Hbermas e a Esfera Pública Reconstruindo a História de uma Idéia

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    HABERMAS E A ESFERA PBLICA: RECONSTRUINDO A HISTRIADE UMA IDEIA

    Filipe Carreira da Silva

    Resumo Este artigo tem por objectivo discutir a noo de esfera pblica propostapor Jrgen Habermas. Para tanto, analisaremos trs diferentes momentos deconceptualizao desta noo, a que correspondem as obras:A Mudana Estruturalda Esfera Pblica (1962),A Teoria da Aco Comunicativa (1981) e Entre Factos e Normas(1992). A relao entre este conceito de esfera pblica e a teoria da democraciadeliberativa constitui uma outra dimenso da nossa anlise. Exercendo uma crtica

    interna ao edifcio terico habermasiano, tentaremos discutir a validade do idealhistrico sobre o qual aquele assenta, a saber, a esfera pblica burguesa dos sculosXVIII e XIX, concebida enquanto um espao de livre troca de argumentos, deacesso universal e em que as desigualdades sociais eram neutralizadas.

    Palavras-chave Esfera pblica; razo comunicativa; democracia deliberativa.

    A esfera pblica burguesa: realidade histrica ou ideal normativo?

    A obraAMudana Estrutural da Esfera Pblica (1962), que marca o incio do percursointelectual de Jrgen Habermas (1929-), partiu de duas premissas metodolgicasno negligenciveis. Habermas comea por dizer-nos que, por um lado, a cate goriade esfera pblica ou de espao pblico (ffentlichkeit) deve ser submetida a umaanlise filosfica de forma a captar a sua evoluo ao longo da histria das ideiaspolticas e, por outro, A outra peculiaridade do nosso mtodo resulta da necessi-

    dade de trabalhar ao mesmo tempo sociologicamente e historicamente (1962:xvii).1 Esta tentativa de operar, a um tempo, com uma concepo ideal normativa ecom uma noo historicamente localizada e contingente de esfera pblica, de pro -ceder a uma anlise simultnea validade da ideia de espao pblico e facticida-de da sua correspondente sociolgica, no s constitui uma fonte de ambiguidadescomo tambm concorre para comprovar a hiptese que pretendemos ver testadaneste artigo: a hiptese da continuidade e da evoluo do pensamento deHabermas.

    Em nossa opinio, em 1962, tal como em 1992,2 Habermas pretende, a di feren-

    tes nveis de sofisticao terica, re lacio narfactos e normas. A nossa interrogaoprende-se justamente com a manuteno, no final deste percurso, da congrunciapretendida no seu incio. Ser que o Habermas de hoje se preocupa tanto em con ju -gar as duas dimenses da natureza dialctica da noo de esfera pblica, a fac tu al ea normativa, como o Habermas de h trinta anos? Esta uma das questes a queprocuraremos dar resposta no final deste artigo.

    SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 35, 2001, pp. 117-138

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    Um dos nossos objectivos ser precisamente demonstrar a evoluo do pen -samento habermasiano, da historicidade e contingncia de 1962 ao universalismoa-histrico da teoria da aco comunicativa, da pragmtica formal e da tica da dis-

    cusso, a partir dos anos 70, altura em que a viragem lingustica (ou viragempara a linguagem) do seu prprio pensamento reflectiu a crescente importnciaque o estudo filosfico dos fenmenos ligados linguagem e comunicao hu ma -na foi assumindo no pensamento social contemporneo. Em nosso entender, nocontexto deste processo de evoluo do edifcio terico de Habermas, o prprio es -tatuto terico do conceito de esfera pblica foi-se transformando.

    Pretendemos, agora, e em consequncia do que acima foi exposto, apresentaruma hiptese de leitura/interpretao dos primeiros captulos da obra de 1962, luz dos mais de trinta anos de produo intelectual subsequente. De acordo com

    Habermas, As tendncias que apontam para o colapso da esfera pblica so in -desmentveis, na medida em que, se o seu mbito est a expandir-se de forma im -pressionante, a sua funo est a tornar-se insignificante, o que significa que, atra-vs de uma anlise noo de esfera pblica, podemos esperar alcanar noapenas a clarificao sociolgica do conceito, mas uma compreenso sistemticada nossa prpria sociedade do ponto de vista de uma das suas categorias centrais(1962: 5). Esta a inteno fundamental e declarada por detrs desta obra.

    Esta categoria central das sociedades ocidentais definida como se re por -tando a uma realidade histrica concreta e, simultaneamente, representando um

    ideal normativo:

    A esfera pblica burguesa pode ser concebida, antes de mais, como a esfera em quepessoas privadas se juntam enquanto um pblico; bem cedo, reclamaram que essa es-fera pblica fosse regulada como se estivesse acima das prprias autoridades pbli-cas; de forma a inclu-las num debate sobre as regras gerais que governam as relaesda esfera da troca de bens e de trabalho social basicamente privatizada, mas pu blica-mente relevante. [Para concluir que] O meio deste confronto poltico era peculiar eno tinha precedente histrico: o uso pblico da razo pelos intervenientes(ffentli-

    ches Rsonnement) (Habermas, 1962: 27).

    Desde logo, surge a questo do carcter de classe desta esfera pblica. Por que ra -zo se fala de uma esfera pblica es pe cifi ca men te burguesa? Para compreendermosesta questo devemos perceber as razes por detrs da excluso de outras ma ni fes -taes de natureza semelhante, mas de carcter classista e ideolgico di feren te. Ra-zes, alis, tambm relacionadas com uma seleco/excluso com base noutroscritrios, nomeadamente sexuais.

    Como o prprio Habermas nos diz, a principal razo por detrs desta es co -

    lha/excluso foi a predominncia alcanada pela variante burguesa da esfera p -blica: uma predominncia que excluiu a esfera pblica plebeia como uma va -riante que, em certo sentido, foi suprimida no curso do processo histrico. Aindamais significativo o comentrio onde se expressa a subordinao desta esfera p -

    blica plebeia relativamente variante burguesa: esta esfera pblica plebeia,cuja existncia continuada mas submergida se manifestou no movimento cartista e

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    em especial nas tradies anarquistas do movimento operrio do continente, con ti -nua orientada segundo as intenes da esfera pblica burguesa. (Habermas,1962: xviii).

    Esta uma questo que afasta decisivamente Habermas de Marx. Este l ti -mo, ao contrrio daquele, elabora uma proposta para uma esfera pblica ps-bur -guesa como resultado da crtica esfera pblica burguesa existente. A crtica mar -xiana esfera pblica burguesa decorre da sua crtica economia poltica, em queassentava o sistema econmico capitalista e o processo de valorizao do capitalque lhe subjaz. Desta forma, Marx identifica algumas contradies no seio da ideiade esfera pblica da sociedade civil burguesa do sculo XIX:

    no existe igualdade de oportunidades de acesso a qualquer dos critrios de

    admisso esfera pblica; logo, a acessibilidade universal uma fico, com um propsito objectivo: alegitimao do interesse de classe burgus enquanto interesse universal, por -que generalizvel;

    os proprietrios privados no so, por si ss, seres humanos. Ou seja, a iden ti -ficao en tre bour geois e homme uma outra fico legitimadora: da que o con -trolo sobre a propriedade privada no pudesse ser identificado com a li berda -de de seres humanos autnomos;

    finalmente, no se pode identificar, tal como Hegel j havia assinalado, opi -

    nio pblica e razo.

    Em suma, tanto o estado de direito burgus como a esfera pblica, enquanto seuprincpio constitutivo, so meros artifcios ideolgicos aquilo que esta ltimapromete no pode ser conseguido enquanto subsistir a separao entre a soci e da decivil e o estado.

