Herói?

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HISTÓRIA. Como se constrói um mito? Qual a gênese das figuras capazes de catalisar o que se compreende por ‘identidade nacional’? Num país onde o culto aos personagens da história quase sempre é associado a um passado glorioso, obras que ousam olhar para trás a partir de um outro ponto de vista são muito bem- vindas. Detendo-se sobre estas e outras questões, no livro Três Vezes Zumbi os historiadores Jean Marcel Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira elaboram um painel cronológico dos mais interessantes acerca das diferentes abordagens dispensadas à trajetória do líder negro do maior quilombo de fugitivos da América Latina. Em entrevista à Gazeta, Jean Marcel, que é professor do Departamento de História da Unesp, falou sobre os processos de revisão histórica aos quais esse personagem particular da nossa memória já foi submetido. Vale a pena conferir RAMIRO RIBEIRO REPÓRTER Se a história muda, seus personagens também podem mudar. Os aconte- cimentos do passado sem- pre serão vistos aos olhos do presente, sujeitos que estão ao tempo e às ações do homem. O que antes era relativizado hoje pode ser enaltecido. Detalhes até então ‘esquecidos’ podem ressurgir como grandes feitos. E assim se constrói a imagem dos epi- sódios históricos que (re)fazem os caminhos de uma nação. A história do Brasil po- de ser contada por meio da extensa galeria de figu- ras que suscitam paixão e ódio, mobilizando tanto entusiastas quanto detra- tores. Tiradentes, D. Pedro I, Lampião, Antônio Con- selheiro, Padre Cícero. To- dos esses personagens fo- ram objeto de revisões his- tóricas em algum momen- to, todas elas resultantes do contexto político e soci- al no qual foram ‘elabora- das’. Com o líder do maior quilombo das Américas não foi diferente. Ao longo dos séculos, a imagem de Zumbi se transformou um sem número de vezes: re- tratado como ameaça no Serviço Título: Três Vezes Zumbi – A Construção de um Herói Brasileiro Autor(es): Jean Marcel Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira Editora: Três Estrelas Preço: R$ 25 (168 págs.) HERÓI? Os autores Jean Marcel Carvalho França é professor do Departamento de Histó- ria da Universidade Es- tadual Paulista Julio de Mesquita Filho (Unesp) na cidade de Franca. Além do regime escra- vocrata no Brasil colo- nial, tem como objetos de pesquisa a história das navegações e das literaturas de viagem. É autor, entre outros tí- tulos, de A Construção do Brasil na Literatu- ra de Viagem dos Sé- culos XVI, XVII e XVIII (José Olympio, 2012), Andanças pelo Brasil Colonial (Unesp, 2009), Mulheres Viajantes no Brasil – 1764-1820 (José Olympio, 2008) e Imagens do Negro na Literatura Brasileira (Brasiliense, 1998) Ricardo Alexandre Ferreira leciona na Universidade Estadual do Centro-Oeste (Uni- centro-PR), na área de História do Brasil. Con- centrou seus trabalhos acadêmicos sobre es- cravidão e criminalida- de no interior paulista, tema do livro Senhores de Poucos Escravos (Unesp, 2005) período colonial, hoje ele desfruta do status de herói revolucionário e mesmo de símbolo pop. Em Alagoas, Zumbi dá nome a aeroporto, praças e estabelecimentos comer- ciais de toda sorte. Até mesmo um time de fute- bol já pegou sua alcunha emprestada – o Zumbi Es- porte Clube, criado na dé- cada de 1950 no municí- pio de União dos Palma- res. Em São Paulo, virou designação de faculdade. O dia 20 de novembro, da- ta de sua morte, é feriado celebrado em mais de 200 cidades