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JULIANNE LARENS LOPES FERNANDES HETEROGENEIDADE MARCADA E REFERENCIAÇÃO Fortaleza, agosto de 2008.

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JULIANNE LARENS LOPES FERNANDES

HETEROGENEIDADE MARCADA E REFERENCIAÇÃO

Fortaleza, agosto de 2008.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

JULIANNE LARENS LOPES FERNANDES

HETEROGENEIDADE MARCADA E REFERENCIAÇÃO

Dissertação apresentada ao

Programa de Pós-graduação em

Linguística da Universidade

Federal do Ceará, como requisito

parcial para obtenção do Grau de

Mestre.

Orientadora: Profª. Drª. Mônica

Magalhães Cavalcante

Fortaleza, agosto de 2008.

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Esta dissertação constitui parte dos requisitos necessários à obtenção do Grau de

Mestre em Linguística, outorgado pela Universidade Federal do Ceará, e encontra-se à

disposição dos interessados na Biblioteca Central da referida Universidade.

A citação de qualquer trecho desta dissertação é permitida, desde que seja feita em

conformidade com as normas da ética científica.

Julianne Larens Lopes Fernandes

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Mônica Magalhães Cavalcante / UFC

(Orientadora)

Prof. Dr. Gilton Sampaio de Souza / UERN

(1º Examinador)

Profa. Dra. Maria Margarete Fernandes de Sousa / UFC

(2º Examinador)

Profa. Dra. Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin / UFC

(Suplente interna)

Prof. Dr. Francisco Alves Filho/ UFPI

(Suplente externo)

Dissertação defendida e aprovada em ___/___/_____

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A meu Painho e a Juju, meus amores, pelo apoio incondicional sempre;

A Alcides, meu Marido Lindo, razão para tudo que faço,

Dedico.

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AGRADECIMENTOS

_________________________________________________ A meus pais, meus amores, Wilson e Júlia, irremediáveis incentivadores, pelo apoio incondicional que

me dedicam sempre.

A meu pai, especialmente, por ter me mostrado que nem todos os ídolos têm os pés de barro: os dele

são de carne e osso.

A meu marido, Alcides, meu amor, por ABSOLUTAMENTE tudo.

À minha irmã que tanto amo, Sue, minha melhor amiga, parceira de todas as horas, que, mesmo

distante, está sempre perto.

A meu sobrinho, Pedro Ayrton, por me fazer a titia mais feliz do mundo!!!!!

A meu enteado Lucas, meu pinguinho de gente, anjinho mais querido por quem sou completamente

apaixonada, por me fazer mais feliz.

Às AMIGAS Camile, Carol, Clarissa, Karine, Michelle e Samarkandra. Fundamentais. Admiráveis.

Pelos porres, pelo incentivo, pela confiança, pela lealdade...

Aos colegas da turma de 2005, pelas aulas descontraídas e sempre produtivas, pelas discussões nada

ontológicas depois das aulas, regadas (quase sempre) à cerveja, sempre com muuuuita alegria.

À minha queridíssima orientadora, professora Drª. Mônica Magalhães Cavalcante – para mim,

Monikita -, pela confiança e incentivo dispensados a mim desde o período da graduação e por não me

ter deixado, nos momentos de fraqueza, angústia e de extrema insatisfação, desistir da carreira

acadêmica.

Ao professor Dr. José Américo Bezerra Saraiva, pelo apoio em todas as ―fases lingüísticas‖ por que

passei, pelas orientações e por ter me apresentado à Semiótica, disciplina basilar em minha formação.

Ao admirável e querido professor Dr. Fernando Pimentel – o Fernandinho! - , pelo aprendizado

constante e pelo auxílio nas traduções que constituíram este trabalho.

Às professoras Dras. Lívia Márcia Baptista e Margarete Fernandes, que vêm acompanhando meu

trabalho desde a qualificação do projeto, pelas críticas sempre pertinentes, as quais me ajudaram na

construção desta dissertação.

Ao professor Dr. Clemilton Lopes Pinheiro, por ter se colocado à disposição para ler este trabalho,

com (severas) considerações, também sempre pertinentes e de grande valia para o amadurecimento

desta dissertação.

Ao professor Dr. Francisco Auto Filho, Secretário da Cultura, intelectual admirável. Pelo exemplo de

vida; pela confiança; pela compreensão.

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―Entre a intenção do autor e o propósito do intérprete,

existe a intenção do texto‖

(Umberto Eco)

―Quero poder ter a liberdade de dizer o que sinto a uma pessoa, de poder dizer a alguém o

quanto é especial e importante pra mim, sem ter de me preocupar com terceiros... Sem correr

o risco de ferir uma ou mais pessoas com esse sentimento. Quero, um dia, poder dizer às

pessoas que nada foi em vão... que o amor existe, que vale a pena se doar às amizades e às

pessoas, que a vida é bela sim, e que eu sempre dei o melhor de mim... e que valeu a pena!!!‖

(Mário Quintana)

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RESUMO _______________________________________________________________

Procedemos, a partir dos pressupostos da Lingüística da Enunciação, à problematização do quadro das

heterogeneidades do tipo mostrada (marcada vs. não-marcada), proposto por Authier-Revuz (1982). Nossa

proposta consiste em sugerir que o escopo das ocorrências dos fatos de heterogeneidade marcada seja

flexibilizado, de modo a abarcar fenômenos de natureza (mais) cognitiva que evidenciam a presença do alheio na

materialidade lingüística num ponto específico da cadeia do dizer, promovendo, destarte, uma articulação entre

heterogeneidade mostrada/marcada e referenciação. Submetemos a um reexame, acrescentando o que nos

pareceu pertinente, um conjunto de marcas que não apenas as consagradas (como, por exemplo, negrito,

mudança de fonte, aspas, discurso direto) na tentativa de lhes conferir um estatuto de marcadores da presença

consciente do outro no fio discursivo, considerando a noção de leitor-modelo sugerida por Eco (1979). Para

tanto, elegemos como categorias principais de análise os processos referenciais anafóricos e dêiticos, o discurso

indireto livre e a intertextualidade por alusão. Nossos resultados legitimaram nossa proposta e confirmaram o

potencial marcativo de tais categorias.

Palavras-chave: Heterogeneidade enunciativa; heterogeneidade mostrada/marcada; referenciação;

processos referenciais.

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ABSTRACT ___________________________________________________________________________

We proceed to the problematization of the frame of heterogeneities of the displayed type (marked versus not

marked) as proposed by Authier-Revuz (1982) from the assumptions of the Linguistics of Enunciation. Our

proposal consists in suggesting that the scope of the occurrences of facts of marked heterogeneity be widened in

order that it includes phenomena of a (more) cognitive nature that make evident the presence of the other in the

linguistic materialization in a specific point of the chain of the saying and, besides, articulate the displayed

marked heterogeneity and the referentiation. We reexamine, appending whatever seems to us pertinent, a set of

marks, besides those already established (e.g., bold face, font changing, inverted commas, direct speech) in an

attempt to confer them the statute of markers of the conscious presence of the other in the discursive thread,

considering the notion of model reader suggested by Eco (1979). To achieve this goal, we choose for main

categories of analysis the deictic and anaphoric referential processes, the free indirect speech and the

intertextuality by allusion. Our results legitimize our proposal and confirms the marking potential of such

categories.

Keywords: Enunciative heterogeneity, displayed/marked heterogeneity; referentiation; referential

processes.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................... 11

CAPÍTULO I: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS........................................... 17

1.1 Delimitação do campo: a linguistica da enunciação........................................ 17

1.1.2 a) O lugar do sujeito na Linguística da

Enunciação.............................................

18

1.2 A Enunciação................................................................................................... 19

1.2.1 Bakhtin: o precursor......................................................................................... 19

1.2.2 Benveniste: ―a exceção francesa‖.................................................................... 22

1.2.2.1 As concepções de língua e de linguagem......................................................... 22

1.2.2.2 A instauração de subjetividade......................................................................... 24

1.3 Authier-Revuz: noção de heterogeneidade...................................................... 26

1.4 Umberto Eco: noção de leitor-modelo............................................................. 30

CAPÍTULO II: HIPÓTESES E PROCEDIMENTOS

METODOLÓGICOS.....................................................................................

33

2.1 Delimitação do universo................................................................................... 33

2.2 Questões de pesquisa........................................................................................ 34

2.3 Procedimentos metodológicos.......................................................................... 35

2.3.1 Etapas do trabalho............................................................................................ 35

CAPÍTULO III: HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA...................... 38

3.1 Balizagem teórica: filiação............................................................................... 38

3.1.1 Benveniste: os estudos enunciativos................................................................ 38

3.1.2 Rey-Debove: conotação autonímica................................................................. 39

3.2 Heterogeneidade teórica: a convocação de exteriores...................................... 41

3.2.1 Bakhtin: o dialogismo...................................................................................... 43

3.2.2 Psicanálise freudo-lacaniana: o Outro.............................................................. 43

3.2.3 Pêcheux: a noção de interdiscurso................................................................... 46

3.3 Heterogeneidade enunciativa: modalidades..................................................... 51

3.3.1 Heterogeneidade constitutiva........................................................................... 52

3.3.2 Heterogeneidade mostrada............................................................................... 53

3.4 Heterogeneidade mostrada, intertextualidade stricto sensu e marcação: uma

implicação........................................................................................................

55

3.4.1 O conceito fundador de Kristeva...................................................................... 56

3.4.2 A taxionomia das transtextualidades de Genette.............................................. 58

3.4.3 As relações de co-presença e de derivação de Piégay-Gros............................. 59

3.4.4 A abrangência conceitual da intertextualidade em Maingueneau.................... 64

CAPÍTULO IV: REFERENCIAÇÃO.......................................................... 67

4.1 Conceito e processos........................................................................................ 67

4.1.1 Introdução referencial...................................................................................... 70

4.1.2 Continuidades referenciais............................................................................... 71

4.1.2.1 Anáfora direta................................................................................................... 72

4.1.2.1.1 Recategorização............................................................................................... 73

4.1.2.2 Anáfora indireta................................................................................................ 76

4.1.2.3 Anáfora encapsuladora com dêitico................................................................. 78

4.2 Heterogeneidade não-marcada e leitor-modelo................................................ 79

CAPÍTULO V: ANÁLISE............................................................................. 81

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5.1 Considerações Preliminares............................................................................. 81

5.2 Análise.............................................................................................................. 83

5.2.1 Dêiticos memoriais.......................................................................................... 83

5.2.2 Dêiticos espaciais e temporais......................................................................... 91

5.2.3 O Discurso indireto livre.................................................................................. 94

5.2.4 Recategorização............................................................................................... 95

5.2.5 Intertextualidade por alusão e Anáfora indireta............................................... 97

CONCLUSÃO................................................................................................ 102

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................ 106

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................... 107

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INTRODUÇÃO ____________________________________________________________

O que será que me dá?

Que me bole por dentro, será que me dá?

Que brota à flor da pele, será que me dá?

E que me aperta o peito e me faz confessar

O que não tem mais jeito de dissimular [...]

O que será que será?

Que é feito uma aguardente que não sacia

Que é feito estar doente de uma folia

Que nem dez mandamentos vão conciliar

Nem todos os unguentos vão aliviar [...] E uma aflição medonha me faz suplicar

O que não tem medida, nem nunca terá

O que não tem descanso, nem nunca terá

O que não tem cansaço, nem nunca terá

O que não tem limite

O que não tem juízo.

(Chico Buarque)

Esta pesquisa tem o propósito maior de reconsiderar o conceito e a caracterização do

fenômeno descrito por Authier-Revuz (1982) como heterogeneidade mostrada e sua

bipartição em marcada e não-marcada. A preocupação central dessa nossa análise é submeter

a um reexame mais criterioso casos particulares de heterogeneidade, tal como ilustrados por

Authier-Revuz (1982,1990).

O estudo que estamos empreendendo justifica-se porque a literatura sobre o assunto

não discute os critérios utilizados para se definir algo como sendo da ordem do marcado ou do

não-marcado, nos termos de Authier-Revuz. Parte-se do já estabelecido, ou seja, das

marcações formais já instituídas que identificam irrupção do outro no fio discursivo, o que,

para nós, é bastante inquietante.

O objetivo geral deste trabalho, cuja temática se dá em torno da heterogeneidade

enunciativa, é o de sugerir que, em se tratando de casos de heterogeneidade mostrada-

marcada, outros mecanismos, além dos consensualmente aceitos na literatura (aspas, negrito,

itálico, mudança de fonte etc), que tornam manifesta a mostração da presença do outro na

materialidade linguística, sejam legitimamente considerados como portadores de potencial

marcativo. Esses outros mecanismos serão defendidos baseados, sobretudo, nos processos de

referenciação. Os objetivos específicos a ele atrelados são bastante esclarecedores em relação

a nosso propósito maior:

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b) Propor formas de marcação de heterogeneidade mostrada marcada, que não apenas as

consagradas e aceitas consensualmente pela literatura;

c) Incluir processos referenciais de natureza anafórica e / ou dêitica entre os casos

marcados da modalidade mostrada de heterogeneidade;

d) Estabelecer relações entre heterogeneidade mostrada do tipo marcada,

intertextualidade por alusão e processos referenciais;

e) Reexaminar os casos ditos não-marcados de heterogeneidade mostrada, questionando

a classificação da heterogeneidade mostrada (marcada vs. não-marcada).

No capítulo primeiro desta dissertação, situamos a vertente linguística de que nosso

trabalho é tributário, a saber, o arcabouço teórico dos Estudos da Enunciação.

Em se tomando os estudos da enunciação como base epistemológica, estuda-se, em

última instância, a relação que um texto, entendido em um sentido mais amplo, estabelece

com seu leitor. Estudos dessa natureza envolvem, num primeiro plano, a proposta de leitura

que o próprio texto sugere, por si só, ao seu leitor. Incluem, num segundo plano, a relação

interativa que se dá, por meio do texto, entre o enunciador e o co-enunciador/leitor. Em

termos mais técnicos, a enunciação pode ser definida como uma ―colocação em discurso‖ de

estruturas semióticas virtuais.

No interior desses estudos que tomam a enunciação por objeto, seguiremos os

pressupostos do que Flores (2001) chama de Linguística da Enunciação. O autor apresenta

uma proposta epistemológica de abordagem desse campo de estudos que permite falar em

teorias da enunciação, que estariam, por seu turno, reunidas na Linguística da Enunciação.

A Linguística da Enunciação toma por objeto a enunciação entendida como sendo da

ordem do irrepetível - já que, dentro desse objeto, se inclui o sujeito -, porque, sempre que a

língua é enunciada, têm-se condições de tempo, espaço e pessoa singulares.

Para Flores (2005), a Linguística da Enunciação elege para si um objeto multifacetado

que obedece a restrições teórico-metodológicas impostas pelas teorias da enunciação, o que

não constitui uma dispersão, já que há um elemento unificador que vê a língua como tendo

ordem própria, mas que prevê um sujeito que a atualize a cada instância de uso.

Pelo menos dois dos estudiosos que pensaram a enunciação de modo a promover

inovações no campo dos estudos que toma por objeto a enunciação foram inseridos neste

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capítulo. O primeiro é Bakhtin – indiscutivelmente, o precursor –, para quem a enunciação foi

entendida como a unidade real da cadeia verbal que está em constante evolução, já que as

relações sociais assim estão; e como um todo que se presentifica no discurso como atividade

ininterrupta de linguagem, que atende aos objetivos sociais da comunicação. O outro é

Benveniste, o primeiro a produzir uma teoria da enunciação, com seu célebre entendimento

respeitante a esta instância: ―a enunciação é a colocação em funcionamento da língua por um

ato individual de utilização‖ (BENVENISTE, 1974, p.82), incluindo aí, portanto, a

subjetividade.

Já aqui, começamos a enxertar a noção de heterogeneidade instalada por Authier-Revuz

(1982) no âmbito dos estudos enunciativos. Para ela, a heterogeneidade é vista e detectada em

duas dimensões: a constitutiva e a marcada.

Ainda neste capítulo, esboçaremos o que diz Umberto Eco acerca de certa instância

pressuposta que emerge de todo e qualquer texto: o leitor-modelo. Isso porque as

considerações que tece sobre essa instância apóiam nosso posicionamento frente a uma das

questões que estamos defendendo: se há manifestação textual de determinado fenômeno que

marca a voz do outro no fio discursivo, é porque há marcação; se o co-enunciador / leitor não

mantiver com o texto (ou com parte dele) certa ―intimidade‖ - não sendo, portanto, seu leitor-

modelo -, tal fenômeno não deixará de estar ali, ―apenas‖ será ignorado, o que,

necessariamente, não prejudica a construção global do sentido daquele texto.

Os princípios metodológicos por que se pauta nossa análise vêm explicitados no

capítulo II. Especificamos e detalhamos cada uma das seis etapas – recensão bibliográfica,

descrição das categorias de análise, identificação dos fatos de heterogeneidade nos processos

referenciais e na intertextualidade por alusão, delimitação e a quantificação do exemplário de

textos (não trabalhamos exatamente com um corpus, senão apenas com um exemplário) –

tudo por que passamos para chegarmos ao resultado que justifica nossos esforços, a saber, a

articulação entre heterogeneidade mostrada/marcada e processos referenciais anafóricos e

dêiticos.

No capítulo subseqüente, enquadraremos nossa pesquisa nos estudos enunciativos

empreendidos por Jacqueline Authier-Revuz, a partir da década de 80, que se inscrevem na

campo da dita Linguística da Enunciação. A autora situa-se, como veremos, nos quadros das

teorias enunciativas de base saussuriana e da abordagem da metalinguagem, tal como

empreendida por Rey-Debove (1978). No campo da enunciação, filia-se a Bally, Benveniste e

Culioli.

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Na seção destinada especificamente à tese de Authier-Revuz, demos destaque àquilo

que nos interessa mais de perto: a esquematização, proposta pela autora, da heterogeneidade

enunciativa, sobretudo no que tange às formas de mostração / marcação dessa

heterogeneidade.

Veremos que Authier-Revuz (1982) postula duas formas possíveis de manifestação da

heterogeneidade. A primeira, constitutiva, remete à presença do Outro diluída no discurso,

não como objeto, mas como presença integrada pelas palavras do outro, condição mesma do

discurso. A segunda, a heterogeneidade mostrada, marca o discurso de modo a criar um

mecanismo de distanciamento entre o sujeito e aquilo que ele diz. Esta última forma de

heterogeneidade pode ser ainda marcada e não-marcada. Quando marcada, é da ordem da

enunciação, visível na materialidade linguística, como, por exemplo, o discurso direto, as

palavras entre aspas, o uso de itálico, a citação. Se não-marcada, então, é da ordem do

discurso, sem visibilidade, como o discurso indireto livre, a ironia, o pastiche, a alusão.

Nossa pesquisa está centrada no heterogêneo manifesto, ou seja, nas formas de

mostração da presença do outro no discurso. Nosso questionamento incide sobre a forma dita

não-marcada da heterogeneidade mostrada. O fato de mecanismos de inscrição do outro no

enunciado, que, por não serem formalmente flagrantes, terem de ser entendidos como formas

não-marcadas, embora mostradas, da presença da alteridade em determinado discurso,

ocupará o foco de nossa discussão.

Ainda neste capítulo, reunimos algumas considerações acerca de processos

intertextuais, vez que este procedimento constará de nossa argumentação em favor de uma

flexibilidade em se tratando da mostração do alheio no heterogêneo do fio.

O quarto capítulo tratará da referenciação e de seus processos: introdução referencial,

anáfora direta, anáfora indireta, procedimentos dêiticos. Inauguramos este capítulo porque é

basicamente pelos processos referenciais aí descritos que pautaremos nossa categoria

analítica, para argumentar que a discretização das modalidades de heterogeneidade mostrada

produz um fechamento no que tange às estratégias de que dispõem os sujeitos para marcar a

presença do outro em seus dizeres; as possibilidades de o sujeito mostrar a marcação de seu

dizer, previstas por Authier-Revuz, estão restritas ao expediente formal mais convencionado

na literatura (aspas, itálico, negrito, mudança de fonte, discurso direto), posicionamento do

qual discordamos. Em favor de nosso pensamento, apresentamos o caso dos processos

referenciais anafóricos e dêiticos. Para nós, as várias maneiras de marcação – vez que

defenderemos que estratégias desse tipo configuram um texto como marcado – são

inteiramente legítimas, já que passíveis de serem identificadas. Ocorre que tal identificação se

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dará por vias não prototípicas de acesso à maneira pela qual o sujeito opta por marcar a

―alteração‖ em seu discurso. Traremos à baila, também, a intertextualidade stricto sensu por

alusão e o discurso indireto, fenômenos que estamos entendendo como recursos de marcação

do heterogêneo.

No capítulo destinado à análise, quinto e último, reivindicamos que os procedimentos

retrocitados apresentam, também, potencial marcativo. Assim sendo, não se justificaria, no

quadro classificatório de Authier-Revuz, a chamada heterogeneidade mostrada não-marcada.

A partir da problematização do quadro das heterogeneidades do tipo mostrada

(marcada vs. não-marcada), redescrevemos (acrescentando o que nos pareceu pertinente) um

conjunto de marcas, que não apenas as consagradas (negrito, mudança de fonte, aspas,

discurso direto), como sendo formas de marcação da presença consciente do outro no fio

discursivo.

O ponto alto de nosso trabalho, concentrado neste último capítulo, dar-se-á quando de

nossa proposta para que seja alargado o horizonte de possibilidades de mostração-marcação

da irrupção do alheio na materialidade linguística, já que colocamos em questão que outras

formas de marcação têm sua legitimidade calcadas na inter-ação entre os interlocutores. Isso

porque nossa argumentação se fundamenta na crença de que há um contrato fiduciário

interferindo no discurso dos sujeitos, consoante o qual outros procedimentos, que não apenas

aqueles mais tipograficamente visíveis, são acionados quando se quer, conscientemente,

sinalizar a presença do heterogêneo no fio discursivo: procedimentos de natureza referencial,

por exemplo.

