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1. INTRODUÇÃO
O homem moderno é possuidor de um novo modo de ser,diferente daqueles que foram seus ancestrais, os homens
primitivos. Esta oposição encontrase principalmente pela forma de
* Aluno do Programa de PósGraduação em Filosofia pela Universidade Federal do Federal doEspírito Santo UFES. Especialização (2013) em EJA pela Faculdade de Afonso Cláudio FAAC.Pesquisou pelo CNPQ como voluntário PIVIC no período 20102011 a filosofia da Religião emMircea Eliade. Este artigo é resultado parcial das pesquisas empreendidas para a elaboração dotrabalho final, sob a orientação do Prof. Dr. Antonio Vidal Nunes. m@ilto:[email protected].** Pósdoutorado em Filosofia. Professor do Programa Programa de PśoGraduação em Filosofiada Universidade Federal do Espírito Santo UFES. Pesquisador nas áreas de Filosofia no Brasil ena América Latina, e Filosofia da Religião. Membro do conselho editorial da Revista Redes Filosofia e Teologia (Vitória) e da Revista Filosofia (Editora EscalaSP). m@ilto:[email protected].
AEXPERIÊNCIADOTEMPONO SAGRADOENO PROFANOÀLUZDAINTERPRETAÇÃODEMIRCEAELIADE
[THEEXPERIENCEOFTHETIME INTHE SACREDAND PROFANE INTHELIGHTOFINTERPRETATIONOFMICEAAELIADE]
Rodrigo Danúbio Queiroz *Antônio Vidal Nunes **
RESUMO: O presente trabalho se propõe aanalisar e descrever a experiência humana dotempo no sagrado e no profano a partir dopensamento do filósofo e historiador MirceaEliade. A pesquisa tem como ponto de partidaa constatação da dualidade sagrado/profanoque resulta na afirmação de dois modos de serno mundo, a saber, religioso e nãoreligioso.Dessa forma, objetivamos analisar a dimensãoda temporalidade heterogênea na vida dohomem religioso e areligioso. Entretanto, acompreensão desta experiência só pode serestabelecida quando se percebe a importânciadas construções de templos, das festasreligiosas, dos rituais e do mito que seapresentam como uma linguagem do sagradoque só ganha sentido devido àinomogeneidade do tempo.PALAVRASCHAVE: Tempo; Sagrado/Profano;Filosofia da religião; Mircea Eliade.
ABSTRACT: The present work aims to analyzeand describe the human experience of the timein the sacred and the profane from the thoughtof the philosopher and historian Mircea Eliade.The research has as its starting point theobservation of duality sacred/profanestatement that results in two modes of being inthe world, namely the religious and nonreligious. Thus, we aimed to assess the extentof heterogeneous temporality in the life of manand the religious and man without religion.However, the understanding of this experiencecan be established only when one realizes theimportance of constructions of temples,religious festivals, rituals and myth presentedas one of the sacred language that only makessense because of the inhomogeneity of time.KEYWORDS: Time; Sacred/Profane; Philosophyof Religion; Mircea Eliade.
ISSN: 23189428. Vol.1, n.2, Outubro de 2014. p. 125146DOI: 10.15440/arf.2014.20500Received: 28/08/2014 | Accepted: 22/09/2014© 2014 Aufklärung
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percepção da realidade, isto é, de como o ser humano compreende omundo em sua volta. Para o homem primitivo a realidade tem seu inicioa partir do surgimento de um ser suprahumano. Esse ser, ou seres, é oprincipio de todas as coisas criadas no mundo, ou seja, não hápossibilidade de conceber uma realidade senão a partir de seres míticosque foram responsáveis pela origem de toda a realidade. O universoexistencial do mundo arcaico conservouse através dos mitos, dossímbolos e costumes que, mesmo com transformações no decorrer dotempo, deixam ver ainda claramente o seu sentido. Dessa forma,compreendemos que o homem primitivo se comportava como mais umacriatura que fazia parte do cosmos ordenado por seres sobrenaturais.Percebese, então, que a experiência do tempo é primordial para ohomem primitivo manterse em contato com o universo sagrado. Ofilósofo romeno Mircea Eliade nomeou esse modo de viver como homoreligiosus. Por outro lado, encontramos o homem moderno, ou nãoreligioso, que fundamenta sua existência em sua própria razão. Aqueleque afirmar a historicidade. Quer dizer, este homem nãoreligiosoprocura estabelecer sua existência dessacralizando, sempre quenecessário, sua realidade. Em outras palavras, na tentativa decompreender o mundo pelo meio racional o homem moderno se esforçaem negar as superstições de seus antepassados. Porém, se o homem areligioso colocouse em posição de se esvaziar das referênciasexistenciais de seus antepassados, significa dizer que se reconhece aindasobreviver raízes do homem religioso no mundo moderno.
Partindo da consideração de que existem dois modos de existir nomundo, o que nos interessa aqui é analisar como Mircea Eliadeapresenta sua compreensão de tempo na experiência existencial dohomo religiosus em contraposição ao homem nãoreligioso. Como jáobservamos o tempo é de vital importância para compreensão do modode ser religioso. Assim, o presente trabalho se propõe a pensar estasexperiências a partir das seguintes questões: Como é o modo de serreligioso e o modo de ser nãoreligioso? O que é o sagrado e o profano?Como o homem primitivo vivencia o tempo e que importância essaconcepção implica? O homem moderno se posiciona no temposemelhantemente aos seus antepassados? O tempo é, por natureza,reversível? De que maneira o homem religioso se esforça para manterse
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o máximo de tempo possível num universo sagrado e,consequentemente, como se apresenta sua experiência total de vida?