brasileiras. Tama- nha reverência mostra co- mo uma figura histórica pode ganhar força, agi- gantar-se. Tudo depende do lugar de onde se olha. O curioso processo de ‘canonização’ pelo qual o líder quilombola passou é o tema central de Três Ve- zes Zumbi , livro dos pro- fessores Jean Marcel Car- valho França e Ricardo Alexandre Ferreira que acaba de chegar às prate- leiras. Lançada pelo selo Três Estrelas, a obra inves- tiga as construções históri- cas que tiveram sua traje- tória como base. No título, a referência clara à multi- plicidade do personagem: de empecilho ao projeto colonialista europeu nos séculos 17 e 18 e coadju- vante na construção de uma identidade nacional no século 19 a símbolo re- volucionário das minorias e movimentos sociais no século 21. Mais do que trazer à luz dados biográfi- cos (de difícil confirma- ção) sobre a vida do ho- mem, os historiadores de- têm-se na história da “construção da verdade” em torno de um aconteci- mento do passado. REVISÃO Encampado por alguns estudiosos, o esforço para promover uma espécie de revisão da figura de Zum- bi é referendada inclusive pelo Estado. Os livros di- dáticos recentes, por exemplo, tomam como ba- se o que foi proposto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ministério da Educação (PCN/MEC, 1997), os quais foram ba- seados em obras acadêmi- cas contemporâneas que iniciaram o processo de in- vestigação da relação en- tre as construções do mito e a memória coletiva – is- so sem deixar de observar possíveis usos políticos, vale ressaltar. “Poderíamos dizer que as construções de Zumbi e de Palmares são indícios bastante relevantes do modo como a sociedade brasileira lidou com o sempre maciço contingen- te de negros que a com- põe. Não se trata de uma relação simples de causa e efeito, ou melhor, de uma relação especular – as construções de Zumbi re- fletiriam a sociedade do seu tempo. Digamos que ambas construíram-se ao mesmo tempo”, anota Je- an Marcel ao falar das ‘metamorfoses’ do líder, hoje símbolo maior da luta pela igualdade racial. Aspectos evidentes des- sa ‘construção’ são a ênfa- se cada vez maior ao 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, e o es- vaziamento do 13 de maio, data da abolição da escravatura promovida pe- la Princesa Isabel. Para o historiador, essas circuns- tâncias estão relacionadas e refletem o mesmo movi- mento de revisão da histó- ria por uma outra parcela da sociedade brasileira. De teor provocativo, o ensaio histórico tem po- tencial para, digamos, in- flamar torcidas no ambi- ente acadêmico. Em entre- vista por e-mail à Gazeta, Jean Marcel Carvalho França teorizou sobre o meio intelectual e sua ‘consistência delicada’. “Talvez sejamos, como su- gere Machado de Assis, um povo ‘avesso à contro- vérsia’. Talvez, a aversão não seja produto de um traço do ‘caráter nacional’ e provenha mais do espíri- to de proteção derivado da consistência delicada do mundo intelectual bra- sileiro, que sempre supor- tou mal a crítica. Seja co- mo for, somos pouco afei- tos ao debate intelectual e temos o mau hábito de ‘to- má-lo a peito’, como se tratassem de questões pes- soais e emocionais”, afir- ma o autor. ‡ Continua na pág. B2 ÓLEO S/TELA DE ANTÔNIO PARREIRAS/REPRODUÇÃO Nas páginas de Três Vezes Zumbi, a metamorfose de um mito: de pária fugitivo a pioneiro da luta pela liberdade e herói da raça negra e das classes oprimidas Domingo 20/05/2012 Primeiro volume da trilogia sobre Getúlio Vargas sai pela Companhia das Letras. B10 REPRODUÇÃO

