Heidegger e a Metafisica Como Ontoteologia

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59 Heidegger e a Metafísica como Heidegger e a Metafísica como Heidegger e a Metafísica como Heidegger e a Metafísica como Heidegger e a Metafísica como Ontoteologia Ontoteologia Ontoteologia Ontoteologia Ontoteologia Fernando Fragozo* Resumo Este artigo apresenta a caracterização heideggeriana da metafísica como ontoteologia. Num primeiro momento, trata-se de explicitar a posição do pensamento de Heidegger a partir da questão do desvelamento, da diferença ontológica e da análise do esquecimento do ser como origem da metafísica, para, em seguida, caracterizar o vigor metafísico como busca de funda- mentação do ente enquanto tal e no seu todo enquanto princípio de razão. Por fim, trata- se de refletir sobre a análise que faz Heidegger deste movimento como história da metafísica, que hoje se apresentaria como cálculo e disponibilização infinita da totalidade do ente. Pala ala ala ala alavr vr vr vr vras-cha as-cha as-cha as-cha as-chave: e: e: e: e: Heidegger, Metafísica, Ontoteologia, Filosofia, Verdade. Abstract This article presents Heidegger’s characterization of metaphysics as ontotheology. At first, the position of Heidegger’s thought is presented by way of the question of the unconcealment, the ontological difference and the analysis of the forgetfulness of Being as the origin of metaphysics. The metaphysical vigor is characterized as a search for grounding being as being and as a whole, as principle of reason. At last, the article aims at reflecting on Heidegger’s analysis of this movement as history of metaphysics, present nowadays as calculation and search for infinite control of the whole of being. Doutor em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ; Professor Adjunto ECO/UFRJ. Este trabalho foi apresentado no I Congresso Brasileiro de Filosofia da Religião, Brasília, 2005. *

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Heidegger e a Metafísica comoHeidegger e a Metafísica comoHeidegger e a Metafísica comoHeidegger e a Metafísica comoHeidegger e a Metafísica comoOntoteologiaOntoteologiaOntoteologiaOntoteologiaOntoteologia

Fernando Fragozo*

Resumo

Este artigo apresenta a caracterização heideggeriana da metafísica como ontoteologia. Numprimeiro momento, trata-se de explicitar a posição do pensamento de Heidegger a partir daquestão do desvelamento, da diferença ontológica e da análise do esquecimento do ser comoorigem da metafísica, para, em seguida, caracterizar o vigor metafísico como busca de funda-mentação do ente enquanto tal e no seu todo enquanto princípio de razão. Por fim, trata-se de refletir sobre a análise que faz Heidegger deste movimento como história da metafísica,que hoje se apresentaria como cálculo e disponibilização infinita da totalidade do ente.

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Abstract

This article presents Heidegger’s characterization of metaphysics as ontotheology. At first,the position of Heidegger’s thought is presented by way of the question of the unconcealment,the ontological difference and the analysis of the forgetfulness of Being as the origin ofmetaphysics. The metaphysical vigor is characterized as a search for grounding being asbeing and as a whole, as principle of reason. At last, the article aims at reflecting onHeidegger’s analysis of this movement as history of metaphysics, present nowadays ascalculation and search for infinite control of the whole of being.

Doutor em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ; ProfessorAdjunto ECO/UFRJ. Este trabalho foi apresentado no I Congresso Brasileiro deFilosofia da Religião, Brasília, 2005.

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KKKKKeeeeeywywywywywororororords:ds:ds:ds:ds: Heidegger, Metaphysics, Ontotheology, Philosophy, Truth.

