Hermeneutica-Quem Precisa de Hermenêutica

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Quem Precisa de Hermenêutica?  de MOISÉS SILVA  O term o her menêut ica (assim como seu primo mais ambíguo e até misterioso, hermenêutico) tem-se tornado cada vez mais popul ar em recent es décadas. Como resultado, tem sido ampliado e estendido de todas as formas. Usado por tantos escritores, o termo transforma-se em alvo móvel, gerando ansiedade nos leitores que buscam, em vo, defini-lo e compreender o que significa. !eu significado tradicional é relativamente simples" é a disciplina que lida com os  princípios de interpreta#o. $lguns escritores gostam de c%am&-la de ci ência da interpreta#o' outros preferem falar de arte da interpreta#o (talvez com a implica#o" Ou voc) a tem ou no*+. eiando de lado essas diferen#as de perspectiva, o interesse b&sico da %ermen)utica é claro o suficiente. eve ser acrescentado, entretanto, que quando os escritores usam o termo, na maioria das vezes o que eles t)m em mente é a interpreta#o bíbli ca. esmo quando é outro teto que est& sendo discutido, a /íblia provavelmente assoma por tr&s. 0sta 1ltima observa#o suscita uma questo interessante. $final, por que tal disciplina deveria ser necess&ria2 3unca tivemos aula sobre Como 4nterpretar o 5ornal. 3en%um colégio prop6e um curso sobre $ 7ermen)utica da Conversa#o. 4sso é uma realidade até com respeito a cursos sobre !%a8espeare ou 7omero, que certamente tratam de interpreta#o da literatura, mas em que nen%um pré-requisito de %ermen)utica aparece. 9or que ento somos informados subitamente em nossa instru#o acad)mica que precisamos nos tornar %&beis em uma ci)ncia de som eótico, se queremos entender a /íblia2 Uma resposta possível que pode ocorrer é que a /íblia é um livro divino, e assim eige de nós algum treinamento especial para entend)-la. as esta solu#o simplesmente no satisfaz. Como epressou um estudioso católico romano, !e alguém é capaz de falar de maneira absolutamente clara e tornar-se compreensível com efic&cia irresistível, esse tal é eus' portanto, se %& alguma palavra que poderia no eigir uma %ermen)utica, essa seria a palavra divina:;< Os protestantes, por essa razo, t)m sempre enfatizado a doutrina da  perspicuidade ou clareza das 0scrituras. $ /íblia em si nos diz que o pré-requisito essencial  para entender as coisas de eus é ter o 0spírito de eus (;Co =.;;+, e qu e o cristo, tendo recebido a un#o do 0spírito, no precisa nem mesmo de um professor (;5o =.=>+. O que ocorre, na realidade, é que precisamos da %ermen)utica no eatamente pelo fato de a /íblia ser um livro divino, mas porque, além de ser divino, é um livro humano. 0stran%o como possa soar aos ouvidos, esta maneira de ol%ar nosso problema pode nos colocar no camin%o correto. $ linguagem %umana, por sua própria natureza, é grandemente equívoca, isto é, capaz de ser compreendida em mais de uma forma. 3o fosse assim, nunc a duv ida ría mos do que as pes soas querem dizer quan do falam' se prop osi#6es  pudessem significar somente uma coisa, dificilmente o uviríamos debates sobre se 5o%nn? disse isso ou aquilo. 3a pr&tica, é claro, o n1mero de palavras ou senten#as que geram mal-entendidos constitui uma propor#o muito pequena do total de proposi#6es emitidas  por um determinado indivíduo em um determinado dia. O que precisamos recon%ecer,  porém, é que o potencial  para uma m& interpreta#o est& sempre pr esente.

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Quem Precisa de Hermenêutica?  de MOISÉS SILVA

 

O termo hermenêutica (assim como seu primo mais ambíguo e até misterioso,hermenêutico) tem-se tornado cada vez mais popular em recentes décadas. Comoresultado, tem sido ampliado e estendido de todas as formas. Usado por tantos escritores, otermo transforma-se em alvo móvel, gerando ansiedade nos leitores que buscam, em vo,defini-lo e compreender o que significa.

