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    Lcia Pompeu de Freitas Campos

    Tudo isso junto de uma vez s:o choro, o forr e as bandas de pfanos na msica de Hermeto Pascoal

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Msica da Escola de Msica daUniversidade Federal de Minas Gerais, comorequisito parcial obteno do ttulo de Mestreem Msica.

    Linha de pesquisa: Estudo das PrticasMusicais

    Orientador: Carlos Vicente de Lima Palombini

    Belo HorizonteEscola de Msica da UFMG

    2006

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    C198t Campos, Lcia Pompeu de Freitas

    Tudo isso junto de uma vez s: o choro, o forr e asbandas de pfanos na msica de Hermeto Pascoal /Lcia Pompeu de Freitas Campos. 2006.

    143 fls. ; il.Bibliografia: f.137-141

    Dissertao (mestrado) Universidade Federalde Minas Gerais, Escola de Msica.Orientador: Prof. Dr. Carlos Palombini

    1. Msica popular - Brasil 2. Msica instrumental3. Pascoal, Hermeto 4. Ritmos brasileiros

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    Aos instrumentistas brasileiros, das festas de rua, das bandas s rodas de choro.

    A Hermeto Pascoal e sua escola de msicos.

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    Agradecimentos

    Agradeo aos meus pais, Regina e Lo, pelo apoio amoroso e verdadeiro e pela leitura

    cuidadosa dos textos.

    Ao Marcelo pelo carinho e bom humor, pelo arranjo do Nazareth e pela ajuda na edio das

    partituras.

    Ao Prof. Carlos Palombini pela confiana e pela orientao.

    Aos professores Carlos Sandroni, Glaura Lucas e Helosa Feichas, da banca examinadora.

    Edilene, da secretaria da ps-graduao, Eliana, da seo de ensino, pela ateno de

    sempre.Ao meu irmo Srgio, vov Inah, Cacau, aos meus amigos e familiares, nessa fase tudo

    junto de uma vez s.

    memria da v Eunice, pelo piano e lembranas da bisav Ada.

    Aos amigos do Corta Jaca, do Cataventor, do Grupo de Percusso e da Orquestra. Em

    especial, ao Rafa Martini e ao Marcelo, por terem tocado comigo o choro em 7; ao Felipe

    Jos Abreu, pelas informaes sobre a Itiber Orquestra Famlia.

    Ana Cludia Assis, ao Rubner de Abreu e Rosngela de Tugny, pela indicao de

    bibliografia; ao Fernando Rocha, pelo arranjo de vibrafone; ao Marcos Filho, pelo auxlio

    com o computador.

    Aos entrevistados Hermeto Pascoal, Marcio Bahia, Seu Joo do Pife, Nen, Pernambuco

    do Pandeiro, Mauro Rodrigues pela disponibilidade e ateno.

    A todos, pelas conversas inspiradoras de idias.

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    Resumo

    Seguindo a trajetria musical de Hermeto Pascoal, os trios de forr, os regionais de choro e

    as bandas de pfanos foram aqui relacionados de modo a entend-los como formaes

    instrumentais tradicionais no Brasil, pelas quais passaram gneros musicais diversos. Nesse

    percurso, descobrimos a orquestra de Guerra Peixe, em Recife, e o regional de Pernambuco

    do Pandeiro, no Rio de Janeiro, como escolas de Hermeto nos arranjos, no choro e no forr.

    O paradigma do tresillo foi referncia para, num primeiro momento, apreender a rtmica

    tradicional do choro e do forr e, num segundo momento, incorpor-los multiplicao e

    sobreposio de pulsaes proposta pela rtmica de Hermeto, que se baseia em jogos e

    brincadeiras realizadas tanto em composies como em improvisos. As brincadeiras com

    sons de animais relacionam-se s dramatizaes musicais das bandas de pfano. Ao moldar

    tantas experincias segundo uma inteno musical prpria, a msica desenvolvida por

    Hermeto permite questionar categorias musicais estabelecidas msica popular, folclrica,

    erudita tanto por apresentar elementos de todas essas categorias como tambm por no se

    ater a nenhuma delas. O que Hermeto prope uma experincia musical integradora a

    partir de uma escuta ampla e irrestrita que realiza a mistura dentro do tacho de sons.

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    Abstract

    Following Hermeto Pascoals musical path, the forr trios, the choro regional groups

    and the pfano bands were here related so as to understand them as traditional

    instrumental formations in Brazil, through which passed diversified musical genres. In this

    way, we found Guerra Peixes orchestra, in Recife, and Pernambuco do Pandeiros regional

    group, in Rio de Janeiro, as Hermetos schools for the arrangements in choro and in

    forr. The tresillo paradigm was, in the first moment, the reference for capturing the

    traditional rhythmics of these genres and, in a second moment, for incorporating them to

    the multiplication and superposition of pulses proposed by Hermetos rythmics, based on

    games and plays present both in his compositions and improvisations. The plays made with

    animal sounds are related to the musical dramatizations of the pfano bands. Shaping so

    many experiences under a peculiar musical design, the music developed by Hermeto puts

    into question established musical categories popular, traditional, art music for

    presenting features belonging to all these categories and for not relying on any of them.

    Hermetos proposal is an integrative musical experience drawing on a wide and unrestricted

    listening that makes a blend within the sound mixing pot.

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    Sumrio

    Introduo........................................................................................................4

    1. Conceitos: se no t-los, como sab-los?.............................................7

    1.1. Msica instrumental?........................................................................7

    1.2. Msica popular?................................................................................9

    1 parte > O OVO.....................................................................................12

    2. Festas e brincadeiras..............................................................................13

    2.1. Bailes Populares..............................................................................15

    2.2. Segura a porca!................................................................................17

    2.3. Um pouco de rtmica.......................................................................20

    3. Forr Brasil...............................................................................................25

    3.1. Luiz Gonzaga: do choro ao baio...................................................25

    3.2. Forr no s aquilo......................................................................28

    3.3. O zabumba do forr........................................................................29

    4. Anarri.......................................................................................................39

    4.1. O baile que era choro que hoje forr... ........................................39

    4.2. As nossas festas: origens do choro carioca..................................42

    5. Da roda aos regionais.............................................................................46

    5.1. O choro faz escola...........................................................................46

    5.2. Inventando a roda............................................................................47

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    5.3. Oficina de composio....................................................................49

    5.4. Famlia choro: gneros....................................................................52

    5.5. Regionais.........................................................................................61

    6. Zabumbas ou Bandas de Pfanos..........................................................65

    6.1. Guerra-Peixe: o rei da pesquisa...................................................65

    6.2. Repertrio de brincadeiras..............................................................67

    2 parte > TACHO...................................................................................74

    7. Escuta Hermeto........................................................................................75

    7.1. Da paisagem sonora linguagem harmnica..................................75

    7.2. Viva o som sempre..........................................................................79

    7.3. Teoria musical feita em casa...........................................................85

    8. Hermeto do choro ao forr....................................................................89

    8.1. Pernambuco do Pandeiro................................................................89

    8.2. Batucando no morro ou no arraial?.................................................91

    9. Choros e arranjos de Hermeto..............................................................98

    9.1. Salve Copinha, Abel, Pixinguinha..................................................98

    9.2. Um chorinho em sete....................................................................101

    10. Rtmica brasileira via Hermeto Pascoal.........................................107

    10.1. Bateria brasileira?.......................................................................107

    10.2. Coalhada de ritmos......................................................................110

    10.3. Aqui no baile..........................................................................112

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    10.4. Siga o chefe.................................................................................114

    10.5. Mestre Radams..........................................................................116

    11. Escola Jabour.......................................................................................127

    11.1. S no toca quem no quer?.......................................................127

    11.2. 21 de junho de 1997....................................................................130

    Concluses...................................................................................................133

    Referncias..................................................................................................137Repertrio do CD (anexo 1)...................................................................142

    Crditos do DVD (anexo 2).....................................................................143

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    Introduo

    Meu primeiro intuito com este trabalho foi me aproximar da msica de Hermeto

    Pascoal, estabelecer relaes para participar de sua criatividade, afinar minha percepo

    para distinguir suas cores e ritmos. No entanto, preciso palavras, palavras carregadas de

    histria. Aliado percepo da msica, foi necessrio o entendimento da histria.

    De onde surgiu essa idia?

    Durante os anos 1990, assisti a muitos shows de Hermeto Pascoal e seu grupo pelas

    redondezas de Belo Horizonte: Sabar, Conceio do Mato Dentro, Diamantina, OuroPreto... at Friburgo, Niteri e Rio de Janeiro. Alm de ter ficado fascinada pela msica de

    Hermeto, ela me abriu novo leque de interesses pelos ritmos e gneros da msica brasileira,

    que a partir de ento fui buscando conhecer.

    Hermeto abriu minha escuta para uma cultura aparentemente desconhecida pela

    histria da msica que estudamos e apenas decorativa nos meios de comunicao. Foi sua

    msica que me fez querer conhecer a msica das bandas de pfanos, os maracatus, os

    choros, enfim, a msica presente na cultura popular brasileira, primeiramente a nordestina.

    E, quanto mais conhecia esses universos, mais gostava de seus arranjos de flautas, suas

    brincadeiras com sons de animais, suas misturas de ritmos.

    Atualmente, no por coincidncia, participo de um grupo musical diretamente

    ligado ao tema desta pesquisa: o Corta Jaca, dedicado ao choro e outros gneros afins como

    schottisch, samba-choro, valsa, maxixe e polca. Participei tambm, durante quatro anos, da

    Banda de Pfanos Cataventor, onde estudamos alguns gneros prprios das bandas de

    pfanos do nordeste brasileiro, como o cabor, a pipoca, a briga do cachorro com a ona,

    dentre outros.

    Essa minha experincia pessoal e tantas investigaes a serem feitas e registradas

    me estimularam a propor este projeto. A investigao da trajetria de Hermeto Pascoal,

    desde sua infncia em Alagoas at sua atuao profissional nos regionais de Recife e Rio de

    Janeiro, evidencia o contato do msico com inmeros ritmos e gneros da msica popular

    brasileira, que ele no s incorporou como tambm foi transformando ao longo de sua

    carreira.

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    O foco desta pesquisa incide particularmente sobre trs formaes instrumentais

    os regionais de choro, as bandas de pfano e os trios de forr cuja importncia para a

    formao musical de Hermeto pretendo demonstrar, investigando as relaes do msico

    com essas tradies musicais e a forma como ele as incorporou em sua obra.

    Situando este trabalho em um contexto cientfico, deparei-me com a necessidade de

    interpretar situaes, discursos e peas musicais e, como fao agora, escrever sobre eles.

    Nesta tarefa, a abordagem semitica proposta por Clifford Geertz no livroA interpretao

    das culturas (Geertz 1989) norteou toda a pesquisa.