    A relao entre o alargamento da base social de apoio da esfera pblica a sec -tores no burgueses e a concepo de uma alternativa ps-burguesa era ntida emMarx. Para este, a tendncia para o sufrgio universal implicaria necessariamente

    uma transformao funcional da esfera pblica burguesa. Por outras palavras, oargumento marxiano pode ser descrito da seguinte forma.Em primeiro lugar, no contexto da separao entre sociedade e estado, a esfe -

    ra pblica viu a sua funo poltica definida: a defesa pblica do carcter privadoda sociedade. Em segundo lugar, Marx previa que em meados do sculo XIX, com aincluso de classes no burguesas no espao pblico, este deveria ser, dada a suadialctica interna, transformado radicalmente: as classes sociais que agora contro-lavam a esfera pblica tinham um interesse de classe prprio e, portanto, diferentedo interesse de classe burgus. Consequentemente, e dado que estas classes no

    eram, por definio, proprietrias, no tinham qualquer interesse em manter umasociedade civil enquanto esfera privada, o que culminaria necessariamente numatransformao estrutural da esfera pblica burguesa. Esta passaria a tematizar aprpria forma de reproduo social, e no apenas a sua forma de apropriao pri -vada, como at a acontecia. Uma esfera pblica radicalmente democrtica comoesta, tornar-se-ia, em princpio, uma esfera de deliberao pblica sobre a forma de

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    administrao de todos os aspectos da vida social necessrios sua reproduo: acondio para que tal acontecesse era a socializao dos meios de produo. Umavez atingido tal objectivo, a esfera pblica seria, ento, capaz de cumprir aquilo

    que sempre prometera: a racionalizao da dominao poltica, a dissoluo do po-der poltico em po derpblico.

    Habermas, ao decidir privilegiar a esfera pblica burguesa, dado o papel pre -dominante por ela desempenhado durante os sculos XVIII, XIX e XX,3 parece noter em considerao o facto de esta predominncia ter sido alcanada precisamenteatravs da violao dos seus prprios princpios constitutivos e legitimadores. Ouseja, o estabelecimento de uma esfera pblica burguesa nas sociedades inglesa,francesa e alem dos sculos XVIII e XIX foi acompanhado por um duplo processode legitimao: por um lado, perante o poder do estado, por outro, relativamente s

    restantes classes sociais. Ora, em nosso entender, se a incluso universal e a igual -dade de oportunidades de participao eram as bases dessa ideia definidora e legi -timadora, no deixou de ser a sua no observncia uma das razes por detrs da ex -cluso de outras formas de aparecer publicamente.

    A esfera pblica literria: da crtica de arte crtica poltica e social

    Na origem da esfera pblica burguesa, na sua forma poltica, encontra-se uma an -tecessora apoltica e no distintamente burguesa: a esfera pblica literria(literaris-che ffentlichkeit) constitua um campo de treino para uma reflexo pblica cr -tica ainda preocupada consigo prpria. Em termos sociolgicos, observa Ha -

    bermas, esta esfera pblica literria no era, de facto, especificamente bur gue -sa, uma vez que preservava uma certa continuidade com a publicidade envolvidana representao desempenhada na corte do prncipe (1962: 29). na cidade, cen -tro da actividade econmica e cultural da sociedade civil, que surge esta variante li-

    terria da esfera pblica burguesa, cujas principais instituies so os sales, os ca-fs e as sociedades culturais. A esfera pblica burguesa, na sua forma poltica, sur-giu do encontro entre os herdeiros da sociedade aristocrata e humanista, em que se

    baseava a esfera pblica literria, e a camada intelectual da burguesia, na altura emascenso.

    A esfera pblica poltica surgiu, pois, do confronto entre dois tipos confli -tuantes de publicidade. Por um lado, a publicidade prpria das cortes feudais, apublicidade representativa, e, por outro, a publicidade crtica e de mo crtica, nas ci-da com o iluminismo setecentista. Em rigor, esta ltima definida por oposio

    quela: no se pode pensar em publicidade crtica sem se conceber a noo de pu -blicidade representativa, ancorada num contexto medieval, pr-moderno e sem adistino estruturante entre pblico e privado. Isto significa que Habermas, recor-rendo a uma argumentao dialctica, constri uma concepo de publicidade cujoprocesso de evoluo compreende trs fases distintas. Uma primeira de cariz fe u -dal ou representativo, caracterizada pela sua neutralidade em relao aos critrios

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    de pblico e privado; uma segunda, nascida com a modernidade e assente na dis -tino entre pblico e privado; e uma terceira, que emerge a partir de meados do s -culo XIX com a interpenetrao entre estado e sociedade, o mesmo dizer, entre

    pblico e privado, justamente acompanhada por um processo de refeudalizaoda esfera pblica. Observa Habermas (1962: 158):

    medida que as pessoas privadas se tornavam pblicas, a prpria esfera pblica as-sumia formas de fechamento privado () O debate crtico e racional do pblico tam- bm se tornou uma vtima desta refeudalizao. A discusso como forma desociabilidade deu lugar ao fetichismo do envolvimento na comunidade por si s

    Esta tese da refeudalizao da esfera pblica um dos pontos centrais da argu men -

    tao habermasiana. De facto, o declnio da esfera pblica liberal identificadocom este processo de refeudalizao. Uma das principais caractersticas feudaisdiz respeito linguagem veiculada pelos meios de comunicao social. Uma lin -guagem destituda de carcter crtico-racional e dominada pela lgica manipula ti-va das relaes pblicas. A legitimidade do poder garantida atravs desta lin gua -gem, que evita a exposio pblica da natureza daquele. Por outras palavras, e re -metendo para o pressuposto terico aqui em questo (a transparncia), podemosafirmar que a opacidade do poder institudo assegura-se atravs da aco de umalinguagem refeudalizada.

    Neste sentido, a publicidade representativa, ao contrrio da sua sucessora,caracterizada pelo uso pblico da razo e, portanto, por princpios de crtica, detransparncia e de igualdade, no se constituiu enquanto uma esfera social au tno -ma. Pelo contrrio, era algo como um atributo de estatuto social (1962: 7): o se -nhor feudal representava-se (no sentido teatral do termo), apresentava-se enquan -to a personificao de um poder transcendente. Podemos, pois, antever a diferenaessencial entre este tipo de publicidade representativa e a publicidade crtica da es-fera pblica burguesa do sculo XVIII. Na medida em que os representantes da au -toridade feudal ou monrquica representavam a sua natureza nobilirquica no

    para, mas perante o povo (1962: 8), esta publicidade de representao era in sepa -rvel da existncia concreta do representado, tal como uma aura que transmitia asua autoridade. Foi do confronto entre este tipo de publicidade, feudalmente re -presentativa, e a publicidade crtica daAufklrung, que emergiu a esfera pblica so-cialmente burguesa e tematicamente poltica.

    Um dos traos mais originais e distintivos desta concepo de esfera pblica a sua localizao no domnio privado: Includa no domnio privado encon tra -va-se a autntica esfera pblica, dado que era uma esfera pblica constituda porpessoas privadas (Habermas, 1962: 30). Esta mesma noo de esfera pblica bur -

    guesa, formada por indivduos privados que, em conjunto, debatem publicamenteassuntos de interesse geral e que funciona enquanto uma instncia de controlo e delegitimao do poder poltico exercido pelo estado administrativo, remonta a Kant,que em O que o iluminismo, afirmava:

    por uso pblico da prpria razo entendo aquele que qualquer um, enquanto

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    erudi to, dela faz perante o grande pblico do mundo letrado. Chamo uso privadoquele que algum pode fazer da sua razo num certo cargo pblico ou funo a eleconfiado (Kant, 1784: 13).

    justamente esta noo kantiana de uso pblico da razo por indivduos privadosque Habermas pensa ter encontrado na esfera pblica burguesa dos sculos XVIII eXIX.

