKI e ve CHIAPELLO, Le nouvel esprit du capitalisme, Gallimard,Paris, 1999, p. 249.

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    situao, a arte, que nos anos sessenta poderia, aos olhos das mentes mas avanadas, parecer

    muito poucoem relao ao grandioso desenvolvimento possvel5, teria hoje o papel de ltimo

    refgio da liberdade. Se no a riqueza humana realizada, poderia ser ao menos aquilo que dela

    surgiu, a lembrana, o anncio de sua vinda possvel. Isso seria ainda melhor que nada. Poder-se-

    ia, portanto, finalmente dar razo s teses de Theodor W. Adorno com um argumentaosituacionista, e sobretudo sua afirmao: porque no existe nenhum progresso no mundo,

    que existe um na arte; preciso continuar6.

    Mas, se do ponto de vista de uma crtica radical do mundo existente (que encontra

    necessariamente uma de suas razes no pensamento de Debord) parece possvel em funo da

    evoluo histrica, e por falta de coisa melhor admitir novamente a possibilidade de umaarte

    contempornea em geral, isso no significa necessariamente fazer o elogio desta arte

    contempornea, ou seja, da produo artstica que efetivamente aconteceu aps 1975. A reflexo

    terica no tem por tarefa justificar o presente ou glorific-lo e isto verdade no somente

    para a poltica ou para a economia, mas tambm para a arte7. Antes de analisar o que fazem os

    artistas de hoje (ou aqueles que o mercado, a mdia e as instituies identificam como tais), talvez

    seria preciso fazer uma pergunta preliminar: que expectativas se podem formular legitimamente

    em relao arte contempornea?

    claro que alguns negaro a priori a relevncia de todo discurso sobre a arte

    contempornea fundada sobre uma teoria social. Hoje em dia, na democracia plural evocada

    untuosamente a cada dia, cada um, artista e pblico, livre, diz-se, para fazer suas escolhas na

    pluralidade das prticas e de nelas efetuar seu zappingsegundo suas vontades. Todo o juzo de

    valor que se pretenda objetivo, sobretudo se ele se baseia sobre consideraes no estritamenteinternas obra, passa, ento, por dmod, ou mesmo por totalitrio.

    No h nenhuma objeo que se possa fazer a essa concepo liberal da arte: cada um

    efetivamente livre para nela entregar-se, bem como livre para comer no McDonalds, para

    assistir televiso ou votar nas eleies. Por outro lado, aqueles que no se acomodam, ou que

    pretendem ao menos que deveria ser possvel elaborar alguns critrios que no fossem puramente

    subjetivos para falar dos produtos culturais e julgar sua importncia, talvez estariam de acordo

    sobre esse ponto de partida mnimo: as produes culturais fazem parte da esfera simblica,

    dessas estruturas com as quais os homens sempre tentaram representar e explicar a si mesmos a

    vida e a sociedade, e s vezes, tambm, critic-las. Pode-se ento questionar-se sobre a capacidade

    da arte contempornea em criar smbolos que no sejam puramente pessoais, mas que

    5Dominao da natureza, ideologias e classes, em Internationalle Situationniste, n 8, 1964.

    6Theodor W. Adorno, Thorie esthtique[1970], tr. fr. Klincksiek, Paris 2004, p. 289.

    7Se permitido desqualificar publicamente todos os sistemas de governo contemporneos, no h razo pela qualseria interditado, a priori, fazer a mesma coisa com a arte contempornea. Houve outras pocas culturais que emseguida foram consideradas como ridculas (por exemplo o eufusmo do sculo XII ou a pintura pompire), emconjunto com os tericos que as adularam. No se pode colocar em petitio principii: Isso existe, muitas pessoas oapreciam e at mesmo pagam para t-lo, portanto isso tem valor.

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    correspondam a um vivido mais vasto, e sobre essa base poder-se-ia arriscar algumas opinies

    sobre as criaes de hoje.