    Geertz entende cultura como uma construo intersubjetiva constante e dinmica ou

    um conjunto de significados permanentemente construdos e reconstrudos. Seu mtodo,descrio densa, busca descrever o processo de construo de uma cultura a partir de vrios

    fios, ou seja, aspectos diversos que se entrelaam at a construo de um significado. Se o

    que proponho um mergulho na msica de Hermeto Pascoal no que concerne a sua relao

    com algumas tradies musicais brasileiras, estou falando de cultura ou, como entende

    Geertz, estou fazendo cultura. Sobre esse processo, ele diz:

    A anlise cultural intrinsecamente incompleta e, o que pior, quanto mais profunda

    menos completa. uma cincia estranha cujas afirmativas mais marcantes so as que tm abase mais trmula, na qual chegar a qualquer lugar com um assunto enfocado intensificar

    a suspeita, a sua prpria e a dos outros, de que voc no o est encarando de maneira

    correta. (Geertz 1989: 39)

    Trata-se, portanto, de um processo dialtico, uma tentativa constante de interpretar,

    contando uma histria que pode sempre ser contestada. Meu objetivo aqui, concordando

    com Geertz, menos uma perfeio de consenso do que um refinamento do debate em

    torno da cultura brasileira, mais especificamente, da msica brasileira. Essa abordageminterpretativa me interessa porque enfatiza o carter vulnervel da anlise e da histria

    contada, que depende de uma boa argumentao e imaginao. O desafio do pesquisador

    justamente esse: refletir sobre seu contexto de observao e assumir sua posio, de tal

    forma que sua parcialidade torne-se no um defeito, mas um elemento criativo a mais,

    contribuindo para a relevncia do estudo.

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    Optei tambm pela observao-participante na medida em que h uma imerso no

    universo do choro, das bandas de pfano e da msica de Hermeto. Desde 2000, mantive um

    contato crescente, sob forma de aulas, oficinas e entrevistas, com os msicos que tocam e

    tocaram com Hermeto Pascoal. Em 2005, tive a oportunidade de conversar com o prprio

    Hermeto. Em 2006, fiz uma entrevista com Pernambuco do Pandeiro, diretor do regional

    que Hermeto participou nos anos 1950, no Rio de Janeiro. Participo atualmente, como

    percussionista, de um grupo de choro, rodas de choro, uma orquestra dedicada msica

    instrumental brasileira. Alm disso, nesse meio tempo, fiz pesquisas junto a duas bandas de

    pfano, um grupo de maracatu e participei dos festivais de choro realizados pela Escola

    Porttil de Msica, no Rio de Janeiro, sob coordenao de Maurcio Carrilho e LucianaRabello. Nesses festivais, tomei parte nas oficinas de percusso, pandeiro, composio e

    histria do choro e dos demais gneros que compem este universo, um aprendizado

    intenso ao qual farei referncias ao longo do texto.

    Optei por utilizar o primeiro nome no tratamento da maioria das pessoas envolvidas

    na pesquisa, o que se justifica pela necessidade de imerso nas observaes e entrevistas,

    nas quais a formalidade seria excessiva. Muitos dos msicos aos quais farei referncia se

    apresentam e assinam seus trabalhos com o nome artstico, que tambm ser aqui

    priorizado. O tom informal do texto deve-se muitas vezes permeabilidade dessas

    influncias. Durante todo o estudo, tive o objetivo de: Tentar manter a anlise das formas

    simblicas to estreitamente ligadas quanto possvel aos acontecimentos sociais e ocasies

    concretas (Geertz 1989: 40).

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    1. Conceitos: se no t-los, como sab-los?

    Msica brasileira, msica popular, msica erudita, msica culta, msica de

    concerto, msica folclrica, msica tradicional, msica instrumental, msica concreta,

    msica experimental, msica universal: msica?

    A msica existe enquanto som em determinado contexto para uma escuta

    determinada; existir enquanto msica popular ou qualquer outra categoria, outra

    histria, outra inveno. Assim como estou aqui inventando o personagem Hermeto

    Pascoal nesse contexto acadmico e reinventando tantos outros conceitos relacionados:

    choro, forr, etc. Quando vou procurar um CD de Hermeto Pascoal (que raramente consigo

    achar) numa loja, normalmente procuro numa categoria chamada instrumental brasileiro.

    No entanto, essa categoria no existe naEnciclopdia da msica brasileira: popular,

    erudita e folclrica (2003). Parece que msica instrumental existe enquanto categoria

    comercial (nem to comercial assim), mas no como categoria intelectual.

    1.1. Msica instrumental?

    De fato, muito pouco foi escrito sobre esse instrumental brasileiro ou msica

    instrumental brasileira, definies em si bastante problemticas. Toda msica requer

    instrumentos, convencionais ou no, podendo-se entender a voz e o corpo tambm como

    instrumentos. Em geral, entende-se por instrumental a msica cuja elaborao independe de

    um texto verbal escrito, um poema ou letra de msica; brasileira porque foi feita por um

    artista brasileiro. Mas no to simples assim.

    Outro pesquisador que recentemente debruou-se sobre a criao musical deHermeto, Luiz da Costa Lima Neto, cujo estudo em muito ajudou minha pesquisa, admite:

    Questionando ao mesmo tempo os rtulos da indstria cultural e os limites do universo

    erudito e popular, Hermeto desafia aqueles que querem estud-lo (Lima Neto 1999: 23).

    Fui encontrar uma explicao mais detalhada do que seria esse instrumental

    brasileiro no trabalho de um pesquisador americano: Andrew Connell, que tambm se

    aventurou a entender a obra de Hermeto Pascoal.

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    No incio dos anos 70 vrias transformaes resultaram no aparecimento de um novo tipo

    de msica instrumental no Brasil, que no derivava apenas do choro e da bossa-nova, mas

    tambm de uma ampla gama de gneros brasileiros e sons internacionais. Aliada aosdesenvolvimentos cosmopolitas da MPB (msica popular brasileira), a mdia da msica

    instrumental e sua presena cultural foram sendo construdas ao longo da dcada,

    estimuladas por eventos como o ressurgimento do choro, a renovada popularidade da

    gafieira, o Movimento Black Rio, festivais tanto de choro quanto de jazz, alm do crescente

    apoio do estado e de instituies. (Connell 2002: 95, traduo da autora)

    Segundo Connell, de 1969 a 1975 (poca do apogeu dos festivais da cano), a

    msica instrumental teria sido banida do campo da msica popular brasileira. Ressurgiu,

    em seguida, a partir de iniciativas diversas: matrias de jornalistas como Ana Maria

    Bahiana, Trik de Souza, Sergio Cabral, Paulo Venncio Filho, produtores culturais como

    Hermnio Bello de Carvalho, alm de ajuda estatal e, claro, da atuao dos prprios

    msicos, dentre os quais ele destaca Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e Paulo Moura.

    O choro tambm fez parte desse movimento dedicado msica instrumental, mas

    nessa poca ficou restrito ao pblico nacional. Sobre o choro, entrarei em detalhes no

    captulo 5.

    J a msica instrumental comeou a chamar a ateno no exterior, especialmentepor causa de Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti, que fizeram vrias turns internacionais

    na dcada de 70, levando Connell a afirmar: Desde a bossa nova, a msica brasileira no

    tinha tido tanta influncia no exterior (Connell 2002: 99, traduo da autora).

    Essa nova gerao de instrumentistas chamava a msica que faziam de msica

    instrumental brasileira contempornea. Hermeto prefere chamar sua msica de msica

    universal ou msica livre. So definies que buscam outro espao, talvez uma

    alternativa dicotomia erudito/popular, que sempre esteve presente na categorizao da

    msica no Brasil, conforme explica Elizabeth Travassos:

    Duas linhas de fora tensionam o entendimento da msica no Brasil e projetam-se nos

    livros que contam sua histria: a alternncia entre reproduo dos modelos europeus e

    descoberta de um caminho prprio, de um lado, e a dicotomia entre erudito e popular, de

    outro. Como uma espcie de corrente subterrnea que alimenta a conscincia dos artistas,

    crticos e ouvintes, as linhas de fora vm tona, regularmente, pelo menos desde o sculo

    XIX. [...] Mais recentemente emergem em torno de artistas como Egberto Gismonti e

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    Hermeto Pascoal, que problematizam a separao entre erudito e popular. (Travassos 2000:

    7, 8)

    Ao realizar uma msica que interessa a pblicos to diversos, criando novas escutas,

    e ao mesmo tempo calcada em fontes nitidamente populares, ambos tornam-se msicos de

    difcil definio. Um exemplo desse novo espao de interao o fato de msicas de

    Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti constarem nos programas de concertos do Duo Assad

    de violes, conhecido no circuito internacional da chamada msica de concerto.

    No que diz respeito ao debate acadmico e terminolgico em geral, a msica

    instrumental popular ou msica instrumental brasileira contempornea, na qual procuro

    destacar a msica de Hermeto Pascoal, no se encaixa em meio s dicotomias conceituais e

    entre os campos que geralmente se dedicam ao estudo da msica no Brasil: a musicologia, a

    etnomusicologia, os estudos sociais e literrios, dentre outros. A meu ver, desde os anos

    1970, ela significou justamente uma proposta concreta, ou melhor, sonora, para a diluio

    das fronteiras terminolgicas.

    H, no entanto, outra fronteira que tende a desaparecer na msica de Hermeto

    Pascoal, conforme veremos nos captulos que se seguem: a distino entre msica

    folclrica e msica popular. Mas antes precisamos entender melhor tais definies.

    1.2. Msica popular?

    Carlos Sandroni, no artigo Adeus MPB (2004), evidencia o vnculo entre o

    popularda definio msica popular brasileira e determinada concepo de povo

    brasileiro. A partir desse esclarecimento inicial, ele demonstra como o conceito de msica

    popular brasileira foi se transformando ao longo do tempo, junto com a transformao da

    concepo de povo brasileiro.

    Primeiramente, ele coloca a necessidade de definir o que seja povo para se saber o

    que vem a ser popular. Alguns dilemas emergem dessa questo: a diferena entre msica

    folclrica e msica popular, a mudana de sentido desses termos ao longo do tempo, a

    separao entre msica rural e msica urbana.

    Segundo Sandroni, at os anos 1940, usava-se msica popular referindo-se ao

    mundo rural, mas a crescente importncia das msicas urbanas, associada produo

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    intelectual de personagens como Alexandre Gonalves Pinto e Vagalume,1 levou diviso

    entre folclore e popular, que seria proposta por Oneyda Alvarenga. A partir de ento,

    consagrou-se a diferena que prevaleceu durante a segunda metade do sculo XX: a msica

    popular sendo entendida como a msica do rdio e do disco, urbana, autoral e mediada; e a

    msica folclrica como a msica rural, annima e no-mediada. Segundo a concepo de

    Alvarenga, a ltima seria a mais autntica e mantenedora do carter nacional, enquanto a

    primeira estaria contaminada pelo comrcio e pelo cosmopolitismo (Sandroni 2004: 27,28).