    Apesar de a esfera pblica burguesa (em todas as suas variantes) ser institu -cionalmente multiforme e internamente muito diferenciada, Habermas pensa po -der distinguir um conjunto de critrios institucionais de funcionamento comuns generalidade dos cafs, sales e sociedades culturais. Em primeiro lugar, e dada adesigualdade social dos participantes nessas tertlias, o estatuto econmico e soci-

    al era esquecido. Por outras palavras, na esfera pblica burguesa apenas a forado melhor argumento poderia decidir o resultado dos debates: quaisquer outrosrecursos (econmicos ou sociais) no deveriam, em princpio, ser tidos em con side -rao. Este ponto da argumentao aduzida por Habermas, em 1962, suscita-nosalgumas dvidas: ser possvel encetar uma discusso racional sem ter em conta oestatuto social e econmico dos contendores em confronto, como se este fosse algodistinto e separvel da identidade pessoal? Ser possvel atravs de um mero actoda vontade desactivar parte substancial da nossa identidade, como o caso dos re -cursos simblicos associados ao estatuto social?

    Note-se que este critrio constitui, no por acaso, um dos pontos mais critica -dos pelas comentadoras feministas, para quem este esquecimento no s nuncafoi respeitado, como tambm, e sobretudo, serviu de justificao para a exclusocontinuada de grupos sociais tnica, sexual ou economicamente diferentes do gru posocial de referncia masculino, educado e europeu ocidental. Neste sentido, in-teressante notar como, na interpretao de Joan Landes,4 a esfera pblica republi-cana francesa e jacobina foi construda a partir de uma excluso fundamental e deuma distino definidora: a excluso das mulheres e a distino entre o salon, pre-dominantemente feminino, e o espao pblico republicano, que se distinguia do

    anterior precisamente por criticar naquele o seu carcter efeminado e aristocr-tico e promover, como salienta Nancy Fraser (1992, 1996: 114), um estilo tidocomo racional, virtuoso e masculinista. Desta forma, as concepes masculinis-tas do gnero foram incorporadas na prpria concepo da esfera pblica republi -cana. Alis, e de forma bastante sugestiva, Fraser, seguindo o argumento de Lan -des, salienta a ligao etimolgica en trepblico epbico para tentar comprovar quea necessidade de se possuir um pnis para se poder falar em pblico5 possui razesque se estendem prpria origem do instrumento que utilizamos parapensar e dis-cutir estes mesmos assuntos a lngua. A linguagem utilizada assume-se, assim,

    enquanto um elemento essencial de excluso. Da a necessidade de se cri a rem lin-guagens al ternativas para se poder discutir e pensar problemticas excludas por quediferentes.6

    Em segundo lugar, as discusses que decorriam nesses palcos de discur si vi-dade dialgica problematizavam tpicos at ento inquestionados. Desta forma, aesfera pblica burguesa, atravs das vrias instituies que a compem, constitui

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    uma instncia de crtica a temas considerados de interesse geral, at ento mo nopo-lizados pela igreja e pelo estado. Em suma, atravs desta funo de problematiza -o, a publicidade crtica da esfera pblica burguesa como que seculariza a publi ci -

    dade de representao da corte e do plpito: o interesse geral passa a ser acessvel epassvel de discusso, pelo menos em princpio, por parte de todos quantos sejampor ele afectados.

    Em terceiro lugar, e resultante do processo que transforma a cultura numaforma de mercadoria, a possibilidade de participao e acesso universal constituium outro critrio institucional da esfera pblica burguesa. Ou seja, o pblico assu-me-se como, em princ pio, inclusivo, aberto a todos quantos pretendam nele par ti-cipar. Neste sentido, os assuntos discutidos nos cafs, sales e sociedades culturaisassumiam um carcter geral ou universal, no particular, em dois sentidos: no s

    no seu significado e validade, mas tambm na sua acessibilidade.7

    A crtica enquanto instrumento da modernidade: o caso da imprensade opinio

    A relao entre a variante literria e artstica da esfera pblica e a sua variante pol-

    tica constitui um bom exemplo de como a crtica ao poder poltico teve a sua ori gemna crtica de arte.8 De acordo com Habermas, o princpio de que qualquer leigo temo direito dejulgar uma pintura numa exposio, um livro publicado ou uma re pre -sentao de uma pea num teatro, resultou numa concepo de crtica de arte en -quanto uma troca racional de argumentos. Noutros termos, o princpio de discus -so racional enquanto forma de apropriao de manifestaes culturais e artsticasteve como consequncia a democratizao da cultura no sentido de univer sali -dade de acesso e igualdade de participao e a auto-ilustrao.9 A crtica assu-me-se, kantianamente, como o princpio do iluminismo: uma crtica sustentada

    pela razo, uma crtica da prpria razo.Habermas sublinha a importncia crucial desta crtica para as artes e culturado sculo XVIII europeu ocidental. No contexto do iluminismo, por um lado, nos a filosofia se institui enquanto uma filosofia crtica, como a literatura e a arte ne-cessitam de uma legitimao atravs da crtica literria ou artstica; por outro lado, atravs desta apropriao crtica que se processa a auto-ilustrao de cada um.Por detrs da relao entre esta apropriao crtica e democrtica da produo cul -tural e o processo societal daAufklrung encontra-se uma criao do sculo XVIII: aimprensa de opinio, o jornalismo de convico,10 instrumento da crtica de arte

    institucionalizada. Portanto, a imprensa literria relaciona-se com o iluminismo namedida em que precisamente com o assumir de funes crticas que aquela passade uma mera publicao de notcias, para um jornalismo literrio. desta formaque, argumenta Habermas, a imprensa de opinio emerge a partir de uma discus -so crtica convivial (1962: 259). Devemos, no entanto, salientar que a iden ti fica -o de um jornalismo de convico como a forma original da imprensa (ainda

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    que no a sua primeira manifestao) constitui uma deci so estratgica e selectivapor parte de Habermas: estratgica, porque um tipo de prtica jornalstica que secoaduna com o ideal de racionalidade e de dilogo crtico habermasiano; selectiva,

    porque exclui todas as formas prvias de jornalismo (sculos XVI e XVII), carac te ri -zadas sobretudo pelo sensacionalismo, frivolidades e objectivos primor dialmen tecomerciais, e da existncia das quais Habermas, ao contrrio do que alguns crticosafirmam, est consciente.

    Desta forma, parece-nos razovel concluir que o assumir de funes crticaspor parte do jornalismo de convico implica e pressupe um ideal de comunica -o dialgica, racional e face-a-face. De facto, e segundo Habermas, os artigos de

    jornal eram objecto de discusso nas vrias instituies da esfera pblica burguesa,nomeadamente nos cafs. Alis, os artigos publicados nos jornais constituam uma

    parte integrante destes espaos de sociabilidade na medida em que, dado o eleva -do nmero de cartas de leitores publicadas, o pblico no s l e discute aquilo que escrito pelos jornalistas, como se l e discute-se a si prprio. Esta circularidade prpria da lgica comunicacional dialgica enfatizada por Habermas (1962:42) quando afirma:

    tambm a for ma de dilogo, usada em muitos dos artigos, comprova a sua proxi mida-de palavra dita. Uma e a mesma discusso, transposta para um meio diferente, eraretomada de modo a reentrar, atravs da leitura, no meio original do dilogo

    Ou seja, um processo de esclarecimento recproco atravs de um meio que exclui anecessidade de partilha de um tempo e de um espao, mas que mantm intactas ascaractersticas prprias da discursividade dialgica face-a-face.

