Hepatites tóxicas e Medicamentosas
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Hepatites tóxicas e Medicamentosas
Farmacotoxicologia
Licenciatura em Análises Clínicas e Saúde Pública - 2011/2012
Hepatites tóxicas e Medicamentosas
O fígado é o principal órgão envolvido no metabolismo e na eliminação de substâncias.
A toxicidade hepática pode ser induzida por drogas ou toxinas. Estas provocam uma lesão
hepática que pode ser causada pela inalação, ingestão ou administração parentérica de
inúmeros agentes farmacológicos e químicos. Estes incluem as toxinas industriais e, mais
frequentemente, os agentes farmacológicos terapêuticos, não descorando as drogas de abuso,
“produtos naturais” e medicinas alternativas. A toxicidade hepática é a manifestação mais
comum de reacção adversa a drogas, motivando a suspensão do licenciamento e da
comercialização de inúmeras substâncias, tendo em conta que mais de 1100 medicamentos
prescritos são considerados potencialmente hepatotóxicos.
Apesar de subestimada na população geral devido à sua incidência reduzida (7,6 por
milhão de habitantes/ano), a toxicidade hepática constitui uma das principais causas de
falência hepática aguda. Em doentes com toxicidade hepática induzida por fármacos está
associada uma mortalidade estimada em 12% por novos casos/ano, com desenvolvimento de
icterícia e a elevação das transaminases.
A expressão clínica das reacções tóxicas está relacionada com as propriedades
biológicas do agente farmacológico e com as características individuais do doente, sejam elas
geneticamente determinadas ou relacionadas com a idade, consumo de álcool, administração
concomitante de outros fármacos e existência prévia de doença hepática.
Metabolização Hepática
A maioria dos medicamentos e toxinas são absorvidos no tracto gastrointestinal ou por
via parentérica e apenas alguns através da pele e vias aéreas. O fígado é um alvo principal de
toxicidade, por ser um órgão central no seu metabolismo. Cerca de 30% do volume sanguíneo
corporal total passa pelo fígado a cada minuto graças à sua anatomia lhe proporcionar um
elevado contacto entre o plasma e o hepatócito. A dupla circulação pela artéria hepática e veia
porta permite que o sangue proveniente do intestino seja imediatamente depurado.
A depuração hepática depende da eficácia das enzimas metabolizadoras, do fluxo
sanguíneo hepático, da ligação às proteínas plasmáticas e da “depuração intrínseca” dessa
substância, ou seja, do seu grau de lipossolubilidade e peso molecular.
Substâncias com uma elevada depuração intrínseca são mais facilmente captadas pelo
tecido hepático e têm um elevado metabolismo de primeira-passagem, sendo o factor
limitante do seu metabolismo o próprio fluxo sanguíneo hepático, o qual pode ser medido
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usando o corante verde de indocianina. Por outro lado, são substâncias ineficazes como
fármacos orais, dada a sua rápida inactivação (ex: nitroglicerina, lidocaína).
Substâncias com baixa depuração intrínseca têm um metabolismo dependente da
eficácia dos sistemas enzimáticos e independente do fluxo sanguíneo. Por exemplo, a teofilina.
O metabolismo das drogas que ocorre no fígado envolve dois tipos de reacções
bioquímicas, conhecidas como reacções de fase I e de fase II, em que o fármaco pode sofrer
uma ou mais transformações até que se produza um composto com possibilidade de excreção.
Assim, o objectivo da metabolização hepática é tornar o fármaco mais hidrossolúvel, para a
excreção renal ou biliar, sendo o seu peso molecular um dos factores determinantes da via de
excreção.
Reacção de fase I envolve os complexos Citocromo C reductase e Citocromo P450, que
efectuam reacções de hidroxilação e oxidação, tendo como co-factor o NADPH
citosólico. Outras reacções alternativas envolvem álcool-desidrogenases e reacções de
metilação.
Reacção de fase II envolve a conjugação do fármaco ou do metabolito com pequenas
moléculas endógenas, de forma a aumentar a sua polaridade.
Mecanismos de lesão hepática / Hepatotoxicidade
As reacções hepatotóxicas são divididas em intrínsecas ou de toxicidade directa e
idiossincrásicas.
As reacções intrínsecas acontecem de uma forma previsível, dependente da dose e
com uma curta fase de latência. Exemplos clássicos são o tetracloreto de carbono,
tricloroetileno, fósforo, tetraciclinas, paracetamol, toxina de Amanita phalloides.
Já as idiossincráticas são as mais preocupantes, pois são responsáveis por eventos
raros e imprevisíveis, muitas vezes independentes da dose, usualmente a níveis terapêuticos.
Para detectar um evento tóxico idiossincrático são necessárias exposições em diversos
pacientes, pois é provocado por uma susceptibilidade individual incomum e não por toxicidade
intrínseca do agente. Apresentam uma baixa incidência, uma fase de latência variável e
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geralmente estão envolvidos mecanismos imunológicos. Assim, dentro da toxicidade
idiossincrática, podemos definir aquelas de mecanismo de hipersensibilidade (alérgica) e as
formas não relacionadas à hipersensibilidade (não-alérgica). As manifestações sistémicas são
frequentes (febre, rash, artralgias, eosinofilia, leucocitose, aparecimento de auto-anticorpos).
As lesões anatomopatológicas são incaracterísticas e não uniformes. Por exemplo: halotano,
isoniazida, clorpromazina.
Uma substância pode ser intrinsecamente hepatotóxica ou pode dar origem a um
metabolito tóxico que o tecido hepático tenha ou não capacidade de depurar. Se não a tiver
ou caso essa capacidade seja ultrapassada, quer por ineficácia dos sistemas enzimáticos
hepáticos, quer por elevada concentração local, existem vários mecanismos pelos quais pode
surgir lesão no tecido hepático.
