Hendrik Kraay

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O Ritual Político e a Política dos Rituais: Festas Cívicas no Rio de Janeiro, 1823-1831 1 Hendrik Kraay Universidade de Calgary, Professor Visitante Estrangeiro, PPGHIS, UFRJ Os rituais cívicos são tanto “ritos do poder”, liturgias através da qual as autoridades representam sua legitimidade, como espaços políticos em que a oposição manifesta publicamente sua visão. Como nos foi ensinado pela antropologia, o ritual e o simbolismo têm um papel de destaque na criação da realidade política. 2 Todas as festas cívicas no Rio de Janeiro do Primeiro Reinado comemoravam a independência de uma forma ou outra e, mais importante, nelas se discutiam a organização política do novo Estado. Era o imperador sujeito ao parlamento e à constituição outorgada por ele em 1824? Ou estaria ele acima da lei? Até 1829 a mensagem central das festas cívicas destacava o papel do imperador, tanto na Independência como na organização política do império. A partir de 1830, os liberais – exaltados e moderados – contestaram esta interpretação da Independência e do papel do imperador através da mesma linguagem simbólica e ritualizada que compartilhavam com os partidários do monarca. 1 Versão muito abreviada de “Nation, State, and Popular Politics in Rio de Janeiro: Civic Rituals after Independence”. Agradeço a revisão do texto português de Vitor Izecksohn. Pede-se não citar. 2 Sean Wilentz (org.), Rites of Power: Symbolism, Ritual, and Politics since the Middle Ages (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1999); John R. Gillis (org.), Commemorations: The Politics of National Identity (Princeton: Princeton University Press, 1994); David I. Kertzer, Ritual, Politics, and Power (New Haven: Yale University Press, 1988).

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O Ritual Político e a Política dos Rituais: Festas Cívicas no Rio de Janeiro, 1823-18311

Hendrik Kraay

Universidade de Calgary, Professor Visitante Estrangeiro, PPGHIS, UFRJ

Os rituais cívicos são tanto “ritos do poder”, liturgias através da qual as autoridades

representam sua legitimidade, como espaços políticos em que a oposição manifesta

publicamente sua visão. Como nos foi ensinado pela antropologia, o ritual e o simbolismo

têm um papel de destaque na criação da realidade política.2 Todas as festas cívicas no Rio de

Janeiro do Primeiro Reinado comemoravam a independência de uma forma ou outra e, mais

importante, nelas se discutiam a organização política do novo Estado. Era o imperador sujeito

ao parlamento e à constituição outorgada por ele em 1824? Ou estaria ele acima da lei? Até

1829 a mensagem central das festas cívicas destacava o papel do imperador, tanto na

Independência como na organização política do império. A partir de 1830, os liberais –

exaltados e moderados – contestaram esta interpretação da Independência e do papel do

imperador através da mesma linguagem simbólica e ritualizada que compartilhavam com os

partidários do monarca.

Na historiografia sobre as festas cívicas no Brasil imperial há uma tendência de

analisá-las de cima para baixo. Há estudos sofisticados sobre a coroação e o imaginário da

monarquia, e inquestionavelmente, havia um projeto oficial, mas sabemos muito menos sobre

a recepção dele.3 Ainda estamos diante o que Eric Hobsbawm chama de densa “bruma que

rodeia as questões sobre a consciência nacional” – podemos também dizer consciência

política – “de homens e mulheres comuns”.4

Uma cuidadosa análise das festas cívicas proporciona, pelo menos em parte, uma

maneira de responder à dúvida de Hobsbawm, pois elas funcionavam como um plebiscito

periódico sobre o Estado e suas pretensões. As festas não são fáceis de analisar, pois há