    Continuando a cronologia proposta por Sandroni, durante os anos 1960, a msica

    popular brasileira passa a delimitar um campo que exclua msicas no-nacionais,

    cumprindo certo papel de defesa nacional, antes atribudo ao folclore. Transforma-seento na sigla MPB, num momento em que a idia de povo brasileiro foi muito debatida.

    Em 1968, o tropicalismo questionou a orientao esttico-poltica da MPB, com a qual o

    pblico se identificava. J nos anos 1970, gostar de Chico Buarque, Tom Jobim e Joo

    Gilberto significava eleger certo universo de valores e referncias. A partir de 1980, a sigla

    passou a ser adotada de modo mais amplo, integrando at mesmo o rock nacional (Sandroni

    2004: 29, 30).

    Como bem observou Sandroni, dos anos 1960 at os anos 1980, MPB foi se

    tornando uma categoria analtica, uma opo ideolgica e um perfil de consumo, ou seja,

    uma sigla com carter aglutinante que identificava um gosto musical coerente. O que j no

    acontece desde os anos 1990. Assiste-se atualmente a dois movimentos: a fragmentao das

    msicas populares e a relativizao da dicotomia entre a msica popular e a msica

    folclrica (Sandroni 2004: 31, 32).

    Ora, se tomamos o ponto de vista da msica instrumental, posso dizer que pelo

    menos desde os anos 1970 ela j contribuiu para a fragmentao da idia de MPB. Falando

    particularmente da msica de Hermeto Pascoal, ele no s no se encaixa nessa categoria,como tambm problematiza a diferena entre msica popular e folclrica.

    1 Alexandre Gonalves Pinto foi um choro da velha guarda que em 1936 publicou o livro Choro:

    reminiscncias dos chores antigos (Gonalves Pinto 1936), no qual retrata inmeros msicos que atuaram no

    Rio de Janeiro desde 1870, muitos deles conhecidos graas aos relatos de Alexandre. Francisco Guimares

    Vagalume tambm foi um personagem atuante na msica, como cantor e homem do rdio, que registrou no

    livroA roda de samba (Vagalume 1978) suas percepes do meio musical na poca em que viveu.

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    A primeira msica gravada por Hermeto que fez sucesso internacional, O Gaio da

    Roseira uma composio de Divina Eullia de Oliveira e Pascoal Jos da Costa, os pais

    de Hermeto, que a cantavam quando trabalhavam na roa. Hermeto no s gravou a

    msica, como colocou os prprios Divina Eullia e Seu Pascoal como autores. Se Luiz

    Gonzaga tambm gravou adaptaes de msicas que tocava com seu pai, como Asa

    Branca, nunca efetivamente colocou o nome de Janurio como compositor.

    Creio que essa atitude de Hermeto frente s origens de sua msica revela muito de

    sua concepo integradora, que vai de encontro tese de Sandroni:

    a distino entre msica popular e msica folclrica no Brasil esteve tambm ligada idia

    de que a primeira estava viva e a segunda morta. A integrao de aspectos de manifestaes

    folclricas ao mercado musical moderno apenas uma das maneiras pelas quais tal

    concepo vem sendo posta em xeque nos ltimos anos. (Sandroni 2004: 34)

    Diante de uma concepo contempornea do que seja a msica presente na cultura

    popular, encontrando-a tanto na msica de Hermeto como na msica de Seu Joo do Pife,

    de Sebastio Biano, nos choros de Pixinguinha e de Maurcio Carrilho, dentre outros,

    procurarei contextualizar cada uma das manifestaes musicais, comparando-as e

    relacionando-as. Para isso, esta dissertao foi dividida em duas partes. Na primeira parte,

    O ovo,2 busco conhecer o caminho percorrido por Hermeto, em suas andanas do forr

    ao choro, tangenciando as bandas de pfano. Nesse percurso, ritmos e gneros musicais

    perpassam bailes e festas que recontam caminhos da histria da msica no Brasil. Na

    segunda parte, Tacho,3 a msica de Hermeto focalizada e analisada, relacionando sua

    concepo sonora e sua escuta s misturas e transformaes rtmicas que ele realiza nas

    tradies do choro, do forr e das bandas de pfano.

    2 O ovo foi uma das primeiras composies de Hermeto gravadas, um choro bem nordestino ou um

    forr chorado, o que sintetiza bem a idia da primeira parte do estudo, de relacionar a histria do forr e do

    choro, alm de remeter s origens da msica de Hermeto.3 Tacho tambm o ttulo de uma composio de Hermeto (gravada no CDMissa dos escravos), que

    remete mistura de sons, idia que ser desenvolvida na segunda parte.

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    1 parte > O OVO

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    2. Festas e brincadeiras

    No existe na msica brasileira essa coisa que Olavo Bilac qualificou como resultado detrs raas tristes, pois at a reza-de-defunto (canto de velrio, excelncias e benditos) na

    interpretao do povo alegre pela sua interpretao expansiva, natural, desinibida.

    (Guerra-Peixe e Raposo 1984: 6)

    A alegria de que fala Guerra-Peixe est presente na msica de Hermeto Pascoal. O

    baterista Nen, que trabalhou durante dez anos com Hermeto, quem diz: uma msica

    impregnada de festas populares (Nen 2005). Ele cita o exemplo de uma faixa do disco

    Brazilian Adventure, a msica Velrio, onde o compositor procura reproduzir os sons dasfestas que ocorriam por ocasio dos velrios em sua terra natal. Para isso utilizou matracas

    e sussurros, conforme as brincadeiras de sua infncia.

    Com quase 70 anos de idade, lembranas no faltam a Hermeto, talvez por isso

    mesmo ele defenda uma atitude e uma msica totalmente voltadas para o presente: nunca

    me lembro do passado, ele j existe na gente. uma energia que j vem com a gente, quem

    procura se lembrar do passado est perdendo o presente praticamente todo (Pascoal 2005).

    Assim sua msica, presente, atual, impregnada de festas e de vida, da sua vida e,por isso mesmo, de seu passado que se faz presente. Sua recusa do passado no uma

    recusa da tradio, mas uma defesa contra os tradicionalistas. Afinal, sua criatividade

    extrapolou as formaes musicais pelas quais passou e, ao lado do aprendizado e da

    admirao pela cultura popular, h sempre uma recusa da estagnao.

    Mas Hermeto viveu sim vrias formaes musicais, tradicionais ou no. Este um

    passado evidente em sua msica, que se torna presente na criao. So vrios fios de

    cultura que vo se entrelaando em sua obra, revelando uma msica brasileira e, como ele

    quer, universal. Contar essa histria uma tentativa constante de equilibrar as vertentes de

    arte e tradio.

    Comearei pela arte que j tradio: as festas populares, os bailes chamados de

    choros ou forrs, os gneros, ritmos e formaes musicais a envolvidos. Tradio como

    uma manifestao que j recorrente, envolvendo caractersticas que se repetem ao longo

    do tempo, que a tornam reconhecida pela comunidade onde se realiza e passvel de ser

    generalizada como manifestao nacional.

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    Dentre as formaes instrumentais tipicamente brasileiras, podemos considerar trs

    especialmente caras msica instrumental: os trios de forr (sanfona, zabumba e tringulo),

    as bandas de pfanos (dois pfanos, tarol, prato e zabumba) e os conjuntos regionais (violo,

    cavaquinho, pandeiro, flauta, dentre outros instrumentos solistas). A experincia musical de

    Hermeto Pascoal particularmente rica em msica brasileira por ele ter vivido, j em sua

    infncia e adolescncia, essas trs formaes instrumentais.

    Nascido em Alagoas em 1936, Hermeto apresenta, em sua trajetria, inmeras

    referncias que, como ele diz, vo do forr ao choro.

    Minha formao: desde criana, eu tocava o oito-baixos, que era o instrumento que eu

    tocava em bailes, l no nordeste p-de-bode. Eu mesmo fazia os meus pifes, no mato, de

    cano de mamona, eu j fazia pra tocar, j tinha aquilo na cabea, mas no saa do lado dos

    zabumbeiros, e os zabumbeiros l em Lagoa da Canoa, em Alagoas, era normal tocar na

    porta das igrejas, na feira, em procisso, em bailes tambm. Ento essa era minha infncia,

    at os 14 anos de idade. Quando eu sa com 14 anos de Alagoas para Recife, a eu tive

    conhecimento do que se chama chorinho. Eu sa direto do forr, das coisas que eu estava

    acostumado a tocar, peguei a sanfona e fui tocar chorinho no regional, na Rdio Jornal do

    Comrcio, em Recife. Com 15, 16 anos, j estava tocando em regional. Quando eu cheguei

    no sul, eu fui juntando a msica. A gente nunca fica fixo num estilo s, uma mistura.

    (Pascoal 2005)

    Hermeto faz uma cronologia dos primeiros instrumentos tocados por ele a sanfona

    de oito-baixos e os pifes (ou pfanos, como veremos no captulo 6) acrescentando a

    presena constante dos zabumbeiros em suas formaes musicais. Dessas combinaes

    surgem justamente as bandas de forr e de pfanos que, como ele mesmo diz, tocavam na

    porta das igrejas, na feira, em procisso, em bailes..., sendo responsveis pelas mais

    diversas festividades de cidades do interior como Lagoa da Canoa. A sanfona foi oinstrumento que possibilitou a ele migrar do forr aos regionais, onde passou a tocar choro.

    Para participar dessa histria contada por Hermeto, precisamos investigar o universo

    de cada uma dessas formaes musicais. Inspirada pela msica de Hermeto, eminentemente

    atual, minha abordagem tende a ser calcada no presente, seja em minhas observaes e

    pesquisas, seja em entrevistas e numa leitura da bibliografia luz da experincia musical.

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    2.1. Bailes Populares

    Ao pesquisar as origens do forr e do choro, passando pela tradio das bandas de

    pfano, fui percebendo como a histria desses conceitos se entrelaa constantemente, a

    comear pelo significado original de ambos como bailes populares, sem esquecer os

    inmeros gneros musicais que a se relacionam.

    Tinhoro nos lembra que, em suas origens, o termo forr, baile ou festa de gente

    humilde, sempre foi palavra pouco nobre, mesmo no nordeste, equivalendo ao carioca

    forrobod (Tinhoro 1976: 188). Por sua vez o termo carioca forrobod, do qual forr

    seria uma abreviatura, equivaleria a forrobodana, que comparado ao Choro do Rio deJaneiro (um baile, obviamente, animado pelos choros), em citao do verbete forr da

    Enciclopdia da msica brasileira (2003). A compositora Chiquinha Gonzaga, uma das

    pioneiras na composio de choros, escreveu a msica para uma pea de teatro de revista

    cujo ttulo era justamente esse:Forrobod.