O objetivo da presente exposição é refletir sobre a caracteri-zação heideggeriana da metafísica como ontoteologia. A ex-posição buscará mostrar que o entendimento dessa expres-são, ontoteologia, corresponde ao entendimento do que sig-nifica “metafísica” para Heidegger. Um significado que nãodifere, mas busca esclarecer e complementar o significadotradicional do termo, cunhado a partir da nomeação dostratados aristotélicos referentes à “filosofia primeira”, nos quaisAristóteles realiza o estudo dos primeiros princípios, dascausas e do fundamento do que há.___O fato de a definição heideggeriana não diferir em subs-tância da definição tradicional de metafísica não quer con-tudo dizer que esta definição baste para Heidegger. Muitopelo contrário, para Heidegger, a metafísica não é apenas umadisciplina da filosofia, não é um estudo específico, a ser posicio-nado ao lado da ética ou da estética. Para Heidegger, a filoso-fia é metafísica, ou, se quisermos, a metafísica é a filosofia.___A explicitação desta caracterização será aqui realizada a par-tir da apresentação e da análise da “posição” heideggeriana. Emoutros termos, buscar-se-á, em primeiro lugar, situar Heideggerna esfera do pensamento. “De onde fala Heidegger?”, será aquestão norteadora deste início. Três conceitos fundamen-tais serão assim relembrados: “alétheia” (“verdade” no sentidode “desencobrimento”), “diferença ontológica” e “esquecimen-to do ser”. É a partir desta posição e da conceituação destestermos que Heidegger empreenderá sua análise do pensa-mento grego – o pensamento “pré-socrático” e o pensamen-to “filosófico” –, abrindo assim a grande vereda de sua leitu-ra da filosofia como metafísica, leitura essa que pensa a ori-gem do vigor metafísico como “esquecimento do ser” e comopaulatina preponderância da conceituação de alétheia como“adequação” e não mais como “desencobrimento”.___Porque a metafísica é pensada por Heidegger como um mo-vimento. Movimento do pensamento que, a partir desta origem,

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passa a funcionar como atrator potente para o pensamento– ou, se quisermos, como uma grande armadilha na qual opensamento ocidental teria caído e da qual não conseguiriasair. Movimento do pensamento chamado filosofia, ametafísica será por Heidegger caracterizada como busca defundamentação do ente enquanto tal e no seu todo, oucomo onto-teo-logia.___Será meu propósito aqui explicitar a leitura que fazHeidegger desse termo: ontoteologia, para, em seguida,explicitar o caráter “atrator” deste movimento como “princi-pio de razão” que se desdobra em épocas historiais quehoje culminaria no Gestell, época atual, regida, segundoHeidegger, pela essência da técnica, cuja marca é o cálculo ea disponibilização infinita da totalidade do ente.

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O pensamento de Heidegger é todo ancorado num marcocentral que se nomeia alétheia. Tradicionalmente traduzida, apartir do latim veritas, por “verdade” no sentido de “adequa-ção”, alétheia é pensada por Heidegger como Unverborgenheit,traduzido em português por “desvelamento”, “desoculta-mento” ou “desencobrimento”. Tal interpretação se dá aHeidegger a partir do que ele nomeia “um pressentimento”,de tal modo que, em Meu caminho para a fenomenologia, aocomentar o estudo que realizava sobre as Investigações Lógicasde Husserl, Heidegger dirá que neste estudo descobriu “an-tes conduzido por um pressentimento do que orientadopor uma compreensão fundada” que “o que para afenomenologia dos atos conscientes se realiza como oautomostrar-se dos fenômenos é pensado mais originaria-mente por Aristóteles e por todo o pensamento e existênciados gregos como Alétheia, como o desvelamento do que sepre-senta, seu desocultamento e seu mostrar-se”.1

Martin HEIDEGGER, Meu Caminho para a Fenomenologia. p. 300. (Para referênciascompletas, cf. abaixo BibBibBibBibBibliogrliogrliogrliogrliografafafafafiaiaiaiaia.)

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___Da análise semântica da palavra, Heidegger destaca oseu caráter privativo: contrariamente a Wahrheit ou “verda-de”, alétheia é composta por léthe e por um alfa privativo2.Ora, em grego, léthe se apresenta com uma pluralidade desentidos que remetem fundamentalmente a esquecimento,morte, ocultação, velamento, encobrimento. Em Homero, Létheé o nome do rio que corre no Hades e cujas águas as sombrasdos mortos bebem a fim de esquecer a vida recém-passada.___Para Heidegger, a direção possível para uma traduçãomais próxima do que teriam pensado os Gregos seria algocomo Un-verborgenheit – des-velamento, des-ocultação, des-encobrimento. E é esta direção que vai guiar todo o traba-lho de interpretação ou de reinterpretação que Heideggerfará tanto sobre os escritos dos primeiros filósofos (Platão eAristóteles) como sobre os ditos dos pensadores pré-socráticos (Parmênides, Heráclito, Anaximandro), interpreta-ção esta que levará a toda uma radical releitura da filosofia.Mas, ao que se refere o des-velamento, o des-encobrimento?Para que ou por que a importância deste conceito e destatradução? A qual âmbito de questão está o termo referido?A resposta é simples: ao próprio âmbito. Ou, se quisermos,ao próprio âmbito do pensamento, ao próprio âmbito doser. Alétheia, desencobrimento, é pensada como a aberturaessencial que “dá” ser. Sua importância é assim central: falaalétheia da abertura do ser. Mais especificamente da aberturado ser para o homem, homem definido essencialmente porHeidegger como aquele ente único que tem acesso ao sercomo ser, ou seja, que pode se dar conta da abertura na qualos entes se dão como entes. E que por isso é denominadopor Heidegger Da-sein (ser-aí, estar-aí ou pre-sença, segundoa tradução) – porque há homem apenas na medida em quehá ser, e há ser apenas na medida em que há homem3:

ID., De l’essence de la vérité – Approche de l’”allégorie de la caverne” et du Théétète de Platon, p. 27.Em Ser e Tempo: “O ser (...) apenas ‘é’ na compreensão dos entes a cujo serpertence uma compreensão do ser.” (M. HEIDEGGER, Ser e Tempo - Parte 1, p. 246).Na Carta sobre o Humanismo (p. 168): “O homem é e é homem enquanto é o ec-sistente. Ele está postado, num processo de ultrapassagem, na abertura do ser, queé o modo como o próprio ser é”. Sobre a denominação Dasein, lê-se, no relatório doseminário de Zähringen, redigido por Jean Beaufret: “Este ser-numa-abertura,

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“Dasein, é preciso entendê-lo como die Lichtungsein : ser a cla-reira. O Aí, de fato, é o termo para a abertura.”4

___Deste modo, a alétheia não “é” – não é “algo”, “coisa”,“ente” mas (é) a própria abertura “na qual” “coisas”, “entes”se dão. Ser, assim como alétheia, não “é”. Ser e alétheia “se dão”.Neste “dar-se” o que aparece, o que se “vê”, o que “é”, são osentes. Ser – clareira na qual os entes se apresentam.___O “acesso” a esta clareira, a consciência dela, é uma per-plexidade, um “salto”.5 Trata-se, para Heidegger, de uma “ex-periência”, algo “que não pode ser transmitido simplesmen-te à maneira de um conhecimento, nem também à maneirade um questionamento, mas que deve ser sobretudo experi-mentado”6. Ora, para Heidegger, este “salto” para dentro daexperiência do ser enquanto ser, para dentro da alétheia en-quanto alétheia, teria se dado apenas e primeiramente comos gregos, e notadamente com os pré-socráticos:

eis o que Ser e Tempo denomina (e Heidegger chega a acrescentar ‘desajeitadamente ecomo pude’) Dasein” (M. HEIDEGGER, Les Séminaires, In: __. Questions III et IV, p. 468).M. HEIDEGGER, Les Séminaires, p. 468.M. HEIDEGGER., O Princípio da Identidade, p. 183.M. HEIDEGGER et allii, Protocolo do Seminário sobre a Conferência “Tempo e Ser”, p. 275.M. HEIDEGGER, De l’essence de la vérité..., p. 30.

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O dito de Heráclito traz suficientemente ao dizer esta experiên-cia fundamental com, em e a partir da qual um olhar sobre aessência da verdade como des-encobrimento do ente despertou.(...) É mesmo preciso que digamos que este dito traz ao dizer aexperiência e a posição fundamental do homem antigo.7

___Experiência fundamental na medida em que chega aofundo da essência do homem como aquele que tem aces-so ao ser como ser, ao ente como ente. Saber fundamental,“consciência” de que o ente permanece recolhido no sere de que o ser não “é”. Saber da diferença entre ser e ente– saber da diferença ontológica. Os gregos seriam aquelesque, pela primeira vez, teriam travado um combate paraarrancar o ser dos entes, para pensar o ente como ente e,neste sentido, recolhido no ser. Os gregos teriam, pelaprimeira vez, dis-cernido o ser do não-ser e da aparência.