Importante, desde já, é esclarecer que não tomamos como pretensão verificar, em

nossas análises, a presença do Outro – o inconsciente – que atua no fio discursivo, marcando-

o. Limitamo-nos a reconhecer como inteiramente legítimas as marcações promovidas por Ele,

vez que assumimos, em consonância com Authier-Revuz, a concepção da fissura radical do

sujeito: de sua clivagem, portanto. Conquanto esta instância faça parte do aparato teórico de

cujo escopo estamos nos servindo, pensamos que isso só seria possível, por coerência com os

pressupostos psicanalíticos freudo-lacanianos, se fosse uma análise do próprio indivíduo,

realizada por um especialista, no caso, o psicanalista.

Concluímos nosso trabalho atestando, com base nas análises a que procedemos, todas

as nossas hipóteses, comprovando o potencial mostrativo-marcativo dos processos

referenciais de natureza anafórica e dêitica, os quais sustentamos serem eficazes mecanismos

de marcação que opacificam um ponto específico do fio discursivo.

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Nas considerações finais, lançamos a sugestão de um estudo que, tomando por base a

crença em nossos resultados, se proponha elaborar critérios a partir dos quais se construa uma

escala mostrativo-marcativa que, em detrimento da dicotomia mostrativa vigente de

heterogeneidade mostrada/marcada vs. mostrada/não-marcada, contemple desde o discurso

mais formalmente marcado e, portanto, (mais) explicitamente marcado - já que carregam

consigo marcas ―exteriores‖ ao signo linguístico propriamente dito -, até aquele que é também

explicitamente marcado, mas que, como vimos em nossa análise, materializa de maneira

diferente a irrupção do Não-Um na superfície textual.

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CAPÍTULO I

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS _____________________________________________________________________________________

Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é.

(Caetano Veloso)

1.1 Delimitação do campo: a linguística da enunciação

O arcabouço teórico que embasará nossa pesquisa se inscreve na vertente linguística

dos estudos da enunciação. Esse campo trata, em última instância, da relação que um texto,

entendido em um sentido mais amplo, estabelece com seu leitor. Envolve, num primeiro

plano, a proposta de leitura que o próprio texto (linguístico e não-linguístico) sugere, por si

só, ao seu leitor (observador ou espectador). Inclui, num segundo plano, a relação

comunicativa que se dá, por meio do texto, entre o seu autor e o leitor. Em termos mais

técnicos, a enunciação pode ser definida como uma ―colocação em discurso‖ de estruturas

semióticas virtuais.

Em oposição às várias vertentes da Linguística que se servem de teorias da

enunciação, Flores (2001) postula ser possível individuar, dentre os vários estudos que se

pretendem enunciativos, uma dita Linguística da Enunciação. O autor apresenta uma proposta

epistemológica de abordagem desse campo de estudos que permite falar em teorias da

enunciação, que estariam, por seu turno, reunidas na Linguística da Enunciação. Destarte,

haveria traços comuns entre as abordagens enunciativas, de modo que se poderia pensar em

um objeto próprio da Linguística, o que não significa propor a hierarquização de teorias, mas

instituir um ponto de vista segundo o qual, respeitadas as diferenças, é possível vislumbrar

uma unidade em meio à diversidade1.

A Linguística da Enunciação toma por objeto a enunciação entendida como sendo da

ordem do irrepetível - já que, dentro desse objeto, inclui-se o sujeito -, porque, sempre que a

língua é enunciada, têm-se condições de tempo, espaço e pessoa singulares.

1 Cf. Princípios para a definição do objeto da Linguística da Enunciação. In: Estudos sobre a enunciação,

texto e discurso. BARBISAN, L.B. & FLORES, V. (Orgs.), 2001.

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Em Flores (2001), vemos a defesa de um objeto da Linguística da Enunciação que,

embora vinculado à dicotomia saussuriana langue / parole, não deriva nem de sua negação,

nem de sua afirmação absolutas. Para o autor, os fenômenos estudados nas teorias da

enunciação pertencem à língua, mas não se encerram nela; pertencem à fala na medida em

que só nela e por ela têm existência e questionam a existência de ambas, já que emanam das

duas. Uma definição que julgamos bastante pertinente encontra-se em Lahud (1979, p. 98)

[...] A Linguística da Enunciação visa não somente a um fenômeno

que não pertence à ‗fala‘, mas justamente a um fenômeno cuja

existência compromete a própria distinção língua-fala em algumas de

suas postulações. Nem da ordem da língua, nem da ordem da fala [...],

mas da própria linguagem enquanto atividade regrada (portanto

coletiva) linguisticamente: eis o que é revelado sobre a natureza dessa

linguística quando se diz que ela não estuda nem os componentes da

matéria-linguagem que fazem parte do objeto de outras ciências não

propriamente linguísticas (Fisiologia, Física, Psicologia etc.), nem as

variações que sofre o sentido dos signos do sistema quando assumido

pelo locutor num ato individual de produção, mas a enunciação

enquanto centro necessário de referência do próprio sentido de certos

signos da língua.

Para Flores (2005), a Linguística da Enunciação elege para si um objeto multifacetado

que obedece a restrições teórico-metodológicas impostas pelas teorias da enunciação, o que

não constitui uma dispersão, já que há um elemento unificador: ―a crença na língua como

ordem própria que precisa ser atualizada pelo sujeito a cada instância de uso‖. (Cf. p. 106).

No interior desse campo teórico – o dos Estudos da Enunciação -, enquadraremos nossa

pesquisa nos estudos enunciativos empreendidos por Jacqueline Authier-Revuz, a partir da

década de 80. A autora situa-se nos quadros das teorias enunciativas de base saussuriana e da

metalinguagem, tal como empreendida por Rey-Debove (1978). No campo da enunciação,

filia-se a Bally, Benveniste e Culioli.

Não podemos falar da instância enunciativa sem fazer alguns detalhamentos acerca

daquele que a enuncia. A seção seguinte foi inaugurada para fazermos algumas especificações

respeitantes ao sujeito da linguística da enunciação.

1.1.2 O lugar do sujeito na Linguística da Enunciação

Quanto ao tratamento dispensado ao sujeito, vale a ressalva de que o estudo que se faz é

o da enunciação do sujeito e não o do sujeito em si. Aqui, a abordagem dessa entidade exige

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que sejam convocados exteriores teóricos. É exatamente o que faz a autora em cujo aporte

teórico ancoramos nossa pesquisa. Authier-Revuz fundamenta sua perspectiva de abordagem

do sujeito no que chama de heterogeneidade teórica e convoca, para o tratamento dessa

instância, o dialogismo bakhtiniano e a psicanálise freudo-lacaniana, como veremos adiante

(cf. item 3.2.2 deste trabalho). Para ela, considerar essa instância exige que seja feita uma

―necessária referência preliminar a pontos de vista exteriores que fundamentam essa

heterogeneidade constitutiva do discurso‖ (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.11).

Situar-se no campo da Linguística da Enunciação é tratar o sujeito como a representação

que a enunciação faz erigir em relação a ele e não tomá-lo como objeto de estudo dentro de

determinada teoria. Nesse sentido, posiciona-se Flores (2001)2:

A linguística da enunciação toma para si não apenas o estudo das

marcas formais no enunciado, mas refere-se ao processo de sua

produção: ao sujeito, tempo e espaço. A linguística da enunciação

deve centrar-se no estudo das representações do sujeito que enuncia e

não do próprio sujeito, objeto de outras áreas. (p.59).

Desta feita, a enunciação se define, aqui, como uma reflexão sobre o dizer (produzido

pelo sujeito) e não exatamente sobre o dito (sujeito em si), o que não quer dizer que este seja

preterido pelos linguistas da enunciação, como pode aparentar. Esse dito é relevante na

medida em que é por intermédio do sujeito que diz que alcançamos o dizer e, por conseguinte,

a enunciação.

1.2 A Enunciação

Achamos por bem mencionar, neste momento do trabalho, as considerações de

Benveniste e de Bakhtin acerca da instância enunciativa, por entendermos que a corrente

teórica a que estamos nos filiando parte dessas considerações para estabelecer seu campo.

Estes dois autores, como veremos adiante, servem de pressuposto para os estudos de Authier-

Revuz, especificamente a autora que suscitou esta pesquisa, o que reforça a utilidade da

―descrição‖ do pensamento dos autores que apresentaremos a seguir.

1.2.1 Bakhtin: o precursor

2 Importa esclarecer que Flores considera absolutamente legítima a teoria enunciativa que busca dizer algo

acerca do sujeito (para um detalhamento do que pensa o autor sobre o estudo do sujeito, ver FLORES, 1999)

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Antes de detalharmos as influências de Authier-Revuz, cumpre remontar aos estudos

bakhtinianos, vez que a contribuição dos estudos de Bakhtin influenciou ou antecipou as

principais orientações teóricas dos estudos sobre o texto e o discurso desenvolvidos,

sobretudo, nas últimas três décadas. Suas ideias acerca da linguagem trazem elementos que,

de algum modo, contribuem para o estabelecimento de uma linguística da enunciação e que

contemplam a intersubjetividade no âmbito dos estudos sobre a linguagem, quando a

distinção entre tema e significação é relacionada ao problema da compreensão;

compreendemos os enunciados de outrem quando ―reagimos àquelas [palavras] que

despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida‖ (BAKHTIN, 1992, p.95).

Compreender, portanto, não é o mesmo que decodificar a forma linguística e nem equivale a

um processo de identificação. Trata-se da interação dos significados das palavras e seu

conteúdo ideológico, não só do ponto de vista enunciativo, mas também do ponto de vista das

condições de produção e da interação dos interlocutores.

A distinção entre tema e significação adquire particular clareza em

conexão com problema da compreensão [...] Qualquer tipo genuíno de

compreensão deve ser ativo e deve conter já o germe de uma resposta.

Somente a compreensão ativa nos permite apreender o tema, pois a

evolução não pode ser apreendida senão com a ajuda de um outro

processo evolutivo. Compreender a enunciação de outrem significa

orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no

contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos

em processo de compreender fazemos corresponder uma série de

palavras nossas, formando uma réplica. [...] A compreensão é uma

forma de diálogo; ela está para a enunciação assim como uma réplica

está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor

uma ―contrapalavra‖. (BAKHTIN, 1992, p.131).

O princípio norteador do pensamento bakhtiniano é o dialogismo. ―A alteridade define

o ser humano, pois o outro é imprescindível para sua concepção: é impossível pensar no

homem fora das relações que o ligam ao outro‖ (BAKHTIN, 1992, p.36). A vida é dialógica

por natureza, diz ele; se a vida é dialógica, isso não excluiria linguagem, seja ela pensada em

termos de língua ou de discurso.

A maneira como concebeu a linguagem - não como um sistema de categorias

gramaticais abstratas, mas como uma realidade axiologicamente saturada; não como um ente

gramatical homogêneo, mas como um fenômeno sempre estratificado - anunciou a fundação

de uma linguística que promoveria a enunciação a centro de referência do sentido dos

fenômenos linguísticos, entendendo-a como evento, sempre renovado, por intermédio da qual

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o locutor se institui na interação viva com vozes sociais3. A partir da noção de recepção /

compreensão ativa proposta por Bakhtin, podemos perceber o movimento dialógico da

enunciação - território comum do locutor e do interlocutor. O locutor enuncia em função da

existência real ou virtual de um interlocutor, requerendo, por parte deste último, uma atitude

responsiva, como que antecipando o que o outro vai dizer, ou seja, experimentando o lugar do

outro. Em contrapartida, quando recebemos uma enunciação significativa, esta nos propõe

uma réplica (concordância, apreciação, ação etc). A inteligibilidade enunciativa dá-se

exatamente porque colocamos a enunciação no movimento dialógico dos enunciados, em

confronto tanto com os nossos próprios dizeres quanto com os dizeres alheios.

Quanto às concepções de enunciado / enunciação, conceitos tão utilizados na área dos

estudos da linguagem e que apresentam uma grande polissemia de definições e empregos

conforme a teoria a que são vinculados, além de ocuparem lugar central na concepção de

linguagem que rege seu pensamento, até porque ―é concebida [a linguagem] de um ponto de

vista histórico, cultural e social que inclui, para efeito de compreensão e análise, a

comunicação efetiva e os sujeitos e discursos nela envolvidos‖ (BRAIT & MELO, 2005,

p.65), não são definidos de forma pontual: trata-se, em verdade, de uma construção paulatina.

É em Marxismo e filosofia da linguagem (2002) que a noção de enunciação começa a

ganhar eco como sendo de natureza constitutivamente social e histórica e que, por isso

mesmo, está inevitavelmente ligada a enunciações anteriores e posteriores, produzindo e

fazendo circular discursos. Consoante Bakhtin (1992), a instância enunciativa resulta da

interação de dois indivíduos socialmente organizados. Ela não existe fora de um contexto

sócio-ideológico no qual cada um dos interlocutores ocupa um lugar social bem definido,

pensado e dirigido a um ―auditório‖ também definido. Desse modo, a enunciação procede de

alguém e se destina a alguém. Toda enunciação, nesse sentido, propõe uma réplica, uma

reação.

O enunciado, para Bakhtin4, compreende três fatores: (i) o horizonte espacial comum

dos interlocutores; (ii) o conhecimento e a compreensão comum da situação por parte dos

interlocutores; (iii) sua avaliação comum dessa situação. Nesse sentido, o enunciado e as

peculiaridades de sua enunciação pressupõem um processo interativo, em outras palavras, ―o

verbal e o não verbal que integram a situação e, ao mesmo tempo, fazem parte de um contexto

maior histórico, tanto no que diz respeito a aspectos (enunciados, discursos, sujeitos etc.) que

3 Expressão introduzida por Bakhtin no texto O discurso no romance para se referir aos complexos semiótico-

axiológico com os quais determinado grupo humano diz o mundo. 4 Cf. O discurso na vida e o discurso na arte (apud BRAIT & MELO, 2005, p.77).

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antecedem esse enunciado específico quanto ao que ele projeta adiante‖.(BRAIT & MELO,

2005, p.67).

1.2.2 Benveniste: ―a exceção francesa‖ 5

A teorização acerca da enunciação ganhou impulso na França, na década de 60, a

partir dos estudos de Benveniste (1966, 1974) sobre essa instância. O linguista francês propôs

o estudo da subjetividade na língua, vinculando-a à noção de enunciação, tratada como

instância produtora do enunciado. Vale assinalar a distinção entre o modo como a enunciação

é compreendida em Benveniste e em Bakhtin. Enquanto a perspectivação benvenistiana

contempla o entorno mais imediato da comunicação, já que leva em conta como instâncias da

enunciação o locutor, o tempo e o lugar em que ocorre a produção do enunciado, vemos, em

Bakhtin (cf. item 1.2.1), a enunciação tratada de um ponto de vista bem mais amplo, de vez

que tal instância, situada numa dimensão discursiva, pressupõe o processo interativo, a

relação social estabelecida dialogicamente entre os indivíduos, bem como o contexto

histórico-cultural em que está imersa, compreensão que confere a essa instância um caráter

constitutivamente sócio-histórico.

Os estudos sobre a enunciação, em geral, e particularmente a teoria enunciativa

proposta por Benveniste, trazem para o cenário das preocupações linguísticas - sem, em

absoluto, desconsiderar as proposições estruturalistas anteriores - o sujeito, personagem tido

como secundário pela linguística saussuriana. Com a noção de subjetividade, outras também

emergiram: as noções de sentido e de contexto (―referente‖); juntas, essas noções

possibilitaram uma outra perspectivação quanto ao modo de pensar a língua / linguagem.

1.2.2.1 As concepções de língua e de linguagem

A perspectiva de entendimento de língua de Benveniste se diferencia da de Saussure,

já que a vê como essencialmente social, concebida no consenso coletivo. Para o teórico da

enunciação, ―[...] somente a língua torna possível a sociedade. A língua constitui o que

mantém juntos os homens, o fundamento de todas as relações que, por seu turno,

fundamentam a sociedade.‖ (BENVENISTE,1989, p. 63). Já Saussure, o fundador da

linguística moderna, pensava a língua como um código fechado em si mesmo, estruturado por

signos. A forma como Benveniste pensou a língua advém do seu entendimento de signo.

5 Dosse (1993) assim se referia a Benveniste pelo fato de ter suposto em seu estudo acerca da enunciação sujeito

e estrutura articulados.

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Considerando sua forma de significação, propõe dois planos de sentido: o semiótico e o

semântico. No primeiro, comungando com o pensamento saussuriano, está o signo

significando no sistema; o autor define o signo como uma unidade semiótica, ou seja,

elemento necessariamente de dupla relação, cuja unidade – porque decomponível do todo que

é a linguagem - é submetida (porque limitada à ordem da significação) a uma ordem

semiótica. No segundo plano, há a expressão do sentido resultante da relação do signo com o

contexto, ou seja, o modo de significar do enunciado; o critério utilizado para matizar este

segundo nível é o da comunicação para definir a palavra como a unidade de operações

sintagmáticas que se realizam no nível da frase6. Para o autor, essa forma de significar resulta

numa concepção da língua como trabalho social. Assim, Benveniste vê a língua no seio da

sociedade e da cultura porque, para ele, o social é da natureza do homem e da língua.

O entendimento de língua, tal como nos apresenta Benveniste, também vai refletir-se

na concepção de linguagem que ancora seu pensamento, que não é compreendida como

aquela que serve de instrumental comunicativo ao homem, mediadora do processo

comunicativo. Em seu estudo Da subjetividade na linguagem, Benveniste (1988, p.285) é

enfático quando rejeita essa noção de linguagem, dizendo-nos que ―falar de instrumento é pôr

em oposição o homem e a natureza [...] e a linguagem está na natureza do homem‖,

mostrando que não se pode mais conceber a linguagem e o indivíduo dessa forma, e continua:

Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos

nunca inventando-a (sic). Não atingimos jamais o homem reduzido a

si mesmo e procurando conceber a existência do outro. É um homem

falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro

homem, é a linguagem que ensina a própria definição do homem.

Na verdade, essa concepção aponta para um indivíduo à margem da linguagem. O que

o autor propõe, então, é que linguagem seja vista como algo que dá ao indivíduo o estatuto de

sujeito. Pensada sob esse prisma, a linguagem passa a ser uma espécie de lugar de emergência

da instância subjetiva, que transpõe o indivíduo à condição de falante propriamente dito, de

sujeito.

Esse modo de ver a linguagem desenvolvido na teoria da enunciação postulada por

Benveniste amplia os horizontes dos estudos sobre a linguagem rumo a uma nova

perspectivização.

6 Lembramos que os termos ―palavra‖ e ―frase‖ adquirem, no contexto de seu pensamento, o sentido amplo de

―discurso‖ ou de ―língua em ação‖ e não o sentido canônico dado pelas teorias do léxico e da sintaxe.

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1.2.2.2 A instauração da subjetividade

Benveniste, em seus estudos sobre a enunciação, não tencionou elaborar uma teoria

cujo objeto fosse o sujeito. Sua preocupação insidia sobre a significação. Conquanto não fosse

de sua pretensão debruçar-se particularmente no sujeito, sua maior contribuição para a

linguística moderna acabou sendo a questão da subjetividade. Ela veio à tona porque é

inevitável seu chamamento em se tratando de estudos que versem sobre linguagem e sentido.

Dessa forma, o sujeito inevitavelmente ocupou o cerne da sua teoria da enunciação.

Nos termos de Benveniste (1988, p.286), a subjetividade é entendida como ―a

capacidade do locutor para se propor como ‗sujeito‘[...], como a unidade psíquica que

transcende a totalidade das experiências vividas que reúne, e que assegura a permanência da

consciência‖. Essa proposta de sujeito tem como condição a linguagem: trata-se de uma

implicação. ―É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito;

porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade, que é a do ser, o conceito

de ‗ego‘‖ (p.286). Assim sendo, a propriedade da subjetividade é determinada pela pessoa e o

por seu estatuto linguístico. Além disso, para o autor, a subjetividade é percebida

materialmente num enunciado através de algumas formas (dêixis, verbo) que a língua

empresta ao indivíduo que quer enunciar; ao fazê-lo, institui-se ele mesmo como sujeito.

Benveniste classifica essas marcas linguísticas que têm o poder de expressar a subjetividade -

os pronomes e o verbo – como dêiticas, integrando essas duas classes de palavras à categoria

de pessoa do discurso.

Ao instaurar essa categoria, Benveniste define as pessoas do discurso. Considera eu /

tu como as autênticas pessoas em oposição a ele – a não-pessoa. As pessoas eu / tu se

caracterizam como categorias de discurso que só ganham plenitude quando assumidas por um

falante na instância discursiva. Essa tomada é sempre única, móvel e reversível, representando

a (inter)subjetividade na linguagem. A terceira pessoa (a não-pessoa, ele), ao contrário, é um

signo pleno, uma categoria da língua, que tem referência objetiva com valor independente da

enunciação, declarando, portanto, a objetividade. A oposição entre os participantes do diálogo

e os não-participantes resulta em duas correlações: pessoalidade e subjetividade. A correlação

de personalidade opõe a pessoalidade, presente em eu / tu, e a não pessoalidade, presente em

ele; enquanto que a correlação de subjetividade descreve a oposição existente entre o eu

(pessoa subjetiva) e o não-eu (pessoa não-subjetiva). Tais correlações se estendem aos

pronomes no plural que, nessa teoria, significam mais que pluralização. É assim que

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Benveniste inova ao dizer que os pronomes pessoais no plural não expressam somente plural.

É o caso de nós e vós. Somente eles — por não apresentar marca de pessoa — indica

verdadeiro plural. Define, ainda, o nós como inclusivo (união de um eu, pessoa subjetiva, a

um tu / vós, pessoa não subjetiva) e como exclusivo (eu, pessoa + ele(s), não-pessoa). Não

podem significar plural porque não demonstram a repetição da mesma pessoa. No caso do

nós, não há soma de diferentes pessoas e não há repetição de ―eus‖; no caso do vós, no sentido

coletivo ou de cortesia, não há soma de vários ―tus‖. Então, o fato a que chama atenção

Benveniste é que os pronomes não devem ser mais considerados como uma ―classe unitária‖

no que se refere à forma e à função. O autor diferencia o aspecto formal dos pronomes,

pertencente à parte sintática da língua, do aspecto funcional, considerado característico da

instância do discurso, ou seja, da enunciação. Quer dizer, os pronomes se configuram numa

classe da língua que opera no formal, sintático, e no funcional, pragmático. A partir dessa

linha de raciocínio, os pronomes devem ser entendidos também como fatos de linguagem,

pertencentes à mensagem (fala), às categorias do discurso, e não apenas como pertencentes ao

código (língua), às categorias da língua, como considerava o linguista genebrino. Essa visão

dos pronomes, também como categoria de linguagem, é dada pela posição que nela ocupam.