    Habermas considera que esta experincia, em que um pblico se tematiza a siprprio e procura alcanar entendimento (Verstand) e esclarecimento atravs dediscusses pblicas, crticas e racionais, teve origem na emergncia de um tipo es -pecfico de subjectividade. Em seu entender, esta teve origem na esfera da famliaconjugal patriarcal, cujo carcter distintamente burgus. Tanto a nobreza (cuja ge-

    nealogia familiar era garantida apenas pelo nome, no exigindo sequer a coabita -o), como as classes populares (para as quais no existia a distino entre pblico eprivado, em termos da sua organizao familiar e habitacional), no partilhamaquele tipo familiar.

    Esta subjectividade prpria da famlia patriarcal burguesa implica uma cons -cincia de independncia perante o social que se processa em trs momentos dis -tintos (o livre-arbtrio, a comunho de afecto e a formao para Habermas, todoseles aparentes e ilusrios), e que se conjugam na noo de humanidade. Estasideias que sustentam e caracterizam a famlia patriarcal burguesa liberdade,

    amor e formao , so, simultaneamente, ideolgicas e reais, com um sentido ob -jectivo. a partir desta noo de humanidade que a ideologia burguesa concebe epromete a superao da coaco da ordem vigente, sem cair no transcendental.Desta forma, a burguesia, que constitua o pblico que se havia formado nos sales,cafs e sociedades culturais da esfera pblica, e que agora, em meados do sculoXVIII, era mantida unida atravs da aco do jornalismo de convico e da crti ca

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    profissional, assume-se gradualmente como a principal categoria social que man -tm uma esfera pblica de debate crtico e racional no mundo das letras, no seio doqual a subjectividade oriunda da famlia conjugal, ao encetar processos de co muni -

    cao no seu interior, alcanava um nvel superior de autoconhecimento. O passoterico seguinte do nosso autor a demonstrao de como desta esfera pblica lite -rria emergiu uma esfera pblica poltica (politische ffentlichkeit).

    Esfera pblica poltica: o princpio de publicidade crtica e a leifundamental

    A esfera pblica burguesa, na sua variante poltica, resultou de um processo deconverso funcional da esfera pblica literria, que compreendia fruns de discus -so institucionalizados, no sentido de se apropriar da esfera pblica controladapelo poder do estado e de a transformar numa esfera de crtica prpria au torida -de pblica (leia-se estatal) (Habermas, 1962). Isto significa que a experincia deuma privacidade orientada para um pblico, nascida no seio da famlia burguesapatriarcal, foi essencial para a constituio de uma esfera pblica poltica. No en-tanto, foi a controvrsia, em termos de direito constitucional, sobre o princpio da

    soberania absoluta, durante o sculo XVIII, que esteve na origem da tematizao,pela primeira vez, por parte da esfera pblica, de assuntos de carcter estritamentepoltico. Portanto, e atente-se neste pormenor no de somenos importncia, a es fe -ra pblica poltica emergiu, historicamente, a partir de um debate ao nvel maisabstracto, inclusivo e universal da comunidade poltica, a lei fundamental.

    Assim, e apesar de tanto as tradies aristotlica-escolstica, como a cartesi a -na conceberem a categoria de leis universais, foi apenas com Hobbes que estas fo -ram introduzidas no domnio da filosofia poltica, e explicitamente definidas porMontesquieu. Alis, este ltimo foi um dos principais responsveis pela inverso

    do princpio hobbesiano da soberania absoluta veritas non auctoritas facit legem (averdade, no a autoridade, faz a lei) (Habermas, 1962). Distinguindo, agora, entreos aspectos normativos e sociolgicos desta controvrsia, podemos verificar que,em relao a estes ltimos, se a poltica do segredo de estado sustentava a sobe ra -nia baseada na vonta de (acto volitivo), o princpio de publicidade crtica, ca racte rs-tico da esfera pblica burguesa, promovia uma legislao baseada na ra zo (actocognitivo). J em relao dimenso normativa desta questo, e remetendo para adicotomia entre justo (universal) e bom (particular), Habermas (antecipando umdos principais temas/objectivos da sua actual proposta em termos de filosofia mo -

    ral, a tica da discusso) afirmava: intrnseca ideia de uma opinio pblica nascida do melhor argumento encon tra-va-se a pretenso a uma racionalidade moralmente ambiciosa que procurava des co-brir o que era simultaneamente justo e bom (Habermas, 1962: 54).

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    O papel da esfera pblica burguesa em todo este processo , pois, fundamental. nela que se desenvolve uma conscincia poltica que, contra o absolutismo monr -quico, pretende no s conceber e exigir leis de carcter genrico e abstracto, como

    tambm ambiciona afirmar-se enquanto a nica fonte de legitimao das leis. Po -demos, assim, constatar que esta generalizao e abstraco das normas legais seencontra em perfeita conjugao com a experincia acumulada no seio da esferapblica burguesa. Os princpios de universalidade de acesso, de paridade da par ti -cipao e de racionalidade da argumentao constituem-se, por conseguinte, en -quanto a configurao da legislao de carcter universal e geral, que surge no s -culo XVIII europeu ocidental. Em suma, a categoria de norma legal demonstra aconscincia reflexiva possuda pela esfera pblica poltica; que esta cons cincia intermediada pela conscincia institucional da esfera pblica literria; e que estas

    duas variantes da esfera pblica burguesa encontram-se interligadas, na medidaem que em ambas existe um pblico de pessoas privadas cuja autonomia, baseadana propriedade privada, sustentada pela famlia patriarcal burguesa e pela noode humanidade, que desta ltima brota (idem).

    Uma outra importante conexo entre estas duas variantes da esfera pblicaburguesa, cuja distino terica remete para o tipo de temas debatidos, diz respeito sua composio sociolgica. De acordo com Habermas, no existia uma coin ci -dncia entre a esfera pblica literria, na qual as mulheres participavam mais fre -quentemente do que os proprietrios privados e os prprios homens adultos, e a

    esfera pblica poltica, da qual as mulheres e os homens no-proprietrios estavamexcludos, tanto de facto como de direito. Esta uma das questes fulcrais para opensamento feminista. Por detrs da distino entre pblico e privado, entre aqui -lo que pode ser discutido na esfera pblica poltica e aquilo que deve ser relegadopara a esfera ntima da famlia, est uma construo social com um objectivo bemdefinido: a excluso de todos os grupos que, por razes de ordem sexual, tnica oueconmica, diferem do grupo social de referncia.

    Uma forma de explicar o princpio constitutivo da esfera pblica burguesa,o princpio de publicidade crtica, atravs da discusso da inscrio da funo

    poltica da esfera pblica na Constituio dos pases europeus continentais, du-rante o sculo XVIII. Habermas destaca trs grandes tipos de direitos, em que adefinio da esfera pblica, bem como das suas funes, seria garantida cons ti tu -cionalmente.11

    Em primeiro lugar, so destacados os direitos relativos esfera de pessoasprivadas juntas, enquanto um pblico em debate crtico e racional (liberdade deopinio e de expresso, liberdade de imprensa, liberdade de associao e de reu -nio), e sua funo poltica (direito de petio, direito de voto). Em segundo lugar,so referidos os direitos bsicos que dizem respeito ao estatuto de cada indivduo,

    enquanto ser humano livre, ancorado na esfera ntima da famlia patriarcal bur -guesa (liberdade individual, inviolabilidade do local de residncia). Em ter ce iro eltimo lugar, so apontados os direitos bsicos que se referem s transaes queocorrem entre os proprietrios de propriedade privada (igualdade perante a lei,proteco da propriedade privada). Todos estes direitos bsicos garantem vriascoisas:

    126 Filipe Carreira da Silva

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    asseguram a distino entre a esfera pblica e a esfera privada, que inclui a es -fera ntima;

    garantem igualmente quer as instituies, quer os instrumentos da esfera p -

    blica (imprensa e partidos polticos), tal como a base da autonomia privada, apropriedade;

    confirmam, por fim, as funes das pessoas privadas: quer as de cariz poltico(cidado), quer as de carcter econmico (proprietrio), mas tambm as fun -es dos indivduos enquanto seres humanos (como o caso da inviolabili da-de da correspondncia privada).