    A questo no deve ser colocada de maneira abstrata: no se trata de determinar uma

    essncia intemporal da arte, mas de falar do hic et nunc. Quais so os traos essenciais da vida de

    hoje que exigem uma traduo sobre o plano simblico? No pode tratar-se simplesmente deinjustias, de guerras ou de descriminaes, pois essas formam desde h muito tempo a trama da

    existncia social. Mais especificamente, a poca contempornea distingue-se pela prevalncia

    doravante total desse fenmeno que Karl Marx j chamava defetichismo da mercadoria. Esse termo

    indica muito mais que uma adorao exagerada das mercadorias, e ele tambm no se refere a

    uma simples mistificao. Na sociedade moderna capitalista e industrial quase toda

    atividade social toma a forma de uma mercadoria, material ou imaterial. O valor de uma

    mercadoria determinado pelo tempo de trabalho necessrio para sua produo. No so as

    qualidades concretas da mercadoria que decidem seu destino, mas a quantidade de trabalho que

    nela est incorporada e esta expressa-se sempre em uma soma de dinheiro. Os produtos do

    homem comeam assim a levar uma vida autnoma, regida pelas leis do dinheiro e de sua

    acumulao em capital. O fetichismo da mercadoria deve ser tomado literalmente: os homens

    modernos tal como aqueles que eles chamam de selvagens veneram aquilo que eles

    prprios produziram, atribuindo a seus dolos uma vida independente e o poder de govern-los

    em seu lugar. No se trata de uma iluso ou de uma enganao, mas do modo de funcionamento

    realda sociedade mercantil. A lgica da mercadoria domina doravante todos os setores da vida,

    muito alm da economia (e a teoria do espetculo de Debord permanece uma das melhores

    descries disso). Enquanto mercadorias, todos os objetos e todos os atos so iguais. Eles noso nada alm de quantidades maiores ou menores de trabalho acumulado e, portanto, de

    dinheiro. o mercado que realiza essa homologao, para alm das intenes subjetivas dos

    atores. O reino da mercadoria , portanto, terrivelmente montono e at mesmo sem contedo.

    Uma forma vazia e abstrata, sempre a mesma, uma pura quantidade sem qualidade o dinheiro

    se impe pouco a pouco multiplicidade infinita e concreta do mundo. A mercadoria e o

    dinheiro so indiferentes ao mundo, que para eles no passa de um material a ser utilizado. A

    prpria existncia de um mundo concreto, com suas leis e suas resistncias, finalmente um

    obstculo para a acumulao do capital que no tem outro objetivo que ele prprio. Para

    transformar cada soma de dinheiro em uma soma maior, o capitalismo consome o mundo inteiro

    sobre o plano social, ecolgico, esttico, tico. Por trs da mercadoria e de seu fetichismo

    esconde-se uma verdadeira pulso de morte, uma tendncia, inconsciente mas poderosa, ao

    aniquilamento do mundo.

    O equivalente do fetichismo da mercadoria na vida psquica individual o narcisismo. Aqui

    este termo no indica somente uma adorao de seu prprio corpo ou de sua prpria pessoa.

    Trata-se de uma grave patologia, bem conhecida em psicanlise: uma pessoa adulta conserva a

    estrutura psquica de todos os primeiros anos de sua infncia, quando ainda no h distino

    entre o eu e o mundo. Todo objeto exterior vivido pelo narcisita como uma projeo de seuprprio eu, mas este eu resta terrivelmente pobre devido sua incapacidade de enriquecer-se nas

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    verdadeiras relaes com objetos exteriores de fato, o sujeito, para faz-lo, deveria antes

    reconhecer a autonomia do mundo exterior e sua prpria dependncia em relao a ele. O

    narcisista pode aparecer como uma pessoa normal; na verdade, ele jamais saiu da fuso

    originria com o mundo em seu entorno e faz tudo para manter a iluso todo-poderosa que disso

    resulta. Esta forma de psicose, rara poca de Freud, tornou-se, ao longo do sculo, uma dasprincipais afeces psquicas; pode-se ver traos dela quase em todos os lugares. No por acaso:

    encontra-se a mesma perda do real, a mesmaausncia do mundo de um mundo reconhecido em

    sua autonomia fundamental que caracteriza o fetichismo da mercadoria. Alm disso, essa

    negao resoluta de um mundo independente de nossas aes e de nossos desejos representou,

    desde o incio, o centro da modernidade: o programa anunciado por Descartes quando este

    descobre, na existncia de sua prpria pessoa, a nica certeza possvel.