!eu significado tradicional é relativamente simples" é a disciplina que lida com os princípios de interpreta#o. $lguns escritores gostam de c%am&-la de ciência dainterpreta#o' outros preferem falar de arte da interpreta#o (talvez com a implica#o" Ouvoc) a tem ou no*+. eiando de lado essas diferen#as de perspectiva, o interesse b&sicoda %ermen)utica é claro o suficiente. eve ser acrescentado, entretanto, que quando osescritores usam o termo, na maioria das vezes o que eles t)m em mente é a interpreta#o

bíblica. esmo quando é outro teto que est& sendo discutido, a /íblia provavelmenteassoma por tr&s.

0sta 1ltima observa#o suscita uma questo interessante. $final, por que tal disciplinadeveria ser necess&ria2 3unca tivemos aula sobre Como 4nterpretar o 5ornal. 3en%umcolégio prop6e um curso sobre $ 7ermen)utica da Conversa#o. 4sso é uma realidadeaté com respeito a cursos sobre !%a8espeare ou 7omero, que certamente tratam deinterpreta#o da literatura, mas em que nen%um pré-requisito de %ermen)utica aparece. 9or que ento somos informados subitamente em nossa instru#o acad)mica que precisamosnos tornar %&beis em uma ci)ncia de som eótico, se queremos entender a /íblia2

Uma resposta possível que pode ocorrer é que a /íblia é um livro divino, e assimeige de nós algum treinamento especial para entend)-la. as esta solu#o simplesmenteno satisfaz. Como epressou um estudioso católico romano, !e alguém é capaz de falar de maneira absolutamente clara e tornar-se compreensível com efic&cia irresistível, esse talé eus' portanto, se %& alguma palavra que poderia no eigir uma %ermen)utica, essa seriaa palavra divina:;< Os protestantes, por essa razo, t)m sempre enfatizado a doutrina da perspicuidade ou clareza das 0scrituras. $ /íblia em si nos diz que o pré-requisito essencial para entender as coisas de eus é ter o 0spírito de eus (;Co =.;;+, e que o cristo, tendorecebido a un#o do 0spírito, no precisa nem mesmo de um professor (;5o =.=>+.

O que ocorre, na realidade, é que precisamos da %ermen)utica no eatamente pelofato de a /íblia ser um livro divino, mas porque, além de ser divino, é um livro humano.0stran%o como possa soar aos ouvidos, esta maneira de ol%ar nosso problema pode noscolocar no camin%o correto. $ linguagem %umana, por sua própria natureza, é grandementeequívoca, isto é, capaz de ser compreendida em mais de uma forma. 3o fosse assim,nunca duvidaríamos do que as pessoas querem dizer quando falam' se proposi#6es pudessem significar somente uma coisa, dificilmente ouviríamos debates sobre se 5o%nn?disse isso ou aquilo. 3a pr&tica, é claro, o n1mero de palavras ou senten#as que gerammal-entendidos constitui uma propor#o muito pequena do total de proposi#6es emitidas por um determinado indivíduo em um determinado dia. O que precisamos recon%ecer, porém, é que o potencial para uma m& interpreta#o est& sempre presente.

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0m outras palavras, precisamos da %ermen)utica para tetos além da /íblia. 3averdade, nós precisamos de princípios de interpreta#o para entender conversa#6es triviaise até mesmo acontecimentos no-ling@ísticos A afinal, a fal%a em compreender o piscar dos ol%os de alguém poderia significar um desastre em certas circunstBncias. as, ento,retornamos nossa questo original" 9or que no nos foi eigido estudar %ermen)utica no

segundo grau2 9or que é que, apesar dessa omisso em nossa educa#o, quase semprecompreendemos o que nosso próimo nos diz2$ resposta simples é que aprendemos %ermen)utica durante toda a nossa vida, desde o

dia em que nascemos. 9ode até ser que as coisas mais importantes que aprendemos seDamaquelas que fazemos inconscientemente. 0m resumo, quando voc) come#a um curso de%ermen)utica, pode estar certo de que D& con%ece muito bem os princípios mais b&sicos deinterpreta#o. Eoda vez que voc) l) o Dornal ou ouve uma %istória ou analisa umacontecimento, prova a si mesmo que é um entendido na arte da %ermen)utica*