    Os bailes populares tambm eram conhecidos como assustados, chamados ainda de

    arrasta-ps, como observa Wisnik ao falar sobre o martrio do compositor Pestana (clebre

    personagem de Machado de Assis): a polca, que persegue o compositor como a maldioque o condena vida rasteira dos bailes e assustados os tradicionais arrasta-ps (Wisnik

    2004: 19). Atualmente, qualquer um que freqenta um forr sabe que arrasta-p um dos

    ritmos a tocados, como veremos mais adiante.

    Voltando denominao dos bailes, Alexandre Gonalves Pinto e Vagalume so

    testemunhas imprescindveis. O primeiro chama os bailes onde tocavam os antigos chores

    de choros ou pagodes. O segundo, ao falar das batucadas (encontros de samba), diz:

    Mas no era s na Penha que os encontros se davam. Era tambm onde houvesse um

    Choro, um arrastado, um vira-vira-mexe, uma festa qualquer e principalmente na

    velha Cidade Nova, onde quase sempre se realizava o baile na sala de visitas e um

    sambinha mole no quintal. (Vagalume 1978: 36)

    Oneyda Alvarenga quem explica a generalidade dos termos, ao falar que o Samba

    viu o seu sentido ainda mais alargado que o de Batuque, estendendo-se a nome de qualquer

    baile popular, equivalente a funo, pagode, forr e outros mais (Alvarenga s.d: 133).

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    Carlos Sandronidistingue entre samba e choro no comeo do sculo XX, sendo o

    primeiro uma dana de par separado e o segundo de par enlaado. Essa relao permeia

    tambm a distino entre baile e samba, que aparece num depoimento de Pixinguinha: Em

    casa de preto, a festa era na base do choro e do samba. Numa festa de pretos havia o baile

    mais civilizado na sala de visitas, o samba na sala do fundo e a batucada no terreiro (apud

    Sandroni 2001: 102, 103). Logo, baile, alm de ser um sinnimo para forr, tambm para

    choro, um baile mais civilizado, no dizer do prprio Pixinguinha, no qual as danas eram

    de par enlaado (Sandroni 2001).

    Dominique Dreyfus, bigrafa de Luiz Gonzaga, defende:

    A palavra forr, segundo a poca em que empregada, no tem exatamente o mesmo

    significado. Da mesma forma que a palavra samba, a palavra forr foi evoluindo no

    decorrer do sculo. At os anos 50, forr significa baile; depois passa a designar o conjunto

    da msica do nordeste. Hoje em dia, forr um gnero musical. Nordestino, claro.

    (Dreyfus 1997: 198)

    Ento, para comeo de conversa, estamos falando aqui de bailes populares

    brasileiros, choros e forrs, bailes onde passaram vrios gneros que hoje conhecemos

    pelas generalizaes de choro ou forr, e nisso ambos se assemelham, mas estamos falando

    tambm de formaes instrumentais distintas. Em geral, nos estudos sobre a msica

    brasileira, defende-se uma suposta linearidade dos conceitos e dos gneros musicais, como

    se um fosse evoluindo e suplantando o outro. Esta linearidade no se sustenta. Seria mais

    interessante assumir a coexistncia de sentidos diferentes numa mesma palavra, de aspectos

    musicais diversos sob uma mesma denominao ou ainda de conceitos aparentemente

    distintos que acabam por revelar semelhanas.

    Por exemplo, agora, em 2006, no Brasil, coexistem rodas de choro em Belo

    Horizonte, casas de forr, uma escola de choro no Rio de Janeiro e bandas de pfano no

    interior de Pernambuco. Ao mesmo tempo em que esto sendo tocados schottischs (um dos

    gneros da famlia do choro), antigos ou recm-compostos, nas rodas e na escola de choro,

    tambm esto sendo tocados xotes nos forrs e pelas bandas de pfano. A palavra xote um

    abrasileiramento da palavra schottisch (logo veremos o que acontece com o ritmo). Mas

    uma coisa certa, para o xote existir, o schottisch no desapareceu, e, mesmo que tivesse

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    desaparecido enquanto manifestao musical espontnea, poderia ser redescoberto a

    qualquer momento, a partir dos registros existentes. Outro exemplo: a polca, que

    tradicionalmente associada s origens do choro, continua sendo tocada em rodas de choro e,

    claro, na escola de choro, alm disso, ela no s citada entre os gneros das bandas de

    pfano, como tambm do forr...

    2.2. Segura a porca!

    O sanfoneiro era, portanto, um personagem importante da vida no Serto. Para Janurio,

    que era um excelente tocador, no faltava trabalho. Da quinta-feira ao domingo, ele no

    parava. Saa de casa no final da tarde, com o fole a tiracolo e s voltava para casa de

    madrugada. Se a festa no era longe demais, a famlia o acompanhava. Santana ficava

    sentada, olhando tudo. A meninada no perdia uma dana: mazurcas, valsinhas, emboladas,

    polcas interpretadas com maestria pelo pai. Segura a porca!, gritavam os matutos do

    salo, encorajando o sanfoneiro... (Dreyfus 1997: 38)

    forr, choro? Por enquanto a polca, gnero ou pelo menos o nome de um

    gnero que atravessou a virada do sculo XX, passando pelos conjuntos de choros, bandas

    de pfanos, regionais das rdios e trios de forr (no necessariamente nessa ordem).A polca, ao chegar perto do lundu, vira a msica que vai provocar o aparecimento

    do maxixe como dana de salo; ao aproximar-se da marcha, vira frevo; mas se tocada

    pelos regionais, vira choro. Alexandre Gonalves Pinto defende-a com veemncia:

    A polka como o samba, uma tradio brasileira. [...] A polka cadenciada e chorosa ao som

    de uma flauta... [...] A polka, com toda a sua belleza, com todos os requisitos de elegncia e

    com todas as tentaes que a sua execuo provoca, jamais poder desapparecer dos nossos

    sales e das nossas salinhas, como um preito de homenagem aos nossos bisavs e comorespeito s nossas tradies. (Gonalves Pinto 1936: 115, 116)

    O choro Alexandre est falando dos sales e salinhas do Rio de Janeiro na

    virada do sculo XIX para o sculo XX que, como veremos, no esto to longe dos bailes

    que aconteciam no Nordeste, no que diz respeito no s aos gneros musicais tocados,

    como tambm existncia dos choros como formaes musicais.

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    Pelo menos desde os Turunas da Maurica4 nota-se que os conjuntos de violo,

    cavaquinho e flauta, os choros, eram comuns tambm no Nordeste, no caso, em Recife,

    mesmo que a histria do choro teime em consagr-lo ao Rio de Janeiro, lembrando que na

    poca, alm de cidade maravilhosa, o Rio era tambm a capital do pas. Mrio de

    Andrade j indagava...

    Pode-se dizer que o populario musical brasileiro desconhecido at de ns mesmos.

    Vivemos afirmando que riqussimo e bonito. Est certo. S que me parece mais rico e

    bonito do que a gente imagina. E sobretudo mais complexo. Ns conhecemos algumas

    zonas. Sobretudo a carioca por causa do maxixe impresso e por causa da predominncia

    expansiva da Crte sobre os Estados. (Andrade 1928: 6)

    A viso exposta por Mrio de Andrade mantm sua atualidade e justifica um

    parntese sobre a questo. Suzel Ana Reily faz uma anlise da historiografia da msica

    brasileira, criticando o discurso nacionalista que se pauta por uma sucesso cronolgica de

    estilos musicais.5

    Reily discute a questo do nacional na historiografia da msica brasileira. Segundo

    ela, na msica popular, o nacional delimitado a partir do gosto da classe mdia. Na poca

    da modinha, o nacional era definido pelos gneros mais tocados no Rio de Janeiro. Todos

    os outros estilos que se desenvolviam em outros estados eram taxados de regionais,

    4 Conjunto vocal e instrumental fundado em 1926 no Recife composto por Luperce Miranda e Augusto

    Calheiros, dentre outros. O Luperce era tio da minha esposa Ilza. Ele foi um dos maiores bandolinistas do

    mundo (Hermeto 2006). Em entrevista, Mrcio Bahia me informou que Hermeto comps uma bela valsa em

    homenagem a Luperce, que nunca foi gravada.5Segundo Reily (2000), a histria da msica brasileira, tal qual tipicamente contada, comea com um

    perodo de formao, situado na era colonial e caracterizado por uma infinidade de formas hbridas e difusas.

    No sculo XVII, surgem a modinha e o lundu, primeiros gneros estveis. Em seguida a modinha torna-se o

    gnero mais abrangente, incorporando o lundu, e interessa aos universos erudito e popular. O choro citado

    em seguida, surgindo por volta de 1870, primeiramente como um modo local de tocar as danas europias

    ento em voga, principalmente a polca. No sculo XX, em geral as histrias da msica popular e erudita se

    separam. A primeira se volta para o samba, enquanto a segunda se envolve com o movimento modernista. As

    histrias da msica constroem narrativas cannicas, paralelamente, que definem os momentos mais

    significativos para o desenvolvimento do repertrio nacional (Reily 2000).

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    inclusive o baio, que ficou nacionalmente conhecido em 1940. Essa histria linear sugere

    uma narrativa mtica sobre o centro, enquanto a margem permanece invisvel (Reily 2000).

    No entanto, se aqueles gneros que contam a descoberta musical do Brasil vieram

    da Europa, no aportaram somente no Rio. No nordeste, a presena dos gneros que vo

    constituir a famlia do choro evidencia-se, por exemplo, no repertrio das bandas de

    pfanos, que so verdadeiros relicrios de gneros antigos como polcas, choros, maxixes e

    at tangos brasileiros, como veremos no captulo 6.

    Esses gneros aparecem tambm nessa passagem sobre o incio da carreira de Luiz

    Gonzaga, que consta na biografia de Dreyfus. Ao ser desafiado a tocar uma coisinha l do

    Nordeste, Gonzaga...

    pegou a sanfona e comeou a pensar nas msicas que tocava com o pai. Polcas, mazurcas,

    quadrilhas, valsas, chorinhos, coisas que existiam por todo o Brasil, mas que no Serto,

    eram tocadas com sotaque local. Gonzaga foi procurando, dedilhando os baixos e as

    teclas, revolvendo o passado, reconstituindo a memria musical. (Dreyfus 1997: 82)

    Dessa procura teria sado seu primeiro sucesso P de serra, definida por Dreyfus

    como uma polca charmosa e alegre.

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    2.3. Um pouco de rtmica

    Festas e brincadeiras, feiras e procisses, bailes chamados forrs e choros... A

    rtmica que permeia a msica popular brasileira a rtmica da cultura popular. a rtmica

    dos passos de dana, da marcha das procisses, dos molejos e requebrados da cintura, das

    palmas e dos ps. Palmos e ps, que tambm so usados para medir o espao, so usados

    para medir o tempo. Como tambm se mede um punhado de farinha ou uma pitada de sal.

    o corpo a medida do espao e do tempo, e a partir desse corpo podemos entender a rtmica.