Desse modo, acredita-se que, para encontrar e tentar entender o sujeito e suas

representações na teoria enunciativa de Benveniste, é necessário partir da categoria de pessoa.

De acordo com Gomes (2004), ―a subjetividade é vista como uma propriedade da língua

realizável pela categoria de pessoa‖. Da mesma forma, Santos (2002, p.25) afirma que:

O fundamento da subjetividade repousa sobre a categoria de pessoa

presente no sistema da língua; todavia essa subjetividade depende da

inversibilidade do par eu-tu, a qual assegura um fator fundamental na

atribuição de sentido à categoria de pessoa - a intersubjetividade.

Segundo Benveniste (1989, p.87), ―o que caracteriza a enunciação é a acentuação da

relação discursiva com o parceiro, seja este real ou imaginário, individual ou coletivo‖. Isso

determina a estrutura do quadro figurativo da enunciação, o do diálogo, que tem

obrigatoriamente um eu e um tu. Os dois participantes alternam-se nas funções,

caracterizando-se como parceiros e protagonistas da situação de enunciação; é exatamente

esse movimento que cria uma relação intersubjetiva entre as pessoas do enunciado.

A partir dessas considerações, veremos de que modo particularmente nossa autora se

serve do pensamento bakhtiniano e do benvenistiano, bem como do de outros autores, para

formular sua teoria da heterogeneidade enunciativa (cf. itens 3.3.1 e 3.2.1 deste trabalho).

Diferentemente dos outros autores que contribuem para a fundamentação dessa teoria,

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Bakhtin e Benveniste figuram neste capítulo porque se debruçaram sobre a enunciação de

modo a lhe imprimir um olhar inovador, o que promoveu, de certa forma, uma abertura para

estudos enunciativos que consideram o sujeito da enunciação – como é nosso caso -,

sobretudo Benveniste, que tomou especificamente esta instância como objeto para seu estudo.

1.2 Authier-Revuz: noção de heterogeneidade

Para Authier-Revuz (1982), a dimensão do heterogêneo na enunciação se impõe sob

dois planos: o dos fatos de heterogeneidade, nas realizações linguísticas, e o da

heterogeneidade teórica, que afeta necessariamente o campo enunciativo.

Entendo, dessa forma, o inevitável não-fechamento do linguístico

sobre ele mesmo no sentido formal, que proíbe falar de enunciação

sem se apoiar – quer isso seja dito explicitamente ou não – em

teorizações exteriores, particularmente sobre o sujeito. (p.173).

Ao teorizar sobre a heterogeneidade constitutiva da linguagem, articula este conceito à

noção de dialogismo bakhtiniano. Segundo a autora, por trás de uma aparente linearidade, da

emissão ilusória de uma só voz, outras vozes ecoam. O diferencial entre a teoria bakhtiniana e

a proposta por Authier-Revuz está relacionado à incorporação, por parte desta última, da

psicanálise freudo-lacaniana – a noção de inconsciente – em seu escopo teórico. A própria

autora, ao se referir diretamente ao ―outro de Bakhtin‖, comenta que:

O outro de Bakhtin, aquele dos outros discursos, o outro-interlocutor,

pertence ao campo do discurso, do sentido construído, por mais

contraditório que seja, em discurso, com palavras ‗carregadas de

história‘; o Outro do inconsciente, do imprevisto do sentido, de um

sentido ‗desconstruído‘ no funcionamento autônomo do significante, o

Outro que abre uma outra heterogeneidade no discurso – de uma outra

natureza – que não aquela que estrutura o campo do discurso para

Bakhtin, está ausente do horizonte deste. Há aí uma radical

heterogeneidade, que parece ser recusada, nessa teoria da

heterogeneidade que quer ser dialogismo. (AUTHIER-REVUZ, 1982,

p.43).

A heterogeneidade constitutiva do discurso seria, portanto, mais abrangente que o

dialogismo, no sentido de que contempla não ―apenas‖ o outro social, à maneira de Bakhtin,

mas também o Outro, que é da ordem de uma alteridade radical – o inconsciente. ―Em

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Bakhtin, o outro (interlocutor, discurso) é sempre ‗o outro de um outro‘ (interlocutor,

discurso), lá onde podemos dizer que não há outro do Outro (inconsciente)‖ (AUTHIER-

REVUZ, 1982, p.44), complementa a autora.

O princípio da heterogeneidade, a ideia de que a linguagem é heterogênea, isto é, de

que o discurso é construído a partir do discurso do outro, que é o ―já dito‖ sobre o qual

qualquer discurso se constrói, respeitadas as críticas, está ancorada no dialogismo

bakhtiniano. Na heterogeneidade constitutiva, o outro está inscrito no discurso, mas sua

presença não é explicitamente demarcada. Authier-Revuz (1982) concebe a heterogeneidade

constitutiva como sendo da ordem do não-representável, do não-localizável, pertencente à

ordem real de constituição do discurso, condição mesma de existência do fato enunciativo. ―O

heterogêneo constitutivo da enunciação está presente nela, em ação, de maneira permanente,

mas não diretamente observável‖ (p.179), o que nos leva a crer que essa forma de

heterogeneidade apreende-se pela memória discursiva de uma dada formação social.

A contrapartida da heterogeneidade constitutiva são as formas mostradas, passíveis de

apreensão na materialidade linguística do texto, que vão constituir o processo por ela

denominado ―heterogeneidade mostrada‖, a qual deve ser compreendida como ―formas

linguísticas de representação de diferentes modos de negociação do sujeito falante com a

heterogeneidade constitutiva do seu discurso‖ (AUTHIER-REVUZ, 1991, p.26). Importante

salientar que ―as heterogeneidades‖ não se excluem. Absolutamente; uma não existe em

detrimento da outra. A autora é enfática nesse sentido quando nos diz que o heterogêneo

constitutivo da enunciação está presente na modalidade mostrada de heterogeneidade de

maneira permanente, mas não diretamente observável. Nas palavras dela:

As formas de heterogeneidade mostrada, no discurso, não são um

reflexo fiel, uma manifestação direta - mesmo parcial – da realidade

incontornável que é a heterogeneidade constitutiva do discurso; elas

são elementos de representação - fantasmática – que o locutor (se) dá

de sua enunciação.(AUTHIER-REVUZ, 1991, p.70).

O heterogêneo manifesto, aquele que produz rupturas observáveis no fio discursivo,

consoante a autora, pode se nos mostrar ainda de duas maneiras: marcado e não-marcado. A

heterogeneidade mostrada marcada é da ordem da enunciação, visível na materialidade

linguística, como, por exemplo, o discurso direto, as palavras entre aspas, a citação, o uso de

itálico. Importante, nesse momento da explanação, dizer que o estudo analítico de Authier-

Revuz – modalização autonímica - privilegia as formas marcadas, diretamente flagrantes no

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fio. Há de se esclarecer, a esse respeito, que a autora utiliza o termo ―marca‖ referindo-se à

presença de um outro que acaba por duplicar o mesmo; não pode ser tomada como evidente,

pois, como veremos adiante (cf. seção 3.3.2 deste trabalho), há um processo de negociação em

jogo. Outra observação é que as marcas não têm, na perspectiva da autora, o mesmo estatuto,

mas estão situadas numa escala que inscreve gradativamente o grau de explicitação ―dos

outros‖ no fio discursivo.

Se a heterogeneidade for do tipo mostrada não-marcada, então, é da ordem do

discurso, sem visibilidade, como o discurso indireto livre, a ironia, o pastiche, a alusão.

Chama nossa atenção a descrição feita por Piègay-Gros (1996) acerca das relações

intertextuais, ao classificá-las em explícitas e implícitas, pois enxergamos aí uma proximidade

entre esses dois tipos de intertextualidade e as formas marcada e não-marcada postuladas por

Authier-Revuz. Estas duas autoras classificam a intertextualidade em instâncias bilaterais que

lhe imprimem caracteres perceptíveis e não-perceptíveis. Para Cavalcante (2006), no entanto -

em consonância com o que pensamos -, toda intertextualidade se revela por alguma marca, na

medida em que o enunciador possui a consciência do ato comunicativo que pretende realizar,

daí a proposta da autora se pautar pelo reconhecimento de marcas diferentes de manifestação

das heterogeneidades em contraposição à ausência de marcas textuais proposta por PIÈGAY-

Gros e por Authier-Revuz.

Nesta pesquisa, estendemos esse raciocínio a todos os modos de heterogeneidade

mostrada, por isso reivindicamos que eles sempre apresentam algum tipo de marcação. Assim

sendo, não se justificaria, no quadro classificatório de Authier-Revuz, a chamada

heterogeneidade mostrada não-marcada.

Cumpre registrar que Authier-Revuz (1982) nos fala ensaisticamente de não-

coincidências do dizer, quando se refere aos ―modos de dizer‖, da alteração7 local do dizer,

dos tipos de ruptura pensadas por ela em seu estudo acerca da modalização autonímica.

Embora entendamos que esta designação não mantém com a heterogeneidade mostrada do

tipo marcada diferenças significativas para este trabalho, a referência a ela faz-se necessária

por tratar-se de um tipo de heterogeneidade. Dissemos que a autora nos fala ensaisticamente

porque ela acabou por reservar, posteriormente, em Palavras incertas: as não-coincidências

do dizer, um estudo específico para tais acontecimentos. Aqui, Authier-Revuz (1998) retoma

a questão das heterogeneidades sob a denominação de não-coincidências, situadas em quatro

7 Termo utilizado por Authier-Revuz (1982) para designar a dupla possibilidade de irrupção da alteridade no fio

discursivo, a saber, o pequeno (outro social) e o grande outro (inconsciente).

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campos de não-coincidência em que o dizer se representa como localmente confrontado com

pontos em que, assim alterado, desdobra-se:

a) Não-coincidência interlocutiva entre enunciador e destinatário8, em glosas que,

com estratégias bastante diversas, representam o fato de que uma palavra, uma

maneira de dizer, ou um sentido não são imediatamente, ou de modo algum,

partilhados – no sentido de comum a – pelos dois protagonistas da enunciação. Por

exemplo9, digamos X; X, passe-me a expressão; X, compreenda...; X, se você quer;

X, se você vê o que quero dizer; etc., expressões utilizadas pelo enunciador, na

tentativa de reinstaurar a unidade de co-enunciação no ponto em que se sente

ameaçado. Pode, ao contrário disso, assumir o ponto de não-coincidência: X, assim

como você ousa dizer; X, sei que você não gosta da palavra; X, como você não diz;

etc.

b) Não-coincidência do discurso com ele mesmo, em glosas que assinalam no

discurso a presença estranha de palavras marcadas como pertencentes a outro

discurso e que, através de um leque completo de relações com o outro, desenham no

discurso o traçado que depende de uma ―interdiscursividade mostrada‖, de uma

fronteira interior / exterior. Por exemplo, quando se diz: X, como diz fulano; para

retomar as palavras de X; X, no sentido que fulano emprega; X, no sentido de tal

discurso; etc.

c) Não-coincidência entre as palavras e as coisas, posta em jogo em glosas que

representam as pesquisas, hesitações, fracassos, êxitos, na produção da ―palavra

certa‖, plenamente adequada à coisa. Por exemplo, em: X, por assim dizer; X,

maneira de dizer; como eu diria? X; X, melhor dizendo, Y; X, não, mas eu não

encontro palavra; X, é essa a palavra; não há palavra; X, não existe outra palavra;

etc.

d) Não-coincidência das palavras com elas mesmas, em glosas que designam, ao

modo da rejeição - por especificação de um sentido contra outro – ou, ao contrário,

8 Nomenclatura utilizada por Authier-Revuz. Em nosso trabalho, estamos utilizando os termo co-enunciador e

leitor. 9 Todos os exemplos dessas não-coincidências foram retirados de Authier-Revuz (1991, p.183).

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da integração ao sentido, fatos de polissemia, de homonímia, de trocadilho, etc.,

como em: X, em sentido próprio, figurado; X, não no sentido...; X, nos dois

sentidos; X em todos os sentidos do termo; X, é o caso de dizê-lo, se ouso dizer; etc.

Aos tipos de não-coincidências acima referidos relacionam-se os exteriores teóricos

convocados pela autora na tessitura de sua tese. O primeiro tipo apóia-se no dialogismo

bakhtiniano, ―muito sensível ao heterogêneo relacionado às pessoas e ao peso sócio-histórico

das palavras‖ (1998, p.147); apóia-se, ainda, na concepção lacaniana do sujeito não-

coincidente consigo mesmo, radicalmente clivado em relação a um inconsciente que o

determina. Para tratar da não-coincidência do discurso com ele mesmo, a autora aciona o

dialogismo bakhtiniano ―pelo qual toda palavra, por se produzir no meio do já-dito de outros

discursos, é ‗habitada‘ pelo discurso outro‖ (TEIXEIRA, 2005, p. 162). Nesse aspecto,

Authier-Revuz (1991) recorre à noção pêcheutiana de interdiscurso, pois ela sustenta o

princípio fundamental ―de que toda palavra é determinada por isso que fala, em outro lugar,

antes e independentemente‖ (TEIXEIRA, 2005, p. 162). Os dois últimos tipos de não-

coincidências são respeitantes ao real da língua – de um lado, como forma, como espaço de

equívoco, de outro. Dessa forma, são tratados sob a égide da psicanálise lacaniana.

Vemos que seja sob a denominação de heterogeneidade, seja sob a de não-

coincidência do dizer, o chamamento de exteriores teóricos se faz necessário para compor um

estudo da enunciação que considera que o atravessamento do discurso ―pelos outros‖ é

condição mesma desse discurso.

1.4 Umberto Eco: noção de leitor-modelo

Para apoiar nosso posicionamento, convocaremos a noção de leitor-modelo de

Umberto Eco, por julgarmos que seu pensamento acerca dessa entidade respalde nossa visão

frente a formas não prototípicas de marcação.

O nome de Umberto Eco é, sem dúvida, ponto de referência no campo de estudos do

leitor. Foi em Obra Aberta (1962) que Eco começou a discutir o papel do destinatário na

atualização e interpretação do texto. Segundo ele, não dispunha, naquele momento, ainda, de

instrumentos suficientes para analisar teoricamente a estratégia textual: como o texto

estimulava e regulava a participação do leitor.

Após seu encontro com o Formalismo e com a Linguística Textual, escreve Lector in

Fábula (1979), livro que aprofunda sua discussão e dá a ela sedimentação teórica à sua

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discussão. Nele, afirma que todo texto demanda a participação de seu destinatário. E isso por

dois motivos: para ser atualizado, fazer a correlação expressão-código e também por estar

repleto de espaços em branco, não-ditos, que devem ser preenchidos. Para ele, o texto é um

―mecanismo preguiçoso‖, precisa de alguém que o ajude a funcionar.

Falar que um texto é preguiçoso é invocar o próprio funcionamento da linguagem, sua

não-transparência. Eco admite que a língua não se reduz a um código, ―não é uma entidade

simples, mas, frequentemente, um complexo sistema de regras‖ (ECO, 1979, p. 56) e que não

basta a competência linguística para decodificar uma mensagem, para constituir sentido

(interpretar). Além dela, deve haver ―uma competência circunstancial diversificada, uma

capacidade de pôr em funcionamento certos pressupostos, de reprimir idiossincrasias, etc.,

etc. (sic)‖ (ECO, 1979, p. 56).

Quando o autor produz um texto, faz uma hipótese sobre como este será lido, que

caminhos o leitor deve percorrer, faz uma previsão de como será esse leitor. A essa instância,

Eco chama leitor-modelo. Ele deve se mover no nível da interpretação da mesma forma que o

autor o fez no nível gerativo10

. Para tanto, estratégias são tomadas. Para organizá-las, o autor

do texto ―deve assumir que o conjunto de competências a que se refere é o mesmo de seu

leitor‖ (ECO, 1979, p. 58). Eco ressalta que não se trata de esperar que o leitor-modelo exista,

mas que trabalhe o texto de forma a construí-lo.

Eco (1979), quando advoga em favor de uma entidade pressuposta que emerge de

todos os textos - o leitor-modelo -, refere-se a uma tal entidade abstrata, construída pelo texto

que constitui, em verdade, um conjunto de condições de êxito11

, textualmente estabelecidas,

para a leitura desse texto. Cabe, aqui, a ressalva de que o leitor-modelo de que fala o autor não

se confunde, em hipótese alguma, com o leitor empírico - entidade concreta que se depara

com o texto.

Os meios de que se dispõe para ―selecionar‖ um dito leitor-modelo são múltiplos: a

escolha de uma língua, que exclui quem não a lê; a escolha de um tipo de enciclopédia; a

seleção lexical. Eco adverte que, muitas vezes, há erros de previsão, motivados por análises

infundadas ou preconceitos culturais. Lembra, também, que os textos podem ser classificados

em abertos ou fechados dependendo da forma como as estratégias foram trabalhadas. Os

últimos cerceiam o leitor, dão pouco espaço a ele. Os primeiros são mais "preguiçosos",

pedem mais a participação do leitor.

10

Nível gerativo concerne ao percurso gerativo de sentido (termo da Semiótica), que é uma sucessão de

patamares, cada um dos quais susceptível de receber uma descrição adequada, que mostra como se produz os

sentidos, que vai do mais simples (nível discursivo) ao mais complexo (níveis narrativo e fundamental). 11

Para Condições de êxito, v. AUSTIN, 1962; SEARLE, 1969.

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Assim como Eco, assumimos que o texto postula a cooperação do leitor como

condição própria de atualização. Podemos dizer melhor: o texto é um produto cujo destino

interpretativo deve fazer parte do próprio mecanismo gerativo. Gerar um texto significa

executar uma estratégia de que fazem parte previsões dos movimentos de outrem - como,

aliás, em qualquer estratégia. É relevante, neste ponto, ratificar que a previsão de um leitor-

modelo não significa apenas ―esperar‖ que ele exista, mas significa, também, mover o texto

de modo a construí-lo. O texto não apenas repousa numa competência, mas contribui para

produzi-lo.

É fato que nenhum texto é lido independentemente da experiência que o leitor tem de

outros textos. Desse modo, se aceitamos a proposta do leitor-modelo, estamos aceitando,

também, o fato de que, no momento em que dissimulamos que é nosso o discurso do outro, a

partir de procedimentos intertextuais conscientes, por exemplo, é nesse momento mesmo que

instituímos uma instância cuja competência intertextual tornará possível o alcance semântico

pretendido. Não estamos, com isso, dizendo que, em não se tendo a ―adequação‖ de tal

competência, determinada interpretação será rejeitada – afinal, ela existe como potencialidade

virtual; um texto é um universo aberto em que o intérprete pode descobrir infinitas

interconexões. Com efeito, o ato da leitura de um texto é uma transação difícil entre a

competência do leitor (seu conhecimento de mundo) e o tipo de competência que um dado

texto postula, a fim de ser lido de forma econômica. É relevante salientarmos que não estamos

falando do texto como entidade autônoma. As intenções comunicativas do enunciador, seus

desejos inconscientes são considerados, mas desde que haja um percurso mínimo (textual) que

sinalize nesse sentido.

Face ao exposto, como estamos defendendo que os mecanismos de mostrar, apontar a

presença do outro na superfície textual de modo que essa presença se nos apresente

marcadamente, o chamamento dessa instância proposta por Eco nos parece interessante na

medida em que acreditamos que, quando há consciência na escolha de certos termos, nas

marcações de heterogeneidade, é apostando na visão de um certo leitor-modelo que o autor

mostra as heterogeneidades no discurso, por meio de certas marcas que, por não serem

aquelas clássicas, não trazem consigo a garantia inequívoca de que serão reconhecidas por

todos, o que não faz, absolutamente, com que o fenômeno deixe de estar ali, ponderação

imprescindível para os objetivos deste trabalho.

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CAPÍTULO II

QUESTÕES DE PESQUISA E PROCEDIMENTOS

METODOLÓGICOS

O universo não tem anverso nem reverso

O universo não tem anverso nem reverso

O universo não tem anverso nem reverso

Não tem uro externo nem tem centro secreto

Você está dentro,

não haverás nunca uma porta.

Não espere que o rigor de seu caminho,

desse caminho que teimosamente se bifurca em outro

que obstinadamente se bifurca em outro,

não espere que ele tenha fim.

(Jorge Luís Borges)

2.1 Delimitação do universo

Nossa pesquisa procede a uma releitura crítica da teoria da heterogeneidade

enunciativa, instituída por Authier-Revuz (1982). Travamos uma discussão em torno do

esquema proposto pela autora, com vistas a repensar a discretização das modalidades de

heterogeneidade constitutiva, a saber, a constitutiva, em oposição à mostrada, podendo, esta

última, ser do tipo marcada ou não-marcada, com vistas a cumprir nosso desiderato precípuo,

qual seja, o de incluir fenômenos de natureza não estritamente formal entre os fatos de

linguagem tidos como marcados, ampliando, assim, o leque de marcações para os casos de

mostração.

Para argumentar em favor dessa ―abertura‖ para que procedimentos de natureza (mais)

sócio-cognitiva sejam alocados no âmbito do localizável, recorremos a processos de

referenciação que desempenham papel de eficientes marcadores discursivos, sem que, para

tanto, precisem vir acompanhados de indicadores formais que denunciem marcação.

Nossos esforços vão em direção à tentativa de conferir autonomia a certas marcas

linguísticas que, inseridas em contextos específicos, promovem a marcação da alteridade no

fio discursivo. Mais especificamente, tentaremos analisar que processos de continuidades

referenciais anafóricos (sobretudo as anáforas indiretas) e dêiticos apresentam estatuto de

marcadores, assim como aqueles ditos formais. Incluiremos, também, o processo de

recategorização como categoria de análise, já que pode estar condensada nos processos supra,

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quando entendida como uma transformação cognitiva do referente. Processos intertextuais por

alusão e o discurso indireto livre também encontraram lugar em nossas considerações.