4sso talvez seDa algo perigoso de se dizer. Foc) pode ser tentado a fec%ar este livroin1til imediatamente e devolv)-lo livraria, na esperan#a de conseguir seu din%eiro devolta. 0ntretanto, é necess&rio que apresentemos a questo e a ressaltemos. $lém de gozar de um relacionamento correto com eus, o princípio mais fundamental da interpreta#o bíblica consiste em colocar em pr&tica o que fazemos inconscientemente todos os dias denossa vida. $ %ermen)utica no é primariamente uma questo de aprender técnicasdifíceis. O treino especializado tem o seu lugar, mas é, na verdade, bastante secund&rio.9oderíamos dizer que o que importa é aprender a transpor nossas rotinas interpretativascostumeiras para a nossa leitura da /íblia. G Dustamente aí que come#am nossos problemas.

9or uma razo, no devemos pensar que o que fazemos todos os dias seDa to simplesassim. $ntes que voc) pudesse ler uma revista, por eemplo, voc) teve que aprender ingl)s. Foc) ac%a que isso é f&cil2 9ergunte a qualquer estrangeiro que tentou aprender ingl)s depois da adolesc)ncia. 3otavelmente, voc) atravessou esse difícil e complicado

 processo com grande sucesso nos primeiros poucos anos de sua vida. $os H ou I anos deidade, voc) A e todo e qualquer ser %umano sem defici)ncias A D& teria dominadocentenas e centenas de regras fonológicas e gramaticais. 3a realidade, seu vocabul&rio era bastante limitado, mas aprend)-lo é a parte mais f&cil do domínio de uma língua.

$lém disso, sua mente recebe, cotidianamente, incont&vel n1mero de impress6es.0stas so os fatos da 7istória A primeiramente suas eperi)ncias pessoais, porémsuplementada pelas eperi)ncias de outros, incluindo informa#o sobre o passado - comtodas suas associa#6es, quer psicológicas, sociais ou outras quaisquer. e maneira nomenos impressionante que a aquisi#o de uma língua, seu cérebro organizacuidadosamente essas mil%6es de impress6es, mantendo algumas na superfície, outras emnível semiconsciente, e ainda outras em algo equivalente a uma lata de lio.

G tudo um componente essencial da interpreta#o eficiente. !igamos nossa ilustra#oum tanto fictícia" Eoda vez que voc) recebe uma impresso, sua mente verifica se esse D& éum fato arquivado' se no, ela relaciona essa nova impresso s obtidas anteriormente afim de que possa fazer sentido. Usando outra analogia comum, seu cérebro é como umfiltro que seleciona todos os dados novos. !e um fato anterior despercebido no passa pelofiltro, seu cérebro tem apenas duas escol%as imediatas" for#&-lo pelo filtro distorcendo aevid)ncia ou reDeit&-lo completamente. O 1ltimo é o equivalente inconsciente 5& tomeiuma deciso A portanto, no me perturbe com os fatos. 7&, porém, uma terceira op#o"

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admitir sua ignorBncia e deiar o novo fato de lado até que seu filtro seDa capaz de lidar com ele.

Femos, ento, que nossa pr&tica di&ria de interpreta#o no é to simples como podíamos ter imaginado. 0ige um processo bastante compleo (ainda que geralmenteinconsciente+ que concentra-se na linguagem e na História, usando ambos os termos num

sentido bastante amplo. Obviamente, nossa compreenso é reduzida medida que alinguagem ou os fatos que esto sendo interpretados so descon%ecidos para nós. !e umadvogado usa linguagem técnica legal quando procura iniciar uma conversa com umestran%o no metrJ, dificilmente se pode esperar que %aDa muita compreenso. e maneirasemel%ante, uma pessoa que no acompan%ou os desenvolvimentos do governo americano, por um período etenso de tempo, no ser& capaz de compreender um editorial de um Dornal, ou até mesmo caricaturas políticas.

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e-traído, / 4ntrodu#o 7ermen)utica /íblica/, pode ser encomendado da

 ditora Cultura Crist$ selecionando a capa do liro ao lado1

[1] Luiz Alonso-Schökel, Hermenéutica de la Palavra (adrid! "ristandad, 1#$%&, 1!$'