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Seus poetas e pensadores teriam lutado pela manutenção des-ta diferença, deste dis-cernimento, desta morada, deste ethos.___É esta luta que estaria na origem da metafísica, é estaquestão que, para Heidegger, marca o início do Ocidente: aquestão da alétheia e da diferença ontológica. É dela que ametafísica recebe seu impulso original, sem contudo dela sedar conta e dela dar conta – trata-se da sua “fonte oculta”.8Apenas os pré-socráticos a teriam explicitamente pensado e ateriam poeticamente enunciado. Os pré-socráticos teriambuscado pensar “aquilo em que acontece a presença dascoisas que se presentam”9, sendo que este “aquilo” não é umente, uma “coisa”. Trata-se do “ser do ente”.___Uma posição marcada pela “dimensão excessiva”, pela“sobremedida”: tal é o destino (moîra) grego. Submergidospela “entrada em presença do presente”10, os Gregos tiveram,segundo Heidegger, de questionar o presente enquanto pre-sente. A filosofia é assim a resposta de uma humanidadeatingida pelo “excesso de presença”, resposta “ela mesmaexcessiva”, de modo que

___Esta fulguração original haveria de se perder mesmo seseu vigor viesse a ser mantido: o pensar posterior,notadamente a partir de Platão e Aristóteles, não consegui-ria mais pensar o ser, o “aquilo em que acontece a presençadas coisas que se presentam”, como não sendo um “algo”,um “ente”, uma “coisa”. A alétheia passa a ser pensadacomo “verdade” no sentido de adequação/retidão e nãomais no sentido de abertura/desvelamento. Para Heidegger,

(...) a filosofia, enquanto filosofia, não é uma maneira grega deexistir, mas uma maneira hipergrega. (...) Assim pode-se resumir: osgregos lidam com a alétheia de tal modo que ordinariamente é naalétheia que eles se encontram ocupados; mas é com a alétheia quese ocuparam estes mais gregos dos gregos que são os filósofos, semnunca contudo chegar a levantar a questão da alétheia (como tal).11

ID., Logos. In: SOUSA, José Cavalcante de (Seleção de Textos e Supervisão). Os Pré-Socráticos – Fragmentos, Doxografia e Comentários. p. 122.Ibid., p. 121.M. HEIDEGGER, Les Séminaires, p. 419.Ibid., p. 421.

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a filosofia platônica “não é nada mais do que a luta quetravam os dois conceitos de verdade”.12___O ser, o “aquilo em que acontece a presença das coisas”passa então a ser pensado como ente, ente fundamental,“fundamento” que, inserido justamente no âmbito no qualos entes se dão (o próprio ser), torna-se assim mais um“ente” que, por sua vez, precisa também ser fundamentado.O ser torna-se ente e não mais o “aquilo”, o âmbito em queos entes se dão. O ser passa a ser fundamento que por suavez precisa ser fundado. Metafisicamente, “ser” torna-se “oque determina o ente enquanto ente” e a questão do sertorna-se questão do ente enquanto ente, ou seja, questão dofundamento do ente.13 Tal é o esquecimento do Ser.___Como questão norteadora central da filosofia, explicitadapor Aristóteles, a pergunta sobre o ente se faz então doseguinte modo: ti tò ón – “que é o ente, enquanto é?”. Per-gunta capciosa, com certeza. Porque a pergunta “que é oente, enquanto é?” é um circuito fechado que pergunta so-bre si mesmo. Senão, vejamos: o que pergunta ela? Perguntapela entidade do ente. Mas como pergunta? Na medida emque o ente é “o que é”, a pergunta “o que é o ente?” podeser também apresentada como “O que é o que é?”. Do mes-mo modo, pode ser também explicitada como: “Que ente éo ente?”. Trata-se, de fato, de uma estranha pergunta.___Em primeiro lugar, porque restringe o horizonte da res-posta ao próprio ente: “o que é” deve ser explicitado como“o que é”, ou seja, como um ente. Buscar a entidade do entese dá portanto no próprio plano dos entes. É, assim, umente que se busca para explicitar a entidade do ente. Emsegundo lugar, porque já determina na pergunta que o entese apresenta... no presente. Não dizemos (nem os gregosdiziam, ao que parece): o ente sendo. Dizemos “o ente é”. Ouseja, já se encontra determinado pela pergunta (ou pelaconstrução gramatical grega e suas descendências) que,quando se fala do ente, se fala da presença, da permanência,

ID., De l’essence de la vérité..., p. 66.ID., Les Séminaires, p. 415.

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M. HEIDEGGER, A Constituição Onto-Teo-Lógica da Metafísica, p. 201.ID., Ciência e Pensamento do Sentido, p. 50. ID., A Constituição Onto-Teo-Lógica..., p. 196.