1Versão muito abreviada de “Nation, State, and Popular Politics in Rio de Janeiro: Civic Rituals after Independence”. Agradeço a revisão do texto português de Vitor Izecksohn. Pede-se não citar.2Sean Wilentz (org.), Rites of Power: Symbolism, Ritual, and Politics since the Middle Ages (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1999); John R. Gillis (org.), Commemorations: The Politics of National Identity (Princeton: Princeton University Press, 1994); David I. Kertzer, Ritual, Politics, and Power (New Haven: Yale University Press, 1988). 3Maria Eurydice de Barros Ribeiro, Os símbolos do poder: cerimônias e imagens do Estado monárquico no Brasil (Brasília, 1993); Lilia Moritz Schwarcz, As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos (São Paulo, 1999); Iara Lis Carvalho Souza, Pátria coroada: o Brasil como corpo político autônomo, 1780-1831 (São Paulo, 1998).4E.J. Hobsbawm, Nations and Nationalism since 1780: Programme, Myth, Reality, 2a ed. (Cambridge, 1990), 79.

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diversos níveis a considerar. Há a prática – o que efetivamente aconteceu nas ruas – e o

discurso jornalístico e particular sobre o que aconteceu. Os jornais da época eram altamente

politizados e seus relatos das festas eram declarações políticas e não meras reportagens delas.

Assim pretendiam construir a sua própria realidade política.5

* * *

Da época colonial, o novo Império herdou uma ampla tradição de comemoração

festiva dos fatos políticos importantes com iluminações, arquitetura efêmera, Te-déuns,

desfiles militares, fogos de artifício e salvas de artilharia. Embora haja uma literatura enorme

sobre as festas coloniais, pouquíssimos historiadores têm trabalhado as festas cívicas do

Império, apesar das grandes continuidades entre a Colônia e o Império.6 Até 1829, de fato, o

ritual cívico imperial se distinguia pouco do da Colônia.

Durante os primeiros anos do Império, havia certa dúvida quanto à data da

Independência. O imperador e os diplomatas estrangeiros primeiro consideraram o dia 12 de

outubro (data da aclamação do monarca bem como seu aniversário) como a data da

independência. Segundo as poucas fontes disponíveis, parece que, entre 1823 e 1825, o dia 1 o

de dezembro (aniversário da coroação) foi o mais comemorado, embora o 12 de outubro

chegasse a igualar o 1o de dezembro em 1825. A primeira referência à comemoração do Sete

de Setembro data deste mesmo ano.

Todos estes dias foram festejados da mesma maneira. Salvas de artilharia ao

amanhecer acordavam a cidade e eram repetidas durante o dia. De manhã, o imperador descia

em grande préstito de São Cristóvão para a cidade, através de ruas enfeitadas. Havia Te-déum

na capela imperial, seguido de cortejo e beija-mão no Paço da Cidade. À tarde, havia uma

grande parada da milícia e dos batalhões da primeira linha. À noite, havia um espetáculo de

gala no teatro, que começava com o Hino Nacional ou o Hino da Independência assim que

chegasse o monarca. Durante o espetáculo, havia poesia análoga ao dia, muitas vivas ao

monarca e ao dia e, às vezes, pequenas peças alegóricas. A noite geralmente terminava com

5Ver, a respeito: David Waldstreicher, In the Midst of Perpetual Fetes: The Making of American Nationalism, 1776-1820 (Chapel Hill, 1997), 10-12; Ângela Miranda Cardoso, “Ritual: princípio, meio e fim. Do sentido do estudo das cerimônias de entronização brasileiras,” in Brasil: formação do Estado e da nação, István Jancsó (org.) (São Paulo, 2003), 552, 596-97.6Sobre festas coloniais: István Jancsó and Iris Kantor (orgs.), Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa, 2 vols. (São Paulo: EDUSP, 2001). Sobre festas cívicas no império: Souza, Pátria, cap. 5; Carla Simone Chamon, Festejos imperiais: festas cívicas em Minas Gerais (1815-1845) (Bragança Paulista, 2002); Hendrik Kraay, “Between Brazil and Bahia: Celebrating Dois de Julho in Nineteenth-Century Salvador,” Journal of Latin American Studies 31:2 (maio de 1999), 263; idem, “Definindo a nação e o Estado: rituais cívicos na Bahia pós-Independência (1823-1850),” Topoi 3 (setembro de 2001), 68-73.