    O estudo da rtmica brasileira norteia o presente trabalho, desde a identificao de

    padres rtmicos encontrados no forr e no choro at o desenvolvimento e elaborao da

    rtmica tradicional na linguagem desenvolvida por Hermeto Pascoal. Para isso, recorrerei

    pesquisa efetuada por Carlos Sandroni, ao explicar as transformaes ocorridas no samba

    de 1917 a 1933.

    Ao estudar o samba, Sandroni observou uma mudana rtmica significativa que teria

    ocorrido no perodo em questo, o que o levou formulao de dois paradigmas distintos, o

    paradigma do tresillo e o paradigma do Estcio. O paradigma do tresillo o que nos

    interessa no mbito desse estudo. Embora ele esteja relacionado s origens do samba,pretendo estend-lo aqui tambm s origens do choro e ao forr, abrangncia esta que

    sugerida por Sandroni.

    O padro rtmico 3+3+2 [o tresillo] pode ser encontrado hoje na msica brasileira de

    tradio oral, por exemplo nas palmas que acompanham o samba-de-roda baiano, o coco

    nordestino e o partido-alto carioca; e tambm nos gongus dos maracatus pernambucanos,

    em vrios tipos de toques para divindades afro-brasileiras e assim por diante. (Sandroni

    2001: 28)

    Aliado (ou por vezes contraposto) ao estudo de Sandroni, o conceito de pulsao, tal

    qual formulado por Fabien Lvy (2001), tambm ser um dos pontos de partida aqui

    desenvolvidos. Aceitando a idia de que a percepo do tempo na msica clssica ocidental

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    se baseia sobre uma estratificao em diferentes nveis de articulao,6 Lvy prope

    agrupar os diversos estratos em trs categorias: a pulsao mtrica (durao mnima de

    um ciclo completo que envolve tempos fortes e fracos), a pulsao unitria ou

    metronmica (nvel de subdiviso intermedirio) e a pulsao mnima (menor valor

    rtmico utilizado ou diviso mnima). Para ilustrar essa idia, podemos imaginar uma rgua

    elstica, cujas divises seriam as pulsaes e as diferentes pulsaes dependeriam da rgua

    estar esticada ou comprimida. O que as assemelha a configurao de um ciclo constante,

    seja qual for a articulao percebida.

    Mais do que os tipos de pulsao destacados, cuja pertinncia rtmica brasileira

    mereceria uma investigao mais detalhada, a idia da coexistncia de diferentes nveis depulsaes ser aqui desenvolvida, propondo inclusive outras possibilidades de agrupamento

    e articulao. Como afirma Lvy: os tericos da psicoacstica esto de acordo sobre a

    existncia desse tecido cognitivo na maior parte das msicas, o que facilita e orienta a

    percepo dos ritmos e duraes (Levy 2001: 8, traduo da autora).

    Cabe ressaltar que, enquanto os conceitos de pulsao expostos por Lvy baseiam-

    se numa rtmica divisiva, prpria da teoria musical clssica europia, o tresillo, ao

    contrrio, baseia-se numa rtmica aditiva, caracterstica da msica africana.7 No entanto,

    para se entender a rtmica brasileira, preciso considerar ambas, a rtmica aditiva e a

    divisiva, uma vez que em nossa msica convivem, dentre vrios outros elementos, a

    contrametricidade e o compasso.

    Para explicar o paradigma do tresillo Sandroni recorre, por sua vez, aos estudos de

    Kolinski, que prope dois nveis de estruturao do ritmo musical, a mtrica e o ritmo:

    O carter variado do ritmo pode confirmar ou contradizer o fundo mtrico, que constante.

    Kolinski cunhou os termos cometricidade e contrametricidade para exprimir essas duas

    possibilidades. A metricidade de um ritmo seria pois a medida em que ele se aproxima ou

    se afasta da mtrica subjacente. (Sandroni 2001: 21)

    6 Lvy se refere teoria desenvolvida por Fred Lerdahl e Ray Jackendoff em Thorie Generative de la

    musique tonale (1985).7 Sobre a diferenciao entre rtmica aditiva e divisiva (A. M. Jones apud Sandroni 2001: 24).

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    O paradigma do tresillo diz respeito recorrncia do padro rtmico assimtrico que

    comporta trs articulaes e por isso teria sido chamado pelos cubanos de tresillo [3+3+2].

    Sua caracterstica fundamental a marca contramtrica recorrente na quarta pulsao (ou,

    em notao convencional, na quarta semicolcheia) de um grupo de oito, que assim fica

    dividido em duas quase-metades desiguais (3+5). esta marca que o distingue dos padres

    rtmicos que obedecem teoria clssica ocidental, para a qual a marca equivalente estaria

    no na quarta mas na quinta pulsao (ou seja,no incio do segundo tempo de um 2/4

    convencional e simtrico). (Sandroni 2001: 30)

    Ao dizer sua caracterstica fundamental a marca contramtrica recorrente naquarta pulsao, Sandroni est se referindo pulsao mnima, ou seja, menor diviso

    rtmica empregada que, de acordo com os conceitos de Levy, seria a subdiviso da

    pulsao unitria ou metronmica, ou seja, da pulsao intermediria, que em geral

    equivale semnima na msica clssica ocidental.

    Sandroni procura aplicar o que ele chama de lgica da imparidade rtmica8 a figuras

    rtmicas que em geral so encaradas pela lgica do compasso. Ao fazer isso, naturalmente,

    a unidade mtrica que vem tona no mais a pulsao metronmica, prpria dos passos

    de dana, mas as pulsaes mnimas, prprias dos molejos e requebrados...

    Ou seja, a subdiviso que permeia a msica brasileira passa a ser encarada como

    a pulsao de referncia, e no como subdivises do padro simtrico do compasso binrio,

    dividido em duas partes iguais. Essa abordagem permite refinar a percepo dos ritmos de

    forma a entender a miscigenao de padres distintos, ou seja, a imparidade rtmica prpria

    da msica africana existe na msica brasileira, mas dentro de um agrupamento de pulsaes

    a que os europeus chamam de compasso, referente pulsao mtrica.

    Segundo Sandroni, no Brasil, o tresillo figura em inmeras partituras, pelo menosdesde 1856, quando aparece na introduo do lundu Beijos de Frade, de Henrique Alves

    de Mesquita. O tresillo tambm consta como um padro rtmico de acompanhamento em

    8 Imparidade rtmica um fenmeno recorrente na msica africana, no qual, embora o ciclo de pulsaes seja

    um nmero par e, portanto divisvel em duas partes, a articulao dos tempos fortes e fracos no obedece a

    essa simetria, dividindo o ciclo em partes assimtricas, como o caso do tresillo: 3+3+2 (Simha Arom apud

    Sandroni 2001: 24 e 25).

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    msicas de Nazareth e de compositores eruditos nacionalistas, dentre outros. No que se

    refere msica impressa brasileira do sculo XIX e incio do XX, o tresillo possui algumas

    variantes: a sncope caracterstica , o padro de cavaquinho (e caixeta) nos

    choros: e o ritmo de habanera ou de tango: . Esse conjunto

    de variantes configura o paradigma do tresillo.9

    Se examinarmos o baio de Luiz Gonzaga, por exemplo, luz do paradigma do

    tresillo, veremos que ele est muito mais prximo desse paradigma do que do paradigma do

    Estcio, que Sandroni explica como sendo o paradigma do novo estilo de samba surgido

    nos anos 1930. Alis, no s o baio, mas a maioria dos ritmos que integram o universo do

    forr podem ser assim percebidos. Vemos a mais um aspecto que aproxima o forr dos

    primrdios do choro, e tanto o forr quanto o choro da rtmica de Hermeto Pascoal, como

    veremos em detalhes na segunda parte da pesquisa. A marca contramtrica recorrente na

    quarta pulsao (para usar as palavras de Sandroni) to recorrente na linguagem musical

    de Hermeto que tem uma denominao prpria, chama-se nota pendurada: .

    A sncope outra figura to marcante na msica de Hermeto que chamada de

    garfinho, pela semelhana da figura com um garfo de trs dentes: . O conceito de

    sncope tambm permeia nosso trabalho, seja na apreenso da maioria dos ritmos relativos

    ao choro e ao forr, seja nas caractersticas rtmicas da msica de Hermeto Pascoal.

    Como explica Sandroni, desde o sculo XIX, a sncope aparece como uma marca

    registrada da msica brasileira. Ela aparece tambm como uma caracterstica que define a

    msica popular brasileira nos estudos de Mrio de Andrade, Andrade Muricy e na Carta

    do samba.10 Segundo Sandroni, o carter culturalmente condicionado do conceito de

    sncope foi evidenciado pelos estudos de Kolinski. Originalmente, o conceito de sncope

    refere-se a uma quebra da regularidade, provocando uma contraposio entre ritmo regulare ritmo sincopado, mas no Brasil, por exemplo, o irregular justamente o mais

    caracterstico, o que evidencia o paradoxo e a afirmao de que a sncope no um

    conceito universal da msica (Sandroni 2001: 21).

    9 Para informaes detalhadas sobre o tresillo e suas variantes, ver Sandroni 2001: 19-32.10 Documento redigido ao final do I Congresso Nacional do Samba, em 1962, com o objetivo de preservar as

    caractersticas tradicionais do samba (citado por Sandroni 2001).

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    Alm disso, Sandroni nos lembra que o compasso tambm no um

    conceito universal da msica (Sandroni 2001: 22). No entanto, utilizarei as noes

    de compasso e de sncope (ou melhor, garfinho) nesse estudo, uma vez que

    Hermeto as utiliza em sua concepo musical e so noes correntes no Brasil,

    utilizadas por msicos das mais variadas vertentes.

    O compasso seria o ponto de convergncia, para onde ritmo, melodia e harmonia se

    direcionam. As danas de origem europia, como a polca, baseiam-se em ciclos repetidos,

    que organizam tempos fortes e fracos, ou seja, seus passos coincidem com a pulsao

    mtrica, o compasso. No entanto, quando as articulaes e acentos variam, deslocando-se

    dos tempos comtricos, como no maxixe, evidencia-se a pulsao mnima, o que acontece que outras partes do corpo tambm vo se movimentar, como a cintura, as ancas,

    provocando os requebrados das danas brasileiras.

    A partir dessas constataes, quase irresistvel apontar a evidncia de que a

    contrametricidade da rtmica africana continuou a existir na rtmica brasileira dentro dos

    limites impostos pela cultura musical europia, ou seja, o compasso. E esse mais um dos

    limites com os quais Hermeto vai brincar, como veremos na segunda parte da pesquisa.

    O paradigma do tresillo cria novos pontos de vista (ou de escuta) sobre os ritmos

    brasileiros e suas transformaes. Tomando-o como referncia, procurarei, num primeiro

    momento, entender os ritmos brasileiros que perpassam a histria do choro e do forr a

    partir das notaes propostas pelos msicos consultados, que vivem e desenvolvem essas

    tradies. So eles Mrcio Bahia, Nen, Zezinho Pitoco, Eder o Rocha, no universo do

    forr, e Maurcio Carrilho, no domnio da linguagem do choro. Cada um deles ser

    oportunamente apresentado. Num segundo momento, meu objetivo nas anlises rtmicas

    ser justamente compreender a coexistncia dos agrupamentos mtricos e ritmos brasileiros

    na msica de Hermeto.