Essas questões revelam a necessidade de entender e conhecer assituações assumidas pelo homem religioso, na tentativa de compreenderoutras formas de perceber o mundo, pois este transforma a sua vida numritual. Será que a razão, isto é, o conhecimento cientifico, realmente dáconta de explicar o mundo? Segundo Eliade, as grandes crises dohomem moderno têm, mesmo que bem dissimulado, uma crise religiosa.Tal crise se dá na medida em que o homem moderno se lança no mundosem consciência de seu sentido de existir nesse mundo. Embora a maiorparte das situações assumidas pelo homo religiosus das sociedadesprimitivas e das civilizações arcaicas foram sendo ultrapassados pelahistória, ainda permanecem vestígios de suas modalidades de ser quecontribuíram para que tornássemos aquilo que somos hoje, fazem parte,portanto, de nossa história. “Se estamos impossibilitados de reviver taisexperiências, pelo menos podemos imaginar a sua repercussão na vidados que por elas passaram. Uma vez que o Cosmo era uma hierofania ea existência humana estava sacralizada [...]” (ELIADE, 1979, p. 109).Que raízes são essas? Nosso ponto de partida para reflexão dessasquestões se fundamenta nas pesquisas de Mircea Eliade.
2.ADUALIDADE SAGRADO/PROFANO
Na busca de uma melhor compreensão de um dos elementos quefornecem sentido ao modo de existir do homem arcaico, isto é, a suacompreensão do tempo, fazse necessário primeiramente evidenciarmoscomo Mircea Eliade definiu os conceitos que fundamentam a suainterpretação desta relação do homem com o sagrado. Desta forma, aprimeira questão que devemos nos preocupar é a de buscar compreendercomo é definido o sagrado e de como ele se manifesta. Antes disso, quefique bem esclarecido que, ao tratar de interpretar o sentido do sagrado,Eliade demonstra em seus trabalhos uma grande preocupação em nãodelimitar ou totalizar seu significado, o sagrado é irredutível, o quetorna complexo definir o verdadeiro sentido. Assim, o que nóspretendemos aqui é de apenas, semelhante ao autor, apresentar alguns
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conceitos que o próprio Eliade propôs em algumas de suas pesquisas.
Seu principal ponto de partida na compreensão da existência dosagrado é originado de uma dualidade, a saber: o sagrado e o profano.Lançada essa duplicidade, Eliade tentar expor as características queformam os seus modos de ser. O sagrado, segundo o filósofo romeno, éa experiência de uma realidade e a fonte de consciência de se existir nomundo. O sagrado é sempre a revelação do real, o encontro com o quenos salva, nos orienta, fornecendo um sentido à nossa existência.Rubens Alves (Cf. 1984, p. 66) diz que o sagrado e o ideal são asmesmas coisas, quer dizer, modelo de perfeição e excelência. O profano,afirma Eliade, ao contrário, é tudo aquilo que desorienta o homem,subtraindolhe o sentido de existir, jogandolhe em meio ao caos. Oprofano está cheio do que é irreal, o sagrado, por sua vez, está completodo real, da ordem cósmica. O sagrado é qualitativamente diferente doprofano, embora possa se manifestar no mundo profano, por intermédiode hierofanias. A respeito desta oposição entre o sagrado e o profanoEliade afirma:
[...] para os “primitivos”, como para o homem de todas associedades prémodernas, o sagrado equivale ao poder e, emúltima análise, à realidade por excelência. O sagrado estásaturado de ser. Potência sagrada quer dizer ao mesmo temporealidade, perenidade e eficácia. A oposição sagrado/profanotraduz se muitas vezes como uma oposição entre real e irreal oupseudo real (ELIADE, 2008a, p.18).
As hierofanias ocorrem quando o sagrado é percebido emqualquer objeto, como em pedras, animais, plantas, etc. Eliade afirmaque uma hierofania representa ao olhar do religioso, uma nítidaseparação do objeto hierofânico relativamente ao mundo restante que orodeia. Existem variedades de hierofanias, isto é, “modalidades” dosagrado que ocorrem devido a interpretações diferentes de um mesmopovo, onde as elites religiosas as percebem de uma forma que difereparcial ou totalmente ao restante da comunidade. Embora com esseparadoxo, ambas são válidas, como defende o pensador romeno. Asmodalidades do sagrado revelado por meio destes não se contradizem,mas se complementam.
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Os homens primitivos percebem que as hierofanias possuem acapacidade de se atualizar, isto é, de se revalorizar conforme o decorrerdo tempo. Entretanto, existem povos que se esforçam em manter omesmo significado destas hierofanias. Todas as hierofanias manifestamao homem a coexistência das duas essências opostas, ou seja, espírito ematéria, eterno e não eterno, sagrado e profano. Embora estashierofanias apresentem a manifestação do sagrado ao mundo, estamanifestação nunca se dá de forma integral, de maneira imediata, na suatotalidade. A respeito da revalorização das hierofanias, Eliade justifica:
Pois para aquele que está na posse de uma nova revelação (omosaísmo no mundo semítico, o cristianismo no mundo grecoromano, por exemplo) as antigas hierofanias não somente perdemo seu sentido original, o de serem manifestação de umamodalidade do sagrado, mas também são consideradas comoobstáculos a perfeição da experiência religiosa como pelomomento histórico em que se realiza a experiência. Sendocontemporâneos de uma revelação mais ‘completa’, maisconforme as suas faculdades espirituais e culturais, não podemacreditar, não podem valorizar, no plano religioso, as hierofaniasque foram aceitas em fases religiosas já passadas (ELIADE,2008b, p. 31).
Veremos mais adiante que as hierofanias estão presentes nosmitos, nas danças, nas festas e também representadas no tempo. Aprincípio, o que podemos definir, sem limitar outras possibilidades, éque o sagrado possui uma morfologia inconstante. O homem arcaicopercebe no sagrado o sentido de sua existência num mundo real eperfeito, ao contrário do mundo profano que é percebido como pseudoreal. “O sagrado e o profano não são propriedade das coisas. Eles seestabelecem pelas atitudes dos homens perante coisas, espaços, tempos,pessoas e ações” (ALVES, 1984, p. 5960). Portanto, todos os atos que ohomem arcaico efetua, só têm sentido no mundo sagrado. O encontro dohomem com o sagrado despertao para a existência de valores absolutosque se tornam referências para o seu modo de ser, levandoo a rejeitar omodo de vida profano (Cf. ROHDEN, 1998, p. 52). O sagrado e oprofano fundamentam duas formas de existência que o homem teve deassumir no mundo. Com isso, temos outra questão que devemos nospreocupar adiante: Como Mircea Eliade define o modo de existir dohomem no mundo sagrado e o modo de existir do homem no mundo
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profano? Quais implicações surgem ao homem ao assumir uma destasduas modalidades de existência? É o que tentaremos esclarecer emseguida.