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Análise sobre as diferentes construções da figura de Zumbi na história brasileira

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Page 1: Herói?

HISTÓRIA. Como se constrói um mito? Qual a gênese

das figuras capazes de catalisar o que se compreende

por ‘identidade nacional’? Num país onde o culto aos

personagens da história quase sempre é associado a

um passado glorioso, obras que ousam olhar para trás

a partir de um outro ponto de vista são muito bem-

vindas. Detendo-se sobre estas e outras questões, no livro

Três Vezes Zumbi os historiadores Jean Marcel Carvalho

França e Ricardo Alexandre Ferreira elaboram um painel

cronológico dos mais interessantes acerca das diferentes

abordagens dispensadas à trajetória do líder negro do maior

quilombo de fugitivos da América Latina. Em entrevista à

Gazeta, Jean Marcel, que é professor do Departamento de

História da Unesp, falou sobre os processos de revisão

histórica aos quais esse personagem particular da nossa

memória já foi submetido. Vale a pena conferir

RAMIRO RIBEIRO REPÓRTER

Se a história muda, seus personagens também podem mudar. Os aconte-cimentos do passado sem-pre serão vistos aos olhos do presente, sujeitos que estão ao tempo e às ações do homem. O que antes era relativizado hoje pode ser enaltecido. Detalhes até então ‘esquecidos’ podem ressurgir como grandes feitos. E assim se constrói a imagem dos epi-sódios h is tór icos que (re)fazem os caminhos de uma nação.

A história do Brasil po-de ser contada por meio da extensa galeria de figu-ras que suscitam paixão e ódio, mobilizando tanto entusiastas quanto detra-tores. Tiradentes, D. Pedro I, Lampião, Antônio Con-selheiro, Padre Cícero. To-dos esses personagens fo-ram objeto de revisões his-tóricas em algum momen-to, todas elas resultantes do contexto político e soci-al no qual foram ‘elabora-das’. Com o líder do maior quilombo das Américas não foi diferente. Ao longo dos séculos, a imagem de Zumbi se transformou um sem número de vezes: re-tratado como ameaça no

Serviço Título: Três Vezes Zumbi – A Construção de um Herói BrasileiroAutor(es): Jean Marcel Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira Editora: Três Estrelas Preço: R$ 25 (168 págs.)

HERÓI?

Os autores Jean Marcel Carvalho França é professor do Departamento de Histó-ria da Universidade Es-tadual Paulista Julio de Mesquita Filho (Unesp) na cidade de Franca. Além do regime escra-vocrata no Brasil colo-nial, tem como objetos de pesquisa a história das navegações e das literaturas de viagem. É autor, entre outros tí-tulos, de A Construção do Brasil na Literatu-ra de Viagem dos Sé-culos XVI, XVII e XVIII (José Olympio, 2012), Andanças pelo Brasil Colonial (Unesp, 2009), Mulheres Viajantes no Brasil – 1764-1820 (José Olympio, 2008) e Imagens do Negro na Literatura Brasileira (Brasiliense, 1998)

Ricardo Alexandre Ferreira leciona na Universidade Estadual do Centro-Oeste (Uni-centro-PR), na área de História do Brasil. Con-centrou seus trabalhos acadêmicos sobre es-cravidão e criminalida-de no interior paulista, tema do livro Senhores de Poucos Escravos (Unesp, 2005)

período colonial, hoje ele desfruta do status de herói revolucionário e mesmo de símbolo pop.

Em Alagoas, Zumbi dá nome a aeroporto, praças e estabelecimentos comer-ciais de toda sorte. Até mesmo um time de fute-bol já pegou sua alcunha emprestada – o Zumbi Es-porte Clube, criado na dé-cada de 1950 no municí-pio de União dos Palma-res. Em São Paulo, virou designação de faculdade. O dia 20 de novembro, da-ta de sua morte, é feriado celebrado em mais de 200 cidades brasileiras. Tama-nha reverência mostra co-mo uma figura histórica pode ganhar força, agi-gantar-se. Tudo depende do lugar de onde se olha.