2.2 Questões de pesquisa

Esta pesquisa está assentada no pressuposto de que é possível haver marcação explícita da

presença da voz do outro no fio discursivo sem que, para tanto, esta tenha que vir indicada por

vias prototípicas (aspas, itálico, negrito, discurso direto, mudança de fonte).

Partimos dessa linha de raciocínio para fazermos os seguintes questionamentos:

a) Que marcas linguísticas promovem a mostração do outro no fio discursivo sem que

haja uma marcação prototípica (aspas, itálico, negrito mudança de fonte, discurso

direto) dessa alteridade?

b) Que heterogeneidades são intertextuais?

c) Que processos referenciais evidenciam casos de intertextualidade?

d) Que processos de referenciação podem evidenciar fatos de heterogeneidade?

e) Nas heterogeneidades não-intertextuais, em que casos os processos referenciais podem

constituir marcas?

A partir desses questionamentos, propomos as seguintes hipóteses:

Hipótese básica:

É possível reconhecer outras possibilidades de mostração-marcação da alteridade no

fio discursivo, a partir de diferentes fenômenos de intertextualidade e de estratégias de

referenciação.

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Hipóteses secundárias:

a) Dentre as marcas tipicamente consideradas como marcações de explicitude da alteridade

no fio discursivo, estão as que assinalam a intertextualidade por co-presença da citação,

como verbos dicendi e equivalentes, dois pontos, aspas, itálicos, negrito, indicação da

fonte;

b) A intertextualidade por alusão é a que mais claramente se estabelece por um processo de

referenciação, classificado na literatura como anáfora indireta;

c) Os demais tipos de heterogeneidade discursiva que são intertextuais não se descrevem

por um processo referencial específico, mas podem ser reconhecidos com a ajuda de

introduções referenciais, em primeiro lugar, mas também de anafóricos e dêiticos;

d) Nas heterogeneidades não-intertextuais, os seguintes processos referenciais podem

constituir marcas: 1) anáforas diretas e indiretas, que podem constituir mecanismos de

marcação de vozes distintas no discurso; 2) recategorização homologada por expressão

de introduções referenciais, que pode também constituir um mecanismo de marcação de

alteridade no fio discursivo; 3) dêiticos de tempo e de espaço, que podem indicar a

existência de discurso indireto livre e, dessa forma, marcar alternância de vozes entre

narrador e personagem;

2.3 Procedimentos metodológicos

2.3.1 Etapas do trabalho

1. Na primeira etapa deste trabalho, procedemos a uma leitura exaustiva da literatura, nas

diferentes vertentes dos estudos da enunciação que trata, direta ou indiretamente, do

assunto, para que pudéssemos travar uma discussão rigorosa acerca dos mecanismos de

que dispõem os sujeitos da enunciação para marcar a ―alteração‖ de seu discurso. Nesse

primeiro momento, encampamos nossa pesquisa na Linguística da Enunciação, mas

também em pressupostos da Linguística do Texto;

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2. Posteriormente, descrevemos as categorias de análise em torno das quais visualizamos os

fenômenos que queremos que sejam tratados como se mostrando na materialidade

linguística como marcados: os fenômenos intertextuais e os processos de referenciação;

3. Feito isso, partimos para a identificação das heterogeneidades textuais e intertextuais em

textos de gêneros variados (não trabalhos exatamente com um corpus, senão apenas com

um exemplário);

4. Identificamos, então, as marcas de referenciação que enxergamos nas intertextualidades e

quais os processos referenciais especificamente que funcionavam como mostradores de

heterogeneidade marcada no fio discursivo;

5. O passo seguinte foi a definição dos textos para análise. Para demonstrar o que estamos

defendendo, não nos utilizamos de textos de um gênero específico, uma vez que

objetivamos investigar tão-somente estratégias ―alternativas‖ de marcação. Não é

pretensão nossa, pois, atrelar tais possibilidades marcativas a um gênero específico, nem

à predominância desta ou daquela sequência textual; focalizamos o fenômeno

independentemente do gênero em que ele se manifeste ou da sequência em que esteja

inserido; mais exatamente, não fizemos uma associação direta, porque a relação entre os

gêneros e sequências e o fenômeno estudado existe: uns vão ser mais propensos a certos

tipos de intertextualidade e de processos referenciais do que outros, fato do qual não

iremos nos ocupar. Será, portanto, convocado um exemplário de vinte textos pertencentes

a gêneros variados, com vistas a respaldar materialmente o intento que orienta o

empreendimento desta pesquisa: comprovar textualmente que é possível haver marcação

sem, necessariamente, indicá-la pelas vias formalmente já aceitas;

6. O exemplário da análise reúne 20 textos cujos gêneros se alternam entre artigo de

opinião, crônica, conto, nota de coluna, poema, relatório e soneto. Ancoramos nossas

considerações nas seguintes categorias:

a) Analisamos a dêixis de memória, identificando as marcas que ela promoveu e de que

forma essas marcas se mostram textualmente, num ponto específico da cadeia do

dizer, ao interlocutor;

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b) Analisamos, a partir das dêixis de espaço e de tempo, as marcas de heterogeneidade

que promoveram na superfície textual e de que forma essas marcas se mostram

textualmente, produzindo uma opacificação local no fio discursivo, ao interlocutor;

c) Utilizamos a recategorização como critério de análise para demonstrar que tipo de

marca tal fenômeno promove na materialidade linguística e de que maneira essa marca

se mostra concretamente, em um ponto específico da cadeia do dizer, ao interlocutor;

d) Utilizamos o discurso indireto livre como critério de análise para demonstrar que tipo

de marca promove no fio discursivo e de que maneira essa marca se mostra ao

interlocutor;

e) Partimos da intertextualidade por alusão para demonstrar a natureza da marca que

promove no fio discursivo e de que maneira essa marca se mostra, por meio de

procedimentos de remissão indireta e em pontos específicos da materialidade

linguística, ao interlocutor.

Em nossa análise, demonstramos, a partir de elementos textuais, como um fato de

heterogeneidade se mostra por meio das categorias analíticas que elegemos para legitimar a

proposta maior de nossa empresa: a de incluir, entre as marcas que opacificam um ponto

específico da cadeia do discurso, processos referencias de natureza anafórica e dêitica.

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CAPÍTULO III

HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA

______________________________________________________________________

Combinando uma simulação com uma

dissimulação, o discurso é uma

trapaça: ele simula ser meu para

dissimular que é do outro.

(Edward Lopes)

3.1 Balizagem teórica: filiação

3.1.1. Benveniste: os estudos enunciativos

É particularmente seguindo a senda dos estudos enunciativos empreendidos por

Benveniste (1988) que Authier-Revuz (1982) alicerça seu estudo acerca da heterogeneidade

enunciativa. Como já fizemos referência a seus estudos em outro momento deste trabalho (cf.

item 1.2.2), relacionamos pelo menos três pontos específicos da obra do linguista francês nos

quais Authier-Revuz se apóia para, então, avançar:

Afirmação da propriedade reflexiva da língua, pela qual ela se coloca em

posição privilegiada entre os sistemas semióticos;

Reconhecimento da língua como ordem própria, sem que, por isso, o linguista

deva rejeitar o que é da ordem do discurso, que está aí mesmo contido;

Indicação de que certas formas da língua - como os pronomes pessoais, os

tempos verbais, os performativos, os delocutivos – são os sinais, na língua, do

que lhe é radicalmente outro.

Assim como Benveniste, a autora é herdeira do legado saussuriano e não despreza o

objeto da linguística - qual seja a língua como tendo sua ordem própria – o que a coloca,

como ela mesma se define, entre os neo-estruturalistas, haja vista que não relega, como

veremos, a convocação de exteriores teóricos para a abordagem dos fatos da língua.

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O segundo postulado benvenistiano é interessante para Authier-Revuz na medida em

que propõe a ―viabilização do trânsito entre a língua e a anunciação‖ (TEIXEIRA, 2005,

p.133), sem que esse movimento se dê por um ato de dissolução do objeto nos moldes

saussurianos. Desta feita, a ancoragem neste ponto do pensamento do linguista francês se

justifica, pois a unidade de seu projeto encaixa-se exatamente nessa vontade de, sem rejeitar o

projeto saussuriano, ultrapassá-lo.

Quanto ao terceiro aspecto, Benveniste define um quadro formal em que se realiza a

enunciação; com esse quadro, faz aparecer, na própria estrutura da língua, elementos próprios

do discurso, a saber, o sujeito e a referência. Quando de seu estudo de determinadas formas da

língua – índices de pessoa, de ostenção e os tempos verbais -, o autor chega à conclusão de

que há elementos que, oriundos da enunciação, ―não existem senão na rede de ‗indivíduos‘

que a enunciação cria e em relação ao ‗aqui-agora‘ do locutor‖ (1989, p.86). Vemos, então, a

subjetividade afetando o sistema formal, ideia fundamental em torno da qual nossa autora

constrói sua empresa.

Authier-Revuz percebe, desde já, que Benveniste promove certa abertura ao exterior

em seu estudo acerca da enunciação, sem que, para isso, abra mão dos princípios

saussurianos, fator que, essencialmente, justifica o interesse da autora pelo projeto

benvenistiano.

3.1.2 Rey-Debove: conotação autonímica

Authier-Revuz toma como ponto de partida para o estudo em que se concentra, a

modalização autonímica, a autonímia / conotação autonímica, tal como a institui Rey-Debove

(1978), no campo da semiótica. A descrição fornecida por esta autora é de natureza semiótico-

linguística e parte do pressuposto de que a ―menção‖ duplica o ―uso‖.

―Tome um signo, fale dele e você terá uma autonímia‖, sintetiza Rey-Debove. Quando

temos, por exemplo, uma frase do tipo A palavra “casa” tem duas sílabas, a palavra ―casa‖ é

vista como tendo sido mencionada pelo locutor e não usada por ele, o que significa dizer que

estamos diante de um caso de autodesignação do signo, exatamente o que caracteriza a

autonímia. O signo autonímico - ―em menção‖ - faz com que o transformemos num signo cuja

estrutura semiótica é complexa. Em outros termos, o signo autonímico é um outro signo, mas

que apresenta os mesmos significantes do signo normal – em uso -, aquele que tem

significante e significado, assim como o de Saussure. Vejamos os exemplos que colhemos de

Teixeira (2005, p.142):

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(1) Compor é difícil.

(2) ―Compor‖ é uma palavra ambígua.

Em (1), podemos visualizar o emprego normal do signo. Isso porque compor é um signo

simples cujo significante é /kõp‘or/ e o significado é <compor>. No exemplo (2), é como se o

signo ―compor‖ tivesse dois andares12

. Temos aí um signo autonímico cujo significante é

/kõp‘or/ e cujo significado, equivalente à palavra compor, é formado pela união do

significante /kõp‘or/ e do significado <compor>. É pelo fato de o significante ser parte

integrante do significado do signo autonímico que lhe é atribuído um estatuto semiótico

complexo.

Um outro exemplo:

(3) É um ―marginal‖, como dizemos hoje em dia.

Aqui, está-se referindo a um indivíduo que se encontra à margem da sociedade para,

então, a palavra ―marginal‖ ganhar voz. Dessa forma, estamos diante de um caso em que:

A palavra torna-se objeto do dizer ao mesmo tempo em que é

utilizada: fala-se da ―coisa‖ e simultaneamente da palavra pela qual se

fala da ―coisa‖, acumulando-se dois empregos: o uso e a menção. [...]

Relativamente à semiótica denotativa que fala do ―mundo‖ [...] e à

semiótica metalinguística que fala do signo via autonímico [...], a

conotação autonímica aparece como uma estrutura em que se

acumulam as duas semióticas, constituindo um modo bastardo em que

se emprega e se cita o signo ao mesmo tempo [...]. (2005, p.142).

A conotação autonímica consiste, portanto, nesse fenômeno cumulativo de uso e menção.

É na esteira desse raciocínio que Authier-Revuz elege para seu estudo as aspas de

conotação autonímica, que se apresentam em cinco possibilidades, quais sejam:

1. Aspas de diferenciação – são usadas em estrangeirismos, neologismos, palavras

técnicas e familiares, para assinalar a distância entre as palavras do locutor e as dos

outros:

(4) O ―sit-in‖ dos estudantes defronte da embaixada...13

(5) A ―giscardização‖ acelerada da administração superior.

12

Cf. Authier-Revuz (1995, p. 30) 13

Todos os exemplos fora extraídos de Authier-Revuz (1980).

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2. Aspas de condescendência – usadas quando o locutor, assumindo uma posição

paternalista, utiliza uma palavra apropriada ao universo do receptor, mas , como que a

preservar a própria imagem, marca com aspas seu distanciamento em relação a esse

universo:

(6) Ora, muitas vezes, essa atividade da célula se torna lenta. A pele, especialmente se for

seca ou fina, ―estica‖ e ―se marca‖ por qualquer coisa.

3. Aspas de proteção – usadas quando o locutor é levado a empregar palavras que julga

carregadas de um saber que não considera ter ou de uma situação social que julga não

ser a sua ; como forma de proteção, opta, então, pelo aspeamento:

(7) A publicação por La Croix da entrevista de M. Beullac teve o efeito de uma ―bomba‖.

4. Aspas de questionamento ofensivo – usadas quando o locutor é obrigado a se

expressar por meio de palavras que percebe como impostas pelo exterior, tomando

suas próprias palavras como interditadas; o uso das aspas é utilizado como forma de

defesa e demonstra ―uma reação ofensiva em uma situação dominada‖ (AUTHIER-

REVUZ, 1981, p.132):

(8) Toda criança que vem ao mundo por ―acidente‖ pode muito bem ser, de fato,

inconscientemente desejada.

5. Aspas de ênfase – usadas como forma de ressaltar aquilo que realmente se quer dizer;

funcionam como uma resposta à suspensão de responsabilidade própria a qualquer

colocação de aspas; esse último tipo pode ser substituído por itálico ou negrito,

conforme a autora:

(9) [...] LA CROIX lhe traz as informações, as precisões, os números graças aos quais

você formará uma opinião (―sua‖ opinião) e graças aos quais você não se deixará enganar

com facilidade.

Vemos que o estudo a que procede Authier-Revuz acerca das aspas revela que a autora se

inscreve no campo aberto por Rey-Debove pela via de um deslocamento do ponto de vista

semiótico para o linguístico.

3.2 Heterogeneidade teórica: a convocação de exteriores

O estudo de Authier-Revuz é dedicado particularmente a um tipo de configuração

enunciativa da reflexividade metaenunciativa – a modalização autonímica - que ela

circunscreve às noções de transparência e opacidade, de Récanati (1979), e de conotação

autonímica, de Rey-Debove (1978), nos termos descritos no item anterior.

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Antes de detalharmos a perspectiva enunciativa da autora, cabe um parêntese para

especificarmos em que medida a reflexão lógico-filosófica de Récanati (1979) é considerada

em seus estudos. Authier-Revuz toma emprestadas as considerações que o autor faz acerca da

oposição transparência / opacidade referencial do signo. Diferente da clássica concepção de

signo saussuriana que, segundo ele, privilegia o semiótico, concebe esta entidade como ―um

vidro transparente que permite ver outra coisa além dele próprio, e essa transparência vem do

fato de representar a coisa significada sem ele mesmo se refletir nessa representação‖

(FLORES & TEIXEIRA, 2005, p.81). Desta feita, o signo transparente é posto em ação pelo

locutor quando este faz uso deste signo que, enquanto tal, não aparece propriamente: é a coisa

significada, mediada por ele, que aparece. Acontece, entretanto, que o signo pode se remeter a

ele mesmo; neste caso, a transparência é subtraída de sua condição, o que faz com que se

opacifique. É isso que se dá quando fazemos menção do signo: tratamo-lo como a própria

coisa de que se fala.

Voltando à Authier-Revuz, consideramos que a singularidade de sua perspectiva se deve

ao reconhecimento de que o campo da enunciação é marcado por uma dupla heterogeneidade:

a linguística e a teórica. Assumindo essa postura, sobretudo no que tange a este último tipo de

heterogeneidade, vê como inevitável o chamamento, para a descrição dos fatos da língua, de

abordagens exteriores à linguística como tal, de modo que se abandone ―um domínio

homogêneo, onde a descrição é da ordem do ‗UM‘, por um campo duplamente marcado pelo

‗NÃO-UM‘14

, pela heterogeneidade teórica que o atravessa [o discurso]‖. (1998, p.166). De

acordo com Authier-Revuz (1982), os teóricos que deram início aos estudos da enunciação

fizeram-no sem estabelecer seus limites. A autora, ao apresentar seu ponto de vista, advoga

em favor da heterogeneidade teórica, afirmando que três campos do conhecimento são

requeridos para abordar a enunciação: a Linguística (stricto sensu), a Psicanálise e a Análise

do Discurso. Segundo ela, é preciso expandir o modelo teórico, não confundindo as

contribuições de cada campo mobilizado.

É, basicamente, a partir de contribuições de Bakhtin e Pêcheux e da Psicanálise

freudo-lacaniana que Authier-Revuz institui uma perspectiva inovadora para a investigação

das formas de modalização autonímica, pelas quais um enunciador representa seu discurso –

se representa em seu discurso - como inevitavelmente marcado pela heterogeneidade que o

constitui.

14

Authier-Revuz se refere à dupla heterogeneidade que inside sobre o campo da enunciação: a dos fatos

linguísticos observados e a das escolhas teóricas acionadas para a descrição desses fatos.

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3.2.1 Bakhtin: o dialogismo

Em Bakhtin, é do conceito de dialogismo que a autora irá lançar mão para

fundamentar a heterogeneidade constitutiva do discurso. O dialogismo bakhtiniano faz da

interação com o discurso do outro a lei constitutiva de qualquer discurso. Authier-Revuz toma

esse princípio em duas diferentes concepções: a do diálogo entre interlocutores e a do diálogo

entre discursos, referidos, sob a ótica da autora, com os termos ―interação e discursividade‖

(1982, p.140). Visto do primeiro modo, o dialogismo não se reduz ao diálogo face a face, pois

o que Bakhtin propõe é uma teoria da dialogização interna do discurso. Para o pensador russo,

a comunicação é muito mais que a transmissão de mensagens; ela tem o sentido antropológico

de processo pelo qual o homem se constitui em uma relação de alteridade. Visto daquela

forma, a do diálogo entre discursos, o dialogismo traz a ideia de que o discurso não se

constrói a não ser pelo atravessamento de uma variedade de discursos, as palavras sendo já

―habitadas‖ por outras ressonâncias. Para ele, não há palavras neutras; todas as palavras estão

fatalmente carregadas, atravessadas pela alteridade. Lembramos, ainda, que, na perspectiva de

Bakhtin, todo discurso se encontra diretamente determinado por uma resposta antecipada:

―Ao se construir na atmosfera do já-dito, ele se orienta tanto para o espaço interdiscursivo

como para o discurso- resposta que ainda não foi dito, mas foi solicitado a surgir, sendo já

esperado‖ (1993, p.89).

Consoante Authier-Revuz (1982), a noção de dialogismo bakhtiniana faz da interação

com o discurso do outro ―a lei constitutiva de todo discurso‖ (p.140), entendendo se tratar, em

Bakhtin, de ―um outro que não é nem o duplo nem um face a face, nem mesmo o ‗diferente‘,

mas sim um outro que atravessa constitutivamente o um‖ (p.103).

3.2.2 Psicanálise freudo-lacaniana: o Outro

A psicanálise freudo-lacaniana é trazida para o escopo teórico da autora pela dupla

concepção que apresenta de uma fala fundamentalmente heterogênea e de um sujeito dividido

estruturalmente. O que, de modo particular, mobiliza a atenção de Authier-Revuz é o fato de a

psicanálise mostrar que, atrás da linearidade da emissão por uma única voz, faz-se ouvir uma

pluralidade de vozes - a descontinuidade: o discurso sendo constitutivamente atravessado pelo

discurso do O/outro.

A autora articula a teoria da heterogeneidade da palavra a uma teoria do sujeito efeito

de linguagem. Para ela, a instância subjetiva não existe fora da ilusão e do fantasma nem pode

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ocupar uma posição de exterioridade em relação à linguagem, tampouco a de centro em que

emanariam, particularmente, a fala e o sentido.

A noção de outro com a qual trabalha Authier-Revuz - não como um objeto exterior de

que se fala, mas como condição constitutiva do discurso - tem sua ancoragem fundada em

Bakhtin e Lacan, os quais concebem esta entidade de maneira diferente. Para Bakhtin, a noção

de outro recobre os outros discursos constitutivos do discurso; o outro da interlocução cuja

compreensão responsiva é pressuposta pelo sujeito que toma a palavra; e o superdestinatário,

um terceiro invisível, situado acima de todos os participantes do diálogo. Já Lacan distingue

um Outro que é da ordem de uma alteridade radical, espaço aberto de significantes que o

sujeito encontra desde seu ingresso no mundo; e um ―outro‖ definido como outro imaginário,

lugar da alteridade especular.

A instância do inconsciente constitui a hipótese fundadora do edifício psicanalítico,

inaugurado por Freud no final do século XIX, o qual teve Lacan por seu mais significativo

exegeta. O que interessa à teoria da heterogeneidade enunciativa na intervenção de Lacan na

Psicanálise é o fato de situar o inconsciente como lugar de um saber constituído por um

material linguístico em si mesmo desprovido de qualquer significação; como sendo a própria

história do sujeito: constitutivo dele, portanto.

O inconsciente é esse capítulo da minha história que é marcada por

um branco ou ocupado por uma mentira: isto é, o capítulo censurado.

Mas a verdade pode ser reencontrada; o mais das vezes ela já está

escrita em algum lugar. (LACAN, 1985, p.124).

Lacan (1998) nos apresenta a instância inconsciente como uma cadeia de significantes

que se repete e insiste, aproveitando-se das frinchas no discurso consciente do sujeito para se

fazer enxergar e deixar suas marcas. É, então, por meio do discurso que fala o inconsciente,

daí por que a psicanálise de orientação lacaniana reconhece como seu campo de ação a fala,

lugar onde, por meio de chistes, atos falhos, esquecimentos, entre outros tropeços de

linguagem, o inconsciente se manifesta.