3. O HOMEMRELIGIOSO EOHOMEM PROFANO
Assim como existe a dualidade entre o sagrado e o profano, Eliadetambém apresenta a dualidade do homem em ser no mundo, a saber, ohomem religioso e o homem profano. Segundo Eliade essa duplicidadedo homem só existe devido à presença do sagrado em oposição ao nãoreligioso. O homo religiosus é caracterizado pela busca do viver noâmbito do mundo sagrado, de se constituir numa existência aberta, quepermite transcenderse. Sua vida é vivida num plano duplo entre aprópria existência humana e a vida transhumana ligada ao cosmos ouao divino (dáimon). Eliade compreende em suas pesquisas o homemreligioso como o homem primitivo, entretanto, não se deve excluir ofato de ainda hoje existirem pessoas que buscam viver dentro desseambiente sagrado. O que na verdade o autor faz é pesquisar nas raízesdas culturas antigas o seu modo de ser no mundo para podercompreender melhor o homem contemporâneo. Eliade busca, portanto,adotar a perspectiva do homem religioso ao perceber o mundo, segundoele observa:
O primeiro fato com que deparamos ao adotar a perspectiva dohomem religioso das sociedades arcaicas é que o mundo existeporque foi criado pelos deuses, e que a própria existência domundo ‘quer dizer’ alguma coisa, que o mundo não é opaco, quenão é uma coisa inerte, sem objetivo e sem significado. Para ohomem religioso o cosmos ‘vive’ e ‘fala’. A própria vida docosmos é uma prova de sua santidade, pois ele foi criado pelosdeuses e os deuses mostramse aos homens por meio da vidacósmica (ELIADE, 2008a, p. 135).
Segundo o que foi dito, percebese, então, que a vida do homemreligioso se caracteriza por uma existência aberta à dimensão cósmicanão limitada ao modo de ser do homem. Assim, o homem religiosonunca está sozinho, pois vive nele simbolicamente uma parte do mundo.Esta abertura existencial ao sagrado permite ao homem religioso
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conhecerse ao conhecer o mundo e, como afirma Eliade, esseconhecimento é importante, pois se trata do conhecimento religioso quese refere ao ser. Isto quer dizer que está em comunicação com os deusese que participa da santidade do mundo. Dito isto, fica claro que ohomem religioso procura fundamentar a sua existência de acordo aexistência do sagrado que para ele é a realidade absoluta. A este respeitoErnest Cassirer afirma:
O que caracteriza a mentalidade primitiva não é sua lógica, masseu sentimento geral da vida. O homem primitivo não vê anatureza com os olhos do naturalista que deseja classificar coisascom a finalidade de satisfazer uma curiosidade intelectual, nemdela se acerca com um interesse puramente pragmático outécnico. Não a considera mero objeto de conhecimento nem ocampo de suas necessidades práticas imediatas. [...] Sua visão danatureza não é meramente prática; é simpática (CASSIRER,1977, p. 135).
Já dissemos anteriormente que o sagrado se manifesta porhierofanias, essas hierofanias também estão presentes em festas,espaços, tempos, rituais e histórias narradas, isto é, o mito. Falaremosmais adiante da importância do mito na vida no homem primitivo. Poragora, o que podemos adiantar e que nos ajuda a compreender melhor omodo de ser do homem religioso, é que como sua vida está ligada aocosmo, tudo deve ter uma explicação de origem, pois o cosmo é omodelo de existência do homem religioso. Os mitos têm essa função, ade revelar por que e por quem as coisas foram feitas e em quaiscircunstâncias, como nos demonstra Mircea Eliade:
Apesar de saber que é um ser humano e de se aceitar como tal, ohomem das sociedades arcaicas sabe que também é algo mais.Sabe, por exemplo, que seu ancestral foi um animal, ou que elepode morrer e retornar a vida (iniciação, transe xamânico) quepode influenciar as colheitas com suas orgias (que ele é capaz dese comportar com sua esposa como o Céu com a Terra, ou quepode desempenhar o papel da enxada e sua mulher a do sulco).Nas culturas mais complexas, os homens sabem que suasrespirações são Ventos que seus ossos são como montanhas, queum fogo arde em seu estômago, que seu umbigo pode tornarseum “Centro do Mundo” etc (ELIADE, 2007, p. 128).
Essa referência que o sagrado se torna para o homem arcaico nos
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faz lembrar do Übermensch nietzschiano, que, em contraste com omundo religioso, simboliza o total desejo do homem moderno desecularizar o mundo em que vive, dessa forma o superhomem deNietzsche seria o novo paradigma do homem profano. Ao contrário domodo de sernomundo do homo religiosus, existe o modo de ser dohomem profano. Eliade identifica esta espécie como o homem moderno,afirma que para compreender este basta apenas comparar as situaçõesexistenciais à de um homem religioso. O homem profano dessacralizouo mundo em que vive negando a transcendência e aceitando arelatividade da realidade. Segundo Eliade, o homem areligioso assumiuuma nova existência, a saber, a de se reconhecer como único sujeito eagente da história rejeitando todo apelo a um ser transcendental. Isto é,ao contrário do homem arcaico, o homem moderno não aceita nenhummodelo de humanidade fora da condição humana. “O sagrado éobstáculo por excelência à sua liberdade. Só será livre quando tivermatado Deus” (ELIADE, 2008a, p. 165). Thomas J. J. Altizer denominao homem moderno como “homem histórico” que, por ser histórico,decidiu optar por um novo modelo de ser que implica em umaexistência trágica;
O “homem histórico”, o homem que é na medida em que ele sefaz a si mesmo dentro da história, se vê obrigado a seautoidentificar com o momento histórico, com a “historicidade” eem conhecer como trágico uma existência absurda. Ao eleger ummodo de existência profano – i.e. ao pretender abolir otranscendente , o homem moderno fez uma opção existencial,isto é, ele escolheu um modo de existência trágico porque“escolheu” uma autonomia absoluta que termina por fecharsedentro do instante concreto. Daí que a “eleição” do homemmoderno só pode levarse a cabo mediante a abolição do sagrado(ALTIZER, 1972, p. 2627, tradução nossa).