Lesão celular metabólica dos hepatócitos
Os mecanismos de agressão podem ser por ligação covalente a estruturas celulares,
peroxidação lipídica, reacções de oxidação ou depleção de glutatião. Destas agressões
celulares podem resultar alterações mitocondriais, alterações no citoesqueleto celular ou
alterações da homeostase iónica. Dependendo da dimensão do envolvimento mitocondrial e
do equilíbrio entre os factores activadores/inibidores de vias intracelulares de sinalização
(proteínas Bcl2 e caspases) o destino da célula poderá ser a necrose ou a apoptose, sendo a
primeira situação geradora de mecanismos inflamatórios.
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Participação de outras células hepáticas
Os hepatócitos lesados podem libertar produtos de peroxidação lipídica,
intermediários reactivos de oxigénio e IL 8, activando por estes meios as células de Kupffer.
Estas libertam citocinas como TNF, IL 1, IL 8 e também intermediários reactivos de oxigénio
(IRO), que podem lesar directamente os hepatócitos e activar outras células como as células de
Ito do fígado, responsáveis pelo desencadear de fibrose hepática, e as células endoteliais dos
vasos sanguíneos, que favorecem o recrutamento e activação de polimorfonucleares.
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Activação de mecanismos imunes
Apesar de estar intimamente interligado com a resposta inflamatória à lesão celular,
este mecanismo é mais leve e direccionado.
A formação de um metabolito tóxico pode conduzir a ligações covalentes com
estruturas celulares originando um hapteno que é apresentado aos linfócitos pelos
macrófagos, que desencadeiam uma resposta imune direccionada quer aos haptenos (self
modificado) quer as estruturas celulares íntegras.
Factores de risco para hepatotoxicidade
Apesar das reacções de hepatotoxicidade serem quase sempre imprevisíveis, existem
vários factores predisponentes.
Os idosos apresentam uma depuração hepática diminuída, devido a um menor volume
hepático e fluxo sanguíneo. A hepatotoxicidade é rara nas crianças, mas formas de reacção
idiossincráticas a certos fármacos têm uma incidência superior à dos adultos. De uma forma
geral as mulheres são mais propensas à hepatotoxicidade.
A combinação de várias substâncias indutoras do citocromo P450 e/ou a inibição da ß-
oxidação microsomal, ou a ingestão simultânea de álcool, pode ter um efeito sinérgico e não
aditivo na toxicidade hepática de cada droga considerada isoladamente.
A ocorrência anterior de doença hepática, principalmente a cirrose, condiciona a
metabolização, diminuindo o fluxo sanguíneo hepático e a síntese de proteínas como a
albumina. As reacções de conjugação, e particularmente as de oxidação, também estão
comprometidas. Igualmente, a insuficiência renal, por dificultar a excreção de fármacos ou
metabolitos, é uma predisponente óbvia.
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A obesidade modifica a distribuição e a metabolização de fármacos muito
lipossolúveis. Exposições precedentes a determinados fármacos podem contribuir, por um
mecanismo de sensibilização, para reacções hepatotóxicas mediadas imunologicamente. A
infecção VIH/SIDA, a raça negra, as deficiências nutricionais e polimorfismos genéticos de
enzimas, parecem favorecer a hepatotoxicidade de várias substâncias.
Tipo de lesão hepática e classificação laboratorial
Classicamente, estão descritos três padrões de reacção hepatotóxica: citolítica,
colestática ou mista, consoante os valores da ALT, fosfatase alcalina e da relação entre eles.
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No Quadro seguinte apresentam-se os vários tipos de lesão hepática possíveis num
contexto de hepatotoxicidade.
Diagnóstico
O diagnóstico de toxicidade hepática constitui um desafio diagnóstico, pois pressupõe
um elevado índice de suspeição e a exclusão de outros diagnósticos diferenciais. O diagnóstico
precoce é fundamental, pois a suspensão da substância agressora pode prevenir a evolução
para formas mais severas ou crónicas da doença.
Não há marcadores específicos ou testes para a hepatite tóxica, pelo que geralmente o
diagnóstico é clínico. A abordagem inclui estudo serológico, com determinação de marcadores
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víricos e auto-imunes, ecografia abdominal e a identificação de potenciais factores de
confusão, tais como hipotensão, sépsis, insuficiência cardíaca e nutrição parentérica.
Existe um sistema de avaliação de causalidade de lesão hepática, por uma
determinada substância, denominado escala CIOMS (Council for International Organizations of
Medical Sciences). Este sistema inclui critérios cronológicos, factores de risco prévios do
doente, terapêutica concomitante, discriminação de outras causas de doença hepática, dados
bibliográficos e resposta à reintrodução da terapêutica. A pontuação final classifica a relação
de casualidade como: Definitiva ou altamente provável (> 8), Provável (6-8), Possível (3-5),
Improvável (1-2), Excluída (≤0). Por outro lado, foi proposta uma escala de diagnóstico mais
simples, por autores portugueses, escala M&V, que apesar de um poder de exclusão inferior à
CIOMS, parece ter utilidade na prática clínica, uma vez que foi validada numa população
portuguesa.
Tratamento
A suspensão do agente suspeito de toxicidade é a primeira medida a adoptar logo que
se detecte qualquer sinal sugestivo de reacção adversa. O tratamento é, essencialmente, de
suporte. No caso de toxinas directas, o envolvimento hepático não deve desviar a atenção de
potenciais danos noutros órgãos, nomeadamente no rim. Quando se estabelece hepatite
fulminante, o transplante hepático pode ser a única alternativa.