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da estância, da sub-stância do que se dá. O ente é. A suaessência é permanente, sub-stantiva.___Este pequeno desdobramento da pergunta fundante efundamental da metafísica já nos indica o caminho para pen-sar a conceituação da metafísica como ontoteologia. Porque,com este desdobramento, fica claro o que se busca com apergunta: busca-se o ente que determine a entidade dos en-tes, busca-se a essência, o fundamento da entidade. Ora, oente é no ser. “Ser” surge assim como o fundamento do ente.Mas surge portanto também como um ente – que, por sua vez,também precisa ser fundamentado. E o que fundamenta o seré o ente supremo, o “mais ente”, o ente não fundado, que a simesmo se funda – o ente causa sui. Nas palavras de Heidegger:

___Estudo do ente como tal e no seu todo, estudo do entesupremo, fundamento de todos os demais, a metafísica éassim onto-teo-logia. Mas, diferentemente de outras “logias”(psicologia, biologia, arqueologia...), para as quais se trata deenunciar adequada e articuladamente um saber específicode uma “ciência”, ou seja, de uma determinada “região doreal”15 específica, definida a partir de um “complexo funda-dor, onde os objetos das ciências são representados sob oponto de vista de seu fundamento”16, a ontologia e a teo-logia têm um caráter peculiar, pois buscam dar conta jus-tamente do fundamento, na medida em que visam dar contado ser como fundamento do ente. Em outras palavras,

A de-cisão [grega originária] dá como resultado e oferece o serenquanto fundamento a-dutor e pro-dutor, fundamento que ne-cessita, ele próprio, a partir do que ele fundamenta, a funda-mentação que lhe é adequada, quer dizer, a causação pela coisa(causa) mais originária (Ur–Sache). Esta é a causa como causa sui.Assim soa o nome adequado para o Deus na filosofia. A esteDeus não pode o homem nem rezar, nem sacrificar. Diante dacausa sui, não pode o homem nem cair de joelhos por temor,nem pode, diante deste Deus, tocar música e dançar.14

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diferentemente das outras “logias”, a ontologia e a teologianão são “domínios de entes”, definidos a partir de umacompreensão inicial que funda justamente o domínio (aciência) em questão – não, a ontologia e a teologia, ao bus-carem pensar o ente enquanto tal e no seu todo, buscam ofundamento da entidade.___São, assim, “logias” num sentido essencial, na medida emque “prestam contas ao lógos” e são “conforme ao lógos”.17 Oque quer dizer que respondem ao sentido do lógos como“pousar que recolhe”18, como “aquilo que reúne na presençatudo que se presenta e assim o deixa-estendido-diante”19,como fundamento. Manifestação inaugural do ser que dáorigem à metafísica, o lógos, enquanto dito de Heráclito, re-mete, segundo Heidegger, não apenas a légein como dizer,falar, narrar, mas originariamente ao “que entendemos como ‘legen’ do alemão, que soa parecido: deitar e estender dian-te” ou ao legere do latim, “como colher no sentido de irpegar e recolher”.20 É este sentido que estaria essencialmentepresente no lógos heracliteano, sentido este que nomeia, demodo originário para a metafísica, “aquilo em que acontece apresença das coisas que se presentam”, “a presença do pre-sente” (tò eón) ou, em outras palavras, “o ser do ente”.21

___Em suma, o que a posição heideggeriana nos diz é que,com os gregos, notadamente os pré-socráticos, manifestou-se, pela primeira e única vez explicitamente num dizer poéti-co, o desencobrimento e, com ele, a diferença entre ser eente – a diferença ontológica. A potência desta fulguração,contudo, teria sido tão grande que não pôde ser totalmenteentendida e mantida pelos pensadores posteriores (e talvezmesmo os pré-socráticos não tiveram como elaborar a po-tência do que a eles se deu). Estes pensadores, os filósofos,teriam permanecido com a diferença sem vê-la e tratá-la en-quanto tal. Traço básico no edifício da essência da metafísica,

Ibid., p. 196.ID., Logos, p. 115.Ibid., p. 121.Ibid., p. 112.Ibid., p. 121-122.