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uma ópera européia.

Não é difícil ler estas comemorações. No cortejo e na beija-mão a elite da cidade

mostrava sua fidelidade ao monarca (ou, no dizer de Cipriano Barata, seu “servilismo”).7 A

grande parada arregimentava os cidadãos e mostrava o poder do Estado. No teatro, a alta

sociedade reunia-se com o monarca numa demonstração de apreço mútuo. Até o final da

década de 1820, havia ainda censura significativa, e todas os jornais adotavam um tom

ufanista e favorável ao monarca e ao império cuja fundação se comemorava.

Na primeira sessão legislativa, de 1826, o parlamento designou cinco dias de festejo

nacional, quatro dos quais ligados ao imperador (9 de janeiro, data do Fico; 25 de março,

aniversário do juramento à constituição; 3 de maio, abertura da sessão legislativa; 7 de

setembro e 12 de outubro). A lei não especificou como comemorar estes dias, mas houve uma

mudança sensível a partir de 1826. Não se comemorava mais a coroação e, durante alguns

anos, 7 de setembro e 12 de outubro foram comemorados juntos, destacando tanto o papel de

D. Pedro na proclamação da independência, como na organização do império constitucional.

Jornais sustentavam que a “voz regeneradora que criou uma Nação” em 1822 foi sua. No dia

12 de outubro, comemoravam-se mais do que o aniversário de um “Rei absoluto”; antes,

lembrava-se “o triunfo das doutrinas proclamadas pela civilização que foi sancionado pelo

descendente de vinte monarcas”. Constituição e cetro, explicou O Spectador Brasileiro em

1826, formavam o “centro exclusivo” do Brasil.8

Pouco se comemorava os outros dias de festejo nacional designados em 1826 e, de

fato, até o final de 1829, as festas cívicas apresentam pouco de interessante para nós. É fácil

detectar sua origem nas festas coloniais e a sua mensagem política era simples: D. Pedro

proclamou a Independência, criou a nação, outorgou-lhe a constituição e estava pronto para

defendê-las. Eram rituais bastante controlados, organizados de cima, nos quais não havia

espaço para participação popular, muito menos críticas ao regime (ainda mais exemplar neste

sentido seriam as festas em honra da volta de d. Pedro da Bahia em 1826).9 A uma história do

Primeiro Reinado escrita a base destes rituais passaria inteiramente despercebidas às

dificuldades crescentes do monarca, como também as lutas sociais que por vezes tomavam

conta das ruas.10

7Marco Morel, Cipriano Barata na Sentinela da Liberdade (Salvador, 2001), 159.8O Spectador Brasileiro, 7/9/1826; 13/10/1826; Aurora Fluminense, 12/10/1829; Gazeta do Brasil, 7/9/1827; A Luz Brasileira, 13/10/1829; Jornal do Commercio, 13/10/1829.9Relação dos publicos festejos que tiverão lugar do 1. de abril até 9. pelo feliz regresso de SS. MM. II. e A. I. voltando da Bahia à Corte Imperial (Rio de Janeiro, 1826).10Carlos Eugênio Líbano Soares, A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850) (Campinas, 2001).

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A única voz discordante até 1829 é a estrangeira (ou chega a nós através dos

estrangeiros). O sóbrio cônsul americano, Condy Raquet, zombava do “concurso de gente

enfeitada de ouro e bagatelas” no paço para beijar a mão do monarca.11 John Armitage, que

chegou no Brasil em 1828, lamentou que “pão e circo” parecia ser o lema do governo

supostamente constitucional.12 Carl Schlichthorst, um dos mercenários alemães, explicou que

Pedro dava “muito valor” às manifestações do “amor do povo”, mas sabia muito bem que a

poesia e os elogios eram “regiamente pagos, embora cada um dos cantores desses coros

laudatórios receba pessoalmente muito pouco”. O alemão chegou a ouvir um dos artistas

reclamar que recebeu “somente dois tostões”. Outro alemão, que desfilou no dia 12 de

outubro de 1824, não se preocupava com o projeto político manifestado pelo ritual e achou as

“belezas do Rio”, isto é, as damas bem vestidas que assistiam o desfile das sacadas das casas,

“a parte mais interessante das festas”; à noite, segundo ele, havia muitas “cabeças quentes” na

cidade.13 Mulheres e pinga eram mais interessantes!