    Ora, podemos esperar que a arte contempornea, caso ela queira ser mais do que um

    ramo da indstria cultural, se d conta do grave desequilbrio da relao entre o homem e seu

    mundo, que no um destino metafsico, mas a consequncia lgica da mercadoria. Gyrgy

    Lukcs j criticava na arte de vanguarda sua falta de mundo; hoje este termo toma uma nova

    significao. Parece, pois, legtimo de esperar a apario de obras que deixem entrever a

    possibilidade de parar a deriva em direo ao no-humano e que salvaguardem o horizonte

    ltimo de uma reconciliao futura entre o homem e o mundo, o homem e a natureza, o homem

    e a sociedade, mas sem trair esta perspectiva com a pretenso de sua realizao imediata, ou j

    advinda. Pode-se discernir uma tal orientao em direo reconciliao nas obras em senso

    expandido que do uma verdadeira ateno a seu material, seja ele pedra, tecido, o ambiente, acor ou o som. O mundo est cheio de arquitetos que ignoram todas as propriedades dos

    materiais que empregam (a nova Biblioteca Nacional de Paris um caso escolar), de estilistas que

    no sabem como cai um tecido, de pintores que seriam incapazes de desenhar uma ma. a

    cultura do projeto para a qual o material no mais do que um suporte inerte que o sujeito

    pode manipular e no qual pode depositar suas ideias. uma forma de narcisismo e de

    degenerao do mundo, ressentido como muito indcil aos desejos todo-poderosos do

    consumidor. Explorar as potencialidades e os limites do material, do som, das palavras, e ver

    onde eles podem chegar juntos, em vez de curv-los sua vontade, constitui assim um primeiro

    passo em direo a uma relao menos violenta com o mundo, com os outros homens, com a

    natureza. Isso no uma defesa da arte objetiva ou uma recusa da introspeco e de toda obra

    na qual o sujeito ocupa-se de si mesmo: pode-se compreender, e dizer, muitas coisas sobre o

    mundo olhando para o interior de si (e tambm se pode falar do mundo exterior sem nele

    encontrar outra coisa que reflexos de si mesmo).

    A lgica fetichista atravessa a sociedade inteira e tambm cada indivduo. Ela no permite

    distinguir claramente entre atores e vtimas, opressores e oprimidos, exploradores e explorados,

    bons e maus. Todos e cada um participam desta lgica (mas, evidentemente, no da mesma

    maneira). por isso que a boa vontade (por exemplo, a inteno de lutar contra os preconceitosou pelas vtimas da AIDS) no suficiente. Impelir os indivduos a serem um pouco mais gentis

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    e conviviais em sua vida cotidiana, como prope a esttica relacional, degrada a arte a uma

    terapia contra a frieza do mundo. Se ela quer romper a dureza dos indivduos fetichistas e

    narcisistas, a prpria arte deve ser dura e difcil. Isso no quer dizer voluntariamente crptica, mas

    exigente. A arte, se ela no deseja participar da marcha deste mundo, deve abster-se de ir ao

    encontro das pessoas, facilitar suas vidas, tornar a sociedade mais simptica, ser til, agradar;ela permanece mais fiel sua vocao quando ela se ope comunicao fcil e esfora-se em

    confrontar seu pblico com algo maior que ele. Esta arte deve atingir no as convenes

    morais j completamente estremecidas8, mas a obstinao dos seres humanos em sua existncia

    emprica, sua petrificao nas categorias correntes (o que hoje em dia no exclui a liquefao mais

    extrema). Idealmente, no so as obras que devem agradar aos homens, mas os homens que

    deveriam tentar ser suficientess obras. No cabe ao espectador/consumidor escolher sua obra,

    mas obra de escolher seu pblico, determinando quem digno dela. No cabe a ns julgar