O curioso processo de ‘canonização’ pelo qual o líder quilombola passou é o tema central de Três Ve-zes Zumbi, livro dos pro-fessores Jean Marcel Car-valho França e Ricardo Alexandre Ferreira que acaba de chegar às prate-leiras. Lançada pelo selo Três Estrelas, a obra inves-tiga as construções históri-cas que tiveram sua traje-tória como base. No título, a referência clara à multi-plicidade do personagem: de empecilho ao projeto colonialista europeu nos séculos 17 e 18 e coadju-vante na construção de uma identidade nacional no século 19 a símbolo re-volucionário das minorias e movimentos sociais no século 21. Mais do que trazer à luz dados biográfi-cos (de difícil confirma-ção) sobre a vida do ho-mem, os historiadores de-têm-se na his tór ia da “construção da verdade” em torno de um aconteci-mento do passado.

REVISÃO Encampado por alguns

estudiosos, o esforço para promover uma espécie de revisão da figura de Zum-bi é referendada inclusive pelo Estado. Os livros di-dát icos recentes , por exemplo, tomam como ba-se o que foi proposto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ministério da Educação (PCN/MEC, 1997), os quais foram ba-seados em obras acadêmi-cas contemporâneas que iniciaram o processo de in-vestigação da relação en-tre as construções do mito e a memória coletiva – is-so sem deixar de observar possíveis usos políticos, vale ressaltar.

“Poderíamos dizer que as construções de Zumbi e de Palmares são indícios bastante relevantes do modo como a sociedade brasileira lidou com o sempre maciço contingen-

te de negros que a com-põe. Não se trata de uma relação simples de causa e efeito, ou melhor, de uma relação especular – as construções de Zumbi re-fletiriam a sociedade do seu tempo. Digamos que ambas construíram-se ao mesmo tempo”, anota Je-an Marcel ao falar das ‘metamorfoses’ do líder, hoje símbolo maior da luta pela igualdade racial.

Aspectos evidentes des-sa ‘construção’ são a ênfa-se cada vez maior ao 20 de novembro , D ia da Consciência Negra, e o es-vaz iamento do 13 de maio, data da abolição da escravatura promovida pe-la Princesa Isabel. Para o historiador, essas circuns-tâncias estão relacionadas e refletem o mesmo movi-mento de revisão da histó-ria por uma outra parcela da sociedade brasileira.

De teor provocativo, o ensaio histórico tem po-tencial para, digamos, in-flamar torcidas no ambi-ente acadêmico. Em entre-vista por e-mail à Gazeta, Jean Marcel Carvalho França teorizou sobre o meio intelectual e sua ‘consistência delicada’. “Talvez sejamos, como su-gere Machado de Assis, um povo ‘avesso à contro-vérsia’. Talvez, a aversão não seja produto de um traço do ‘caráter nacional’ e provenha mais do espíri-to de proteção derivado da consistência delicada do mundo intelectual bra-sileiro, que sempre supor-tou mal a crítica. Seja co-mo for, somos pouco afei-tos ao debate intelectual e temos o mau hábito de ‘to-má-lo a peito’, como se tratassem de questões pes-soais e emocionais”, afir-ma o autor. ‡ Continua na pág. B2

ÓLEO S/TELA DE ANTÔNIO PARREIRAS/REPRODUÇÃO

Nas páginas de Três Vezes

Zumbi, a metamorfose

de um mito: de pária fugitivo a

pioneiro da luta pela liberdade

e herói da raça negra e das classes

oprimidas

Domingo 20/05/2012

Primeiro volume da trilogia sobre Getúlio Vargas sai pela Companhia das Letras. B10

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Page 2: Herói?

GAZETA DE ALAGOAS, 20 de maio de 2012, Domingo 2 Caderno BB

Trecho da introdução de Três Vezes Zumbi

A partir da terceira década do século XX, Zumbi ganha aos poucos mais espaço, e sua história, como conta a úl-tima parte desta “biografia”, quase se sobrepõe à do pró-prio quilombo – situação que somente se reverterá nas úl-timas décadas do século XX. O Zumbi dos séculos XX e XXI torna-se, de saída, um herói pioneiro da luta pela liber-dade no Brasil; em seguida, um herói das classes oprimi-das da colônia; mais adian-te, um herói da raça negra que peleja pela liberdade e a igualdade; um pouco de-pois, ainda que de modo dis-creto, um herói de minorias, nomeadamente dos homosse-