* * *

Na noite de 25 para 26 de março de 1830 houve uma mudança significativa nos

festejos cívicos do Primeiro Reinado. Liberais (exaltados e moderados) resolveram

comemorar o sexto aniversário do juramento à constituição com festas “espontâneas” para

demonstrar sua lealdade ao “sistema político que nos rege de direito e não de fato”.14 Embora

fosse declarado dia de festejo nacional pela lei de 1826, 25 de março não vinha sendo muito

comemorado antes de 1830. A nova comemoração começou depois dos festejos oficiais. Na

Praça da Constituição, reuniu-se um grande número de pessoas que, depois de dar vivas ao

monarca, dividiu-se em grupos, liderados por bandas, que passeavam pelas freguesias do

centro da cidade, cantando hinos e dando vivas aos “objetos do nosso culto público,” entre

eles a constituição, o “Grande Pedro Imperador Constitucional”, a Independência e o

parlamento. Moradores iluminaram as janelas, embora não fossem convidados oficialmente

pela Câmara Municipal.15

11Condy Raguet ao Secretário do Estado, Rio de Janeiro, 8/11/1824, Estados Unidos, National Archives and Records Service, T-172, rolo 3.12John Armitage, The History of Brazil form the Period of the Arrival of the Braganza Family in 1808, to the Abdication of Don Pedro the First in 1831, 2 vols. (Londres, 1836), 1:221.13C[arl] O. Schlichthorst, O Rio de Janeiro como é, 1824-1826 (huma vez e nunca mais), tradução de Emmy Dodt e Gustavo Barroso (Rio de Janeiro, 1943), 184-85, 187; Eduardo Theodoro Bösche, “Quadros alternados de viagens terrestres e maritimas, aventuras, acontecimentos políticos, descripção de usos e costumes de povos durante uma viagem ao Brasil,” Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro 83:137 (1918), 166, 167.14A Luz Brasileira, 24/3/1830; Aurora Fluminense, 22/3/1830; Astrea, 27/3/1830.15Para descrições dos festejos, ver O Brasileiro Imparcial, 27/3/1830; Astrea, 27/3/1830; Aurora Fluminense, 29/3/1830; Jornal do Commercio, 27/3/1830.

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A estas comemorações, seguiu-se uma longa discussão sobre o seu significado.

Jornais liberais saudavam a nova manifestação do patriotismo, enquanto o cônsul do Reinado

das Duas Sicílias registrou a presença de uma “turba numerosa,” composta de “grande

número de mulatos”, que “gritavam morte às colunas, aos absolutistas e aos portugueses” e

obrigavam os que não haviam iluminado as frentes de suas casas a fazê-lo.16 Joaquim José da

Silva Maia, redator de O Brasileiro Imparcial, lamentou que os constitucionalistas haviam

dado vivas à “liberdade, em um país em que infelizmente existem escravos, que podiam

excitar novos Spartacus a imitar os da antiga Roma, ou mesmo os do Haiti”.17 No seu Aurora

Fluminense, Evaristo da Veiga deu uma interpretação moderada às festas. Embora preferisse

vivas à constituição aos à liberdade (conceito vago demais), rejeitou a “costumada lamúria de