    Aps estas consideraes sobre a configurao jurdica da esfera pblica, dos seusinstrumentos e instituies, bem como das pessoas privadas que a constituem, in -

    dividualmente consideradas, Habermas fala-nos do princpio de publicidade, ver -dadeiro eixo conceptual da sua argumentao sobre a esfera pblica burguesa:

    Como consequncia da definio constitucional da esfera pblica e das suas funes,a publicidade tornou-se o princpio organizacional dos procedimentos dos prpriosrgos do estado; neste sentido, fala-se na sua publicidade; [por outro lado, a re la-o entre esta noo de publicidade (transparncia) e a prtica parlamentar e judicial enfatizada: ] O carcter pblico das deli beraes parlamentares garantia opiniopblica a sua influncia; assegurava a relao entre representantes e eleitores como

    partes do mesmo pblico. E, por volta da mesma altura, tambm os procedimentos le-gais nos tribunais comearam a ser tornados pblicos (Habermas, 1962: 83).

    Nesta altura, Habermas identifica na burocracia do aparelho do estado a principalfonte de resistncia a este princpio de publicidade (a este respeito ver Habermas,idem: 84). Ou seja, em 1962, tal como acontece emATeoria da Aco Comunicativa(1981), mas ao contrrio do que acontece em Entre Factos e Normas (1992), o poderadministrativo do estado moderno constitui um obstculo ao poder comunicativoque emerge dos palcos de discursividade dialgica e que institucionaliza o princ-

    pio de publicidade crtica enquanto forma de legitimao da actuao poltica. Poroutras palavras, a burocracia e o poder do capital que, desde a origem histrica daesfera pblica burguesa, constituam, para o Habermas de 1962, os principais en -traves aco da publicidade crtica e racional, desempenham, hoje, no actual con -texto da teoria democrtica deliberativa, um papel bem diferente daquele que lhesfoi atribudo por Habermas h trs dcadas atrs e reafirmado em 1981.

    De facto, Habermas defende agora que o estado influenciado, de modo indi -recto (legitimao) pela esfera pblica, sendo j, no um produtor de opacidade, masum potencial produtor de transparncia. Basta, para tanto, que o seu fun ciona mento

    interno seja regulado por uma lgica procedural, dotada de legitimidade ra ci o -nal-discursiva. Isto constitui, indubitavelmente, uma importante inverso perantea argumentao apresentada em 1962 e em 1981.12 Como afirmmos no incio, pen-samos ser necessrio conjugar uma anlise a este nvel mais superficial dos elostericos entre os vrios conceitos com uma anlise ao nvel mais profundo dospressupostos em que aqueles se fundam. Neste sentido, o pressuposto aqui em

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    jogo, a transparncia (por contraste com a opacidade), constitui um elemento es -sencial da nossa estratgia terica, que pretende demonstrar que as relaes in ter -conceptuais na argumentao habermasiana sobre a esfera pblica ganham inte li -

    gibilidade caso as confrontemos com as premissas com que Habermas opera.Em rigor, se existe um ideal de comunicao dialgica, racional e face-a-face,

    originalmente conceptualizado enquanto um argumento histrico e sociolgico, eque tem vindo a ser desenvolvido a partir de instrumentos progressivamente maistericos e abstractos, ligados filosofia da linguagem e filosofia moral, no serincontornvel questionar a premissa de partida caso a sua base original seja refuta -da empiricamente?

    Entre os factos de ontem e as normas de hoje

    A minha prpria teoria () tambm mudou, embora menos nos seus traos fun da-mentais do que no seu grau de complexidade. (Habermas, 1986)

    A concepo habermasiana de poltica democrtica deliberativa baseia-se nummodelo terico dual, relacionado no apenas com a formao da vontade, institu -

    cionalizada no complexo parlamentar,13

    mas tambm com uma noo de esferapblica que reenvia a um conjunto espontaneamente gerado de arenas polticas in -formais, dialogicamente discursivas e democrticas e aos respectivos contexto cul-tural e base social. Democracia deliberativa um conceito que remete, em Ha ber -mas, para uma tenso definidora: uma oposio binria entre o plano formal e ins -titucionalizado da democracia e os domnios informais e anrquicos de formaoda opinio. Habermas muito claro neste ponto fundamental da teoria polticademocrtica:

    Uma prtica deliberativa de autolegislao s se pode desenvolver na interaco en-tre, por um lado, a formao da vontade parlamentar institucionalizada nos proce di-mentos legais e programada para tomar decises e, por outro, a formao da opiniopoltica atravs de canais informais de comunicao poltica (Habermas, 1992: 275).

    Esta noo de poltica democrtica deliberativa assenta na teoria da discusso ha-bermasiana, cujo ideal regulador um modelo de prtica discursiva dialgica,face-a-face e orientada para o entendimento mtuo atravs exclusivamente da for -a do melhor argumento. Este modelo de comunicao tem por objectivo descrever

    e interpretar, por um lado, a inscrio do indivduo num contexto intersubjectivoconcreto e, por outro, a referncia a uma audincia idealmente universal que in cen -tiva os participantes a adoptar posies sim ou no, que transcendem os jogosde linguagem contingentes e as formas de vida particulares em que foramsocializados.

    De acordo com Habermas, as investigaes empricas que conce bem a

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    poltica como um domnio em que imperam jogos de poder e que a analisam, querem termos de interaces estratgicas reguladas por interesses, quer em termos sis -tmicos, cometem um erro essencial. Pretendem separar ideal e real, teoria e pr ti -

    ca, normas e factos. Em seu entender, esta separao no faz sentido, dado queconstituem termos de uma mesma oposio definidora.14 Neste sentido, aquilo queHabermas designa por sociologia reconstrutiva da democracia, constri o seuaparelho conceptual a partir de partculas e fragmentos de uma razo existente

    j incorporada nas prticas polticas, por mais distorcidas que estas possam ser(Habermas, 1992: 287). A premissa em que assenta esta perspectiva a de que a an -lise a um sistema poltico organizado num estado de direito, mesmo a nvel empri-co, no pode deixar de referir-se dimenso de validade da lei e fora legi tima do -ra da gnese democrtica do direito. Assim, a relao entre o emprico e o normati-

    vo deve estar sempre presente em qualquer anlise democracia, no enquantoplanos que devem ser analiticamente separados, mas como duas faces da mesmamoeda.

    O argumento habermasiano desenvolvido em torno da tentativa de anlisecomparada de uma polaridade terica republicanismo c vico vs. liberalismo ,em relao qual a sua prpria posio vai sendo definida, enquanto uma terceiravia superadora, porque reconciliadora. De qualquer forma, e antes de discutirmosos mritos e dificuldades desta estratgia terica, devemos analisar a forma comoHabermas a desenvolve. Deste modo, o nosso autor diz-nos algo fundamental para

    entendermos as suas subsequentes argumentaes:

    As nossas reflexes do ponto de vista da teo ria do direito revelaram que o elementocentral do processo democrtico reside no procedimento da poltica deliberativa (Ha-bermas, 1992: 296).

    Da a expresso democracia procedural, que remete para uma interpretao davida poltica que difere tanto da perspectiva liberal do estado enquanto garante deuma sociedade regulada pelo mecanismo do mercado e pelas liberdades privadas,

    e que concebe o processo democrtico como o resultado de compromissos entre in -teresses privados concorrentes, o que implica que as regras deste processo polticosejam responsveis pela sua transparncia e honestidade e sejam justificadas atra -vs dos direitos individuais bsicos, como da concepo republicana de uma co -munidade tica institucionalizada no estado, em que a deliberao democrtica as-senta num contexto cultural que garante uma certa comunho de valores.