xuais; dito em poucas palavras, um herói da-queles que lutaram e lutam contra o caráter excludente da socieda-de brasileira, a escra-vista e as outras suas sucessoras. Nesse perío-do, Palmares despontou como uma sociedade singu-lar, quando comparada à so-ciedade branca, ou melhor, culturalmente branca, de sua época: espécie de protótipo de uma comunidade socialis-ta ou coletivista, um Estado original, de contornos quase africanos, capaz de atrair e congregar os deserdados da colônia. As designações são variadas, mas o princípio que

“TODA A HISTÓRIA PODERIA PASSAR PELO MESMO EXAME”

CONTINUAÇÃO DA PÁG. B1. Ao afirmar que a transformação de Zumbi num porta-bandeira dos oprimidos é uma “construção” histórica, Jean Marcel Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira iniciam uma cruzada pela revisão das unanimidades presentes na nossa história

Opção por usar o líder quilombola para interrogar o passado nacional teve a ver com o apelo do personagem no senso comum do brasileiro, diz historiador

RAMIRO RIBEIRO REPÓRTER

Estudiosos atentos ao tema da escravidão e às diferentes representações do negro na sociedade brasileira, em Três Vezes Zumbi Jean Marcel Carva-lho França e Ricardo Ale-xandre Ferreira oferecem ao leitor uma espécie de autoexame da historiogra-fia nacional na forma de um estudo crítico acerca das visões conflitantes de Zumbi dos Palmares atra-vés dos séculos. Jean Mar-cel explica a escolha do protagonista: “Queríamos dar visibilidade a um mo-do ainda pouco usual de interrogar o passado naci-onal. A escolha de Zumbi, seguramente, deveu-se ao fato de o líder de Palmares ser um personagem com enorme apelo no senso co-mum do brasileiro”. Leia no pingue-pongue a seguir.

Gazeta. Como foram feitas as pesquisas para Três Ve-zes Zumbi? Quanto tempo elas consumiram? Jean Marcel Carvalho Fran-ça. As pesquisas para a composição do livro são antigas, derivam de outros trabalhos que publicamos – sobre escravidão e sobre representações do negro na cultura brasileira. Já a seleção das obras e a reda-ção final consumiram cer-ca de 18 meses.

O que motivou a elabora-ção do livro? Em linhas gerais, o livro, não obstante o seu título, teve uma motivação de natureza teórica e muito ligada ao mundo dos his-

toriadores. Queríamos dar visibilidade a um modo ainda pouco usual de in-terrogar o passado nacio-nal, um modo descrente na possibilidade de alcan-çar a verdade última sobre os acontecimentos históri-cos e que se limita a des-crever como os habitantes deste lugar, que gradativa-mente se consolidou como Brasil, criaram, através dos tempos, pactos sociais, formas de vida, que esta-beleceram o que era ver-dadeiro e o que era falso dizer sobre o mundo. A es-colha de Zumbi, segura-mente, deveu-se ao fato de o líder de Palmares ser um personagem com enor-me apelo no senso comum do brasileiro.

O que as diferentes e su-cessivas construções da imagem de Zumbi revelam sobre a relação da socieda-de brasileira com a popula-ção negra? O problema é extrema-mente complexo, mas, em linhas gerais, poderíamos dizer que as construções de Zumbi e de Palmares são indícios bastante rele-vantes do modo como a sociedade brasileira lidou com o sempre maciço con-tingente de negros que a compõe. Não se trata de uma relação simples de causa e efeito, ou melhor, de uma relação especular – as construções de Zumbi refletiriam a sociedade do seu tempo. Digamos que ambas construíram-se ao mesmo tempo.