São Domingos” ensaiada por Maia. Certo “número de pretos e moleques” havia

acompanhado o “não pequeno número de cidadãos trajados com a maior decência,” mas

aqueles assistiam a todas as festas públicas; a constituição fora comemorada com “muita

moderação” e “os poucos excessos que houve foram cometidos por um ou outro indivíduo

isolado, desconhecido, não imitados, nem sustentados pela generalidade”.18

Para o dia 7 de setembro do mesmo ano, os liberais tentaram repetir seu sucesso de

março. O intendente da polícia indiferiu o requerimento de Ezequiel Corrêa dos Santos que

queria realizar uma festa noturna no Passeio Público e, em um edital, exortou os “brasileiros”

a moderarem suas comemorações, evitando falar “palavras injuriosas e ofensivas a qualquer

indivíduo, classe e nação”. Recomendou maior vigilância aos juizes de paz. Bandas militares

receberam ordens para ficar nos quartéis.19 Não houve incidente durante o dia; foram

realizadas as comemorações oficiais e um grupo de liberais armou um coreto na Praça da

Constituição, “onde um luzido, numerosíssimo concurso de homens e senhoras se detiveram

desde o anoitecer do dia 7 até a madrugada do dia seguinte”.20 O discurso liberal deste dia

ignorou quase completamente o monarca. Segundo Ezequiel, o dia da Independência de uma

nação era “o único dia que é verdadeiramente do povo”; Evaristo sustentou que o apoio do

monarca à Independência fez com que “tornou-se … digno de reinar sobre os brasileiros”.21

16Emidio Antonini ao Ministro de Relações Exteriores, Rio de Janeiro, 27/3/1830, in Relatórios sobre o Brasil, 1828-1831 (São Paulo, 1962), 64.17O Brasileiro Imparcial, 27/3/1830.18Aurora Fluminense, 31/3/1830.19Aurora Fluminense, 1/9/1830; Nova Luz Brasileira, 7/9/1830; Edital, 4/9/1830, citado in Gladys Sabino Ribeiro, A liberdade em construção: identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado (Rio de Janeiro, 2002), 244; Nova Luz Brasileira, 21/9/1830; Correspondência de Brasileiro, Voz Fluminense, 14/10/1830.20Aurora Fluminense, 10/9/1830.21Nova Luz Brasileira, 7/9/1830; Aurora Fluminense, 10/9/1830.

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Doze de outubro foi a vez dos que apoiavam o monarca. A partir de setembro, faziam

subscrições para financiar uma iluminação (um monumento alegórico) na Praça da

Constituição. Segundo as descrições dela publicadas em três jornais, tratava-se de um templo

redondo de altura de 35 palmos, cuja cúpula sustentava uma coroa imperial. Entre as colunas

do pórtico, havia transparências alegóricas referentes aos episódios da independência e aos

principais produtos das províncias. Versos em honra do monarca deixavam claro o seu

significado, bem como o dístico principal, que declarava em letras maiúsculas: “A PEDRO

PELA PÁTRIA AGRADECIDA”. Debaixo da estrutura, tocavam bandas de música, e todo o

conjunto foi iluminado por nada menos de 11.126 lâmpadas. Tudo foi apreciado por

“inumerável concurso de pessoas de todas as idades, condições, e estados”.22 Realizaram-se

as comemorações oficiais de costume e, no teatro, além de poesia, vivas ao monarca, uma

sinfonia e a representação da ópera Gazza Ladra (de Rossini), houve uma alegoria sobre o

futuro de Pedro. Durante esta peça, Iris (o mensageiro dos deuses) levou Pedro a ver um

templo em honra dos grandes varões da história. Um pedestal estava sem estátua, o espaço

reservado para o “fundador do império do Cruzeiro do Sul”.23 Como em março, houve longo

debate na imprensa sobre o significado das comemorações. O Brasileiro Imparcial declarou

que “o verdadeira constitucional não pode deixar de render adorações a um príncipe generoso

… o único monarca constitucional de coração”. Segundo Voz Fluminense, não havia

necessidade de um tal monumento e de tanta comemoração: bastava “a inalterabilidade do

imperante constitucional em seus juramentos”.24

Em março de 1831 realizaram-se os últimos festejos cívicos do Primeiro Reinado, a

solene entrada de D. Pedro depois da sua viagem a Minas Gerais (15 de março) e as

comemorações da constituição no dia 25. Pedro chegou no dia 10 e, segundo o Correio