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a diferença ontológica é assim o horizonte no qual a ontologiase move, horizonte incapaz de surgir no seio mesmo daontologia.22 O resultado é que o ser, entendido como oâmbito em que os entes se dão, não consegue ser pensadofora do círculo dos próprios entes, e é buscado como fun-damento fundante – desdobramento cuja possibilidade seencontra na própria manifestação primeva do ser como lógospara Heráclito. A lógica será assim “o nome para aquele pen-samento que, em toda parte, explora e funda o ente enquan-to tal e no todo, a partir do ser como fundamento (lógos).”23

___A busca deste fundamento constitui o motor dametafísica. Como principio de razão, que Leibniz enunciacomo “nada há sem causa”24 ou “que de toda verdade sepossa dar a razão”25 (lembremos que razão e fundamentoem alemão se confundem no termo Grund), este motor é oque chamamos de “atrator” para o pensamento, na medidaem que o pensamento é provocado a nele entrar e darconta da fundamentação. Diante dele, não há fundamentoque resista, pois de todo fundamento é preciso dar seu fun-damento. Princípio infinitamente niilista, que assim se apre-senta nas palavras de Heidegger:

(...) o domínio de desdobramento e de advento do niilismo é aprópria Metafísica – sendo que por Metafísica não compreen-demos uma doutrina ou uma disciplina particular da filosofia,mas a estrutura de base do ente no seu todo, na medida em queeste último é dividido em mundo sensível e mundo supra-sensí-vel, e no qual este determina aquele. A Metafísica é o localhistorial no qual isso se torna destino, que as Idéias, Deus, oImperativo Moral, o Progresso, a Felicidade para todos, a Cultu-ra e a Civilização perdem sucessivamente seu poder construtivopara finalmente cair na niilidade.”26

___É este movimento que Heidegger chama de história dametafísica. Mas história aqui não deve ser pensada como

ID., Les Séminaires, p. 398.ID., A Constituição Onto-Teo-Lógica..., p. 196.ID., Le Principe de Raison, p. 43.Ibid., p. 79.ID., Le Mot de Nietzsche ‘Dieu est Mort’. p. 266.

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um levantamento de eventos – a isso Heidegger chama deHistorie ou “historiografia”. História (Geschichte) é o aconte-cer essencial que funda um mundo ou abre a história do ser,é um advir “maior e mais original que seus [do homem]feitos e gestos cotidianos”27. O acontecimento é uma epoché:uma retenção, uma suspensão radical.___Ora, este acontecer essencial se apresenta diferentemen-te para Heidegger segundo o momento de seu pensamento.Em Ser e Tempo, ele é pensado como conseqüência da deci-são do Dasein – decisão que se dá a partir da consciência(Gewissen) da finitude, do dar-se conta de que o mundo her-dado é sempre uma possibilidade e portanto do poder-serque todo Dasein é. Em Tempo e Ser e nos escritos tardios, ele épensado como um “envio”, como um “destino” – envio dodesencobrimento, envio do Ser. Se em Ser e Tempo, a dinâmicado acontecimento dos mundos, a dinâmica da história épensada como conseqüência das decisões de cada Dasein, emTempo e Ser, esta dinâmica é pensada como um destinar doser que a cada vez é diferente. Num caso como no outro – ea diferença entre ambos é grande, diz respeito à margem dedecisão que tem o Dasein para decidir ou não o caminho dahistória – este atrator do pensamento que se chama filoso-fia impulsiona, a partir do momento em que foi posto emmovimento, o devir. Seu vigor é tal que não há como delefugir, ele provoca o pensamento a nele entrar e a responderà intimação que lhe é feita de dar razão de tudo o que há.___Do mesmo modo, dependendo do texto, Heideggertomará posições diferenciadas em relação à divisão epocal,ou divisão da história. Em determinados trechos, a metafísicaé pensada como um só mundo, que se inicia com Platão etermina com Nietzsche. Noutros, ela é pensada como mo-vimento do pensamento que faz desabrochar mundos di-ferentes, notadamente o grego, o medieval e o moderno.Noutros ainda, apresenta Heidegger uma divisão das épo-cas do destino do ser a partir dos conceitos fundamentaisque se sucederam ao longo de seu desenrolar (idéa, enérgeia,