A que se pode atribuir o fascínio que a história bra-sileira confere a figuras

É possível traçar um para-lelo entre a apropriação da imagem do líder negro pela esquerda nos últimos 20 anos e a construção de ‘he-róis’ latino-americanos co-mo Che Guevara? Guevara é um herói cos-mopolita, apropriado pe-las esquerdas um pouco por todo lado pelo mundo. Zumbi, ao contrário, é um herói bem brasileiro, e sua apropriação, como o livro p rocu ra demons t ra r, não se limita ao público universitário e não está restrita apenas ao mundo das esquerdas.

Essa representação atual é refletida na importância cada vez maior do 20 de novembro em detrimento do 13 de maio? Não se trata, propriamen-te, de um reflexo. Ambos os processos, a valorização de Zumbi, concomitante à perda de prestígio da prin-cesa Isabel, pertencem ao mesmo movimento da so-ciedade brasileira.

Quais as principais polê-micas em torno da figu-

ra Zumbi? Ainda no período colonial, parte sig-nificativa dos auto-res afirmava que Zumbi designava um cargo. Mais tarde, já em 1800,

Zumbi passa a ser referido como um in-

divíduo, um líder do quilombo. Alguns textos mapeados garantiam que Zumbi se matou. Novas evidências de época, po-rém, foram alegadas para a afirmação de que sua morte se deu em combate, morte heroica seguida do final trágico dado aos seus restos mortais. Não nos enganemos, contudo. As polêmicas não vieram do encontro de novos docu-mentos ou de interpreta-ções originais, mas do lu-gar de onde os intérpretes olhavam e criavam o pas-sado. A sociedade brasilei-ra mudou e Zumbi tam-bém mudou; cada mudan-ça gerava e era gerada por polêmicas intimamente vinculadas às transforma-ções do país.

Historicamente, como en-dossamentos e análises pouco fundamentadas em registros e documentos contribuíram para essa transformação?

A ideia de “fato real” é muito contestada pela his-toriografia contemporâ-nea; salvo algumas coloca-ções que não se sabe ao certo de onde o autor as ti-rou (de quais documen-tos), as leituras de Zumbi atendem aos critérios de verdade do tempo em que foram criadas. Não acredi-tamos que a verdade his-tórica seja cumulativa. Co-nhecemos o mundo de m a n e i r a d i v e r s a d o s homens do passado, não de maneira superior ou mais apurada.

Como vocês avaliam o re-trato de Zumbi e do qui-lombo de Palmares feito pelos livros didáticos? Os livros didáticos são, em geral, herdeiros mais ou menos tardios das discus-sões desenvolvidas no de-nominado mundo acadê-mico, mais precisamente, neste caso, no mundo dos historiadores. Dessa for-ma, os atuais manuais pe-dagógicos são uma espé-cie de versão naturalizada do Zumbi “herói dos opri-midos”, construído nas úl-timas cinco, seis décadas, pela cultura brasileira.

Os resultados de levanta-mentos arqueológico feitos na região da Serra da Barri-ga podem ser relevantes para a atualização de infor-mações a respeito da orga-nização do quilombo? Encontrar uma nova evi-dência empírica não impli-ca necessariamente no surgimento de uma nova interpretação ou mesmo na descoberta de um fato verdadeiro em si mesmo. Lembremos que a verdade é sempre construída a par-tir dos pactos estabeleci-dos pelos homens em dife-rentes épocas. As evidênci-as arqueológicas encontra-das em Palmares nas últi-mas décadas do século 20 contribuíram, principal-mente, para a reafirmação de que os diferentes mo-cambos da Serra da Barri-ga eram habitados por uma sociedade multiétni-ca, traço bastante em voga numa época em que a ideia de uma classe opri-mida em luta dava lugar às lutas de diversos grupos contra opressões de gêne-ro, origem e raça.

Qual o maior mito – mais reproduzido ou com menor indício de registro – em

torno da figura de Zumbi? O dado mais problemático acerca de Zumbi diz res-peito à sua infância, narra-do pioneiramente pelo his-toriador gaúcho Décio Freitas. As cartas mencio-nadas por ele para criar uma infância para Zumbi, uma infância romantiza-da, diga-se de passagem, jamais foram vistas por outro historiador.