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    3. Forr Brasil11

    3.1. Luiz Gonzaga: do choro ao baio

    A relao de Luiz Gonzaga com os gneros originrios do choro no se resume

    sua infncia nordestina, assim como a relao do choro com o forr tambm vai ser

    reformulada em outro contexto: os regionais de rdio. No incio dos anos 1940, j no Rio

    de Janeiro, poca em que era sanfoneiro contratado da Rdio Tamoio e da Gravadora

    Victor, mas tentava a sorte como cantor, evidencia-se a experincia de Gonzaga no choro:

    Gonzaga fora contratado como sanfoneiro e sanfoneiro seguiria sendo, gravando seus

    discos solos, e acompanhando os colegas da Victor: Carmem Costa, Bob Nelson [...],

    Maril, Ademilde Fonseca... pois ningum melhor que o homem que colocou a sanfona no

    choro, gnero predominante no seu repertrio ento, podia acompanhar a mulher que

    inventou o choro cantado. Tambm acompanhava Benedito Lacerda e seu regional, cujo

    guitarrista, um certo Dino (futuramente Sete Cordas), divertindo-se com aquela cara

    redonda de sertanejo, o apelidou de Lua. (Dreyfus 1997: 98)

    exagerado dizer que Gonzaga foi o homem que colocou a sanfona no choro,

    assim como exagero dizer que ele inventou o baio. Talvez ele tenha inventado aquele

    baio que passou a ser divulgado nas rdios. Em 1953, Jackson do Pandeiro j questiona a

    paternidade do baio, ao gravar a msica ta Baio, de Maral Arajo, que sugere uma

    explicao de onde viria o termo: Como bonito ver no alto do serto/ Os violeiro

    rasqueando/ A queimar com o bordo/ Os cabra fazem o desafio/ Rima sem perder o fio/ E

    assim nasce o baio (citado por Moura e Vicente 2001: 168). Ainda sobre a origem do

    termo, o que Jackson do Pandeiro cantava no era apenas uma provocao, como explica

    Dominique Dreyfus:

    O termo baio, sinnimo de rojo, j existia, designando na linguagem dos repentistas

    nordestinos, o pequeno trecho musical tocado pela viola, que permite ao violeiro testar a

    11 Forr Brasil o nome de uma msica de Hermeto, gravada no discoHermeto Pascoal ao vivo em

    Montreux.

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    afinao do instrumento e esperar a inspirao, assim como introduz o verso do cantador ou

    pontua o final de cada estrofe. No repente ou no desafio, cuja forma de cantar recitativa e

    monocrdia, o baio a nica seqncia rtmica e meldica. (Dreyfus 1997: 110)

    Baio seria o ttulo do primeiro sucesso da dupla Luiz Gonzaga e Humberto

    Teixeira em 1946 e, a partir de ento, o manifesto de um novo ritmo. De sanfoneiro

    contratado, tocando em regionais, Gonzaga passa a gravar e fazer apresentaes em rdio

    acompanhado pelos conjuntos regionais.12 Segundo Dreyfus, tais conjuntos pandeiro,

    bandolim, violo, cavaquinho imprimiam ao baio de Luiz Gonzaga um jeitinho de

    choro estilizado (Dreyfus 1997: 150), mas no h como negar que foi a partir da que ele

    tomou forma, ou seja, o baio de Luiz Gonzaga nasceu dos regionais de choro.

    Mais uma vez, o fole da sanfona realiza a aproximao entre o forr e o choro,

    como aconteceu com Hermeto, lembrando que o prprio Gonzaga se divertia dizendo,

    com toda razo, que acordeom e sanfona eram o mesmo instrumento, mas, quando o artista

    tocava msica de salo, era acordeonista e, quando era mais popular, tornava-se

    sanfoneiro (Dreyfus 1997: 79). Trocando em midos: quando tocava choro era

    acordeonista e quando tocava forr era sanfoneiro? Ento choro e forr tambm seriam a

    mesma msica? Com diferentes sotaques que aos poucos foram definindo os gneros e osregionalizando?

    De fato, o Xote das Meninas tocado por Luiz Gonzaga difere em muito dos

    schottischs compostos por Irineu de Almeida, o professor de Pixinguinha, pelo menos

    cinqenta anos antes. A msica das quadrilhas das atuais festas de So Joo tambm quase

    no guarda vestgios das quadrilhas compostas por Callado em fins do sculo XIX.

    Nessa poca, Alexandre Gonalves Pinto retrata um choro chamado Pedro da

    Harmnica que, pela descrio, parecia tocar mesmo acordeom: Pedro sabia tirar partido

    de sua harmnica, solando e acompanhando com facilidade msicas difceis (Gonalves

    Pinto 1936: 130). Apesar de harmnica ser um sinnimo tanto para gaita de boca como para

    12 Particularmente na Nacional, suas msicas ganham arranjos de Radams Gnatalli. Falaremos dos conjuntos

    regionais no captulo 5. No que diz respeito valorizao do acordeom nesse contexto, Chiquinho do

    Acordeom se destacou no regional de Claudionor Cruz e no Trio Surdina, ao lado de Garoto (violo) e Faf

    Lemos (violino). Chiquinho integrou tambm o Sexteto Radams Gnatalli, tendo sido o acordeonista

    preferido do maestro, a quem Radams dedicou algumas peas de concerto.

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    sanfona ou acordeom, o fato do msico atuar tambm como acompanhador sugere que ele

    tocava um instrumento harmnico, ou seja, a sanfona ou acordeom.

    Mrio de Andrade, em 1928, nos lembra que A sanfona que est influindo bem na

    meldica da zona mineira, acompanhada por tringulo nos fus13 de Pernambuco

    (Andrade 1928: 23), um primeiro indcio do conjunto tpico nordestino que Luiz Gonzaga

    viria a divulgar por todo o Brasil, como ele mesmo explica:

    Eu, no incio da minha carreira, tocava sozinho... porque no sabia tocar, s sabia imitar os

    tocadores de valsas, de tangos. S depois que eu precisei de uma banda. Foi quando me

    lembrei das bandas de pife que tocavam nas igrejas, na novena l do Araripe e que tinham

    zabumba e s vezes tambm um tringulo. Quando no havia tringulo pra fazer o agudo, opessoal tanto podia bater num ferrinho qualquer. Primeiro eu botei a zabumba me

    acompanhando. Mais tarde, numa feira no Recife, eu vi um menino que vendia biscoitinho,

    e o prego dele era tocando tringulo. Eu gostei, achei que daria um contraste bom com o

    zabumba, que era grave. Havia os pfanos, que tm o som agudo, mas eu no quis utiliz-

    los porque a sanfona, com aquele sonzo dela, ia cobrir os pfanos todinhos. [...] Agora, o

    que eu criei, foi a diviso do tringulo, como ele tocado no baio. Isso a no era

    conhecido. (Gonzaga apud Dreyfus 1997:151, 152)

    Assim como Hermeto, Gonzaga tambm destaca a influncia dos pfanos em sua

    formao musical. As bandas de pife aparecem aqui na origem do trio de forr que se

    generalizou com a msica de Luiz Gonzaga. Mais uma vez essas formaes instrumentais

    esto de tal forma relacionadas que no h como estanc-las em gneros musicais e

    histrias distintas. Mas, como vimos, os regionais de choro tambm participaram dessa

    histria que, por enquanto, apresenta dois msicos nordestinos como protagonistas:

    Hermeto Pascoal e Luiz Gonzaga, cada qual em sua poca com sua respectiva trajetria,

    mas ambos abraados s suas sanfonas.

    13 Festa ou brincadeira.

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    3.2. Forr no s aquilo

    Mrcio Bahia, baterista que toca no grupo de Hermeto, entende que o forr no

    um ritmo especfico, mas o lugar onde se toca o baio, o xote, o xaxado (Bahia 2005).

    Hermeto j mais ousado: quando eu digo s de forr, tem frevo, tem maracatu, fiz pra

    mostrar que forr no s aquilo, que forr abrange vrias tendncias musicais (Pascoal

    1999).

    Ao dizer forr no s aquilo Hermeto talvez esteja se referindo ao conceito de

    forr que generalizou-se com a migrao de nordestinos para RJ, SP e Braslia na segunda

    metade dos anos 1950. Segundo Tinhoro, houve ento um processo de fuso de prticasregionais diversas, o que explicava o aparecimento de novos ritmos nordestinos e novas

    casas de dana chamadas forrs. Como conseqncia desse movimento, houve a criao de

    um mercado (e um pblico) para um novo gnero de msica urbana o baio do

    pernambucano Lus Gonzaga e do cearense Humberto Teixeira, lanado na segunda metade

    da dcada de 1940 - e o surgimento de pequenas gravadoras interessadas no lanamento de

    ritmos como o xaxado, o coco, o xote, a polca e a mazurca (Tinhoro 1976: 187).

    Tais produes musicais alcanaram o pblico primeiramente atravs de alto-falantes pblicos, nos circos ou nas praas e, em seguida, em locais apropriados para ouvir

    msica e danar: os forrs, chamados pelos cariocas de gafieiras de nordestinos. Nesses

    forrs, trabalhadores vindos dos mais diferentes estados do nordeste reencontravam-se com

    sua cultura regional, ao som do trio (j clssico): sanfona, tringulo e zabumba (Tinhoro

    1976).

    Atualmente, forr parece ser um gnero aberto, como defende Hermeto, incluindo

    todos o gneros que em determinada poca esto sendo danados nos forrs (aqui

    entendidos como bailes), geralmente tocados pelos trios de forr, mas que hoje apresentam

    inmeras outras formaes. No entanto, alguns ritmos j esto to associados ao contexto

    nordestino que passaram a ser chamados de forr independente de onde e por qual

    formao so tocados. o caso daqueles consagrados por Luiz Gonzaga: o baio, o xote, o

    arrasta-p, o xaxado, dentre outros, e o caso tambm de ritmos de folguedos e

    brincadeiras populares nordestinas como o coco, o frevo e at o maracatu. Alm disso, as

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    diferentes tcnicas instrumentais e as diferentes formaes tambm vo imprimindo

    diferenas aos gneros. Mas a acentuao rtmica no deixa dvidas.

    3.3. O zabumba do forr

    Para falar dos ritmos do forr, falaremos primeiramente de um instrumento o

    zabumba que faz a ponte entre os trios de forr e as bandas de pfano, como mencionado

    por Luiz Gonzaga e como veremos tambm no captulo 6.