    A estratgia de Habermas consiste em polarizar estas duas posies tericaspor si definidas, para, em seguida, construir uma sntese a partir de alguns ele men -tos de cada posio. Esta estratgia terica reconhecida pelo prprio, quando

    afirma:A teoria da discusso retira elementos de ambos os lados e integra-os no conceito deum procedimento ideal para a deliberao e tomada de deciso (Habermas, 1992:296).

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    O mesmo dizer que a razo prtica entenda-se razo prtica comunicativamentereconstruda no reside nem nos direitos humanos, tal como defendido pelas te -ses liberais, nem na noo de soberania popular, enquanto a substncia tica de

    uma determinada comunidade poltica, tal como o republicanismo argumenta.Pelo contrrio, a razo prtica comunicativamente reconstruda remete para

    as regras da discusso e formas de argumentao que derivam o seu contedo norma-tivo da base de validade da aco orientada para o entendimento (Habermas, 1992:297).

    Este um ponto importante. Falando de um trilema em que a razo moderna seencontraria, Habermas introduz-nos o seu projecto de reconstruo da filosofia do

    direito contempornea. Rejeitando quer uma filosofia da histria teleolgica, queruma antropologia filosfica, bem como uma crtica da ra zo la Nietszche, Ha ber-mas adopta uma outra perspectiva com a sua teoria da aco comunicativa, subs ti -tuindo a razo prtica (kantiana) por uma razo comunicativa. Como ele prprionos explica:

    A razo comunicativa difere da razo prtica antes de mais por j no estar ligada aoactor individual ou a um sujeito colectivo como o estado ou toda a sociedade (Haber-mas, 1992: 3).

    De facto, a razo comunicativa remete, no para o nvel do agente social individualnem para o plano do actor social colectivo, mas para o domnio da linguagem cor -rente quotidiana que estrutura as formas de vida social e possibilita a interacosimblica entre os diversos actores sociais. Neste sentido, a razo comunicativa, aocontrrio da razo prtica kantiana, no constitui uma fonte de prescries norma -tivas. O contedo normativo da razo comunicativa consiste no facto de os indi v -duos terem de se comprometer com um conjunto de pressupostos pragmticos eformais, de forma a garantir o sucesso de uma interaco lingustica orientada para

    um acordo universal ideal.Introduzindo a problemtica da dicotomia entre estado e sociedade, Haber masdistingue novamente duas diferentes concepes tericas, cuja oposio define, emseu entender, os termos desta discusso. Assim, por um lado, a concepo liberalpossui conotaes normativas relativamente fracas, na medida em que remete paraum entendimento da poltica centrado no estado, ficando a formao da vontade de -mocrtica a cargo de cidados apenas preocupados com os seus interesses parti cula -res, e, por outro, a concepo republicana posuui uma dimenso normativa muitomais evidente, uma vez que, interpretando a sociedade enquanto uma entidade ori -

    ginalmente prtica, a democracia diz respeito auto-organizao poltica da soci e-dade. Este aspecto da concepo republicana do processo democrtico partilhadopela teoria da discusso habermasiana, ainda que esta integre uma outra noo de -fendida pelo paradigma liberal, a primacialidade do imprio da lei. Deste modo, Ha -

    bermas entende que uma poltica deliberativa bem sucedida depende, ao contrriodo pretendido pelas posies cvico-republicanas, no de um

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    corpo de cidados colectivamente actuante, mas da institucionalizao dos corres-pondentes procedimentos e condies de comunicao, bem como da relao entre osprocessos deliberativos institucionalizados e as opinies pblicas informalmente de-

    senvolvidas (Habermas, 1992: 298).

    Desta forma, a teoria da discusso habermasiana pressupe uma rede de processoscomunicativos, tanto dentro como fora do complexo parlamentar e dos seus cor posdeliberativos, que sustenta a existncia de palcos dialogicamente discursivos emque ocorre a formao da vontade e da opinio democrticas. A noo de que a co -municao lingustica origina e legitima prticas democrticas , pensamos, aquievidente. Com efeito, precisamente o fluxo de comunicao que evolui desde oplano da formao da opinio pblica, atravs de discusses racionais orientadas

    para o entendimento mtuo, passando pelas eleies democrticas, reguladas porprocedimentos que garantem a sua validade e legitimidade democrticas, at aonvel das decises polticas em forma de lei, que assegura que a influncia (Par -sons) e o poder comunicativo sejam convertidos em poder administrativo, atravs,

    justamente, do direito.Neste contexto, Habermas concebe o sistema poltico de forma diferente da

    proposta por Niklas Luhmann (1992), uma das suas principais influncias naactual formulao habermasiana do conceito de esfera pblica. De facto, apesar deHabermas rejeitar muito do contributo luhmanniano, no deixa, no entanto, de

    consider-lo um importante oponente. Neste sentido, compreende-se a opo deHabermas em recorrer teoria dos sistemas para explicar determinados pontos dapr pria Teoria da Aco Comunicativa, nomeadamente o processo de racionalizaodo direito. Assim, se, por um lado, Habermas acusa Luhmann de incorrer numafraqueza metodolgica de um funcionalismo sistmico absolutizado (Haber -mas, 1986b: 312), na medida em que um mundo totalmente burocratizado aceitecomo um facto adquirido, por outro lado, Habermas no deixa de defender a ne -cessidade de, no contexto de uma teoria da competncia comunicativa in flu en ci a -da por Durkheim e Mead e de uma distino entre sistema e mundo da vida em lar -

    ga medida tributria do estrutural-funcionalismo parsoniano, passar de uma teo -ria da aco a uma anlise aos subsistemas de aco racional teleolgica, de forma ater em conta os efeitos laterais patolgicos de uma estrutura de classes que no po -dem ser compreendidos apenas por recurso a uma teoria da aco (Habermas,1986b: 303).

    No caso especfico da noo de sistema poltico, e de acordo com a teoria dossistemas na verso luhmanniana, a relao entre aquele e a opinio pblica bas -tante prxima, na medida em que esta constitui para o domnio poltico um dosmais importantes sensores cuja observao substitui a observao directa do am -

    biente(Luhmann, 1992: 85).

    15

    Isto significa que o sistema poltico, enquanto umsistema social, utiliza a opinio pblica para se observar a si mesmo:

    [a opinio pblica] no serve para estabelecer contactos externos. Serve a clausuraauto-referencial do sistema poltico, o crculo fechado da poltica (Luhmann, 1992:87).

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    Uma proposta inaceitvel aos olhos de Habermas, para quem todos os sistemas so -ciais poltica includa interagem com os restantes. A sociedade , assim, cons-tituda por um conjunto alargado de subsistemas especializados de natureza diver-sa, mas linguisticamente unidos. O sistema poltico habermasiano, ao contrrio dosistema pol ticofechado proposto por Luhmann, um sis tema aberto a influnciasde outros sistemas sociais. Deste modo, o sistema poltico deve ser entendido comoum subsistema especializado na tomada de decises que a todos obrigam, enquan -

    to a esfera pblica constitui uma extensa rede de sensores que reagem pressodos problemas sociais e que estimulam os lderes de opinio (Habermas, 1992:300), o que implica que a opinio pblica, resultante das estruturas comunicativasdesta ltima, detm (apenas) um poder de influncia sobre a administrao bu ro -crtica do estado.