Para Lacan, não há verdade e significação possíveis fora do campo da linguagem. Para

ele, a linguagem não se confunde com as diversas funções somáticas e psíquicas que a

desservem no sujeito falante, pela razão primeira de que ela, com sua estrutura, preexiste à

entrada de cada sujeito num momento de seu desenvolvimento mental (LACAN, p.498). Se

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assim for, temos, no registro do simbólico15

, o lugar, por excelência, de constituição do

sujeito. Nesse contexto, trazemos o famigerado axioma lacaniano o inconsciente é o discurso

do Outro, sendo esse não o outro que se evidencia na imagem especular, mas o Outro

enquanto alteridade absoluta, estrutural, constitutiva do sujeito - representante da linguagem.

Sob esse prisma, o sujeito, com efeito, é compreendido como efeito do significante, porque

submetido à sua lei. Fundamentamos no dizer de Settineri (2002) nossa resenha quanto ao

lugar de constituição da subjetividade:

Lacan toma de Lévi-Srtauss a ideia de que há uma lei simbólica

universal, fundadora da aliança e do parentesco, que irá se aproximar

daquilo que Freud havia colocado em um lugar central do

inconsciente, o complexo de Édipo. O sujeito se constitui no lugar do

Outro, sendo tomado em uma cadeia simbólica desde antes de seu

nascimento até depois de sua morte. (p.252).

O discurso do Outro é teorizado como sendo uma cadeia de elementos discretos, que,

para se fazer reconhecer, insistem de modo a interferir nos cortes oferecidos no discurso,

constituindo um sintoma, o qual, conforme Lacan, ―se resolve inteiramente numa análise de

linguagem, porque ele próprio é estruturado como uma linguagem, que ele é linguagem cuja

fala deve ser libertada.‖ (1985, p. 133).

No objeto da linguística, tal qual empreendida por Saussure, Lacan encontra apoio

para postular que podem ser encontrados, nas leis que regem o inconsciente, os efeitos

essenciais que se descobrem no discurso efetivo dos sujeitos: ―de nossa parte, vamos fixar-nos

apenas nas premissas que viram seu valor confirmado pelo fato de a linguagem ter

efetivamente conquistado, na experiência, seu status de objeto científico.‖ (1998, p. 499). A

essa base de apoio se refere o aforismo lacaniano o inconsciente é estruturado como uma

linguagem, já que o psicanalista se concentra, quando da fala do analisando, na dimensão da

diferença e da repetição. Como bem interpreta Settineri (2002, p. 252), ―o inconsciente, para

Lacan, é estruturado como uma linguagem, não por uma linguagem; apesar desta ser sua

condição, ele não é uma linguagem‖ (grifos do autor).

Conquanto Authier-Revuz proceda a um chamamento exterior à linguística

propriamente dita, vale dizer que o trabalho por ela desenvolvido não se pretende

especializado nas teorias convocadas, como esclarece a própria autora:

15

Lacan (cf. LACAN, 1999) demonstra que o real, o simbólico e o imaginário – necessariamente nessa ordem –

definem a estrutura psíquica dos sujeitos. Mostra que, nessa estrutura, esses registros estão ligados à maneira de

um nó borromeu, ou seja, que se retirarmos um deles, os dois outros não fazem estrutura, partem cada qual para

seu lado.

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[...] esse trabalho, se ele encontra e se apóia na teoria do discurso e do

sentido de Pêcheux e na teoria lacaniana do sujeito, não é de modo

nenhum um trabalho de ‗análise do discurso‘, muito menos de

‗psicanálise‘. (1995, p. 59-60).

Vale frisar que o fato de Lacan ter situado a questão da alteridade na perspectiva de

uma determinação inconsciente torna sua concepção de outro completamente distinta da de

Bakhtin. Authier-Revuz (1982) destaca essa diferença dizendo que esse Outro do

inconsciente, do imprevisto do sentido, abre, nos processos discursivos, uma heterogeneidade

de outra natureza em relação à que estrutura o discurso em Bakhtin.

As considerações de Bakhtin e de Lacan acerca da alteridade, como vimos, não são

passíveis de articulação; os autores falam de lugares diferentes. Cônscia disso, ao apoiar sua

teoria da heterogeneidade enunciativa nos trabalhos desses dois, Authier-Revuz se contenta

em justapô-los.

3.2.3 Pêcheux: a noção de interdiscurso

O chamamento de Pêcheux para a composição da heterogeneidade teórica

reconhecida por Authier-Revuz dá-se por ocasião dos últimos desenvolvimentos teóricos da

obra do autor. É a fase da famigerada autocrítica por que passou, quando de sua reestruturação

teórica acerca das instâncias subjetiva e enunciativa. Estamos nos anos 80, momento em que

se inaugura a 3ª fase da Análise do Discurso francófona, a partir do reconhecimento, por parte

de Pêcheux, de um sujeito instituído por um triplo registro: imaginário, simbólico e real; esse

triplo registro, consoante esse deslocamento teórico, emerge nas formas singulares da fala do

sujeito, fato que o conduz a redimensionar o lugar dado ao fio discursivo.

Antes de estabelecer a ponte entre a noção de interdiscurso – maturada na 3ª fase da

AD - e a teoria da Heterogeneidade Enunciativa de Authier-Revuz, cumpre mencionar muito

brevemente as duas fases anteriores por que passou a Análise do Discurso, percorrendo um

tumultuado percurso até sua (re)estruturação. O assentamento das bases, cuja culminância se

dá na 3ª e última fase das reflexões de Pêcheux, é atribuído ao que o próprio autor chama de

conversão filosófica do olhar.

A primeira tópica pecheutiana - Análise Automática do Discurso, de 1969 (AAD) -

caracterizou-se pela exploração teórico-metodológica da noção de maquinaria discursiva

estrutural; concebia o processo de produção discursiva como ―uma máquina autodeterminada

e fechada sobre si mesma, de tal modo que um sujeito-estrutura determina os sujeitos como

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produtores de seus discursos‖ (Pêcheux, 1997, p.311). Nesse primeiro momento, como

vemos, o sujeito acreditava-se produtor de seu discurso - crença absolutamente contestável,

uma vez que é, ainda, completamente assujeitado, suporte para a produção do discurso.

Num segundo momento, a AAD é repensada e passa por algumas redefinições

epistemológicas, sobretudo no que respeita às noções de discurso, que passa a ser

compreendido dentro da perspectiva do materialismo histórico, e de sujeito, que é remetido ao

campo psicanalítico.

O conceito foucaultiano de formação discursiva (FD), bem como o gérmen da

concepção de interdiscurso, são incorporados à AD como que para minar a IDEIA de

qualquer possibilidade que assuma o discurso e o sujeito de modo inteiramente homogêneos.

Nos termos de Foucault (1987), uma FD vem a ser um ―conjunto de regras anônimas,

históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram uma época dada, e para

uma área social, econômica, geográfica ou linguística dada, as condições de exercício da

função enunciativa‖ (p.43-44).

A introdução do conceito de FD no escopo teórico da AD começa a balançar as

estruturas daquela noção de máquina estrutural fechada, ―na medida em que o dispositivo da

FD está em relação paradoxal com seu ‗exterior‘: uma FD não é um espaço estrutural

fechado, pois é constitutivamente ‗invadida‘ por elementos que vêm de outro lugar‖

(PÊCHEUX, 1997, p.314).

Neste momento, a ideia de homogeneidade enunciativa é abandonada como resultado

da interação cumulativa de momentos de análise linguística e discursiva. Essa postura

permitiu o deslocamento da noção de constituição do discurso, que passou a ser concebido

como constituído no entrecruzamento entre a estrutura e o acontecimento, como consequência

da mudança de enfoque da estrutura para o acontecimento. Permitiu, também, dentro da

perspectiva de que a heterogeneidade enunciativa é constitutiva do discurso, a percepção de

lugares enunciativos plurais no fio do discurso. Inicia-se, aqui, o processo de desconstrução

da maquinaria discursiva de 69.

A AD recusa, desde o primeiro momento, ―qualquer metalíngua universal

supostamente inscrita no inatismo do espírito humano, e de toda suposição de um sujeito

intencional como origem enunciadora de seu dizer‖ (PÊCHEUX, 1997, p.311). No entanto,

foi somente a partir do refinamento teórico pelo qual passou e, conseqüentemente, da

postulação do primado da relação, que o sujeito do discurso passou a ser compreendido a

partir de duas dimensões: a ideológica e a psicanalítica.

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Por meio do conceito de forma-sujeito, a instância subjetiva desse momento do

pensamento pecheutiano é remodelada a partir da tentativa de articular a concepção de sujeito

da ideologia de Althusser à de sujeito efeito de linguagem da psicanálise lacaniana. Com

vistas a superar a ideia de transparência subjetiva, a noção de forma-sujeito nasce como modo

de reconhecimento da ação ―exterior‖ da qual o sujeito é, infalivelmente, ―vítima‖.

A partir do conceito de interpelação, de Althusser, Pêcheux procede a uma particular

leitura que, entre outras derivações, identifica o sujeito do discurso com a FD – representante

das formações ideológicas na linguagem – a que está subjugado. Esse sujeito é associado,

pelo autor, ao Outro lacaniano, para quem, como vimos no item anterior, o inconsciente é o

discurso do outro. Estão postas, então, as duas estruturas fundamentais que constituem o

sujeito desta segunda fase da AD.

Assim – forçadamente - delineado, o sujeito é, então, caracterizado por dois tipos de

esquecimentos, que, como bem observa Teixeira, ―não designa perda de alguma coisa que se

tenha tido um dia. Trata-se do acobertamento da causa do sujeito no próprio interior de seu

efeito, ou seja, o sujeito se constitui pelo esquecimento daquilo que o determina‖ (2005,

p.48). Pelo esquecimento um – de natureza inconsciente e ideológica -, o sujeito tem a ilusão

de que é o criador absoluto do seu discurso, a origem do sentido, apagando tudo que remeta

ao exterior de sua formação discursiva, ―instituindo a ilusão de ser Um, pelo apagamento do

fato de que os sentidos não originam nele (2005, p.49); essa forma de esquecimento respeita a

uma zona inacessível ao sujeito e coloca-o como que precedendo o discurso, na origem

mesma do sentido. No esquecimento dois – situado dentro do domínio do sujeito -, tem-se a

ilusão de que tudo que se diz tem apenas um significado e que este será devidamente captado

por seu interlocutor; há a impressão da transparência do sentido, fazendo com que o sujeito

tenha a ilusão de que seu discurso reflete o conhecimento objetivo da realidade; esquece-se de

que o discurso caracteriza-se pela retomada do já dito; tal esquecimento ―cobre exatamente o

funcionamento do sujeito do discurso na FD que o domina, sendo aí, precisamente, que se

apóia sua ‗liberdade‘ de sujeito-falante, liberdade que se nada mais é do que a aceitação

(livre) de sua submissão‖ (2005, p.50).

Finalmente, na década de 80, a terceira fase da AD é inaugurada evidenciando,

definitivamente, o outro em detrimento do mesmo. É exatamente este momento teórico que

justifica a incursão a que procedemos, vez que culmina aqui a noção de interdiscurso, bem

como o assentamento da teoria psicanalítica do sujeito no interior da disciplina,

amadurecimento que justifica o chamamento da AD para a composição do posicionamento

teórico de Authier-Revuz no que respeita ao estudo das ―heterogeneidades‖. Mas é

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precisamente na concepção de interdiscurso que a autora encontra eco para pensar os fatos de

heterogeneidade.

O conceito de interdiscurso16

, tal qual concebido pela AD3, compromete a

transparência antes conferida aos discursos, de vez que é entendido enquanto memória

discursiva, ou seja, como um conjunto de já-ditos que sustenta, irremediavelmente, todo e

qualquer dizer ―e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do

dizível, sustentando cada tomada de palavra‖ (ORLANDI, 2003, p.31). O processo de

construção dos sentidos extrapola a palavra, já que coloca os dizeres em relação com a

exterioridade, considerando não apenas o que é dito ad hoc, mas também alhures, o que

coloca historicidade e memória nas entranhas da concepção de interdiscurso. Nesse sentido,

Courtine (1984, apud ORLANDI, 2003, p.32) coloca esse conceito, em termos de

constituição, como representado num eixo vertical em que teríamos todos os dizeres e já-

ditos; no interdiscurso, conforme o autor, fala uma voz sem nome: é necessário que o dizer de

um sujeito específico, em dado momento, seja apagado da memória para que possa significar

num dizer ―atual‖. É o interdiscurso, como vemos, a instância que disponibiliza dizeres que

constrangem o modo como os sujeitos significam em uma situação discursiva específica.

Enxergamos aí a assunção da heterogeneidade fundante, vale dizer, estrutural, de que fala

Authier-Revuz.

O interdiscurso está pautado na premissa de que alguma coisa fala antes, algures,

independentemente. Esse ―anterior pressuposto‖, conceitualmente, não constitui um ―antes-

passado-vivido‖, mas a busca de um efeito de sentido no entrelaçamento do passado com o

presente. Esse modo de ver a relação passado/presente acena para a psicanálise, na medida em

que:

A terapêutica psicanalítica entrevê, nas palavras do paciente, uma

organização que ―trai‖ uma gênese, impossível, entretanto, de ser

capturada. A AD3 dialoga com sua matéria, procurando surpreender

os pontos em que a rede de sentidos relativamente estável que

constitui o discurso – o sempre-já-aí (o pré-construído) – é

desestratificada pelo equívoco que atravessa o acontecimento.

(TEIXEIRA, 2005, p.180).

16 Para falar de interdiscurso, faz-se necessário mencionar o conceito de intradiscurso, que vem a ser a

intervenção do sujeito no espaço do repetível.

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Quanto ao ajuste teórico acerca da instância subjetiva, houve, em verdade, uma

colaboração mútua entre o retorno crítico operado por Pêcheux acerca da questão do sujeito e

o estudo da heterogeneidade enunciativa que Authier-Revuz começara a esboçar.

À luz de novos direcionamentos nos campos da História, da própria AD e da

Linguística, interessam-nos, no sentido de respaldar o parágrafo anterior, os frutos

plantados/colhidos nessa última área, mais especificamente relacionados ao terreno da

enunciação.

A partir dos estudos acerca dos processos enunciativos empreendidos por Authier-

Revuz (19810), Pêcheux subsidia os encaixes teóricos da disciplina, vez que não levou a

fundo o chamamento feito outrora à psicanálise freudo-lacaniana no que toca,

fundamentalmente, ao atravessamento inelutável do inconsciente no discurso.

Vemos que a instância do inconsciente está contemplada no interior do conceito de

interdiscurso, na medida em que o entendimento dessa categoria trata da inserção de um

discurso em outro, no sentido de as filiações históricas estarem organizadas em memórias e as

relações sociais em redes de significantes. Ad hoc, é assim que o discurso é concebido

enquanto lugar do outro.

Explanamos, a seguir, o destaque, conferido por Authier-Revuz, a dois aspectos da

dita conversão crítica do olhar:

1. A promoção da ―sequência em sua singularidade‖ como objeto da AD,

conferindo-se à materialidade do fio do discurso, às manifestações concretas da

enunciação, um passo que não lhes era antes reconhecido, em virtude de ser ela

tomada com um ―espaço imaginário‖;

2. A ruptura – irreversível a partir do questionamento da noção de formação

discursiva – com a concepção homogênea do discurso que prevalecia na primeira

AD, em favor de uma heterogeneidade fundante do discurso e da sequência.

A convocação do tríptico que alicerça a teoria da heterogeneidade enunciativa pensada

por Authier-Revuz produz deslocamentos importantes que tornam mais complexas e

abrangentes as investigações em enunciação, uma vez que torna possível considerar o estudo

da reflexividade opacificante da modalidade autonímica tanto no plano da língua, sob o

ângulo da linearidade do dizer, como no plano do discurso, sob o ângulo do que essas formas

dizem do sujeito do dizer. Esse chamamento, no entanto, não desvirtua o foco do estudo de

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Authier-Revuz, como ela mesma esclarece, referindo-se a dois dos eixos teóricos por ela

acionados:

O apoio a esses dois exteriores teóricos que são a teoria lacaniana e a

análise do discurso no sentido de Pêcheux em seus últimos

desenvolvimentos, em oposição aos exteriores antagônicos que

teorizam um sujeito pleno, fonte intencional de um sentido expresso

através do instrumento de comunicação [...]. (1995, p. 59).

Dentro do arcabouço teórico que embasa nossa pesquisa, interessa-nos mais de perto a

esquematização, proposta por Authier-Revuz, da heterogeneidade enunciativa, sobretudo no

tocante às formas de mostração / marcação dessa heterogeneidade, conforme apresentamos a

seguir.

Desde logo, apresentamos esquematicamente o organograma da Heterogeneidade

Enunciativa, tal como propõe Authier-Revuz, de modo que possam ser visualizadas as

considerações feitas até este momento do trabalho:

3.3 Heterogeneidade enunciativa: modalidades

A partir do alicerçamento teórico calcado no conceito bakhtiniano de dialogismo, da

noção freudo-lacaniana de sujeito (barrado) do inconsciente e da concepção de interdiscurso

de Pêcheux, Authier-Revuz (1982) toma para si o estudo enunciativo que trata das formas que

evidenciam a língua como espaço de equívoco, onde Um e Não-Um se entrepõem, negociam

e se desdobram; como uma arena de embate constante entre transparência e opacidade.

Heterogeneidade

Mostrada

Não-marcada

Marcada

Heterogeneidade Enunciativa

Heterogeneidade

Constitutiva (condição mesma do

discurso)

Dialogismo

bakhtiniano

Inconsciente

Lacaniano

Interdiscurso

Pecheutiano

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O estudo da autora acerca da heterogeneidade enunciativa é entendido como uma

forma de negociação do sujeito com o seu dizer. Essa negociação pode se representar, como

veremos mais detalhadamente a seguir, de duas maneiras: por meio da heterogeneidade

constitutiva, cuja formatação conceitual remete à presença - inelutável - do Outro, diluída no

discurso, não como objeto, mas como presença integrada às palavras do outro – porque da

ordem do inconsciente -, condição mesma do discurso; por meio da heterogeneidade

mostrada, que marca a presença do outro no fio do discurso, de modo a criar como que uma

zona de distanciamento entre o sujeito e seu(s) dizer(es).

.

3.3.1 Heterogeneidade constitutiva

Consoante Authier-Revuz (1982), o princípio da heterogeneidade parte da IDEIA de

que a própria linguagem é heterogênea na sua constituição; como a materialidade do discurso

é de natureza linguística, é lógico considerá-la também heterogênea. Porém, quando se fala

em linguagem heterogênea, restringe-se tal princípio, praticamente, ao reconhecimento das

outras vozes que marcam as palavras, conforme as noções de dialogismo e de polifonia de

Bakhtin, o que, de certa forma, configura um olhar reducionista dos fatos de alteridade que

constituem a linguagem e seus sujeitos. O posicionamento da autora aponta para uma

dimensão estrutural do heterogêneo, conforme sua própria colocação no texto de 1991:

[...] parece um traço característico e positivo deste colóquio, que aqui

se manifesta um acordo sobre o fato de não considerar os

―heterogêneos-rupturas sobre o fio‖ como simples escórias, rebarbas,

defeitos, faltas desejos etc... de desempenho, mas, ao contrário, de

ligá-las em sua aparente irregularidade a uma regularidade

estrutural de outra ordem, regularidade que é da ordem de um não-

um. (p.177).

Authier-Revuz (1982) postula duas formas possíveis de manifestação da

heterogeneidade: a constitutiva e a mostrada (cf. 3.3.2). O heterogêneo constitutivo da

enunciação ―está presente nela, em ação, de maneira permanente, mas não diretamente

observável‖ (1991, p.179). Esse tipo de heterogeneidade se refere à presença do Outro diluída

no discurso, não como objeto, mas como presença integrada pelas palavras do outro, condição

mesma do discurso, e o sujeito desaparece para dar espaço a um discurso-outro. Julgamos de

suma importância sublinhar que Authier-Revuz se refere ao sujeito tal como a psicanálise

lacaniana o concebe, isto é, um ser dividido pelo inconsciente, mas que, imaginariamente,

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acredita-se senhor de si e de seu discurso. Essa fissura, no entanto, é desconhecida pelo

sujeito que, ao pensar que fala, é falado por um Outro que foge a seu domínio.

Assim, segundo a autora:

A heterogeneidade constitutiva do discurso e a heterogeneidade

mostrada no discurso representam duas ordens de realidade diferentes:

a dos processos reais de constituição dum discurso e a dos processos

não menos reais, de representação, num discurso, de sua constituição.

(AUTHIER-REVUZ, 1990, p.32).

3.3.2 Heterogeneidade mostrada

O heterogêneo manifesto, que está sobre o fio do discurso, ―produz nele rupturas

observáveis‖ (AUTHIER-REVUZ, 1991, p. 174). Essa heterogeneidade mostrada marca o

discurso com certas formas que criam um mecanismo de distanciamento entre o sujeito e

aquilo que ele diz. Chamamos atenção para o fato de não se tratar tão-somente de a

heterogeneidade mostrada ser um espelho, no discurso, da heterogeneidade constitutiva do

discurso; também não é de todo ―independente‖. Na verdade, ela - a heterogeneidade

mostrada - corresponde a uma forma de negociação necessária do sujeito falante com aquela

heterogeneidade constitutiva - inelutável, mas que lhe é necessário desconhecer; assim, tal

negociação se assemelha ao mecanismo de denegação - nos termos freudianos; é uma negação

que ocorre sob forma de denegação. Nas palavras de Roudinesco e Plon (1997, p.145), o

mecanismo de denegação é proposto por Freud ―para caracterizar um mecanismo de defesa

através do qual o sujeito exprime negativamente um desejo ou uma ideia cuja presença ou

existência ele recalca‖. Preso em sua própria palavra, o locutor, ao marcar explicitamente por

formas de distanciamento – pontos de mostração de heterogeneidade em seu discurso -,

delimita e circunscreve o outro, e, fazendo isso, afirma que o outro não está em toda parte.