Mercantil, “durante os dias 11, 12 e 13 iluminou-se a cidade quase toda…. Distinguiram-se

as ruas da Quitanda e Direita, onde além de iluminação, houve muitos fogos artificiais e

bandas de música”. A “entrada pública” (desfile militar, Te Déum e beija-mão) foi, segundo

O Verdadeiro Patriota, um grande sucesso em que 20.000 pessoas participavam com grande

“entusiasmo”.25 Antônio Borges da Fonseca, jornalista exaltado e redator de O Repúblico, viu

algo bem diferente: “Nunca vi um acompanhamento mais desprezível, e de propósito não se

22O Brasileiro Imparcial, 16/10/1830; O Moderador, 16/10/1830; O Verdadeiro Patriota, 13/10/1830.23O Verdadeiro Patriota, 13/10/1830; O Moderador, 13 e 16/10/1830; Correio Mercantil, 13/10/1830; Jornal do Commercio, 14 e 20/10/1830; O Brasileiro Imparcial, 16/10/1830.24O Brasileiro Imparcial, 16/10/1830; Voz Fluminense, 21/10/1830.25Correio Mercantil, 15/3/1831, 17/3/1831; O Verdadeiro Patriota, 18/3/1831. Ver também O Novo Censor, 19/3/1831; Diario Mercantil ou Novo Jornal do Commercio, 16/3/1831.

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faria um melhor ultraje ao Imperador que nesse dia só parecia imperador dos marinheiros.

Precediam ao coche imperial seguramente 400 a 500 marinheiros, de jaqueta uns, outros de

rodaques, outros de casaca e quase todos de chinelos, e muitos esmolambadamente vestidos.

Além da tropa que por obrigação vinha forçada, nem um só brasileiro se aí via, e tudo era

marinheiros e molecagem, que vinham dando vivas mui esfarrapadas, cujas maneiras muito

deviam envergonhar ao Imperador”.26

A visão discordante de Borges da Fonseca já havia se manifestado na noite de 13 de

março, a Noite das Garrafadas, durante a qual um grupo de exaltados, liderados por Borges e

Francisco das Chagas de Oliveira França (redator de O Tribuno do Povo), tentaram

interromper as comemorações do retorno de D. Pedro na Cidadela, o centro comercial

dominado por comerciantes e caixeiros portugueses. Para os exaltados, estas comemorações

não passavam de uma repetição das do dia 12 de outubro, e eles resolveram fazer uma contra-

manifestação, passeando pela Rua da Quintanda “dando vivas ao Imperador enquanto for

constitucional, à soberana nação Brasileira, à sua independência, e aos Brasileiros”.27 Houve

violência, mas, infelizmente, não há como construir uma narrativa confiável dos

acontecimentos. A estudiosa mais recente deste episódio, Gladys Sabina Ribeiro, chama

atenção às tensões sociais e raciais subjacentes à violência e sugere que o ataque à Cidadela

“era uma espécie de tentativa de demolição de um símbolo de poder, opressão e exclusivismo

senhoriais” da parte dos escravos e dos pardos e negros livres e libertos que participaram da

manifestação.28

Aqui não há espaço para discutir a interpretação de Ribeiro; o que me interessa neste

episódio são os indícios da emergência de um repertório de práticas simbólicas da parte dos

exaltados. Vivas concorrentes ao imperador (“enquanto for constitucional”) ou à constituição

(“tal qual foi jurada”) demonstram como a política das ruas já era ritualizada, pelo menos

antes que as garrafas começaram a voar. Um dos grupos que saiu da Cidadela para “acabar

com os republicanos e federalistas” foi acompanhado de “música a tocar”; uma testemunha

viu pequenas bandeiras verde-amarelas nas mãos dos exaltados.29 Por esta época, chapéus de

palha tornaram-se símbolos da causa exaltada, bem como o uso do tope nacional (instituído

por D. Pedro em 1822 para ser usado até o reconhecimento da Independência, conseguido em