    Baudelaire ou Malevitch; so eles que nos julgam e que julgam nossa faculdade de julgamento. A

    obra, nesta perspectiva, no deve estar a servio do sujeito que a contempla. Poderamos dizer

    da arte o que vale para a tica: ela estabelece os parmetros, ela indica a qu os indivduos

    deveriam esforar-se para chegar e no o contrrio. Uma das funes da arte foi sempre a de

    mostrar aos indivduos um mundo superior, onde se encontraria a liberdade e a intensidade das

    quais a falta se fazia sentir to cruelmente na vida cotidiana. A arte deixava entrever modos de

    vida mais altos e mais essenciais, tanto na epopia como na primeira pintura abstrata e

    confrontava assim o indivduo com o estado do mundo real.

    Mas ser que este gnero de obras mais essenciais chegar? Os sinais no so

    encorajadores. muito mais fcil controlar um constato do mundo atual do que indicar obrasque verdadeiramente se do conta disto, ou somente de imagin-las concretamente. Ainda menos

    vemos avanar uma corrente artstica coerente capaz de assumir o estado do mundo, assim como

    o fez a pintura abstrata, reagindo ao devir-abstrato da vida social no comeo do sculo XX, ou os

    surrealistas, de um lado, e os construtivistas, de outro, oferecendo diferentes instrumentos para

    reagir irrupo da sociedade industrial na vida cotidiana e ao desencantamento do mundo.

    No se pode dizer o mesmo da eterna repetio do gesto de Marcel Duchamp. O

    mictrio que ele exps em 1917 como fonte foi uma provocao bem concebida; em seguida

    ele se tornou um certificado de nobreza para expor no importa qual objeto como obra de arte,

    eliminando assim toda ideia de uma obra excelente ou sublime. Vale a pena lembrar que o

    prprio Duchamp foi o primeiro a afirm-lo, com a ambiguidade que o caracteriza. Em 1962 ele

    disse ao ex-dadaista Hans Richter: Este neo-Dada que se chama agora Novo Realismo, Pop-

    arte, assemblage, etc., uma distrao barata que vive daquilo que o Dada fez. Quando eu descobri

    o ready-made, eu esperava desencorajar este carnaval de estetismo. Mas os neo-dadaistas utilizam

    8 Quanto pretenso da arte contempornea em ser subjetiva, no falemos disto. Na verdade, existe ainda, enovamente, muitos tabus nesta sociedade, mas a arte contempornea no os confronta jamais. Sem lanar mo dodesagradvel, ou do ilegal, seria suficiente, para suscitar um escndalo, questionar certas coisas que passam, emtodo canto, por naturais e positivas: a democracia liberal e o pluralismo, a inseminao artificial e a dissecao decadveres, o transplante de rgos, o divrcio fcil, os transportes mecanizados, a instruo obrigatria...

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    os ready-madespara descobrir neles um valor esttico. Eu lhes atirei os porta-garrafas e o mictrio

    na cabea como uma provocao, e eis que eles admiram neles a beleza9.

    A questo no de saber se oQuadrado Brancode Malevitch, ou aFontede Duchamp, ou,

    no limite, a Cadeirade Kosuth so ou no so obras de arte em um sentido absoluto. Elas o eram

    no momento histrico em que apareceram: porque era a primeira vez, e porque um processolongo e doloroso foi necessrio para chegar a e os artistas se deram conta disto. Mas, uma vez

    produzidas, estas obras no podiam mais ser repetidas no dia seguinte, seria completamente

    ridculo refazer esta operao quanto descobrir hoje em dia a estrutura das molcula 10. Nisso a

    arte radicalmente no democrtica. Ela coloca os artistas a seu servio e no vice-versa: no

    possvel a todo o mundo poder tudo fazer a todo momento. tarde demais para fazer

    monocromatismo ou ready-made. Aqueles que nasceram mais cedo j o fizeram, eles ficaram

    com tudo e no deixaram nada para a posteridade. Isso uma injustia histrica, um pouco como

    o fato de que em nosso nascimento ns encontramos a terra j repartida h muito tempo.