Dessa forma, ao designar o outro, em um ponto do discurso, o locutor: (i) institui

diferencialmente o resto desse discurso como se emanasse dele próprio; (ii) afirma, ao mesmo

tempo, pelo estatuto contingente que é dado a essas emergências do outro, que o discurso, em

geral, é potencialmente homogêneo; (iii) e afirma, pela posição metalinguística na qual se

coloca seu domínio de sujeito falante, em condição plena de separar o Um do ―outro‖, do não-

Um: seu discurso do discurso dos outros; e, mais ainda, ―ele e seu pensamento, da língua que

ele observa do exterior como um objeto‖ (AUTHIER-REVUZ, 1982, p.73). Assim, as formas

explícitas de heterogeneidade respondem à ameaça que representa, para o desejo de domínio

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do sujeito falante, o fato de que ele não pode escapar ao domínio de uma fala que,

fundamentalmente, é heterogênea. Por meio dessas marcas, localizando o outro no fio do

discurso, o sujeito empenha-se em fortalecer o estatuto do Um. É nesse sentido que a

modalidade mostrada de heterogeneidade pode ser considerada como um modo de denegação

no discurso da heterogeneidade constitutiva que depende do outro no Um.

Esta última forma de heterogeneidade pode ser ainda marcada e não-marcada. Quando

marcada, é da ordem da enunciação, visível na materialidade linguística, como, por exemplo,

o discurso direto, as palavras entre aspas, o uso de itálico, a citação. Vejamos alguns

exemplos desse tipo de heterogeneidade:

(1) Seu discurso teve o efeito de uma “bomba”.

(2) Lidiana...Aquela garota tem sexapeel!

(3) Olhou pra mim e disse: é o fim.

Se for não-marcada, então, é da ordem do discurso, sem visibilidade, como o discurso

indireto livre, a intertextualidade, a ironia, o pastiche, a alusão. Nos termos de Authier-Revuz:

―Observando a existência dessas formas marcadas, explícitas [...], deparo-me [...] com as

sequências nas quais a presença do outro só é indicada / reconhecida implicitamente, portanto

aleatoriamente.‖ (1982, p.20).

Recorrendo à definição proposta pela Análise do Discurso francófona, que incorpora a

noção de heterogeneidade proposta por Authier-Revuz, esclarecem Charaudeau &

Maingueneau (2004, p.261) que:

A ‗heterogeneidade mostrada‘ corresponde à presença localizável de

um discurso outro no fio do discurso. Distinguem-se as formas não-

marcadas dessa heterogeneidade e suas formas marcadas (ou

explícitas). O co-enunciador identifica as formas não marcadas

(discurso indireto livre, alusões, ironia, pastiche...) combinando em

proporções variáveis a seleção de índices textuais ou paratextuais

diversos e a ativação de sua cultura pessoal. As formas marcadas, ao

contrário, são assinaladas de maneira unívoca; pode tratar-se de

discurso direto ou indireto, de aspas, mas também de glosas que

indicam uma não-coincidência do enunciador com o que ele diz

(modalização autonímica).

Reapresentamos abaixo o organograma da heterogeneidade enunciativa (cf. item

3.2.3), agora com o detalhamento das categorias que o compõem, tal qual pensadas por

Authier-Revuz: ·

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3.4 Heterogeneidade mostrada, intertextualidade stricto sensu e marcação: uma implicação

A nosso ver, dada porção de texto que se nos apresente - independentemente da

estratégia que materializa, num ponto específico da cadeia do dizer, a irrupção do outro no fio

discursivo- como marcada estará, fatalmente, mostrando tal feito. É esse ―mostrando‖, na

verdade, a causa da inquietação que suscitou nossa pesquisa, vez que não nos contentamos

com a redução dos fenômenos abarcados por esse termo.

Longe da pretensão de sugerir novas nomenclaturas e cair na ―febre‖ taxionômica

comum às investigações acadêmicas, defendemos tão somente que a outros fenômenos

textuais seja também conferido o estatuto de marcado/mostrado.

A intertextualidade stricto sensu está entre os modos de marcação-mostração que

consideramos lícitos, em se tratando da ativação de um referente, textualmente presente ou

não, em dada situação de interação.

Antes de aprofundarmos nossa argumentação quanto à relação de implicação a qual

estamos defendendo, faremos um breve registro das noções de intertextualidade postuladas

por estudiosos do texto, certos de que tal incursão contribuirá quando da retomada da

discussão propriamente.

Heterogeneidade

Mostrada (rupturas observáveis)

Não-marcada (leituras pragmáticas)

Marcada

Alusão, pastiche,

paródia etc.

Aspas, itálico,

negrito, verbos

dicendi etc.

Heterogeneidade Enunciativa

Heterogeneidade Constitutiva (ruptura não diretamente observável)

Dialogismo

bakhtiniano

Inconsciente

Lacaniano

Interdiscurso

Pecheutiano

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3.4.1 O conceito fundador de Kristeva

O conceito de intertextualidade a partir do qual todos os outros derivaram foi

introduzido por Kristeva, membro atuante da crítica francesa, na década de 60, no âmbito da

Teoria Literária. O tratamento, por parte da autora, dispensado a este fenômeno provocou uma

espécie de ranhura profunda na ideia cristalizada e até então estabelecida sobre o autor como

única fonte do texto. Suas considerações acerca da intertextualidade transcendem os umbrais

da literatura; têm uma aplicação bem mais ampla, na medida em que considera,

independentemente do gênero a que pertence, que todo texto particular vem constituído de um

intertexto, numa sucessão de textos já escritos ou que ainda estão para sê-lo. Segundo ela,

―qualquer texto se constrói como um mosaico de citações e é a absorção e transformação de

um outro texto‖.(KRISTEVA, 1974, p.60). Sob tal ótica, o texto não é simplesmente produto

do trabalho de "escritura" de um único autor: o ato mesmo da escritura nasce de seu

relacionamento com outros textos e com estruturas da própria linguagem. A autora diz que a

palavra ―[...] não é um ponto, mas um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de

diversas escrituras‖ (1969, p.66). Apresenta-nos a palavra como elemento que une o modelo

estrutural ao contextual, espacializando-a em três dimensões: a do sujeito da escritura, a do

destinatário e a dos textos exteriores (sujeito – destinatário – contexto), todas calcadas na

ambivalência – ―inserção da história (da sociedade) no texto e do texto na história17

‖ - ou na

dialogicidade – já nos termos de Bakhtin.

Esse modo de conceber o ato da escritura dos textos gerou interpretações exacerbadas,

a exemplo do que fez Compagnon18

, o qual, valendo-se também do que disse Barthes19

acerca

da intertextualidade, considera que ―escrever, pois, é sempre reescrever, não difere de citar. A

citação, graças à confusão metonímica a que preside, é leitura e escrita, une o ato de leitura ao

de escrita. Ler ou escrever é realizar um ato de citação‖. (1996, p.31). Gerou também, na

17

Cf. KRISTEVA, J. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 71.

18

Para um detalhamento maior do estudo do autor acerca da citação, cf. COMPAGNON, A. O trabalho da

citação. Belo Horizonte: UFMG, 1996, donde diz ainda ser ―o trabalho da escrita é uma reescrita já que se trata

de converter elementos separados e descontínuos em um todo contínuo e coerente, de juntá-los, de compreendê-

los (de tomá-los juntos), isto é, de lê-los: não é sempre assim? Reescrever, produzir um texto a partir de suas

iscas, é organizá-las ou associá-las, fazer as ligações ou as transições que se impõem entre os elementos postos

em presença um do outro: toda escrita é colagem e glosa, citação e comentário‖.(p. 29).

19

Referimos-nos ao dizer de Barthes (1974) que reforça o pensamento de Kristeva: "todo texto é um intertexto;

outros textos estão presentes nele [...] o intertexto é um campo geral de fórmulas anônimas, cuja origem é

raramente localizável, de citações inconscientes ou automáticas feitas sem aspas", asserção que nos permite

concluir que também esse autor concebe a intertextualidade no âmbito das relações implícitas. (apud BENTES,

2003, p.269).

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direção inversa, interpretações reducionistas em relação ao fulcro do pensamento de Kristeva.

Sectário desse grupo, citamos Schneider:

Se todo texto é só uma série de citações anônimas, não susceptíveis de

atribuições, por que então assinar um texto defendendo essa

intertextualidade absoluta? Se o texto moderno, segundo Barthes, é

essa ‗citação sem aspas‘, por que deveria ficar ligado a um nome, uma

vez que esse nome não poderia, de modo algum, atestar ou indicar a

origem? (1990, p.43).

Sob pontos de vista teóricos distintos, é partindo do conceito fundador de Kristeva que

o fenômeno da intertextualidade vem sendo tratado, constituindo um dos grandes temas de

discussão no interior dos estudos linguísticos.

Conforme essa visada, qualquer sequência textual é desdobramento de uma outra

sequência precedente, raciocínio que torna possível pensarmos nas sequências textuais como

um todo como que funcionando a partir de duas orientações complementares: (i) sob o signo

da reminiscência, vez que o que temos é sempre a evocação de outro texto; (ii) sob o signo da

transmutação de textos.

Na esteira desse raciocínio – bastante radical, diga-se -, quaisquer formas de expressão

textual-discursivas não passam de releituras de textos precedentes; podemos, então, enxergar

os ―produtores‖ de textos como, digamos, atualizadores de memória.

O texto é aqui compreendido como evento situado na história e na sociedade, que não

apenas reflete uma situação; é ele essa própria situação. Tais considerações acerca do

(inter)texto apontam para um completo apagamento das fronteiras entre o que é meu e o que é

de outrem. Isso nos diz que o texto está relacionado a outro texto e é de algum modo afetado

por ele.

Em suma, a compreensão da instância textual delineada pela autora vê o texto

enquanto voz que dialoga com outros textos, mas também que funciona como eco de outras

vozes de seu tempo, da história de um dado grupo social, de seus valores, crenças, conceitos.

Trata-se de um território dinâmico, erigido sob o signo da confluência de diversas vozes, no

qual habitam, mutatis mutandis, escritor e leitor. Segundo Kristeva20

, o papel do leitor é mais

importante do que o do escritor, na medida em que este último desaparece na teia da

intertextualidade, enquanto aquele constrói o significado textual não de forma isolada, mas no

diálogo com outros textos.

20

Cf. KRISTEVA (ibidem, p. 117).

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Sob pontos de vista teóricos distintos, é derivado do conceito de intertextualidade

fundado em Kristeva, que esse fenômeno vem sendo investigado e constitui um dos grandes

temas de discussão no interior dos estudos linguísticos, bem como de outras áreas do saber.

3.4.2 A taxionomia das transtextualidades de Genette

Genette (1982), ao tratar dos diálogos entre textos, trabalha com o conceito

transtextualidade. Assim denomina aquelas relações entre textos que extrapolam a unidade

textual de análise. Nos termos do autor, o conceito de transtextualidade abarca ―tudo o que

coloca um texto em relação, manifesta ou secreta, com outros textos‖ (GENETTE, 1982, p.

7). Em outros termos, um texto é um emaranhado de relações não somente intertextuais, mas

também interdisciplinares.

A tipologia de relações transtextuais postulada por Genette (1982) distingue:

a) Intertextualidade – trata-se da presença observável de um texto em outro;

b) Paratextualidade – trata-se do conjunto das relações que o texto estabelece com os

segmentos de texto (título, subtítulo, prefácio, epígrafes, ilustrações etc.) que

compõem determinada obra;

c) Metatextualidade – trata-se da relação que assume forma de comentário que une um

texto a outro texto, ainda que não haja citação evidenciando a relação crítica como

paradigma;

d) Hipertextualidade – trata-se da suposição da existência de um texto em função do qual

se estrutura outro texto; essa (re)estruturação pode ser operada tanto por derivação

como por transformação;

e) Arquitextualidade – trata-se de uma ―ocorrência‖ de natureza mais abstrata, por ser

menos flagrante, menos pontual; é articulada pela autodeterminação do gênero a que o

texto pertence.

Dentro da taxionomia que Genette propõe para as transtextualidades, interessa-nos

particularmente o modo como concebe a intertextualidade, já que nossa investigação dá-se em

função de possibilidades textualmente observáveis.

Como bem apreende Cavalcante (2007),

A transtextualidade por intertextualidade restrita diz respeito a

relações de co-presença entre textos e seria identificada 'pela presença

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efetiva de um texto em outro'. Aqui estão abrigadas as citações com

aspas (mais modernamente, elas aparecem com outras espécies de

grifo, como o itálico ou o negrito), não importando que se apresentem

com ou sem referência de autoria [...]. ( p. 119).

Entendemos que, para determinado fenômeno ser compreendido como sendo

intertextual, é na esteira desse olhar que deve ser encarado: dentro do horizonte daquilo que

pode ser textualmente observável.

Partiremos da noção de intertextualidade postulada por Genette – e,

conseqüentemente, por Piègay-Gros (1966) – para, então, estendermos o alcance do que pode

ser considerado como da ordem do observável.

3.4.3 As relações de co-presença e de derivação de Piègay-Gros

Para nós, menos que fazer uma incursão pelos estudos que versam sobre o tema

Intertextualidade, interessa-nos, neste momento, retomar particularmente as considerações de

Piègay-Gros (1996), respeitantes a sua proposta de tipologia da intertextualidade, fundada em

Genette (1982). Isso porque identificamos uma estreita relação entre esta proposta e a de

Authier-Revuz, no que toca aos recursos linguísticos para se localizar a presença do outro no

fio do discurso. Essa relação é uma das contribuições importantes de nossa pesquisa, pois

nasce daí a sugestão para que sejam consideradas maneiras outras de marcação de vozes

alheias na materialidade textual.

Na esteira de Genette (1982), que, como vimos, preferiu incluir a intertextualidade

como uma forma de transtextualidade, Piègay-Gros (1996), na tentativa de particularizar

ainda o estudo acerca da intertextualidade genettiana, distingue dois tipos de relações

intertextuais: as baseadas numa relação de co-presença entre dois ou vários textos e as que se

baseiam numa relação de derivação21

. A partir dessa distinção, opõe as relações explícitas às

implícitas, para descrever as diferentes formas intertextuais por ela elencadas. A autora

admite que, no primeiro caso, a referência pode ser assinalada por um código tipográfico, ou,

no plano semântico, pela menção ao título da obra ou do seu autor; já naquele, relações

podem ser estabelecidas mesmo com a ausência de qualquer sinal in praesentia de vozes

outras co-atuando no fio discursivo. Aqui, a ação de colocar o intertexto em evidência fica sob

incumbência do leitor. Os seguintes mecanismos assinalam a intertextualidade: a citação, a

21

Numa relação de co-presença há, além da geração de um novo texto, uma incorporação ao discurso, o que, na

relação de derivação, não ocorre. Embora discordemos dessa distinção, é a partir dessa diferenciação que a

autora delineia sua tipologia.

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referência, o plágio e a alusão. Os dois primeiros designariam relações explícitas do

intertextual, enquanto que os dois últimos só deflagram o intertextual de maneira implícita.

Vejamos, sinteticamente, como a autora descreve cada um desses mecanismos e sua

justificativa para dividi-los em grupos distintos.

A citação, nas palavras da autora, ―aparece legitimamente como a forma emblemática

da intertextualidade: ela torna visível a inserção de um texto em outro‖ (1996, p.45). Neste

caso, as marcas tipográficas é que materializam a heterogeneidade manifesta, daí seu lugar

entre as formas explícitas de relação intertextual. Em contrapartida, embora seja o mecanismo

mais codificadamente visível de marcação, ainda de acordo com Piègay-Gros (1996, p.46), a

citação é também considerada como uma forma mínima, já que se impõe no texto, sem exigir

do leitor qualquer ―esforço‖ ou erudição particular (em tempo: o leitor é ―poupado‖ no que

tange à identificação da marca; para sua interpretação, exige-se, sim, trabalho por parte dele,

ponderamos). Note-se que também Piègay-Gros privilegia como formas de marcação aquelas

que são tipicamente aceitas. Ainda que haja, assumidamente, o apelo às marcas formais como

condicionantes da citação, a autora adverte que:

Seu reconhecimento se subentende, mas a maior atenção deve ser

dirigida à sua identificação e à sua interpretação: a escolha do texto

citado, os limites de seus recortes, as modalidades de sua montagem, o

sentido que lhe confere sua inserção dentro de um contexto inédito...

São também elementos essenciais na sua significação. (1996, p. 46).

A referência, diferentemente da citação, não ―mostra‖ o outro texto ao qual faz

remissão. É o artifício utilizado quando a intenção é apenas a de fazer com que o leitor seja

levado a um texto, sem que este seja citado literalmente. Nos termos de Piègay-Gros,

A referência, como a citação, é uma forma explícita de

intertextualidade. Mas não expõe o outro texto ao qual nos remete. É,

portanto, uma relação in absentia que ela estabelece. È por isso que

ela é privilegiada sempre que for o caso apenas de remeter o leitor a

um texto, sem citar o texto literalmente. (1996, p. 48).

Ainda que se estabeleça uma relação in absentia, sua presença entre as formas

explícitas de intertextualidade deve-se ao fato de a remissão ser feita de maneira explícita,

mas não se valendo de códigos tipográficos formais. Neste ponto, podemos afirmar que há,

indiretamente, no estudo da autora, um reconhecimento de que a referência funciona como

mecanismo de marcação. A referência de que fala a autora não abrange todo o fenômeno da

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referenciação, senão apenas uma parte dele, especificamente quando se empregam expressões

referenciais que mencionam, por exemplo, entidades, personagens de outros textos.

Valemo-nos dessa brecha para já fixarmos nosso posicionamento em defesa de

estratégias de marcação que, a exemplo do que ocorre (ainda que bastante discretamente) na

referência, não se manifestam por meio de mecanismos prototípicos de marcação. Aqui, o

código tipográfico já não é absoluto em se tratando de marcação, fato que fomenta nossa linha

argumentativa ―contra‖ o imperialismo dos marcadores formais indiscutivelmente aceitos.

Acreditamos, assim como se dá na referência, na explicitude marcativa ocasionada por

expressões referenciais - que, por definição, abarcam todas as formas de designação de

referentes, a partir de como o enunciador pretende que o co-enunciador os identifique e os

interprete.

Questionamos, ainda, a própria diferenciação entre os tipos supramencionados de

intertextualidade por co-presença. Se, em ambos os casos, há, conforme Piègay-Gros, a

remissão do co-enunciador a outros textos, sendo que na referência não ocorre citação literal

do texto-fonte, o que a impede de figurar entre os casos de alusão, que são caracterizados

exatamente pela implicitude do texto ao qual se reporta?

A esse respeito, seguimos a orientação de Cavalcante (2007), que, ao analisar casos de

intertextualidade com remissão explícita a personagens shakesperianos, sugere acertadamente

que:

Para manter a referência como um tipo de intertextualidade explícita

de co-presença, é mais coerente considerá-la como uma remissão

direta ou ao próprio texto.

[...] Preferimos, portanto dizer que a menção direta aos personagens

[de obras literárias, humorísticas, publicitárias etc] constitui um caso

de intertextualidade explícita por referência, ao passo que a remissão

indireta à obra a que essas entidades pertencem é um caso de

intertextualidade explícita por alusão. (p. 125).

Não faz parte de nossas preocupações a classificação em si que a autora sugere para os

casos de intertextualidade; independentemente de sob que categorias a ocorrência do

intertextual esteja abrigada, o fenômeno, para nós, apresenta-se como heterogêneo-ruptura, o

que quer dizer que comporta o não-um na materialidade linguística: temos casos de

mostração-marcação, portanto.

No terreno do intertextual implícito, temos o plágio. Trata-se de uma espécie de

citação não-marcada. A autora nos diz que ―a citação está para a intertextualidade explícita,

assim como o plágio está para a intertextualidade implícita‖ (2007, p.50). A diferença entre

um e outro é assegurada pelo critério da marcação formal, já que, em ambos os casos, trata-se

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de um discurso literal do outro. Neste caso, para ser compreendido como tal, o leitor deve

reconhecê-lo. O plágio é, portanto, uma citação sem as marcas que lhe são devidas. Com

efeito, trata-se de um recurso fraudulento de ―mostração‖ do outro no fio discursivo.

Quanto à alusão, a autora reconhece um apelo particular à memória do leitor, já que

supõe que ele possa compreender, nas entrelinhas, a sugestão promovida pelo autor, sem que

isso seja expresso diretamente. Baseia-se, normalmente, num jogo de palavras, o que requer

do leitor, além de memória, inteligência e perspicácia. Trata-se de um mecanismo bastante

intrincado que consiste em ―fazer perceber a relação de uma coisa que se diz com outra que

não se diz, e assim essa mesma relação revela a ideia‖ (FLAMARION, 1977, apud PIÉGAY-

GROS, 1996, p. 52).

Justifica-se, assim - pela ausência de marcação formal; por ser de natureza mais

discreta e sutil -, conforme a autora, a alusão estar circunscrita entre as relações intertextuais

implícitas. Trata-se de um procedimento que não está nem dentro dos limites do que Piègay-

Gros toma por explícito nem dentro do campo do literal. Ao contrário do que ocorre com a

referência, a alusão ―solicita diferentemente a memória e a inteligência do leitor e não quebra

a continuidade do texto‖ (p.52), o que nos habilita a compreendê-la como uma referência por

vias indiretas, a qual não explicita o que se pretende enfocar.

A autora reconhece que a alusão será tanto mais eficaz quanto mais ela puser em jogo

um texto conhecido, a partir do qual a associação de uma ou duas palavras será o bastante

para estabelecer uma conexão com o texto-fonte. Nesse sentido, ao exemplificar tal

procedimento, diz ser possível afirmar, sem maiores riscos, que a alusão a La Fontaine não

passará despercebida. Vejamos:

(5) Velho oceano, tua grandeza material não se pode comparar a nada, senão na

medida em que se imagina o tipo de poder ativo que foi necessário para produzir a

totalidade de tua massa. Não se pode abraçar-te de um golpe de vista. [...] O homem se

alimenta de substâncias nutritivas e envida outros esforços, dignos de uma melhor

sorte, para parecer gordo. Que ela se inche tanto quanto queira, essa adorável rã. Fique

tranqüila, ela não te igualará em largura; eu o suponho, pelo menos. Eu te saúdo, velho

oceano! (Lautréamont, Les Chants de Maldoror, canto I, 1869).