1825).30 Segundo O Brasileiro Offendido, os “ditadores da Cidadela” hostilizavam os

26O Republico, 21/3/1831.27Depoimento de João Pedro da Veiga, “Traslado do processo,” BN/SM, 6, 3, 12.28G. Ribeiro, Liberdade, 215, 272-74, 279.29Depoimentos de ? e de José Maria Gomes, “Traslado,” BN/SM, 6, 3, 12.30Aurora Fluminense, 18/31831; Armitage, History, 2:116-17; Antonio Borjes da Fonseca, Manifesto politico: apontamentos da minha vida politica … (Recife, 1867), 10.

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brasileiros que usavam esses distintivos. O redator deste jornal explicou que o uso de chapéus

de palha como símbolo político começou na Bahia, e foi adotado na capital “por comodidade

e patriotismo,” pois eles eram mais baratos do que chapéus importados; ademais, convinha

incentivar a indústria nacional.31

À medida que se aproximava o dia 25 de março, temia-se a repetição da violência da

Noite das Garrafadas. Não obstante, Evaristo da Veiga convidou os compatriotas a

comemorar, mais uma vez, o dia da constituição (“para o Brasil, um manancial de venturas,

uma hipoteca segura da liberdade”) e a assistir a um Te-déum na igreja de São Francisco de

Paula. O jornal exaltado, O Brasileiro Offendido, foi muito além do moderado Evaristo, e

esperava que “os nossos Cabras aproveitem tão bela ocasião de, com o costumado denodo,

fazer novamente a Independência do Rio, assim como fizeram do Brasil, desenganando para

sempre esses desprezíveis estrangeiros”.32 Outro jornal exaltado lamentou que “homens

perversos” diziam que a constituição só existia “por vontade” de D. Pedro enquanto, de fato,

o juramento à constituição foi o exercício da soberania da nação, a qual o monarca estava

sujeito.33

No dia, houve as comemorações oficiais de costume: “brilhante e geral iluminação”

da cidade e “esplêndida iluminação e fogos de artifício no Campo da Aclamação”. Tudo

correu na maior ordem e, segundo Eduardo Theodoro Bösche, todos os brasileiros

ostentavam distintivos com as cores nacionais e mesmo senhoras usavam fitas verde-

amarelas. O Brasileiro Offendido distinguiu cuidadosamente entre a iluminação do Campo da

Aclamação (“um resto da chegada de Minas”) e o Te-déum na igreja de São Francisco, onde

liberais, “ornados com o laço da nação, e grande parte com os nossos cômodos chapéus de

palha,” se reuniram.34 Num gesto dramático, Pedro compareceu ao Te-déum. Segundo

Armitage, ele não sabia como responder às vivas em honra de D. Pedro II. Borges da Fonseca

(que não era amigo do monarca), todavia reconheceu que Pedro “bastante se popularizou

procurando uma folha verde-amarela que serve nestes grandes dias de distintivo aos

nacionais”. Um cidadão beijou-lhe a mão e exclamou, “Viva o imperador enquanto for

constitucional!” a qual respondeu o monarca: “Sempre fui, e hei de dar provas de o ser, e

tanto que, sem me convidarem para a sua função aqui estou”. O monarca “por muito tempo se

conservou entre o povo”.35 O sermão pregado depois do Te-déum era bastante moderado.

31O Brasileiro Offendido, 2/4/1831.32Aurora Fluminense, 23/3/1831; O Brasileiro Offendido, 26/3/1831.33O Tribuno do Povo, 24/3/1831.34Bösche, “Quadros”, 212; O Brasileiro Offendido, 26/3/1831, 30/3/1831.35Armitage, History, 2:125; O Repúblico, 30/3/1831.