    Eder o Rocha, percussionista que sistematizou vrios ritmos tocados pelo

    zabumba,

    14

    explica que o zabumba um tambor grave de bojo largo, tocado em frente aocorpo, na diagonal, de forma que a mo dominante toque a pele mais grossa, de som grave,

    e a outra mo toque a pele de baixo, mais fina e de som agudo. Em geral utiliza-se uma

    baqueta de ponta grossa e macia na mo dominante e um bacalhau ou vareta na outra mo.

    No caso das bandas de pfano, o zabumbeiro pode tambm no utilizar o bacalhau,

    percutindo e abafando a pele de baixo com a prpria mo, como o caso da Banda Dois

    Irmos, de Caruaru. A partir de Luiz Gonzaga, esse tambor passou a ser conhecido

    principalmente como o zabumba do forr.

    De acordo com Rocha, embora o zabumba do forr ou zabumba do nordeste seja o

    mais conhecido, h tambm o zabumba do maracatu nao de baque virado (tambm

    chamado de bombo ou alfaia), de Recife; do maracatu de Fortaleza; e do boi de zabumba

    do Maranho, dentre outros. Em todos esses casos, o que define o zabumba a funo que

    ele desempenha, ou seja, sempre o grave dentro de determinada tessitura.

    Segundo Rocha, esse tambor teria duas origens: o tambor grave das bandas militares

    e o omel, um instrumento grave que seria o ancestral do zabumba no Nordeste, tocado

    freqentemente com a sanfona p-de-bode (oito-baixos). Assim como esta uma versomais simples e menos sonora do acordeom, o omel seria o correspondente do zabumba.

    14 Eder o Rocha participou do grupo Mestre Ambrsio, onde ele desenvolveu umsetde percusso a que deu

    o nome de zabumbateria. Usarei seu nome na grafia que ele adota em seu mtodoZabumba moderno (s.d.),

    ou seja, Eder o Rocha. Participei de seu workshop em dezembro de 2005 na Escola de Msica da UFMG,

    onde tive acesso a algumas das informaes aqui registradas.

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    Concordando com a definio de forr proposta por Mrcio Bahia, Rocha acredita

    que forr a festa onde tem coco, ciranda, xaxado, xote, etc. Os ritmos e gneros musicais

    vo se multiplicando, assim como nossa concepo mltipla de forr como um gnero

    aberto que abarca tantos outros...

    preciso ento conhecer isoladamente cada um dos ritmos que integram a

    concepo atual e abrangente de forr, defendida por Hermeto. O maracatu e o frevo

    integram a concepo de forr citada, pois podem muito bem ser tocados (e de fato o so)

    nos forrs pelos trios de sanfona, zabumba e tringulo. Quanto aos ritmos e gneros que

    vimos perpassar tanto a histria do choro, quanto a histria do forr e das bandas de

    pfanos, enfatizaremos aqui aqueles que permaneceram como tpicos do forr, conforme aabordagem atual que me propus adotar.

    Os ritmos do zabumba que se seguem so transcritos conforme a notao de

    zabumba proposta por Rocha, no livroZabumba moderno. Apresento as verses de Rocha e

    Pitoco15 para os ritmos destacados. Para compreender os ritmos, tal qual so tocados no

    zabumba, preciso seguir a legenda. A membrana superior a que tem a pele mais grossa e

    tocada com uma baqueta grossa e macia, produzindo um som grave que pode ser aberto

    (solto) ou fechado (abafado). A membrana inferior, mais fina, tocada com uma vareta ou

    bacalhau, produzindo um som agudo que tambm pode ser aberto (solto) ou fechado

    (abafado).

    15 Zezinho Pitoco percussionista, saxofonista e clarinetista, toca na Orquestra Popular de Cmara e no grupo

    de Antnio Nbrega, dentre outros. Tive aulas de percusso com ele durante o Encontro com a Dana e a

    Msica brasileiras no Teatro-Escola Brincante, em So Paulo, ano de 1998.

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    a) Baio

    Tambm chamado de baiano, segundo Oneyda Alvarenga, era uma dana de pares

    solistas, com palmas, sapateados, umbigada, estalos de dedos ou eventualmente

    castanholas. Oneyda compara o lundu e o baiano, alegando que o lundu seria a origem do

    baiano que, por ser praticado na Bahia, passou a ter esse nome. Suas caractersticas

    musicais seriam as melodias sincopadas, os refres semelhantes ao refro dos lundus e de

    outros gneros que revelam no seu corte rtmico que se destinam a danas cheias de

    movimentos de ancas (Alvarenga s.d: 157).

    A partir de 1950, ficou conhecido em todo o Brasil, como o baio de Luiz Gonzaga(chamado de Rei do Baio) e passou a ser o ritmo mais caracterstico do forr. O carter

    modal das melodias, predominantemente em mixoldio, est presente nas toadas dos

    violeiros, na sonoridade caracterstica dos pifes,16 sendo retomado pelo baio de Gonzaga.

    Quanto ao ritmo, o baio apresenta a acentuao do tresillo bem marcada e tem inmeras

    variantes, conforme o andamento e as acentuaes.

    b) Coco

    O coco no tem uma formao instrumental especfica, os instrumentos variam de

    acordo com a regio em que tocado. Muitas vezes utilizam-se os instrumentos de outro

    folguedo ou brincadeira. A dana (o trup, passo caracterstico) e o canto so recorrentes

    em algumas regies, como no Coco de Arco Verde (PE). Rocha distingue entre trs tipos de

    16 O flautista e pifeiro (tocador de pfano) Marcelo Chiaretti, explica que a nota do stimo grau abaixada, do

    modo mixoldio, prpria para ser tocada no pfano e caracteriza sua sonoridade.

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    coco: o desdobrado (mais lento), o dobrado (mais rpido) e o coco-cano. Apresenta

    inmeras variantes rtmicas, tambm dentro do paradigma do tresillo.

    c) Xaxado

    Originalmente, o xaxado era uma dana executada apenas por cabra macho, no

    serto de Pernambuco, sua disseminao por todo o nordeste atribuda ao bando de

    Lampio, nas palavras de Luiz Gonzaga o rifle a dama (EMB 2003). Era dana

    individual, em crculos, o arrastado das sandlias (x-x) caracterizando o nome xaxado.

    Mas, pela voz do prprio Gonzaga, Jackson do Pandeiro e outros compositores, o xaxado

    tambm se incorporou ao universo do forr, transformando-se em xaxado urbano, dana

    de salo com presena feminina, de par enlaado. O ritmo assemelha-se ao do baio, mas

    apresenta andamento um pouco mais rpido e mais variaes rtmicas.

    A seguir, apresento um quadro comparativo das marcaes graves nos ritmos do

    baio, coco, xaxado e variantes:

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    Fo(19Pit

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    Como vimos, o baio, o coco, o xaxado e suas variantes apresentam muitas

    semelhanas rtmicas, todos eles so variaes dentro do paradigma do tresillo, com a

    acentuao da nota pendurada.17 As verses de Mrcio Bahia e Nen referem-se ao

    bumbo da bateria; enquanto Rocha e Pitoco tocam o zabumba. No h um consenso entre

    eles em relao marcao do grave do baio, do coco e do xaxado. Se compararmos as

    marcaes graves de cada um deles, a nica semelhana que se mantm o ritmo bsico, a

    marcao da quarta pulsao mnima (a pendurada), que caracteriza o tresillo. Os

    zabumbeiros apresentaram mais variantes: Pitoco cita o baio-coco e o rojo (segundo ele,

    a juno de samba e baio); Rocha apresenta muitas variantes para o baio, o coco e o

    xaxado em seu livro. No presente estudo, foi necessrio fazer uma seleo. Escolhi asvariantes que apresentavam as marcaes mais simples ou aquelas mais recorrentes, ou

    seja, as marcaes graves que se repetiam na maioria delas.18

    d) Xote

    A schottisch, dana de salo muito difundida em meados do sculo XIX na Europa,

    teve grande aceitao ao chegar ao Brasil, sendo primeiramente adaptada pelos conjuntos

    de choro. Logo se popularizou pelo Brasil rural como xote, tanto no Rio Grande do Sul,

    onde se adaptou gaita, quanto no Nordeste onde era executado no fole (Dreyfus 1997:

    110). Atualmente, o xote tocado nos bailes de forr de todo o Brasil. A dana, a dois,

    cadenciada e sensual, de acordo com a msica, de andamento moderado. Um exemplo bem

    conhecido o Xote das Meninas, de Luiz Gonzaga.

    17 Nota pendurada um exemplo da linguagem musical praticada na Escola Jabour, como veremos no

    captulo 11.18 Para notaes detalhadas dos ritmos no zabumba e suas variantes, ver Rocha (s.d.). Para as adaptaes dos

    ritmos do forr para a bateria ver Nen (1999).

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    e) Maracatu

    Qual maracatu? Ao falar maracatu, Hermeto se refere ao maracatu nao, ou

    maracatu de baque virado, pois ele viveu em Recife e teve contato com esse ritmo tanto nas

    ruas, durante o carnaval, quanto na rdio onde trabalhava, como veremos no captulo 5.19

    O maracatu de baque virado um cortejo real cuja origem remonta s festas de

    coroao de reis negros, durante a instituio do Rei do Congo no Brasil, que data de 1662,

    segundo Guerra-Peixe (1980). Nessas ocasies, diversos grupos ou naes concorriam para

    celebrar o rei eleito. Se a instituio desapareceu em meados do sculo XIX, em Recife

    permaneceu o auto dos Congos, dramatizao da antiga coroao. Mas a parte teatral foi

    sendo suprimida e o cortejo com as personagens derivou para o maracatu, um folguedo com

    msica e dana.

    No cortejo, uma corte formada: rei, rainha, dama do passo, calunga, catirinas,brincantes. O baque vai atrs, com suas alfaias, bombos ou zabumbas, xequers,20 caixa ou

    tarol, gongu e ganzs.21 Quem no dana, no toca, quem no toca, no canta, quem no

    canta, no brinca... Os movimentos da dana sugerem os movimentos do toque das alfaias.

    A polirritmia entre percusso e canto predomina, mas no h que se falar em dificuldades

    tcnicas. As habilidades se integram na brincadeira de rua.

    Baque o nome dado tanto para a orquestra de percusso quanto para os diferentes

    padres rtmicos executados, que so inmeros, dependendo da loa ou toada cantada e do

    19 Alm desse, existem pelo menos dois outros tipos de maracatu, o maracatu de baque solto ou maracatu

    rural e o maracatu de Fortaleza (ver Rocha s.d.).20 Xequer um chocalho externo feito com uma cabaa envolta numa rede de malhas grandes em cujas

    intersees e, eventualmente, em todo o fio da malha, so colocadas sementes (Frungillo 2003: 389).21 Gongu o nome da campnula de metal cnica, simples ou dupla, com cabo, tocada com baqueta de

    metal ou madeira (Frungillo 2003: 141); o ganz ou mineiro utilizado em alguns maracatus um chocalho

    cilndrico feito de metal.