    Ora, e recuperando a nossa hiptese de que os pressupostos tericos com queHabermas opera constituem elementos fundamentais para uma anlise crtica sua estratgia terica, pensamos que ntida a inverso da tese da colonizao in -terna do mundo da vida, apresentada emATeoria da Aco Comunicativa. De facto,

    se, em 1981, Habermas concebia o sistema poltico enquanto um produtor de opa ci -dade que invadia ou colonizava os domnios da vida social comunicativamenteregulados, em 1992, opta por inverter o sentido deste processo. O sistema poltico ,agora, concebido como podendo ser indirectamente influenciado por um mundoda vida e uma esfera pblica produtoras de transparncia (poder comunicativo),como se pode verificar na figura 1.

    Uma das principais influncias por detrs desta concepo deuma polticademocrtica deliberativa foi o pensamento de John Dewey. De facto, foi este ltimoquem, em The Public and Its Problems (1927), argumentou que a regra da maioria, en -

    quanto mera regra da maioria, no tem grande significado. O que realmente im -portante, para Dewey como para Habermas, so os meios, a forma, so os pro ce -dimentos atravs dos quais a maioria se torna maioria. Segundo o pragmatismoamericano clssico, a essncia normativa e legitimadora da regra da maioria de mo-crtica encontra-se nos debates que a configuram e que so igualmente respons -veis pela modificao das opinies de forma a que, por exemplo, os contributos das

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    1981: Tese da colonizao interna do mundo da vida (ex. juridificao):

    Sistema (poltico) (coloniza) Mundo da vida

    Pressupostos:

    (Produtor de opacidade) (Transparncia desaparece)

    1992: Relao entre a esfera pblica e o sistema poltico:

    Sistema poltico (influencia) Mundo da vida

    (esfera pblica)

    Pressupostos:

    (Opacidade desaparece) (Produtor de transparncia)

    Figura 1 Relaes entre sistema poltico e mundo da vida

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    minorias sejam respeitados. Ora, e na medida em que a poltica democrtica delibe-rativa adquire a sua fora legitimadora da estrutura discursiva de uma formaoda opinio e da vontade, que consegue desempenhar uma funo de integrao

    social porque os cidados esperam que os seus resultados tenham uma qualidaderazovel,16 Habermas defende aquela que, em nosso entender, constitui a sua prin -cipal tese emprico-metodolgica: Assim, o nvel discursivo dos debates pblicosconstitui a varivel mais importante (Habermas, 1992: 304).

    Analisando, agora, com maior pormenor, o conceito habermasiano de polti -ca deliberativa, que tem em Joshua Cohen uma das suas principais influncias,podemos salientar que o procedimento formal de tomada de deciso poltica eque confere legitimidade a todas as decises proceduralmente correctas podeser caracterizado atravs dos seguintes postulados:

    os processos de deliberao assumem uma forma argumentativa, isto , socaracterizados pelo intercmbio regulado de informaes e argumentos entreas partes em discusso;

    destes processos de deliberao ningum pode ser excludo legitimamente,para o que contribui o seu carcter pblico ou transparente;

    estas deliberaes so, portanto, livres de quaisquer coeres externas, dadoque os participantes respondem apenas perante os pressupostos de co muni -cao e regras de argumentao; de igual forma:

    estas deliberaes no permitem a existncia de qualquer coero interna quecomprometa a igualdade dos participantes, que se traduz na capacidade detodos poderem ser ouvidos, introduzir temas de debate, produzir con tri bui -es prprias e criticar propostas de terceiros. A nica coero interna ad mis -svel a fora do melhor argumento.

    O carcter poltico destes processos deliberativos salientado por Habermas, atra-vs de algumas condies complementares, novamente tributrias do pensamentode Cohen. Em termos genricos, e comprovando o carcter cognitivista desta pro -

    posta, verifica-se que as deliberaes tm como objectivo a obteno de um acordoracionalmente motivado. No caso especfico das deliberaes polticas:

    este acordo dever ser alcanado atravs de uma deciso maioritria quepode ser revogada a qualquer momento, desde que a minoria convena amaioria a adoptar um seu ponto de vista;

    as deliberaes de cariz poltico dizem respeito a todos os assuntos desde queos interesses que lhes subjazem possam ser generalizveis;

    este tipo particular de deliberaes inclui igualmente a interpretao de ne -

    cessidades e desejos, bem como a transformao de atitudes e prefernciaspr-polticas (Habermas, 1992).

    A definio desta concepo de poltica deliberativa reenvia-nos a duas noes es -senciais do pensamento de Habermas. Por um lado, a lngua assume-se como o ele -mento primordial, em termos da sustentao terica desta concepo poltica; por

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    outro lado, esta proposta para uma poltica democrtica deliberativa pressupe aexistncia de dois planos de aco poltica, um dos quais constitudo pelo nosso fiocondutor neste artigo, a ideia de esfera pblica. Assim, segundo esta concepo de

    poltica deliberativa, qualquer associao da sociedade civil que institu cio nalizeestes procedimentos, de forma a regular as condies da sua vida colectiva, cons ti -tui um corpo de cidados especfico e uma comunidade legal particular. No entan -to, o que mantm um conjunto de cidados unido enquanto uma comunidade po l -tica de cidados a comunho de uma lngua.

    No entanto, e relativamente s condies e postulados propostos por Cohen eadoptados por Habermas, devemos salientar que este ltimo considera serem in -suficientes para que consigam captar a natureza bidimensional que uma concep -o de poltica deliberativa deve possuir. Por um lado, existem deliberaes orien -

    tadas para a formao da vontade e tomada de deciso, que so reguladas por pro -cedimentos formais democrticos, e, por outro, existem processos informais de for -mao da opinio, que tm lugar na esfera pblica. Se a di mensoformal da polticademocrtica deliberativa remete para a justificao da seleco de um dado proble-ma e da escolha, entre diferentes alternativas, de uma forma de resoluo, a di men -so informal e proceduralmente desregulada reenvia para a descoberta e identifi ca-o de problemas politicamente relevantes. Esta esfera pblica, informal e desre -gulada constitui o veculo da opinio pblica.17

    Em nosso entender, quando Habermas salienta este aspecto informal e de sor -

    ganizado da concepo de democracia deliberativa, descreve-nos no apenas umadas dimenses desta proposta, mas tambm, e sobretudo, o plano da vida polticademocrtica donde emerge o seu ideal normativo de participao democrtica,discursivamente racional e com pretenses de universalidade. , pois, par ti cu lar -mente significativo que esta dimenso informal da poltica democrtica delibera ti-va, como salientado em Entre Factos e Normas, seja garantida por uma estrutura dedireitos constitucionais. S a lei fundamental assegura a espontaneidade da esferapblica, na medida em que somente ela possui a capacidade de generalidade, abs -traco e incluso necessria e suficiente para defender e promover um domnio

    comunicativamente racional e anarquicamente organizado, como o caso da es fe -ra pblica.Estamos, agora, em condies de explorar as consequncias lgicas desta hi -

    ptese de interpretao, que entrelaa o nvel dos pressupostos e o nvel das re la -es interconceptuais. Pensamos que a questo de fundo por detrs deste artigopode ser sintetizada em breves palavras. Em nossa opinio, o ideal em que Haber -mas baseia todo o seu pensamento um ideal irredutivelmente ancorado numaconjuntura histrica muito bem delimitada. Tanto na j hoje cls si ca MudanaEstrutural da Esfera Pblica, como no re cen te Entre Factos e Normas, Habermas defen-

    de a mesma ideia existe um perodo histrico ideal, o iluminismo ocidental dosculo XVIII, donde brotaram as noes de razo, universalismo, transparncia,harmonia, para alm da trade da revoluo francesa.