A dinâmica da constituição da existência do homem profano secontrapõe ao do homem religioso, ao contrário deste, como descreveMircea Eliade, o homem nãoreligioso esforçase para se libertar de todaa religiosidade e de todo o significado transhumano. Sua composição sedá na medida em que se esvazia das superstições de seus antepassados,o homem arcaico. No mesmo sentido do pensamento de Eliade, ErnstCassirer afirma que para o homem moderno; “O mundo mítico aparece
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como um mundo artificial, um pretexto para outra coisa qualquer, emlugar de ser uma crença é um simples fazdeconta” (CASSIRER, 1977,p. 124). Entretanto, como afirma o filósofo de Bucareste, o homemmoderno, mesmo não querendo, conserva alguns comportamentos dohomem religioso, mas sem significação religiosa. Essescomportamentos surgem de forma camuflada em seu modo de vida. Éjustamente este paradoxo que existe entre o homem religioso e o homemprofano, esta citação de Eliade que segue nos auxilia a compreendermelhor esta distinção:
Para a consciência moderna, um ato fisiológico – alimentação,sexualidade, etc – não é, em suma, mais do que um fenômenoorgânico, qualquer que seja o número de tabus que ainda oenvolva [...] mas para o homem “primitivo” um ato nunca ésimplesmente fisiológico; é, ou podese tornar um “sacramento”,que dizer, uma comunhão com o sagrado (2008a, p. 20).
Se procurássemos encontrar exemplos concretos do homemprofano para poder ilustrar melhor essa dualidade apresentada entre asduas modalidades de existência, com certeza o que Eliade tenta noschamar atenção é que esse homem moderno é o homem da ciência. Odesenvolvimento da ciência na humanidade foi, talvez, o principalresponsável pela dessacralização do mundo do homem religioso. “Aexplicação do mundo por uma serie de reduções tem em vista umafinalidade: esvaziar o mundo dos valores extramundanos. É abanalização sistemática no Mundo, empreendida com o desígnio deconquistálo e dominálo” (ELIADE, 1999, p. 168). A partir dosavanços da ciência o que era antes respondido com acontecimentomítico de origem agora passa ser esclarecido numa linguagemracionalizada. “À nova luz da ciência, a percepção mítica tende adesaparecer” (CASSIRER, 1977, p. 128). Entretanto, Eliade defendeque as grandes crises do homem moderno são em grandes partesreligiosas, na medida em que são a tomada da consciência de umaausência de sentido. A religião busca uma resposta à pergunta: Qual é osentido da existência? Para estes, o homo religiosus, a resposta está nosagrado.
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4.ACONCEPÇÃODOTEMPO
Como vimos o homo religiosus é aquele que é “sedento do ser”.Isto que dizer que ele sempre busca estar em contato com o sagrado.Neste sentido, toda ação realizada simboliza uma repetição do que seusdeuses fizerem no passado. Partindo dessa concepção é que vamosapreender o modo de ser do primitivo em relação ao tempo em que vive.Não tardaremos a perceber que também o tempo é constituído a partirde uma oposição entre o sagrado e profano. Nosso objetivo édemonstrar como a noção do tempo é de vital importância para ohomem religioso. É através do tempo que o sagrado e o homem setornam contemporâneos e garantem suas coexistências, sem estaconcepção o sagrado perderia sentido para o homem arcaico e esteperderia o sentido de sua vida. Dito isto, o que buscaremos compreendersão algumas questões que estão implicadas no conceito de tempo, asaber, como o homem religioso percebe o tempo? E o homem moderno,será que tem a mesma percepção de tempo como a do homem arcaico?O que significa o conceito templumtempus? Qual é a importância e arelação com o tempo que as festas religiosas ou os rituais têm? O que osmitos têm a ver com o tempo? Será que o tempo sagrado está camufladono mundo do homem profano? As páginas que se seguem visamresponder essas dúvidas.
O homem religioso concebe o tempo de forma heterogênea, isto é,o tempo é dividido em sagrado e profano. O tempo sagrado possui pornatureza a capacidade de ser reversível, circular e repetível, isto é, ohomem arcaico encontra nele a possibilidade de retornar aos seusprimórdios para apreender novamente o seu modelo de vida, pois otempo sagrado mantémse sempre igual, não se esgota. Nele encontraseum período especial na vida do homem primitivo que o tira do tempoordinário e o coloca em contato com o sagrado. O tempo profano, porsua vez, é o tempo do cotidiano, sem sentido, onde ocorrem atosprivados de significados religiosos. Mas em que se distingue um temposagrado da duração profana que precede e lhe sucede? Segundo Eliade,qualquer momento do tempo pode se tornar sagrado pela hierofania, istoé, aparição reveladora do sagrado. Quando ocorre isto, este tempo passaa ser transfigurado, consagrado, comemorado e repetível infinitamente.
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Todo o tempo, qualquer que ele seja, se abre para um temposagrado ou, por outras palavras, pode revelar aquilo quechamaríamos, em expressão cômoda, o absoluto, quer dizer, osobrenatural, o sobrehumano, o suprahistórico. [...] o tempodesvenda uma nova dimensão que podemos designar dehierofânica e à qual a duração em si adquire não só uma cadênciaparticular mas também ‘vocações’ diversas, ‘distintas’ econtraditórias. Evidentemente, esta dimensão hierofânica dotempo pode ser revelada, causada, pelos ritmos cósmicos(ELIADE, 2008b, p. 314315).