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    grupo que a executa. Os padres destacados por Rocha referem-se sobretudo sua vivncia

    no grupo de maracatu Estrela Brilhante, dirigido por Walter Frana, no Alto Z do Pinho,

    em Recife, adaptados nesta notao para o zabumba do forr.

    A variante de gongu que se popularizou no sudeste do Brasil, em composies earranjos de maracatu na msica de Guerra-Peixe, Hermeto Pascoal, dentre vrios outros

    compositores, uma das variantes do gongu recolhidas pelo prprio Guerra-Peixe.

    Curiosamente, esta variante foi mais difundida do que o padro utilizado pelos

    grupos tradicionais Estrela Brilhante e Leo Coroado, por exemplo.

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    Uma das explicaes possveis para este fato seria o aprendizado do maracatu por

    msicos e compositores atravs de fontes secundrias, no caso o trabalho de Guerra-Peixe,

    que era a principal referncia e, durante os anos 1970, teria sido mais difundido no sudeste

    do Brasil do que a prpria msica dos maracatus tradicionais.

    f) Frevo

    O frevo uma marcha acelerada, originada da fervura das marchas militares

    misturadas ao ritmo da capoeira. Segundo Tinhoro (1975: 137, 138), essa mistura teria se

    dado nos desafios entre bandas rivais, nos quais figuravam grupos de capoeiras abrindocaminho e passando rasteiras. No auge do desafio, as marchas se aceleravam, juntamente

    aos passos, dando origem dana e msica que conhecemos hoje. Msica alegre, animada,

    de andamento rpido, prprio para os passos, rodopios e pulos virtuossticos dos

    danarinos-equilibristas, com a tradicional sombrinha colorida.

    Rocha (s.d.) distingue entre o frevo de rua, o frevo de bloco e o frevo-cano. As

    orquestras de frevo atuais guardam resqucios de sua origem. Principalmente as orquestras

    de frevo de rua, compostas pelos metais (naipe de trompete, trombone, saxofone e tuba)

    lado a lado caixa-clara, ao pandeiro e ao surdo. Os frevos de rua so os frevos

    instrumentais. As orquestras de frevo de bloco substituem os metais pelas madeiras (flauta,

    clarineta e sax), e acrescentam o naipe de cordas dedilhadas (violo, cavaquinho, banjo e

    bandolim) e s vezes tambm um ou dois instrumentos de cordas friccionadas (violino e

    viola), essas orquestras podem tambm ser chamadas orquestras de cordas dedilhadas. As

    canes so entoadas por vrias vozes, formando um coro. So os chamados frevos-cano.

    Nas orquestras de clubes, os frevos-cano so interpretados por cantores, em coro ou solo,

    e, alm dos instrumentos tradicionais de sopro e percusso, so acrescentados instrumentos

    eltricos (guitarra, baixo e teclado).

    Atualmente, os trios de forr tambm tocam frevo, sua maneira. O zabumba se

    desdobra entre o ritmo da caixa (no bacalhau) e do surdo (na pele grave), enquanto um

    tringulo faz a clula rtmica caracterstica da marcha: .

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    g) Arrasta-p

    Rocha chama esse ritmo de marcha junina ou marcha de quadrilha, presente na

    prpria quadrilha, manifestao originada dos bailes franceses, que aqui anima as festas de

    So Joo, como veremos a seguir.

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    4. Anarri

    4.1. O baile que era choro que hoje forr...

    Anarri vem de en arrire (para trs em francs) e remete s quadrilhas das

    festas de So Joo que atualmente acontecem por todo o Brasil no ms de junho. Mas se

    voltamos ainda mais para trs, descobrimos que quadrilha era tambm uma dana

    animada pelos choros no Rio de Janeiro, ainda no sculo XIX. E no s no Rio de Janeiro.

    Segundo Mrio de Andrade, a quadrilha fez furor no Recife por 1840 desbancando tudoquanto era dana do tempo (Andrade 1999: 414).

    A quadrilha torna-se portanto mais um elo de ligao entre o choro e o forr que

    conhecemos hoje. Apesar de atualmente ela estar mais associada ao forr, tanto ela

    pertence ao universo do choro que quem vai explicar como ela acontecia Alexandre

    Gonalves Pinto, o saudoso choro:

    A quadrilha era uma dana figurada com cadncia de seis por oito e dois por quatro no

    compasso. [...] Esse estilo de dana traz saudades das marcaes: Travess!, Balanc!,

    Tour!, Anavancatre!, Marcantes anavan!, Caminhos da roa!, Volta gente que est

    chovendo! [...] Para ser marcante era preciso conhecer todas as evolues da quadrilha, e

    estar muito atento ao desenrolar da msica. (Gonalves Pinto 1936: 112, 113)

    Como bom observador, Alexandre no s descreve momentos engraados das

    quadrilhas que freqentava, como tambm aponta diferenas entre as quadrilhas danadas

    nos sales dos bairros de Botafogo e Tijuca (os ricos) e aque era desengonada na Cidade

    Nova e Jacarepagu (Gonalves Pinto 1936: 113), a roda do povo:

    Os ricos [...] observavam rigorosamente a pronncia francesa e a orquestra s parava

    quando o marcante dava o sinal. Na roda do povo [...] a marcao era gozada porque

    sendo feita num francs-macarrnico, tinha uns enxertos, conforme a festividade do

    marcante. (Gonalves Pinto 1936: 113)

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    Ele d um exemplo dessas invenes das quadrilhas do povo:

    No caminho da roa, por exemplo, davam-se passagens de rir a bom rir, porque muitasvezes, percorria-se toda a casa, saindo pela cozinha para entrar novamente pela sala de

    visitas. A o marcante bradava: - Aos seus lugares! Era a hora do fuzu... (Gonalves Pinto

    1936: 114)

    Se lembrarmos da famosa disposio da casa da Tia Ciata22 e dos ritmos que

    aconteciam em cada cmodo, podemos imaginar uma quadrilha que vai da sala de jantar

    cozinha e de volta sala de jantar, passando pelo choro, pelo samba, pelo batuque,

    terminando em fuzu, ou quem sabe em forr. Apesar de ser apenas uma suposio, nodeixa de simbolizar bem o caminho da quadrilha de dana de salo a dana do povo, ou dos

    bailes animados pelos choros ao bailes chamados forrs.

    Mrio de Andrade fala do abrasileiramento da quadrilha, sugerindo ainda o caminho

    do salo para o terreiro ao ar livre: Dana de salo, aos pares, de origem francesa, e que

    no Brasil passou a ser danada tambm ao ar livre, nas festas do ms de junho em Louvor a

    So Joo, Santo Antnio e So Pedro (Andrade 1999: 414).

    Sobre a religiosidade dessa e de outras festas falaremos a seguir. Agora precisoatentar para a msica das quadrilhas. Nada melhor do que as engraadas descries de

    Alexandre Gonalves Pinto, ao falar dos desencontros entre o marcante e o mestre do

    choro, um dos msicos que atuava tambm como regente dos conjuntos:

    Sucedia muitas vezes que o marcante se entusiasmava e se esquecia de dar sinal para acabar

    uma parte, o choro parava deixando em meio uma evoluo. Era motivo para gargalhadas

    gerais... [...] Sucedia ainda que o mestre do choro, por malhas ou por tralhas, no gostasse

    do marcante: antipatia, inimizade pessoal, dor de cotovelo e ento sujeitava-o s maisdesconcertantes borracheiras em pleno salo. Onde isto no sucedia era nos bailes de

    harmnica; porque o tocador s parava quando o marcante dizia: - Pra mano veio!... (

    Gonalves Pinto 1936: 114)

    Enquanto as quadrilhas dos sales mais abastados eram animadas por orquestras,

    (como se v na pgina anterior), as quadrilhas do povo eram animadas pelos choros, mas

    22 Sobre a disposio da casa da Tia Ciata, ver Moura (1983) e Sandroni (2001: 100, 117).

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    em alguns bailes figurava a harmnica ou sanfona, que sozinha animava o salo, tornando

    mais direta a relao do msico com o marcante. Mrio de Andrade, j em sua poca,

    atesta: o acompanhamento tradicional das quadrilhas a sanfona (Andrade 1999: 414).

    Mas a quadrilha de que estamos falando tambm um gnero musical pertencente

    ao universo do choro. Em geral, formada por cinco partes: a primeira e a terceira parte so

    em 6/8 (seis por oito) e as outras trs (segunda, quarta e quinta) em 2/4 (dois por quatro).

    Inmeros chores compuseram quadrilhas, como Joaquim Callado, Henrique Alves de

    Mesquita e o inesquecvel Barata, o sempre lembrado Silveira, o saudoso Metra, o

    inolvidvel Anacleto (Gonalves Pinto 1936: 112).

    Cmara Cascudo diz: no Brasil, em todo lugar se danou a quadrilha, em cincopartes, com introduo vibrante, movimentos vivos em 6/8 e 2/4, terminando sempre em

    um galope (Cmara Cascudo 2001: 548). Mas as quadrilhas de que fala Alexandre

    terminavam com uma polca, aps a agitao da quinta parte, como uma espcie de prmio

    de consolao aos pares de namorados: uma polca bem chorosa, bem macia, bem

    cadenciada e que compensava perfeitamente os esforos empregados na quadrilha

    (Gonalves Pinto 1936: 114).

    Atualmente, o gnero musical denominado quadrilha, pertencente ao universo do

    choro, praticamente desconhecido.

    A quadrilha caiu em completo desuso entre os chores a partir da terceira dcada do sculo

    XX, tendo sido o nico gnero ligado ao choro cuja tradio oral desapareceu

    completamente. A partir da dcada de 1990, graas ao violonista Maurcio Carrilho, a

    quadrilha foi recriada, assumindo um carter mais camerstico, com um andamento mais

    lento, que possibilita salientar as belas melodias e o carter lrico das antigas quadrilhas.

    (Paes e Arago 2005: 19)

    Apesar desse ressurgimento da quadrilha enquanto gnero e forma musical, o nome

    quadrilha, em nossa poca, ainda predominantemente associado dana e ao gnero

    musical chamado marcha de quadrilha, tocado nas festas de So Joo por todo o Brasil,

    pertencente ao universo do forr e no do choro, como explicado no livroZabumba

    moderno: marchas juninas: tambm chamadas de arrasta-p, marcha de quadrilha ou

    marchinhas sertanejas [...]. Essa msica faz parte do contexto das quadrilhas

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    manifestaes derivadas dos grandes bailes franceses -, que representam um bem humorado

    baile de casamento (Rocha s.d: 30).

    Nesse contexto, arrasta-p sinnimo para marcha de quadrilha, tocado pelos trios

    de forr. Como vimos, arrasta-p j foi o nome dos bailes animados pelos choros e

    quadrilha uma das danas que l aconteciam. Tinhoro aponta o sucesso do maxixe, em fins

    do sculo XIX, como uma das possveis causas para o desaparecimento das quadrilhas nos

    sales, quando estas transformaram-se em dana pitoresca, exclusiva das festas de So

    Jo