    Daqui decorreu a sua anlise histrico-normativa sobre uma das categoriascentrais das modernas sociedades ocidentais a esfera pblica burguesa, a umtempo, realidade histrica irrepetvel e ideal normativo regulador. Daqui decorre a

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    sua tese da modernidade enquanto projecto inacabado, no sentido de uma utopiacujo potencial emancipatrio, longe de esgotado, tem de ser corrigido, explorado edesenvolvido. Daqui decorre ainda a sua mais recente proposta para uma teoria da

    democracia, em que a formao da vontade e a formao da opinio, em que a di -menso formal e a dimenso informal se entrelaam constitutivamente.

    Ontem e hoje, a ideia de um entendimento intersubjectivo (Verstndigung),discursivamente alcanado, dialogicamente partilhado, comunicativamente ra cio-nal, com um p na histria dos factos e outro na histria das ideias. Mas, hojemais do que ontem, as ideias comandam os factos. Elas como que ganharam vidaprpria, autonomizaram-se e constituem, hoje, a essncia da obra de Habermas.Mas, e se lermos esta como uma longa narrativa, marcada pela congruncia, con ti -nuidade e evoluo, no ser que o vnculo entre factos e normas vai um tudo

    nada mais longe do que concede Habermas? No tero as ideias uma histria pr -pria, ao longo da qual foram concebidas, desenvolvidas e articuladas com outras?E no ser que, no caso concreto do aparelho conceptual habermasiano, a origemdestas noes tericas inseparvel de uma dada anlise histrica, de um deter mi -nado conjunto de pressupostos historicamente contingentes, concebidos no inciodos anos sessenta e que o acompanharam desde ento? E, se assim for, no ter ovnculo entre factos e normas, tese ltima de Habermas, no apenas um carcterterico, mas tambm, e de ci si vamente, histrico (nos dois sentidos de que falmos)?

    Acompanhe-nos, o leitor, uma ltima vez. Repare no seu actual ideal de de -

    mocracia deliberativa. Se, por um lado, assenta no seu ideal de comunicao semrestries, motivado exclusivamente pelo interesse da compreenso mtua atra vsda fora do melhor argumento, por outro, a noo de esfera pblica, sustentculoltimo da formao da opinio, no s teve uma origem empiricamente veri fic -vel, como suposto, hoje em dia, ter implicaes empricas. Eis a nossa dvida. Aesfera pblica define-se pela tenso entre a validade das normas e a facticidade darealidade social. Se Habermas pretende manter esta relao constitutiva entre es tesdois planos no pode deixar de ter em considerao alguns recentes estudos his t -ricos que sugerem uma leitura muito menos abonatria da esfera pblica liberal

    dos sculos XVIII e XIX do que a apresentada emA Mudana Estrutural da Esfera P-blica. Mas como reconstruir, do princpio, todo um edifcio erigido atravs de su ces -sivas reconstrues tericas, que compreende hoje uma sofisticada justificao te-rica das premissas de partida (o paradigma da teoria da aco comunicativa, apragmtica formal e a tica da discusso), mas cujas fundaes remontam a essaprimeira reconstruo histrica?

    Notas

    1 ffen tlichke it, a categoria de esfera pblica ou de espao pblico, expresses porns utilizadas indiferenciadamente neste artigo. No entanto, entendemos que, nolimite, o rigor conceptual poder levar-nos a defender a utilizao da noo de

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    esfera pblica para designar a concepo habermasiana, em que o ideal norma-tivo de uma discusso racional, dialgica e face-a-face a substncia terica, e doconceito de espao pblico para designar uma realidade sociolgica em que os

    meios de comunicao social se assumem enquanto elemento estruturante e consti-tutivo (a este respeito veja-se a proposta de Dominique Wolton (1995: 167): oespao pblico contemporneo pode ser designado por espao pblico me di a tiza-do, no sentido em que funcional e normativamente indissocivel do papel dosmdia.

    2 Data de pu blicao da mais recente obra habermasi a na, Entre Factos e Normas.3 A que correspondem trs momentos de evoluo: surgimento, expanso e declnio

    ou des caracterizao.4 Cuja obra (1988), Women and the Public Sphere in the Age of the French Revolution,

    Ithaca, Cornell University Press, utilizada por Nancy Fraser (1992).5 Seguindo a sugesto de Fraser, podemos constatar que, de acordo com o dicionrio

    Oxford Reference English, o termo do ingls modernopublic teve origem na expres-so do francs antigo (antes de 1400)public ou na expresso do la timpublicus, quederiva da expres sopubes. Na medida em que a palavra portuguesa pblico tema mesma origem latina, o mesmo raciocnio pode ser aplicado no nosso contextosemn tico.

    6 So por demais conhecidos, no entanto, alguns dos excessos cometidos em nomedeste princpio: referimo-nos concretamente ao chamado politicamente correcto,

    que atingiu, sobretudo nos Estados Unidos, uma significativa im por tncia.7 Este duplo sentido do conceito de universal tambm enfatizado por MaeveCooke (1994, 1997), quando esta analisa o carcter de universalidade da racionali-dade comu nicativa, no quadro da teoria da aco comunicativa haberma sia na.

    8 A distino entre estas duas variantes da esfera pblica burguesa definida, em1964, por Habermas, da seguinte forma: Ns falamos em esfera pblica polticaem contraste, por exemplo, com a literria, dado que naquele caso as discussespblicas referem-se a temas relacionados com a actividade do estado (Habermas,1964: 49).

    9 Uma vez mais, Kant constitui uma importante referncia para esta concepo deesfera pblica burguesa: para esta ilustrao, nada mais se exige do que a liber-dade; () a de fazer um uso pblico da sua razo em todos os seus elementos (Kant,1784: 13).

    10 Esta uma expresso do prprio autor: veja-se, por exemplo, Habermas, 1964: 53.11 A principal diferena entre este conjunto de direitos fundamentais e a proposta ha-

    bermasiana actual de um sistema de direitos, desenvolvida na sua ltima obraEntre Factos e Nor mas (1992), diz respeito a um tipo de direitos bsicos nascidoscom o ps-guerra e o welfare state: os direitos socia is.

    12 Yves Sintomer (1999: 230) sugere que Habermas ter procedido a uma tripla re defi-nio filosfica, sociolgica e emprica do seu conceito de esfera pblica em EntreFactos e Normas.

    13 Expresso do prprio Ha bermas.14 Alis, esta posio constitui um dos traos distintivos do pensamento ha bermasia-

    no e comprova a sua unidade. A noo de racionalidade comunicativa, por

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    exemplo, constitui uma tentativa de resposta anlise nietzscheana ao extra quoti-diano, ao pretender demonstrar a rela o interna entre a prxis co municativa doquotidiano e o contedo normativo orientado para a transcendncia dos contextos

    lingusticos concretos. Veja-se, a este respeito, por exemplo, O Discurso Filosfico daModernidade (1990b), pp. 311 e ss.

    15 Luhmann (1992: 69, 70, 74) define este conceito de opinio pblica como uma es-pcie de rede de comunicao que se refere ao sistema social da sociedade, eque renuncia a quaisquer implicaes de racionalidade, o que lhe valeu a se-guinte crtica por parte de Habermas (1990b: 325): Uma vez que, ao mesmo tem poque abandona o conceito de razo, tambm abandona a inteno de crtica razo() Luhmann conduz ao extremo a afirmao neoconservadora da modernidade.

    16 Este pressu posto afasta Habermas quer de Hegel, quer de tericos liberais como

    Mill e Tocqueville, que tinham grandes d vidas quanto capacidade de produode racionalidade por parte da esfera pbli ca.

    17 Esfera pblica, informal e desregulada que Habermas (1992: 307) apelida de, para-fraseando Fraser, pblico fraco, ou seja, um pblico sem poder de tomada de de-ciso (por contraste, um pblico forte responsvel pela formao demo crticada opinio e da vonta de).

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