Havíamos dito acima que o tempo sagrado apresenta uma rupturacom o tempo ordinário, contudo, existe também a possibilidade de haveruma inversão nessa ordem, onde, para o homem religioso, o tempoprofano passa a ser encarado com uma ruptura. Segundo Eliade, otempo sagrado pode ser contínuo quando a heterogeneidade do tempo setorna “solidária”, assim ocorre, por exemplo, com a liturgia cristã de umdeterminado domingo que é solidaria da liturgia do domingo anterior edo domingo seguinte. Como visto o tempo sagrado se revela como umcontinuum que só aparentemente é interrompido pelos intervalosprofanos que ocorrem no decorrer da semana. Eliade defende que estasidéias de periodicidade e de repetições do tempo ocupam destaque nãosó nas religiões, mas também no folclore conforme ressalta abaixo:
Nas lendas de castelos, cidades, mosteiros, igrejas desaparecidas,a maldição nunca é definitiva: ela renovase periodicamente –todos os anos, de sete em sete anos, de nove em nove anos, à datada catástrofe, a cidade ressuscita, os sinos tangem, a castelã sai dareclusão, os tesouros abremse, os guardiões adormecem: mas, nahora marcada, o sortilégio cessa e tudo se extingue (ELIADE,2008b, p. 317).
Vejamos agora como o homem nãoreligioso interpreta o tempo.Para esse o tempo “[...] não é uma coisa, mas um processo – umacorrente contínua, incessante, de acontecimentos, onde jamais nada serepete com a mesma forma idêntica” (CASSIRER, 1977, p. 86). Nessesentido, a frase de Heráclito “não se pode entrar duas vezes no mesmorio” (potamoî ouk éstin embênai dìs toî autoî) pode representar, talvez, ohomem se opondo ao universo mitológico que interpreta o tempo eespaço como passiveis de se repetirem. Entretanto, ocorre que o homemmoderno também concebe o tempo como heterogêneo. Para ele existe o
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tempo monótono do diaadia e o tempo do lazer. O tempo do diaadiaé o período do cotidiano, do trabalho e de outras atividades que serepetem todos os dias. O tempo do lazer é justamente aquilo o tira damonotonia, do tédio. Isto ocorre quando participa de uma festa, escutasua música preferida ou quando reencontra a pessoa amada nummomento especial. Contudo, a diferença de concepção do tempo entre ohomem religioso e o homem profano está na percepção destaheterogeneidade. Em relação ao homem religioso existe uma diferençaessencial. Esse conhece intervalos que são “sagrados” que nãoparticipam da duração temporal que os precede e os sucede. Que têmuma estrutura totalmente diferente e outra origem, pois se trata de umtempo primordial, santificado pelos deuses e suscetível de tornasepresente pelas cerimônias. Do contrário, para o homem nãoreligiosoessa qualidade transhumana do tempo é inacessível. Ele percebe omundo sem rupturas e mistérios, o tempo é encarado como ligado a suaprópria existência, começo (nascimento) e fim (morte). O homemmoderno percebe o tempo como histórico, isto é, único e irreversível emcontraposição do homem arcaico que considera o mesmo tempohistórico como destituído de importância, porque não tem precedentemíticohistórico. Vejamos como os Vedantas, religião indiana, percebeesta dualidade do tempo:
A existência no Tempo é ontologicamente uma inexistência, umairrealidade. É neste sentido que se deve compreender a afirmaçãodo idealismo indiano e em primeiro lugar do Vedanta, de que omundo é ilusório, de que lhe falta realidade, pois sua duração élimitada, e, na perspectiva do eterno retorno, é uma não duração.Essa medida é irreal, não porque não existe no sentido próprio dotermo, ou porque seja uma ilusão dos nossos sentidos; ela não éuma ilusão: neste momento preciso ela existe – mas é ilusória namedida em que não existirá mais daqui a dez ou cem mil anos. Omundo histórico, as sociedades e civilizações duramenteconstruídas pelo esforço de milhares de gerações, tudo isso éilusório, pois, no plano dos ritmos cósmicos, o mundo históricodura o espaço de um instante (ELIADE, 1991, p. 64).
O homem religioso vive assim em duas espécies de tempo. O maisimportante é o tempo sagrado. Esse está presente em todas as festasreligiosas, todo tempo litúrgico, nos mitos e nas cosmogonias querepresentam a reatualização de um evento sagrado que teve lugar num
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passado mítico. Eliade explora o conceito de templumtempus buscandomais uma possível via de se interpretar o comportamento do homemarcaico em relação ao tempo. Para isso, o autor toma o conceito criadopor Hermann Usener de templumtempus. Templum exprime o espacial etempus, exprime o temporal. Esse dois elementos em conjuntoexprimemse como imagem circular espáciotemporal. Mas qual é aimportância destas duas noções? Mircea Eliade as usa para dar sentido àexperiência do homem religioso que vê o mundo como um espaçocósmico que se renova anualmente, e, devido a este renovo, busca acada novo ano a santidade original da criação. Esta junção espaçotempo está simbolizada no templo de Jerusalém, conforme expõe Eliadeem O Sagrado e o Profano:
[....] os doze pães que se encontravam sobre a mesa significavamos doze meses do Ano e o candelabro de setenta braçosrepresentava os decanos (quer dizer a divisão zodiacal dos seteplanetas em dezenas). O templo era uma imago mundi: situandose no ‘centro do mundo’, em Jerusalém, santificava não somenteo Cosmo como um todo, mas também a ‘vida’ cósmica, ou seja, otempo (2008a, p. 68).
Nas culturas arcaicas, o homem religioso interpreta o Cosmoscomo uma unidade com movimento de vida circular dentro de um ano,ou seja, nasce (no inicio de cada ano), se desenvolve (no decorrer doano), morre (no final do ano) e renasce (no inicio do ano vindouro) paracompletar o mesmo círculo. A cosmogonia comporta igualmente acriação do tempo. Assim como a cosmogonia é vista como arquétipo detoda a criação, o tempus tornase o modelo de todos os demais tempos.No tempo mítico toda criação dos cosmos se inicia no começo dotempo, no principio de todas as coisas. Todo começo e recomeçoimplica em busca do estado puro. A cosmogonia é manifestação divina.É desejo do homem religioso estar instalado nesta mesma realidade.Quando o homem religioso busca participar ritualmente da cosmogoniaele busca o seu renovo, sua purificação e sua regeneração para se tornarmais forte.