    Frequentemente sente-se junto aos criadores contemporneos uma espcie de raiva porque j

    se foi to bem feito no passado. Se a arte deve ser algo mais do que uma maneira de aspirar ao

    florescimento pessoal, servindo-se no balco das possibilidades, a situao do artista

    contemporneo efetivamente pouco invejvel. No preciso amar os homens, mas aquilo que

    os devora.

    Igualmente sem perspectivas parece ser outro dos principais procedimentos artsticos de

    hoje: aquele que se resume nas palavras de reutilizao, de mixagem, de citao ou de plgio e

    que pode at reivindicar-se da desapropriao [dtournement] situacionista. Ele possui um sentido

    somente em relao a uma comunidade de pessoas tendo as mesmas referncias culturais que ao menos no interior desse grupo tm valor de clssicos, e que as mantm por um certo

    perodo seja a literatura grega para as pessoas cultivadas do sculo XX ou a literatura

    surrealista para os jovens letristas. Em um tal contexto, pode-se mesmo criar obras inteiramente

    compostas a partir de citaes. Hoje nenhuma herana cultural mais universal, mesmo no

    interior, por exemplo, do pblico da msica rock, para o qual Chuck Berry doravante to longe

    quanto Beethoven11. Nessas condies, servir-se de criaes j existentes no significa outra coisa

    seno brincar com um console tal como um DJ: a criatividade para todos, graas ao

    supermercado.

    Essa situao atual da arte contempornea, deplorada inmeras vezes, uma simples

    aberrao? culpa dos artistas, dos museus, das instituies? Pode-se vislumbrar uma correo

    da situao? Uma grande conferncia de todos os profissionais da arte que decidem tudo mudar

    no mundo da arte? H artistas por valorizar, que so atualmente injustamente negligenciados,

    9Citado em Marc Jimenez, La querelle de lart moderne, Gallimard, Paris, 2005, p. 83.10No entanto, no seria impossvel continuar sobre o caminho traado por Kankinsky ou pelos surrealistas nestecaso tratar-se-ia de tcnicas.11Uma estudante que disse-me escutar habitualmente msicas antigas precisou em seguida o que ela entendia poresta expresso: rock dos anos 1970.

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    mas que poderiam endireitar as coisas? preciso refazer os programas das escolas de arte?

    Empregar diferentemente os recursos que o Estado garante para a cultura? Certamente. O

    problema mais grave. o estado atual da sociedade, e a evoluo a que ela chegou, que tornam

    to difcil qualquer outra situao da arte. O problema que, depois de que algo como a arte

    existe partir da Renascena jamais seu papel foi to pequeno, jamais sua existncia foi tomarginal, mesmo que jamais tenhamos visto uma tal quantidade de artistas e uma tal massa de

    informaes e de conhecimentos artsticos circular junto ao pblico, e filas to longas diante das

    exposies. O problema da arte contempornea sua total falta de peso na vida coletiva, e o mais

    cmico que seus profissionais acomodam-se a isso perfeitamente pois eles jamais lucraram

    tanto12. Mas h obras que daro conta, dentro de cem anos, daquilo que ns estamos vivendo

    hoje? E h pessoas que delas ressentem a necessidade?

    12 Ao menos a produo artstica contempornea, diferentemente da grande maioria das atividades atuais, no diretamente nociva. Ela inocente. No se pode falar de uma poluio das conscincias pois a influncia real da arte nula e todos os artistas do mundo inteiro contam menos do que os ltimo dos reality shows.