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Segundo Francisco de Monte Alverne, o Brasil não queria nem “democracia pura”, nem um

déspota. A constituição e as outras inovações liberais (como os juizes de paz eleitos e o

julgamento por júri) garantiriam a felicidade do Brasil: “O mais sublime interesse desperta

em todos os corações o amor desta constituição, onde estão solidamente fundados os direitos,

as garantias, as vantagens sociais”.36

Duas semanas depois, o imperador abdicou e, em outubro, a Regência mudou o

quadro de dias de festejo nacional, abolindo o dia 12 de outubro e acrescentando o dia 7 de

abril e o dia 2 de dezembro, aniversário do jovem D. Pedro II. Novo regime, novas festas e

também novos debates em torno delas.

* * *

Duas décadas mais tarde, os festejos cívicos do Primeiro Reinado já passaram para a

história. Em 1849, O Brado do Amazonas lamentou o fato de “os dias nacionais” não serem

mais festejados como antigamente, “com estrondoso entusiasmo”, com Te-déuns em todas as

igrejas, coretos em todas as praças e cidadãos ostentando folhas que simbolizavam a bandeira

nacional, desfilando pelas ruas, dando vivas ao dia.37 Como havíamos visto, tais festas eram

menos consensuais do que pensava o redator de O Brado do Amazonas e os símbolos

“patrióticos” eram, de fato, símbolos políticos. Patriota era sinônimo de exaltado em 1830 e

1831.

O ritual cívico era uma parte integral da política daquela época. Para homens como

Evaristo, Ezequiel ou Borges, a participação em festas cívicas era tão importante quanto o seu

jornalismo. Eles e os outros redatores não eram “objetivos” em seus relatos das festas cívicas;

muito pelo contrário, procuravam moldar as interpretações das festas através das suas

descrições delas. A nascente imprensa possibilitava aos brasileiros do resto do país seguir os

acontecimentos da capital; as festas cívicas de Minas Gerais e da Bahia seguiam os padrões

do Rio de Janeiro e há indícios que o ritual cívico da Bahia influenciou a atuação dos

exaltados na capital.38

Em jogo nestes festejos nacionais estavam as questões clássicas da política do século

XIX – o alcance do poder do monarca. Enquanto o ritual cívico oficial ecoava os modelos

sociais e políticos do antigo regime, a partir de 1830, os liberais, tanto exaltados como

moderados, se esforçaram para usar a linguagem das festas cívicas para divulgar sua visão do

36Francisco de Monte Alverne, Oração d’acção de graças, que no dia 25 de Março de 1831 anniversario do sublime juramento da Constituição, celebrada na Igreja de S. Francisco de Paula, por o Povo Fluminense (Rio de Janeiro, 1831), 19.37“Festejos nacionaes”, O Brado do Amazonas, 20/4/1849.38Chamon, Festejos; Kraay, “Definindo a nação”.

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Page 10: Hendrik Kraay

papel constitucional do monarca. Para os moderados, como Evaristo, a nação era composta de

cidadãos, uma minoria da população que excluía, é claro, os escravos que respondiam por

dois quintos da população da cidade. Não há como saber o que os moleques que

acompanhavam os manifestantes no dia 25 de março de 1830 pensavam dos liberais; para

Evaristo, sua participação não importava. Alguns exaltados estavam dispostos a mobilizar a

população miúda e identificavam os “cabras” como denodados patriotas. Ao que parece,

tinham algum êxito nestas tentativas de mobilização popular.

Convém também lembrar que as festas cívicas nas ruas da cidade constituíam um

espaço político aberto a todos. Embora muitos possam ter dado as costas às mensagens

políticas, como fez Schlichthorst quando preferia paquerar as “belezas do Rio”, outros

participavam ativamente das festas. O interesse pelas festas cívicas, os esforços da parte dos

organizadores das festas e as longas descrições delas na imprensa da época sugerem que

historiadores devem levar a sério este aspecto da cultura política do império. Através das

festas discutia-se as grandes questões políticas do dia, envolvendo a diferentes níveis, grande

parte da população urbana, o que, aos poucos, criava a consciência de pertencer à nação

brasileira.

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