ID., De l’essence de la vérité..., p. 32.27

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subjetividade, posição, conceito absoluto, vontade, vontadede poder...).___Por outro lado, olhando em retrospectiva, a questão quese levanta é se a análise heideggeriana do desdobramentoda metafísica em épocas conceituais que respondem à buscade fundamentação de tudo o que há a partir de conceitosessenciais (idéa, enérgeia, subjetividade, posição...) é um pro-cesso contingente ou necessário. Em outras palavras, partin-do de Platão teríamos que ter chegado em Nietzsche ?Heidegger parece oscilar entre uma posição e outra. Nãooscila contudo na constatação da potência e do vigor daquestão que põe em marcha a metafísica.___Contingente ou necessário, este processo hoje culmina-ria no que Heidegger denomina Gestell – traduzido comoarrazoamento ou com-posição. O Gestell é caracterizado peladisponibilização infinita do ente como tal e no seu todo.Corresponde a uma intensificação paroxística da relação su-jeito-objeto que com Descartes se estabelece e se firma demodo determinante para a posteridade do pensamento oci-dental. Nessa intensificação paroxística, cada pólo parece sedistanciar a tal ponto de ser visto como inteiramente sepa-rado do outro, e o homem, regido pela vontade de vontadepassa a considerar a totalidade do ente como um estoquedisponível para futuras e permanentes transformações.___Em A Questão da Técnica, a análise de Heidegger quanto aoGestell parte da constatação de que a técnica nunca foi pro-priamente e apenas “instrumento”. Pensar a técnica comoinstrumento não é errado, mas é incompleto; é correto, masnão diz tudo. Não diz por exemplo que para se pensar atécnica como instrumento é preciso ter antes instaurado osujeito como ente privilegiado, fundamento de tudo o queé, e portanto agente de dominação. Mas não diz tambémque a instauração do sujeito como fundamento absolutofaz parte de um processo que busca, desde Platão, insistente-mente, o fundamento de tudo o que é.___A visão que apresenta a técnica apenas como “instru-mento” se engana, ou melhor, se esquece ou ignora adimensão fundamental do agir e do fazer, dimensão estaque repousa no desencobrimento. Em A Questão da Técnica,

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o foco do pensamento recai não no ato de “fazer” propria-mente dito, mas no que “rege” o fazer, ou seja, na “essência”da técnica. Uma regência que não proviria do homem e desuas vontades, pois o homem seria também regido – e só éhomem na medida em que “se dá” esta regência – pelo “modode desencobrimento”, pelo “destino do desencobrimento” acada vez em vigor.___Esta relação paroxística chamada Gestell é, para Heidegger,o perigo supremo na medida em que, lançado num transfor-mar infinito, o homem se esquece de sua essência comoaquele que tem acesso ao ser e que é por ele regido. Esque-cimento do ser aqui quer dizer: automatização do fazer nosentido do infinito dispor do ente. Tal seria a culminânciada metafísica, o seu fim. Em O Fim da Filosofia e a Tarefa doPensamento, Heidegger chama a atenção para o fato de que asciências gradativamente se encaminham para a subordina-ção à cibernética e a verdade científica passa gradativamentea ser associada à eficiência dos efeitos desta mesma ciência.A busca de verdade transmuta-se assim em busca de eficiên-cia. Mas essa transmutação não se deixa ver, não é “empírica”:o Gestell, potencialização paroxística da relação sujeito-obje-to, não “aparece” enquanto tal, não é um “ente”. O que sedeixa ver, o que aparece, são suas consequências. O Gestell éuma “essência”, a essência da “técnica moderna”; suasconsequências, a “técnica moderna”, seus produtos e suasinfindáveis transformações.___Neste sentido, e segundo esta ótica, a busca platônicaoriginal relativa à questão do fundamento acaba, ao termodeste processo ocorrido em mais de vinte séculos demetafísica, por se desintegrar – ou por integrar um novomovimento que se inicia. Se Descartes havia rearticulado aquestão mantendo todo o seu vigor, a transmutação da bus-ca da verdade em busca de eficiência que no Gestell ocorredispensa a questão inicial de forma definitiva: dispensa-apor já tê-la incorporado, por tê-la em sua base.___A posição de Heidegger quanto a este fim é profunda-mente ambígua em mais de um sentido. Ora pessimista, oraesperançoso, ora hesitante, ora sereno, o pensamento do fimda metafísica se apresentará como uma busca de superar ou

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Fernando Fragozo

abandonar a metafísica, a ontoteologia, para pensar o serenquanto tal, como Ereignis, como “acontecimento” do pen-samento. Um acontecimento, contudo, para Heidegger,imprevisível, imponderável e inaudito.

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