Neste exemplo fornecido por Piègay-Gros, vemos que a alusão transpõe os termos da

relação instaurada por La Fontaine: a rã seria o homem que se pretende forte como o boi, isto

é, o oceano. A moral que o autor de Les Chants de Maldoror tira de sua alusão seria, então, a

pequenez do homem frente à grandeza do oceano. ―A singularidade dessa alusão é que ela

mostra claramente o princípio da fábula (a rã é como o homem, orgulhosa e inconsciente de

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sua fraqueza) e supervaloriza sua significação, sem citá-la explicitamente.‖ (PIÈGAY-GROS,

1996, p. 54).

A autora não simplifica o fenômeno, como, a partir de um exemplo tão trivial, pode

parecer. Nem sempre, segundo ela, a alusão é tão cúmplice do leitor; muitas vezes, ela assume

a simples forma de uma retomada mais ou menos literal e implícita. Por vezes, pode o texto-

fonte, base do texto alusivo, estar distante da ―realidade‖ do leitor, exigindo que este tenha

uma bagagem cultural bastante privilegiada e aguçada. Diante disso, pondera a autora

(colocação com a qual não concordamos, diga-se, já que sustentamos a independência de

fenômenos desse jaez):

Qualquer que seja o jogo de sentido que testemunha tal alusão, é

legítimo se perguntar se ela não se desvia, quando o texto ao qual se

refere não está mais ativamente presente na memória do leitor, numa

―fonte‖ que deixa de interpelar diretamente o leitor e que não pode ser

percebida senão pelos eruditos (1996, p.55).

E conclui:

É, pois, somente quando ela [a alusão] é posta em evidência, pela

referência explícita do texto ao qual se faz implicitamente a

referência, que seu sabor sutil, a graça discretamente irônica que ela

constitui podem aparecer novamente. [...] Manifestar a fonte é,

portanto, desmontar o mecanismo de alusão para lhe permitir, em

seguida, inscrever obliquamente o significado. (1996, p. 55).

Voltando a nosso propósito ao trazer Piègay-Gros à baila, enxergamos que tanto esta

autora quanto Authier-Revuz, para demarcar a fronteira do que é explícito / marcado para o

que é implícito / não-marcado, respectivamente, tomam por critério apenas mecanismos já

convencionados e consagrados.

Não obstante tenhamos vislumbrado uma possível aproximação entre a linha de

raciocínio seguida pelas autoras, cumpre chamar atenção para o fato de que o que é

considerado como intertextualidade para Piègay-Gros não recebe o mesmo tratamento em

Authier-Revuz. Para esta última, o que é da ordem do intertextual é fatalmente não-marcado -

ou, na terminologia de Piègay-Gros, implícito. Há uma diferença, a nosso ver, terminológica,

apenas; em termos mais abstratos, ambas privilegiam, na maioria dos casos, os mesmos

critérios para justificar a dicotomização, seja a da heterogeneidade mostrada (marcada / não-

marcada), seja a da tipologia da intertextualidade (explícita / implícita).

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Independente da terminologia adotada, o que nos interessa de fato é a problematização

dos critérios adotados para se conceber ―algo‖ como sendo marcado – fazendo com que

localizemos o outro no fio do discurso – ou não. Além disso, interessa-nos também refletir

sobre os tipos de heterogeneidade que podem constituir ocorrências de intertexto22

.

Uma de nossas propostas, nesta pesquisa, é a de tentar mostrar textualmente, a partir

de ―marcadores‖ não-prototípicos, que as formas de heterogeneidade mostrada não-marcada

defendidas por Authier-Revuz podem ser problematizadas, se considerarmos mecanismos

outros que funcionem como marcadores eficazes de alteração no fio discursivo, como alguns

processos de referenciação, por exemplo.

3.4.4 A abrangência conceitual da intertextualidade em Maingueneau

Para esse analista do discurso, ao se falar de intertextualidade, uma diferenciação tem

de ser feita inicialmente: a separação entre intertexto e intertextualidade. O intertexto seria

todo o conjunto de fragmentos mencionados em determinado material de análise, ao passo

que a intertextualidade seria um sistema de regras implícitas que subjazem ao intertexto, ―o

modo de citação que é julgado legítimo na formação discursiva‖ (MAINGUENEAU, 2000, p.

88) em cuja dependência está aquele material de análise. O autor distingue, ainda, dois tipos

de intertextualidade: uma interna, que se daria entre discursos de um mesmo campo

discursivo23

, e a externa, que, ao contrário da do primeiro tipo, dar-se-ia entre discursos cujos

campos discursivos fossem distintos. Tais subcategorias, porém, não tratam de mecanismos

discursivos diferentes; ao contrário, são, nos termos de Maingueneau (2000, p. 89), ―duas

facetas de um mesmo funcionamento discursivo‖.

O conceito de intertextualidade proposto pelo autor nos leva a crer que o diálogo entre

textos pode entre discursos, gêneros, épocas etc, posicionamento que julgamos ilegítimos, na

medida em que consideramos como procedimento intertextual aquele que se presentifica por

ocasião do intertexto, de modo a tornar tangível o que de alheio comporta a materialidade

22

Nos termos de Maingueneau (2004), ―emprega-se frequentemente o termo intertexto para designar um

conjunto de textos ligados por relações intertextuais; [...] o intertexto é o conjunto de fragmentos convocados

(citações, alusões, paráfrases...) em um corpus dado, enquanto a intertextualidade é o sistema de regras implícitas

que subjaz a esse intertexto [...]‖.(CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004, p.289). 23

Conforme Maingueneau (2005, p.36), um campo discursivo deve ser entendido como o conjunto de formações

discursivas em concorrência, delimitando-se reciprocamente em uma região determinada do universo discursivo.

O autor chama atenção para que essa ―concorrência‖ seja entendida em sentido amplo, abrangendo não apenas o

enfrentamento aberto, mas também a aliança, a indiferença aparente etc. entre discursos que têm a mesma função

social e divergem quanto à maneira de exercê-la. São exemplos de campos discursivos o político, o pedagógico,

o filosófico, etc. ou subconjuntos desses, que compõem, no interior desses campos maiores, uma configuração

relativamente autônoma.

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65

linguística. Não faz parte de nossas preocupações proceder ao exame da interferência da

interdiscursividade na rede de relações intertextuais. Dito isso, reforçamos que restringiremos

o entendimento de intertextualidade à presença de outros textos em um texto, em níveis

variáveis, tal como foi pensada por Barthes (1973), condicionando-a, no entanto, a algum tipo

de assinalação do intertexto, fato que sustenta um dos desideratos desta pesquisa: o de incluir

a intertextualidade entre os modos de marcação de que dispõe o enunciador para (se) mostrar

na superfície textual.

Para Maingueneau (1997, p.120):

Mesmo na ausência de qualquer marca de heterogeneidade mostrada,

toda unidade de sentido, qualquer que seja seu tipo, pode estar inscrita

em uma relação essencial com uma outra, aquela do ou dos discursos

em relação aos quais o discurso de que ela deriva define sua

identidade.

Na esteira desse raciocínio, vemos a definição mais ampla de interdiscursividade

proposta por Charaudeau e Maingueneau, que se põe paralelamente ao conceito lato de

intertextualidade, conforme a noção de interdiscurso apresentada pelos autores:

Mais amplamente, chama-se também de ―interdiscurso‖ o conjunto

das unidades discursivas com os quais um discurso particular entra em

relação implícita ou explícita. Esse interdiscurso pode dizer respeito a

unidades discursivas de dimensões muito variáveis. (CHARAUDEAU

& MAINGUENEAU, 2004, p.286).

A contraparte restrita do interdiscurso, no entanto, representa um conjunto de discursos

―que mantêm relações de delimitação recíproca uns com os outros‖ (p.286). Em consonância

com o que ensaia Cavalcante (2006), pensamos que, nos termos em que essa restrição é

colocada, pode-se considerar o fenômeno geral da alusão assinalando relações interdiscursivas

sem que, necessariamente, represente uma ocorrência de intertextualidade, de vez que a

alusão não pressupõe, necessariamente, intertextualidade, conforme afirma Piègay-Gros

(1996, p. 52), para quem ―[...] é evidente, com efeito, que a alusão ultrapassa em muito o

campo da intertextualidade‖.

A esse respeito, Cavalcante (2006), lucidamente, pondera:

A recíproca também não se verifica: nem toda intertextualidade se

manifesta, evidentemente, por alusão. E é preciso frisar que a

referenciação como um todo excede, com efeito, os limites da

intertextualidade. Reputamos a alusão como uma espécie de

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referenciação indireta, como uma retomada implícita, uma sinalização

para o co-enunciador de que, pelas orientações deixadas no texto, ele

deve apelar à memória para encontrar o referente não-dito. Se a alusão

não remeter à inclusão de um texto em outro, não se terá

intertextualidade, a nosso ver. Se remeter à interseção entre diferentes

tipos de discurso, falaremos apenas de interdiscursividade (em sentido

restrito) por alusão.

A referência a Maingueneau no presente trabalho assume relevância, na medida em que

embasa – mesmo que contraditoriamente - nosso posicionamento acerca do processo de

intertextualidade por meio de procedimentos alusivos, além de, obviamente, registrar o que

diz o autor sobre a intertextualidade no interior dos estudos textual-discursivos da Análise do

Discurso.

Frisamos, então, que, em se utilizando o procedimento alusivo como modo de remissão

a conhecimentos gerais compartilhados, aos já-ditos e esquecidos, teremos, em verdade,

aquela interdiscursividade mencionada supra, que concorre para as noções, mutatis mutandis,

de dialogismo e de heterogeneidade constitutiva.

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67

CAPÍTULO IV

REFERENCIAÇÃO ______________________________________________________________________

Que existe mais, senão afirmar a multiplicidade do real?

A igual probabilidade dos eventos impossíveis?

A eterna troca de tudo em tudo?

A única realidade absoluta?

Seres se traduzem.

Tudo pode ser metáfora de alguma outra coisa ou de coisa alguma.

Tudo irremediavelmente metamorfose!

(Paulo Leminski)

4.1 Conceito e processos

É em favor de uma visão não-realista de como a língua refere o mundo, a partir da

qual se assume uma instabilidade constitutiva das relações entre as palavras e as coisas, que a

noção tradicionalmente aceita de referência ―como simples representação extensional de

referentes do mundo extramental‖ (cf. KOCH, 2002) é substituída pela de referenciação. Em

consonância com a posição de Apothéloz & Reichler-Béguelin (1995), que rejeitam todas as

concepções realistas de significação, evitando assim uma relação ingenuamente rígida entre a

linguagem e o mundo, e mais especificamente, assumindo a posição de Mondada & Dubois

(1995), que postulam uma visão processual em relação à significação, embasaremos as

considerações que se seguem.

Mondada (2001) nos diz que a referenciação privilegia a relação intersubjetiva e social

no seio da qual as versões do mundo são publicamente elaboradas, avaliadas em termos de

adequação às finalidades práticas e às ações em curso dos enunciadores. Esta reorientação se

funda nos questionamentos de Mondada & Dubois (1995), acerca dos processos de

discretização e de estabilização, e assinala o caráter processual e dinâmico que emana do ato

de referir. A noção de referente acompanha esse deslizamento e é também substituída pela de

objeto-de-discurso. Esclarece Mondada (1994, p. 64):

O objeto de discurso caracteriza-se pelo fato de construir

progressivamente uma configuração, enriquecendo-se com novos

aspectos e propriedades, suprimindo aspectos anteriores ou ignorando

outros possíveis, que ele pode associar com outros objetos ao

integrar-se em novas configurações, bem como pelo fato de articular-

se em partes suscetíveis de se autonomizarem por sua vez em novos

objetos. O objeto se completa discursivamente.

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Os objetos-de-discurso são, pois, interativa e discursivamente construídos pelos

participantes da atividade linguística. Não se trata de entidades que representam objetos do

mundo, com estrutura fixa e incontestável, e que preexistem ao discurso. Pelo contrário,

erigem-se e (re)elaboram-se dinâmica e progressivamente no curso da atividade discursiva.

Referir não significa mais uma atividade de rotular objetos de um mundo já existente. Longe

de ser uma abordagem eminentemente subjetivista, o que está sendo posto é que, mais do que

uma relação especular entre expressões referenciais e os objetos do mundo ou sua

representação cognitiva, trata-se de uma construção da relação do indivíduo com a realidade.

Ela, a realidade, ―é construída, mantida e alterada não somente pela forma como nomeamos o

mundo, mas, acima de tudo, pela forma como, sociocognitivamente, interagimos com ele:

interpretamos e construímos nossos mundos por meio da interação com o entorno físico,

social e cultural‖ (KOCH, 2004, p.61).

A referenciação, a partir de uma orientação que considere tais deslocamentos teóricos,

constitui uma atividade discursiva promovida por sujeitos sociais atuantes, por ocasião da

interação verbal. Seguindo este raciocínio é que, segundo Koch (2005), as formas de

referenciação, assim como os processos de remissão textual que se realizam por meio delas,

constituem escolhas do sujeito em função de um querer-dizer, ou seja, este sujeito realiza

escolhas significativas para concretizar sua proposta de sentido. É assim que, em

concordância com a autora, pensamos que a interpretação de uma expressão referencial

anafórica, por exemplo, consiste menos em localizar um segmento linguístico no texto (um

seu ―antecedente‖, simplesmente) do que em alcançar algum tipo de informação

anteriormente alocada na memória discursiva24

. Interessante, neste momento, elencar as

estratégias básicas de referenciação que constituiriam, conforme Koch (2006, p. 62), a

memória discursiva:

1. Construção / ativação: pela qual um ―objeto‖ textual até então não mencionado

é introduzido, passando a preencher um nódulo (―endereço‖ cognitivo,

locação) na rede conceitual do modelo de mundo textual: a expressão

linguística que o representa é posta em foco na memória de trabalho, de tal

forma que esse ―objeto‖ fica saliente no modelo;

24

―Qualquer discurso constrói uma representação que opera como uma memória partilhada ‗publicamente‘

alimentada pelo discurso. Os níveis / estágios sucessivos desta representação, ao menos parcialmente, para as

seleções feitas, em particular para as expressões referenciais. A ideia de que esta representação é o fim e a

restrição imposta nesta atividade discursiva é agora correntemente aceita‖.(APOTHÉLOZ E REICHLER-

BÉGUELIN, 1999, p.36).

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2. Reconstrução / reativação: um nódulo já presente na memória discursiva é

reintroduzido na memória operacional, por meio de uma forma referencial, de

modo que o objeto-de-discurso permanece saliente (o nódulo continua em

foco);

3. Desfocalização / desativação: ocorre quando novo objeto-de-discurso é

introduzido, passando a ocupar a posição focal. O objeto retirado de foco,

contudo, permanece em estado de ativação parcial (stand by), podendo voltar à

posição focal a qualquer momento; ou seja, ele continua disponível para a

utilização imediata na memória dos interlocutores25

.

É a partir do pressuposto da referenciação assim concebida - como uma atividade

discursiva - que Mondada & Dubois (1995) e Apothéloz & Reichler-Béguelin (1995) passam

a postular que a referência é, sobretudo, um problema que diz respeito às operações efetuadas

pelos sujeitos à medida que o discurso se desenvolve; e que o discurso constrói os ―objetos‖ a

que faz remissão, ao mesmo tempo que é tributário dessa construção.

Antes de avançarmos na descrição de alguns processos referenciais, é imprescindível

que distingamos as categorias referir, remeter e retomar que, não raro, são concebidas como

se fossem termos sinônimos. Koch (2006) defende a posição de que se trata de algo

essencialmente diverso e estabelece a seguinte relação de subordinação hierárquica entre os

três termos:

(a) a retomada implica remissão e referenciação;

(b) a remissão implica referenciação e não necessariamente retomada;

(c) a referenciação não implica remissão pontualizada nem retomada .

Feita essa distinção, a autora conclui:

Portanto, sendo a referenciação um caso geral de operação dos

elementos designadores, todos os casos de progressão referencial são

baseados em algum tipo de referenciação, não importando se são os

mesmos elementos que recorrem ou não. A determinação referencial

se dá como um processamento da referência na relação com os

25

A autora lembra que muitos problemas de ambiguidade referencial se devem a instruções pouco claras sobre

com quais objetos-de-discurso presentes na memória a relação deverá ser estabelecida.

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demais elementos do co-texto (ou mesmo do contexto), mas não

necessariamente como retomada referencial (correferenciação).

(KOCH, 2006, p.59).

Esboçaremos, a seguir, os processos referenciais sobre cujas bases encamparemos

nossa investigação.

4.1.1 Introdução Referencial

Falar em introdução referencial requer que o objeto em questão apresente a conjunção

de dois fatores: tem de ser considerado como novo no cotexto e não pode ter sido engatilhado

por nenhuma entidade, atributo ou evento expresso no texto.

Consoante Cavalcante (2004), existem dois recursos fundamentais através dos quais se

faz a introdução de um referente considerado ―novo‖ no texto: ou ele é mencionado por

simples apelo à memória comum, sem nenhuma marca dêitica de remissão ao conhecimento

partilhado, como em (6), ou é expresso para remeter, por meio de expressões indiciais, a uma

das coordenadas dêiticas de pessoa (eu, você), tempo (hoje, amanhã), espaço (aqui, ali) ou

memória dos interlocutores (naquele dia, essa história de...), como em (7). A autora situa, no

primeiro caso, as introduções não-dêiticas; no segundo, todos os usos dêiticos puros.

(6) ―Por trás de um grande homem, sempre há uma grande mulher‖

(7) ―Nesta segunda-feira você não pode perder a estréia de Zorro, o cavaleiro mascarado.‖

Observe-se que os termos sublinhados em (6) não se prestam a um papel anafórico

nem dêitico, já que têm a função de não-continuidade referencial e não pressupõem o tempo/

espaço dos interlocutores. Em (7), o termo sublinhado exige a ancoragem na situação

enunciativa, sob pena de não ser satisfatoriamente interpretado, condição suficiente para lhe

conferir deiticidade.

Ainda segundo Cavalcante (2004), seria lícito dizer que as introduções não-dêiticas e

as introduções por dêixis de memória apontam ambas em direção ao campo dêitico do

conhecimento compartilhado entre os interlocutores da situação comunicativa, enquanto as

introduções por dêixis de pessoa, de tempo e de espaço remetem ao campo da situação

empírica de fala, o que nos faz supor que os critérios que separam as duas espécies de

remissão ao conhecimento partilhado apóiam-se no tipo de instrução dada ao co-enunciador e

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nos implícitos que cada uma acarreta. A autora ilustra seu posicionamento a partir do esquema

abaixo:

Tipos de remissão

Ao conhecimento compartilhado À situação empírica

Introdução Dêiticos Dêitico Dêitico Dêitico Dêitico

não-dêitica de memória pessoal social espacial temporal

Não é privilégio das introduções referenciais (não-dêiticas e de memória) a invocação

à memória compartilhada, obviamente. Tal recurso pode, também, ser requerido nas

estratégias de continuidades referenciais, categoria que descreveremos a seguir.

4.1.2 Continuidades referenciais – as anáforas

Diferentemente dos casos descritos acima, as continuidades referenciais se

caracterizam pelo critério de remissão / retomada do referente. Aqui, a expressão referencial,

obrigatoriamente, tem de retomar uma âncora do co(n)texto. Nas palavras de Cavalcante

(2003), ―as continuidades referenciais fazem manter uma espécie de base de referencialidade,

que se percebe por algum gatilho no co(n)texto‖. A autora nos diz, ainda, que, para que haja

continuidade, não é obrigatório que exista sempre retomada total ou parcial de um mesmo

referente, como nas anáforas diretas; a ligação pode ser estabelecida somente entre uma

âncora e outro elemento contextual introduzido pela primeira vez no discurso, como no caso

das anáforas indiretas.

Não é de nosso interesse, pelo menos nesta fase da pesquisa, problematizar o quadro

classificatório desses processos, visto que desviaria a atenção do fenômeno para o qual

estamos querendo chamar atenção, a saber, a eficácia marcativa que tais processos carregam.

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Desta forma, assumiremos as postulações de Cavalcante (2004), Koch (2002) e Marcuschi

(2005), para a descrição das continuidades referenciais (anáfora e dêixis) que se segue.

4.1.2.1 Anáfora Direta

Em se tratando de anáfora, faz-se necessário dizer que, para bem compreender esse

fenômeno e seus desdobramentos, é preciso que se tenha em mente que existem dois

processos anafóricos - um direto e outro indireto – e que esta divisão se dá em função da

realização ou não de uma retomada de referentes. Para Cavalcante (2004), só se deve

empregar a noção de retomada para os casos de recuperação total ou parcial de objetos de

discurso, ou seja, para as situações de correferencialidade. Assim sendo, as anáforas diretas

seriam necessariamente correferenciais, já que estas são as que se caracterizam pela retomada

total ou parcial de um referente no universo discursivo. Podemos visualizar a ocorrência desse

tipo de processo anafórico nos exemplos abaixo:

(8) ―Os homens são mesmo uns insensíveis; eles nunca sabem a hora certa de nos fazer

um elogio...‖

(9) ―Comer insetos faz mal?

Se você respondeu que sim, e ainda fez cara de nojo, não sabe o que está perdendo. Além

de não fazer mal algum, muitos insetos podem ser tão nutritivos – e saborosos – quanto

vários outros bichos que colocamos no prato todos os dias.‖ (reportagem –

Superinteressante, junho / 2004 / exemplo da autora).

Ao passo que o pronome ―eles‖ retoma completamente o antecedente ―os homens‖, o

sintagma nominal ―muitos insetos‖ é um tanto restritivo, pois se refere a apenas alguns

elementos do conjunto ―insetos‖, já introduzido, mas nas duas ocorrências, preservadas as

nuances, ocorre uma retomada de referentes.

Pode-se pensar, a partir dos exemplos dados, considerando-se o critério semântico-

lexical, em classificar tais anáforas correferenciais como co-significativas, já que a

significação de ―os homens‖ e de ―insetos‖ é preservada. Atenta a essa possível associação,

Cavalcante (2004), lembrando Koch & Marcuschi (2002), desfaz essa possibilidade de ilação

alertando que nem sempre correferencialidade e co-significação se equivalem, de vez que

muitas das anáforas correferenciais costumam recategorizar seus antecedentes e explicitar

essa recategorização por meio de formas com outros significados. Em relação à

recategorização, Tavares (2003, p. 45, apud CAVALCANTE, 2004) nos diz que:

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73

Todos estes processos referenciais são movidos pela tentativa do

enunciador de complementar a designação de um objeto discursivo,

que ele julga, de início, inadequada ou insuficiente, sempre

procurando a expressão referencial mais apropriada, que levará o

interlocutor à reconstrução de suas ideias iniciais a respeito do

referente. Assim, ocorrem as recategorizações, que realizam uma

dupla função, a da referência propriamente dita, e a de acréscimo de

uma informação nova.