[…] portanto, um tempo sagrado e forte: sagrado porquetransfigurado pela presença dos deuses. Forte porque era o tempopróprio e exclusivo da criação mais gigantesca que já se realizara:
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a do universo. Simbolicamente o homem voltava a sercontemporâneo da cosmogonia, assistia a criação do mundo(ELIADE, 2008a, p. 71).
Mas como o homem efetua este retorno ab origine, isto é, aotempo em que uma realidade foi criada? O retorno à gênesecosmológica se efetua a partir dos rituais ou festas religiosas. Assim, asfestas e rituais não são simplesmente comemorações de umacontecimento mítico, mas sim reatulizações cosmogônicas. Por isso, otempo cosmogônico serve de modelo para todos os tempos sagrados. Égraças a essa possibilidade de reversão do tempo que o homemreligioso, ao refazer o ritual, busca, antes de qualquer outra coisa, suaprópria regeneração ao renascer simbolicamente. Essas reatulizaçõesconstituem o conjunto de festas do calendário sagrado. As festasreligiosas só podem ocorrer dentro do tempo original que faz com que ohomem religioso se comporte de forma diferente do antes e depois dosrituais. Eliade afirma que em muitos casos no decorrer das festas algunsatos são realizados de forma semelhantes aos atos realizados no períodonão festivo, isto é, no tempo ordinário, contudo, o primitivo crê que estáem outro período, no tempo mítico.
Outra função muito importante que as festas religiosasrepresentam é a capacidade de tornar o homem religioso contemporâneode seus deuses, isto ocorre na medida em que se reatualiza o tempoprimordial no qual se realizaram as obras divinas. Por isso, para nãocorrer o risco de se esquecer ou de transfigurar os exemplos divinos asfestas religiosas periódicas servem para ensinar aos homens diversoscomportamentos sociais e de trabalho, enfim, a sacralidade dos modelosmíticos.
Restabelecer o tempo sagrado da origem equivale a tornarsecontemporâneo dos deuses, portanto, a viver na presença deles –embora esta seja ‘misteriosa’, no sentido de quem nem sempre évisível. A intencionalidade decifrada na experiência do espaço edo tempo sagrado revela o desejo de reintegrar uma situaçãoprimordial: aquela em que os deuses e os antepassados míticosestavam presentes, quer dizer, estavam em via de criar o mundo,ou organizálo ou de revelar aos homens os fundamentos dacivilização (ELIADE, 2008a, p. 81).
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Existencialmente, o primitivo procura sempre situarse numcontexto cósmico. Percebese então uma nostalgia, como defendeMircea Eliade, de perfeição dos primórdios. Isto se demonstra noesforço que o homem arcaico faz para reatualizar o tempo sagrado nabusca de viver sempre na presença do divino, do perfeito. Podese citar,como exemplo de reatualização, a ceia de Cristo narrada no evangelhode Mateus 26: 2629 que, semanal ou mensalmente repetida, simbolizanão só a comunhão entre os cristãos mais também torna presente osacrifício na cruz representando o fundamento e o centro da salvação deseus seguidores. É o eternopresente que corresponde aheterogeneidade do tempo hierofânico que só é permitido com aabolição do tempo profano. Os arquétipos foram revelados aos homensin illo tempore, tempo que não é passível de ser situadocronologicamente. Sempre que um modelo divino se revela aos homenso tempo profano se rompe para se introduzir o tempo sagrado. Arespeito dos arquétipos, Altizer afirma:
[...] o homem arcaico só existe no ser, mediante um contínuoprocesso de negação acompanhada de uma afirmação: o homemarcaico se reconstitui por que sua existência é criada segundo aimagem de seu modelo arquetípico (1972, p. 68, tradução nossa).
Segundo Eliade, o homem arcaico percebe como a verdadeirahistória os atos efetuados pelos deuses, pelos antepassados ou pelosheróis civilizadores durante o tempo mítico. As festas periódicas nãorepresentam somente a reatualização, mas também o encerramento deum ciclo temporal e a abertura de um novo tempo regenerado. O “anovelho” representa o tempo profano, período em que ocorremacontecimentos sem importância, sem modelos arquétipos em que ohomo religiosus se afastou do divino. Por isso, procuram se livrar pormeio de purgações, purificações e queima de imagens de tudo querepresenta o ano passado. Quando a tribo californiana Yurok apaga osfogos na véspera do ano novo e reacendem somente no dia de ano novoquerem, com isso, simbolizar um ritual cosmogônico onde as noites semfogo são comparadas à noite primordial. O fogo novo, reaceso, significao surgimento de um novo Mundo (Cf. ELIADE, 1999, p. 151). Assim asrepetições simbólicas do fim do “ano velho” e inicio do “ano novo”
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representam o aniquilamento simbólico do mundo velho e visamregenerar o tempo em sua totalidade. Sobre esse simbolismo, Eliadesalienta sua importância:
Na aspiração de recomeçar uma vida nova no seio de uma novacriação – aspiração manifestadamente presente em todas ascerimônias de fim e de começo de ano – transparece também odesejo paradoxal de se conseguir inaugurar uma existência ahistórica, quer dizer, de se poder viver exclusivamente no temposagrado, o que equivale a projetar uma regeneração de todotempo, uma transfiguração da duração em ‘eternidade’ [...] Épossível que o enredo mítico ritual do anonovo tenhadesempenhado um papel tão importante na historia dahumanidade principalmente porque assegura a renovaçãocósmica, ele oferecia igualmente a esperança de uma recuperaçãoda beatitude do ‘principio’. A imagem do ‘anocírculo’ foicarregada de um simbolismo cósmicovital ambivalente,simultaneamente ‘pessimista’ e ‘otimista’. O decorrer do tempoimplica o distanciamento progressivo do ‘principio’ e, portanto, aperda da perfeição inicial (2008b, p. 326; 2007, p. 51).