Qual a influência que re-presentações midiáticas, como o filme do cineasta Cacá Diegues ou o poema de Jorge de Lima, podem ter tido na criação do ‘he-rói dos oprimidos’? De saída, é preciso levar em conta que o cinema e a literatura, a poesia especi-almente, têm uma influên-cia limitada no Brasil con-temporâneo, um país pou-co letrado, pouco afeito ao cinema e muito dependen-te da televisão para obter informações e conheci-mentos. É certo, porém, que ambas as manifesta-ções culturais, observados os limites mencionados, ajudaram a engrossar o coro daqueles que canta-ram os feitos de Zumbi de uma perspectiva libertária.

Você diria que o meio aca-dêmico brasileiro é pouco afeito a trabalhos que des-mistificam ou se contra-põem a análises anterio-res? Em outras palavras, os ‘colegas pesquisadores’ evitam polemizar entre si? Desmistificar não é bem a palavra, afinal, nenhum historiador de bom senso – salvo os muito dogmáti-cos, mas esses não têm bom senso – acreditaria hoje que detém a verdade e que tal verdade lança no campo da “ideologia” a verdade do outro. Quanto à polêmica, a situação é outra. Talvez sejamos, co-mo sugere Machado de Assis, um povo “avesso à controvérsia” (como os lu-sitanos). Talvez, a aversão não seja produto de um traço do “caráter nacional” e provenha mais do espíri-to de proteção derivado da consistência delicada do mundo intelectual bra-sileiro, que sempre supor-tou mal a crítica. Seja co-mo for, somos pouco afei-tos ao debate intelectual e temos o mau hábito de “tomá-lo a peito”, como se tratassem de questões pes-soais e emocionais. ‡

‘desviantes’ como Zumbi e Tiradentes? Talvez, mas isto requer um estudo mais detalhado, es-ta tendência esteja relacio-nada à pouca confiança, apreço e legitimidade de que os poderes institucio-nalizados gozam entre os brasileiros. Daí termos uma tendência a encarar aquilo que vem da “ordem estabelecida”, aquilo que vem de uma entidade abs-trata que costumamos de-nominar “Estado”, como negativo. Daí, igualmente, a tendência a valorizar aqueles que contestam es-sa ordem, uma ordem his-toricamente injusta, sem-pre vista com certa des-confiança.

Que outros personagens de nossa história poderiam passar pelo mesmo exame? A bem da verdade, o que está subjacente ao Três Ve-zes Zumbi é mais radical; não se trata de um ou ou-tro personagem ou aconte-cimento, toda a história poderia passar pelo mes-mo exame. É isso que esta-mos propondo.

Quando a imagem de Zum-bi passou a se sobrepor à do próprio quilombo de Palmares? Por que isso aconteceu? Zumbi e Palmares estão intimamente vinculados pelo menos desde a Histó-ria da América Portuguesa, escrita pelo baiano Rocha Pita em 1730. A sua cons-trução como indivíduo e o seu maior destaque em re-lação ao quilombo, no en-tanto, principiam no sécu-lo 19, quando a figura do bandeirante Jorge Velho ganha proeminência, e se consolidam mais tarde, já no século 20, quando o personagem assume defi-nitivamente o papel de lí-der revolucionário da co-munidade quilombola.

EDSON SILVA/FOLHAPRESS

ÓLEO S/TELA DE RUGENDAS/REPRODUÇÃO

rege essas “construções” do quilombo é o mesmo: de um lado, ele é o polo por excelên-cia de contestação da ordem injusta e excludente da colô-nia; de outro, é um lugar ins-pirador de utopias e compor-tamentos contestatários.

A dupla de historiadores Ricardo Alexandre Ferreira (em pé) e Jean Marcel Carvalho França: olhar sobre as várias interpretações de um mesmo passado