Por ocasião de ano novo acreditase que os imortais estejam denovo na Terra. Como visto, o tempo antigo, profano e histórico, pode seranulado e o tempo novo, sagrado e mítico, pode ser instaurado pelasrepetições cosmogônicas no próprio decurso do ano, vale lembrar que ohomem primitivo não percebe o decorrer do ano cronologicamentecomo o calendário ocidental do homem moderno, assim, o ano novopode ser a qualquer tempo, desde que haja a necessidade de um renovocom o divino. Todas as cerimônias de regeneração têm por finalidadeanular o tempo passado. “Pela primeira vez: tudo se encontra aí; essa éa chave de tantos ritos e cerimônias que perseguem a renovação doMundo, a reiteração da cosmogonia” (ELIADE, 1999, p. 156). Assim,são os ritos de iniciação de tribos primitivas ou então no batismo dareligião cristã que pretende simbolizar o fim do velho homem, pecador,ao imergir nas águas e o nascer de um novo homem, agora convertido erenovado, quando este é emerso.
Para o homem religioso o tempo é cíclico, o mundo éperiodicamente criado e destruído, os rituais cosmogônicos representamo fim do caos para o inicio de uma nova ordem. Esses rituais erepresentações só são passíveis de ocorrerem devido às explicações
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míticas. O mito é de importância vital para a compreensão existencialdo homem arcaico. Em suas pesquisas, Mircea Eliade define o mitocomo uma história sagrada, ou melhor, o relato de acontecimentosocorridos nos tempos primórdios. O mito é a descrição de diversos atosdivinos, de atividades criadoras dos deuses que causam rupturas nomundo profano, é o responsável de fornecer modelos para a condutahumana em todas as suas atividades. Realidade metafísica que só podemser abordadas por meio dos mitos. O mito está sempre relacionado coma criação in illo tempore e só descreve as realidades que de fatoocorreram, isto é, sucederam no mundo sagrado, pois o sagrado é o realpor excelência. Assim o homem primitivo procura por meio do mito:imitar seus deuses, manterse na presença do sagrado (realidade), tornaro mundo santificado e consolidado;
O verdadeiro substrato do mito não é de pensamento, mas desentimento. O mito e a religião primitiva não são, de maneiraalguma, totalmente incoerentes, nem destituídos de senso ou derazão; mas sua coerência depende muito mais da unidade desentimento que de regras lógica (CASSIRER, 1977, p. 134).
O homem religioso ao narrar um mito ultrapassa o seu tempocronológico histórico e profano e se projeta em outro tempo, o tempomítico onde o tempo ordinário é abolido. O mito implica uma ruptura dotempo e do espaço, as festas religiosas e os rituais, que já descrevemos,revelam justamente as histórias míticas. O mito restabelece o equilíbriona vida do homem religioso para esse retornar renovado ao tempohistórico. Quando o homem religioso conhece os mitos passase a tomarconsciência da origem de todas as criações. Percebese que para ohomem primitivo a vida não pode ser reparada, mas somente recriadamediante ao retorno às origens. Entretanto, essa recriação não é orenascimento físico, mas sim de ordem espiritual. Esta recuperação dotempo é essencial para assegurar a renovação do cosmos e da vidahumana e só pode ser obtida por meio de rituais que pretende alcançar otempo ab origene. Visando curarse da obra do tempo é que o indianoefetua um regressus ad uterum, como cita Eliade:
[...] esse motivo é discernível em três tipos diferentes decerimônias iniciatórias. Para começar, há a cerimônia
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upanayama, isto é, introdução do rapaz ao seu preceptor. Omotivo da gestação do renascimento está aqui claramenteexpresso: diz que o preceptor transforma o rapaz num embriãoconservandoo por três noites em seu ventre. Aquele que passoupelo upanayama é ‘duas vezes nascido’ (dvijá). Existeigualmente a cerimônia diksa, imposta àquele que se prepara parao sacrifício do soma, e que, consiste, especificamente, no retornoao estado fetal. Finalmente o regressus ad uterum encontrasesimilarmente no centro da cerimônia hiranyagarbha(literalmente, ‘embrião de ouro’). O recipiendário é introduzidonum vaso de ouro em forma de vaca e, ao sair, é considerado umrecémnascido (2007, p. 7576).
Definitivamente, esses rituais visam sempre abolir o tempodecorrido em busca do voltar para recomeçar a existência com todas asvirtualidades possíveis. Contudo, ao refazer o ritual mítico, o homemarcaico necessita de rememorar todos os detalhes, até os maisinsignificantes, para apagar o passado, dominálo para impedir que esteintervenha na sua vida presente. Como já havíamos descrito, para ohomem religioso a essência precede a existência, isto é, ele é assimporque uma série de eventos míticos ocorreram ab origine. Ele conhecesua essência a partir dos mitos, que são relembradas nas festas religiosaspara explicar sua origem. Para o primitivo a sua existência autêntica seinicia no momento em que se recebe a comunicação da história dosprimórdios e aceita as consequências. Através das repetições periódicasdo que foi feito no princípio, determinase a certeza de que algo existede forma absoluta. Esse algo que existe, sem dúvida, é o sagrado,transcendente, mas acessível à experiência humana.
Esse mundo ‘transcendente’ dos deuses, dos heróis e dosancestrais míticos é acessível porque o homem arcaico não aceitaa irreversibilidade do tempo. Como constatamos por diversasvezes, o ritual abole o tempo profano, cronológico, e recupera otempo sagrado do mito. Torna o homem contemporâneo dasfaçanhas que os deuses efetuaram in illo tempore. A revoltacontra a irreversibilidade do tempo ajuda o homem à ‘construir arealidade’e, por outro lado, libertao do peso do tempo morto,dandolhe a segurança de que ele é capaz de abolir o passado, derecomeçar sua vida e recriar o seu mundo (ELIADE, 2007, p.124).
Percebemos que para o homem das sociedades o mito é vivo. Istoacarreta num mundo aberto e enigmático. Entretanto, mesmo sendo
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misterioso, este mundo fala ao homem, basta conhecer a linguagemmítica e seus símbolos. Os símbolos são dotados de importânciaessencial para a compreensão da linguagem do mundo, eles revelamaspectos da realidade, revelam as mais secretas modalidades do ser. Anatureza passa a ter sentidos completamente diferentes aos queinterpretamos hoje. Eliade descreve que para o homem religioso omundo não é uma massa opaca de objetos arbitrariamente reunidos. Omundo possui o seu próprio ritmo, e este dita o modo de se comportardo homem arcaico.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer de nosso itinerário procuramos interpretar aexperiência do homem religioso em relação ao tempo. Entretanto,advertimos que não temos aqui a pretensão de concluir no sentido denão possibilitar outras interpretações ao tema. Se assim fosse, comcerteza não seria aqui um exercício filosófico. Nosso ponto de partidafoi a afirmação da possibilidade de compreender o tempo de formaheterogênea. Para isso, recorremos, principalmente, aos estudos dofilósofo romeno Mircea Eliade que dedicou sua a vida em pesquisar asreligiões e os modos de ser do homem religioso. Ao tentar compreenderessas situações existenciais percebemos a importância do sagrado e doprofano. Vimos no decorrer de nossa pesquisa que o sagrado e profanorevelam mais do que conceitos religiosos, eles revelam dois modos deser no mundo, quer dizer, uma ontologia. É devido à existência dessadualidade que se pode pensar o tempo heterogêneo.
O sagrado é a experiência de uma realidade especial, pois ela nostira do cotidiano. O sagrado significa aquilo que é separado, aquilo queé por si mesmo, é ordem cósmica. Para o homem religioso é sempre arevelação do real que fornece o sentido a sua existência. Vimos que oprofano é o oposto do sagrado, quer dizer, o profano é tudo aquilo quedesorienta o homem, que não tem sentido, que revela o caos e exprime oirreal. Entretanto, esse modo de compreender o mundo é apenas dohomem religioso. Assim, o homem nãoreligioso é aquele que tem aexistência dessacralizada. Ou seja, todas as suas ações, todos os
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acontecimentos terrenos são vazias de sentidos divinos. Não existe, deforma consciente, a necessidade da dualidade do mundo. O homemreligioso, ao contrário, é o modelo de existência que se percebe comoparte de um cosmos, possui uma existência aberta e passível atranscenderse a seres supranaturais. Sua vida só ganha sentido a partirdo momento em que se busca reproduzir fielmente os modelos divinos.Percebese que na existência do homem religioso não há espaço paracontingências, seu modo de ser está previamente estabelecido, mas issonão quer dizer que ele não seja livre. O homem religioso procura sempreestar em contato com o sagrado evitando o profano.
A concepção do sagrado e do profano permite ao homem religiosointerpretar o tempo da mesma forma. Isto é, em tempo sagrado e tempoprofano. Como podemos perceber o tempo sagrado é aquele que possuia capacidade de ser reversível e repetível. Graças a essa compreensão dotempo, o homem arcaico encontra nele a possibilidade de retornar aosseus primórdios para apreender novamente o seu modelo de vida que foiensinado pelos deuses e de se estabelecerem no local onde estes seencontram, o centro do mundo. Assim, o tempo sagrado permite aohomem religioso ultrapassar o cotidiano. Como percebeu Cassirer, otempo nunca é considerado como forma pura ou vazia, mas como asgrandes forças misteriosas, que governam todas as coisas, que dirigem edeterminam não só a nossa vida mortal, mas também a dos deuses. Otempo profano, por sua vez, é o do cotidiano, sem sentido onde ocorrematos privados de significados religiosos, local onde vivem criaturasdesconhecidas.
Contudo, no decorrer de nossa investigação , entendemos que nasduas situações existenciais do homem é possível perceber o tempo deforma heterogênea. Quer dizer, mesmo que o homem moderno seesforce em negar as superstições, o tempo é percebido semelhante aohomem religioso. Porém, o tempo do sagrado e do profano se manifestade forma camuflada. Por que, da mesma forma que o tempo sagrado,representado por meio de festas e rituais, permite o homem religiosoescapar de seu cotidiano, o homem moderno, ao ler um livro, ao assistirum filme ou ouvir uma canção também escapa do tempo ordinário. Damesma forma que uma sociedade tribal realiza um ritual para consagrar
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sua nova morada, o homem moderno promove festas de inauguraçõespara um novo estabelecimento.
Percebemos que, tal como qualquer fenômeno humano, ofenômeno religioso é extremamente complexo. Não queremos aquiemitir juízos de valores em relação a estas duas diferentes modalidadesde ser no mundo. Entretanto, percebemos que o homem moderno nãoreligioso revela o homem das ciências que estabeleceu odesencantamento do mundo. Esse desencantamento do mundo revela aideia de que a natureza perdeu o sentido de mistério, sagrado e místicodevido ao conhecimento científico e técnico. Este saber científicoprecisa de uma natureza abstrata, vazia, opaca para ser controlada pelopensamento racional. De fato, como o próprio Eliade nos mostra, umadas principais diferenças que separa o homem primitivo do homemmoderno está na incapacidade em que este último tem de viver a vidaorgânica como um sacramento. Com efeito, não seria em consequênciadisto que Eliade afirma que as grandes crises do homem modernoocorrem quando este se lança no mundo sem consciência de seu sentidode existir nesse mundo?
Por outro lado, o homem religioso, que concebe o mundo dotadode sentido sagrado, ao perceber o tempo, como possibilidade da eternarepetição dos gestos exemplares míticos e um retorno às fontes sagradase do real, busca transcender seus limites e salvarse do nada e da mortenegando a historicidade. Estes homo religiosus habitam um mundoordenado e carregado de sentido, gozam de uma ordem interna e sesentem efetivamente mais fortes para viver. Entretanto, o fato de ohomem tomar consciência do seu próprio modo de estar e o de assumir asua presença no mundo constitui conjuntamente uma experiênciareligiosa. Rubens Alves disse que a religião está mais próxima de nossaexperiência pessoal do que desejamos admitir. Como vimos, existemvárias temporalidades heterogêneas dentro de uma mesma cultura, e,portanto, os deuses não deixaram de existir, o homem moderno quedesaprendeu a perceber o sagrado.
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______. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2007.______. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins
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