É comum que as recategorizações das anáforas correferenciais sejam assinaladas com

um elemento dêitico, geralmente um demonstrativo. Este elemento como que sinaliza para o

co-enunciador que o objeto foi refocalizado sob novo prisma. Vejamos:

(10) ―O PT revelou-se um partido de contradições. Como pode esse grupo fazer

chantagem com os colegas se livrar de uma CPI?‖ (Carta do leitor – Veja, março de

2004 / exemplo da autora)

Em (10), temos um caso de expressão referencial anafórica que comporta, dentro de si,

um elemento dêitico cuja deiticidade ―propriamente dita‖ (pessoal, espacial, temporal) é

baixíssima se comparada, por exemplo, a (7).

Ciulla (2002) propõe tratar-se de um fenômeno híbrido de anáfora e de dêixis; a

ocorrência simultânea desses dois fenômenos não se verifica somente entre anáfora e dêixis

textual. Segundo Cavalcante (2004), outros amálgamas entre anáforas correferenciais e dêixis

são ainda possíveis, como nos casos de apelo ao conhecimento compartilhado nos dêiticos de

memória.

Essa discussão nos renderia, certamente, muitos comentários, todavia, neste momento,

interessa-nos, em verdade, a transformação cognitiva do referente promovida pelo processo de

recategorização, tema do próximo subitem.

4.1.2.1.1 Recategorização

A partir das considerações feitas neste trabalho (cf. seção 4.1) acerca da referenciação

como processo - consoante o qual o ato da referência às coisas da realidade objetiva implica

etiquetá-las por meio da língua -, como uma atividade histórica e socialmente situada,

admitimos o viés sociocognitivista de nossa empresa. Koch (2004, p. 295) acertadamente nos

diz para onde o olhar de um estudo que se pretende calcado nessa dimensão sociocognitivista

da linguagem deve estar direcionado:

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O sentido das palavras e textos não lhes é imanente e não é

depreensível numa atividade de cálculo com regras rígidas

previamente estabelecidas. O sentido é necessariamente situado

histórica e socialmente e é, também, plástico, no sentido de que, em

todos os níveis da linguagem, existe uma negociação entre os

interactantes para o estabelecimento desse sentido. A linguagem não

traz os objetos do mundo para dentro do discurso e sim trata esses

objetos de diversas maneiras, a fim de atender a diversos propósitos

comunicativos: passa-se a falar, então, de objetos-de-discurso.

Somente a partir da assunção de que os sentidos são construídos socialmente é que se

pode considerar a dimensão discursiva das atividades de categorização. Dessa forma,

categorizar constitui um processo. É, como vimos noutro momento deste trabalho, por esse

motivo que a Linguística do Texto utiliza o termo objetos-de-discurso em detrimento de

referentes (que corresponde, em outra perspectiva, a objetos do mundo), em se tratando de

referenciação.

Esclarecida a perspectiva em que entendemos o ato de categorizar, iniciamos nossas

considerações sobre o ato de recategorizar.

Fala-se em recategorização se determinado objeto-de-discurso, ao ser reativado em

certo momento do discurso, é designado a partir de propriedade diferente da eleita na

designação anterior. Nessa outra forma de designação do referente, há um processo mental em

jogo ―por meio do qual os objetos-de-discurso vão sendo reavaliados pelo falante; isso

envolve também uma dimensão social, uma vez que ele se efetiva para atender ao propósito

do falante de interagir com o interlocutor‖, diz Jaguaribe (2005), em seu projeto de tese de

doutorado.

É a partir dessa reavaliação que trazemos esse fenômeno para as discussões que este

trabalho propõe. Se o enunciador procede à reavaliação de determinado referente, é porque

supõe que o interlocutor acompanhará o procedimento realizado. A interação entre as partes

do ato discursivo, como sabemos, está pressuposta, o que nos permite asseverar que o ato de

recategorizar considera os conhecimentos partilhados do interlocutor, conforme corrobora o

dizer de Koch (2004, p. 282), que considera tais conhecimentos como indispensáveis para que

os falantes possam tomar uma série de decisões: o que deve ficar implícito e explícito na

superfície textual; que fatos devem ser enfatizados; que postura (intimidade, respeito,

distância, autoridade etc) um deve assumir em relação ao outro; em que gênero deve ser

vazado o discurso, etc.

Jaguaribe (2005, p.50), citando Tavares (2003), confirma nosso posicionamento:

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O locutor tem autonomia para interferir no processo de designação, e

essa interferência, sempre encaixada sócio-culturalmente, será

motivada pela tentativa de ―adequação referencial‖ aos propósitos do

falante. Além de ter o direito de escolher a designação que julga mais

capaz de cumprir os seus objetivos, o falante pode, ainda, através da

recategorização, modificar as ideias iniciais que temos dos referentes,

ou acrescentando ou suprimindo atributos.

O ato de recategorizar deve ser concebido, como vemos, sociocognitivamente, já que é

constrangido por fatores de natureza social, cultural e toma por base processo mentais de

retomada referencial26

.

Utilizando-se do processo de recategorização, vejamos a astúcia do enunciador

no exemplo que se segue:

(11) Você não poupa energia na hora de trabalhar. Dinavital C não poupa na hora de repor.

Para enfrentar o ritmo do dia-a-dia, você precisa de uma dose extra de energia efervescente:

Dinavital C. O antifatigante rico em Aspartato de Arginina e Vitamina C que trata o estresse e

o cansaço físico e mental com um delicioso sabor. Experimente essa nova fonte de energia.

Nesse exemplo, temos o referente ―Dinavital C‖ por três vezes sendo, diferentemente,

retomado e cognitivamente transformado: ―uma dose extra de energia‖, ―o antifatigante rico

em Aspartato de Arginina e Vitamina C‖, ―nova fonte de energia‖. Note-se que essas três

retomadas não são, de forma alguma, casuais ou ingênuas – sobretudo se considerarmos que

estamos diante de um texto publicitário. Cada vez que o referente é retomado, é remodulado e

é acrescentada a seu escopo semântico uma nova informação que funciona como apoio

argumentativo para aquele que enuncia, reforçando sua intenção. O co-enunciador é, assim,

orientado a relacionar Dinavital C a ―uma dose extra de energia‖, ―o antifatigante rico em

Aspartato de Arginina e Vitamina C‖ e a ―nova fonte de energia‖. O enunciador se aproveita

da instabilidade das entidades, consoante seu propósito específico.

Fundada na cooperação entre os interlocutores pressuposta própria ao ato de

recategorizar, sustentamos que porções textuais que tenham função recategorizadora sejam

aceitas como mostrada-marcada, vez que a relação com o referente é textualmente construída

de modo, pensamos, cauteloso, para que o propósito de quem enuncia obtenha sucesso.

26

A esse respeito, Cavalcante (2005) sustenta que a recategorização pode ocorrer mesmo no caso de não haver

referente textual explícito no cotexto: ―[...] se pensarmos que a mudança no referente pode acontecer

completamente em nível cognitivo, numa espécie de ordem inversa, em que primeiro a introdução

recategorizadora é empregada e só a partir dela é que ativamos o objeto já transformado, então poderemos

manter a afirmação de que o processo cognitivo-referencial da recategorização não é exclusividade das anáforas

[...]‖. Embora aderindo a esse posicionamento, não traremos a questão para a discussão neste trabalho.

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Considerar um referente passível de ser categorizado a partir de mais de uma

propriedade possibilita, a nosso ver, o exame da heterogeneidade, por meio do modo como a

transformação cognitiva desse objeto-de-discurso se nos apresenta na construção textual, pois

essa heterogeneidade somente pode ser explicada se se (re)conhecerem as propriedades dos

referentes eleitas a cada designação, ao (re)categorizar.

Koch e Marcuschi (1998, p. 174), a respeito de uma heterogeneidade de ordem

semântica, colocam que ―a noção de recategorização pode ser retomada com uma categoria

fundamental para explicar os processos de heterogeneidade semântica no processamento

textual‖. Comungando com esse pensamento, podemos estabelecer uma relação entre

heterogeneidade semântica e heterogeneidade mostrada-marcada, na medida em que

sustentamos ser o processo de referenciação que se dá por meio da recategorização uma

estratégia textual-discursiva que, a partir de uma remodulação cognitiva do referente, produz

efeitos opacificantes na materialidade linguística, visto que o referente reformulado se serve

dos propósitos do enunciador. Vale dizer, entretanto, que não se trata exclusivamente de uma

questão de ordem semântica, de vez que o referente que sofre uma remodulação cognitiva

pode revelar um outro ponto de vista, uma outra voz, o que configura um caso de mostração-

marcação do outro num superfície do discurso

Aprofundaremos nosso posicionamento a respeito do estreitamento que estamos

sustentando entre as heterogeneidades semântica e mostrada-marcada no capítulo destinado à

análise.

4.1.2.2 Anáfora Indireta

Para que se incluam entre as indiretas, o fator correferencialidade não pode estar

relacionado às anáforas, de vez que é este, como vimos, o critério que as distingue dos casos

de anáfora direta. A estratégia de referenciação mobilizada, conforme Koch (2002), é a

associação. ―Trata-se de uma configuração discursiva em que se tem um anafórico sem

antecedente literal explícito, cuja ocorrência pressupõe um denotatum implícito, que pode ser

reconstruído, por inferência, a partir do cotexto precedente.‖ (2002, p.107).

Dessa forma, temos, ao invés do cotexto, um elemento de relação em jogo, elemento

esse que é decisivo para a orientação interpretativa. A este elemento, Schwarz (2000)

denominou âncora, e é esta denominação que manteremos aqui, já que o termo ―antecedente‖

pode levar a uma noção de remissão retrospectiva, apenas.

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Marcuschi (2005), complementando a definição de Schwarz (2000), assim define as

anáforas indiretas:

No caso da Anáfora Indireta trata-se de expressões definidas,

indefinidas e pronominais que se acham na dependência interpretativa

em relação a determinadas expressões ou informações constantes da

estrutura textual precedente ou subseqüente e que têm duas funções

referenciais textuais: a introdução de novos referentes (até aí não

nomeados explicitamente) e a continuação da relação referencial

global. (MARCUSCHI, 2005, p.59).

Tais anáforas são também responsáveis por dois processos que são de fundamental

importância para a progressão textual: a ativação e a reativação de referentes. Este responde

pela continuidade referencial, isto é, ―remissão constante aos mesmos domínios de referência,

garantindo a prossequência do quadro referencial global‖ (MARCUSCHI, 2005, p.60);

aquele, pela inserção de um novo nódulo informacional, o que promove uma ampliação do

modelo textual. É por isso que Marcuschi (2005), ainda retomando Schwarz, fala de uma

―tematização remática‖ produzida pelas AI; já estão envolvidas informações novas e velhas

nestes processos. Vejamos:

(12) ―Ontem fomos a um restaurante. O garçom foi muito deselegante e arrogante.‖

(exemplo do autor)

Em (12), a ativação de um referente novo promovida pela expressão ―o garçom‖ está

ancorada em um universo textual precedente, o que, em termos, também promove a

reativação a expressão ―um restaurante‖.

Em concordância com Schwarz (2000), o autor relaciona as seguintes características

para as AI:

1. A inexistência de uma expressão antecedente ou subseqüente explícita para

retomada, e a presença de uma âncora, isto é, uma expressão ou contexto

semântico base decisivo para a interpretação de uma AI;

2. A ausência de co-referência entre a âncora e a AI, dando-se apenas uma

estreita relação conceitual;

3. A interpretação de uma AI, dando-se como construção de um novo referente

(ou conteúdo conceitual) e não como uma busca ou reativação de referentes

prévios por parte do receptor;

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4. A realização da AI, dando-se normalmente por elementos não pronominais,

sendo menos comum sua realização pronominal.

4.1.2.3 Anáfora encapsuladora com dêitico

Quando, no tópico anterior, afirmamos que certas introduções referenciais podem, em

dado contexto, apresentar uso dêitico, referimo-nos somente aos dêiticos de pessoa, de

tempo, de espaço e de memória. Em verdade, a subdivisão dos dêiticos, definida por Fillmore

(1971, apud CAVALCANTE, 2004), conta com seis, e não apenas com aqueles cinco

vértices. A razão pela qual não fizemos referência a um dos tipos deu-se pelo fato de, neste

caso, tratar-se de entidades que remetem a trechos do contexto, integrando, desta forma, o

conjunto das continuidades referencias, tema deste tópico.

Trata-se das anáforas encapsuladoras com dêiticos (textuais). Antes de descrevermos

esta categoria, cumpre mencionar que muitos dos estudos incluem entre os casos de anáfora

esse caso híbrido, que contém a dêixis textual, o que provoca uma enorme flutuação

terminológico-delimitativa em torno deste fenômeno. Fato é que a área limítrofe que separa

os fenômenos da dêixis e da anáfora é bastante tênue e tem causado inquietação entre

estudiosos da área (cf., por exemplo, CAVALCANTE, 2000).

A extensa literatura27

sobre o assunto reúne, basicamente, dois critérios para a

caracterização dessas anáforas encapsuladoras dêiticas: a referência a porções difusas do

discurso e a consideração do posicionamento do falante na situação enunciativa. Outro

critério que costuma ser utilizado para esta caracterização é o processo metalinguístico em

que se dá a retomada da própria forma pela qual se manifesta a fonte. Porém, conforme

Cavalcante (2004):

[...] nem o escopo referencial difuso, nem a função de organizar a

disposição de organizar os elementos no texto, nem a retomada

metalinguística, tomadas em isolamento, são suficientes para definir

os dêiticos discursivos, porque conflitam sempre com a

caracterização de anafóricos muito semelhantes.

27

―[...] essas duas restrições foram delineadas pelos estudos seminais de Fillmore (1971) e Lyons (1977) e

repetidas por trabalhos posteriores (cf. LEVINSON (1983), APOTHÉLOZ (1995), MARCUSCHI (1995), et

al.).‖ (CAVALCANTE, 2004).

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Por esta razão, a autora propõe que essas anáforas encapsuladoras se definam pelo

conjunto das características, ou seja: resumir proposições inteiras por meio de uma expressão

encapsuladora e marcar o ponto da última enunciação do falante no texto.

Quando uma dessas características deixa de existir, como, por exemplo, a propriedade

resumitiva, podemos ter somente a dêixis textual, aquela que se configura pelo uso de

expressões como anteriormente, abaixo etc. Para uma definição de dêixis textual mais geral,

citamos Apothéloz (2003, p. 69):

A expressão dêixis textual designa comumente o emprego de

expressões indiciais como mais acima, abaixo, no próximo capítulo,

aqui, etc. com o objetivo de se referir aos segmentos, aos lugares ou

aos momentos do próprio texto em que estas expressões são

utilizadas. Diferentemente da dêixis situacional, o ponto que funciona

como marca deste gênero de designação não é o lugar e o momento

da enunciação, mas o lugar e o momento do texto onde aparece a

expressão indicial.

Explica o autor, apoiando-se em Conte (1981), que a dêixis textual desempenha uma

função metatextual. Ela permite organizar o espaço do texto, o que facilita a orientação do

leitor / ouvinte neste espaço.

4.2 Heterogeneidade não-marcada e leitor-modelo

Considerando nosso objetivo nesta pesquisa, pensamos que não seria equivocado fazer

uma aproximação entre o conceito de leitor-modelo de Eco e as formas de heterogeneidade

mostrada não-marcada postuladas por Authier-Revuz. É bem verdade que a autora nos fala,

no que tange às formas de heterogeneidade mostrada não-marcada, de dizeres que não ―se

deixam‖ marcar de forma clara e pontual. Aludindo à polifonia bakhtiniana, relaciona esse

tipo de heterogeneidade a vozes pouco precisas no que respeita à sua identificação pelo outro,

como que dissimulando a presença de outro(s) discurso(s). Contempla, também, implicaturas

presentes no discurso, mostrando que somente com a cooperação do leitor se faz possível a

negociação do sentido. É precisamente neste ponto que estamos propondo a inserção da noção

de leitor-modelo de Eco.

Ora, se, a partir do que vimos, entendemos o leitor-modelo - entidade puramente

abstrata - como sendo uma estratégia textual, derivamos daí a ideia de que tal entidade

constitui um conjunto de condições de êxito, textualmente estabelecidas, que devem ser

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satisfeitas para que um texto seja plenamente atualizado no seu conteúdo potencial, podemos

situá-lo como estando pressuposto na modalidade mostrada das heterogeneidades. Logo, em

se tratando de tentativas de dissimulação consciente de discursos do outro, não há como fugir

da marcação, por mais sutil ou habilidosamente dissimulada que seja, dada a materialização já

textualizada dos elementos que promovem essa marcação.

A proposta de classificação da heterogeneidade enunciativa de Authier-Revuz, ao

dicotomizar a modalidade mostrada em marcada / não-marcada, opera de modo ―simplista‖,

quando não considera possibilidades outras de manifestação de marcação do outro no

discurso. Partiremos dessa constatação, aliando-nos à teorização de Eco acerca do leitor-

modelo, para tentar dar um tratamento menos fechado às possibilidades de que o sujeito

dispõe para marcar – e mostrar que o fez – seu dizer, ainda que não tencione,

conscientemente, fazê-lo.

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CAPÍTULO V

ANÁLISE

_____________________________________________________________________________________

Há um tempo em que é preciso

abandonar as roupas usadas que já

têm a forma de nossos corpos e

esquecer os nossos caminhos que

nos levam sempre aos mesmos

lugares.

É o tempo da travessia. E se não

ousarmos fazê-la teremos ficado

para sempre à margem de nós

mesmos.

(Fernando Pessoa)

5.1 Considerações preliminares

O alvo de nosso questionamento está pautado na forma não-marcada da

heterogeneidade mostrada. Pensamos não ser legítimo pensar em mecanismos de inscrição do

outro no enunciado, que, por não serem formalmente flagrantes, tenham de ser entendidos

como formas não-marcadas, embora mostradas, da presença da alteridade em determinado

discurso. A discretização das modalidades de heterogeneidade mostrada produz, a nosso ver,

um fechamento no que tange às estratégias de que dispõem os sujeitos para marcar a presença

do outro em seus dizeres. Defendemos que o fato de o sujeito não marcar, formalmente, tal

como o é na heterogeneidade mostrada marcada, a ruptura produzida no fio discursivo pela

―irrupção‖ do outro não nos leva, necessariamente, a postular uma não-marcação por parte do

sujeito. Prova disso, reivindicamos, são os processos referenciais anafóricos e dêiticos e a

recategorização expressa por introduções referenciais, por exemplo. Para nós, as várias

maneiras de marcação – vez que defendemos que estratégias desse tipo configuram um texto

como marcado – são inteiramente legítimas, já que passíveis de serem identificadas. Ocorre

que tal identificação se dará por vias não prototípicas de acesso à maneira pela qual o sujeito

opta por marcar a ―alteração‖ em seu discurso. Também nos provoca incômodo a ideia de

pensar a intertextualidade, sobretudo aquela que se dá por alusão, como sendo não-marcada.

O enunciador, que neste caso tem ciência do efeito pretendido, não privaria, obtusamente, seu

co-enunciador de pistas que viabilizassem acesso ao intertexto, sob pena de sabotar seu

próprio desiderato. Com efeito, o procedimento alusivo, mesmo se admitirmos que se

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aproxime mais da implicitude, consiste justamente em sinalizar, a partir de marcas textuais,

que o co-enunciador terá de apelar à memória, na busca do referente já-dito.

É bem verdade que Authier-Revuz (1982) já nos fala, como já mencionamos (cf. item

1.3 deste trabalho), que, dentro da heterogeneidade mostrada, têm-se desde as formas

marcadas, que atribuem ao outro um lugar linguisticamente descritível, até um continuum das

formas recuperáveis da presença do outro no discurso, que seriam as formas não-marcadas.

Nos termos da autora, ao tomarmos como ponto de partida:

[...] as formas marcadas que atribuem ao outro um lugar

linguisticamente descritível, claramente delimitado no discurso,

passando pelo continuum das formas recuperáveis da presença do

outro no discurso, chega-se, inevitavelmente, à presença do outro – às

palavras dos outros, às outras palavras – em toda parte sempre

presentes no discurso, não dependente de uma abordagem linguística.

(AUTHIER-REVUZ, 1982, p. 21).

Discutível, a nosso ver, é o fato de serem estas últimas tidas como não-marcadas

apenas pelo fato de a identificação da marcação depender do conhecimento prévio, da

memória cultural do co-enunciador. Trata-se, em verdade, de uma condição contingente que

não descaracteriza o fenômeno em si. É mais ou menos como dizer que um texto que verse

sobre física quântica, lido por alguém que não tenha conhecimento sobre o assunto, não tenha

valor em si. Não podemos, com efeito, atrelar o fator compreensão ao fato linguístico da

marcação - mesmo que este procedimento não se dê de maneira tão explícita – sob pena de

desprezar o universo referencial que o próprio texto constrói. Assumimos, em consonância

com Cavalcante (2004), que toda entidade referida é utilizada mediante a pressuposição de

que se tornará acessível na interação por alguma via. Ocorre que os tipos de suposição que

aquele que enuncia julga estarem representadas na mente de seu interlocutor interferem

diretamente nas escolhas dos processos referenciais que são considerados mais adequados a

cada momento da enunciação e nos diferentes modos de expressá-los. As categorias de análise

eleitas neste trabalho foram selecionadas de modo a evidenciar os processos referenciais que,

a partir da apreensão textual de tal pressuposição, serão compreendidos como marcadores de

fatos de heterogeneidade.

Traremos essas considerações para o plano da materialidade linguística na seção

seguinte, a partir dos textos reunidos em nossos dados, reforçando, dessa maneira, nosso

posicionamento acerca dos fatos de heterogeneidade mostrada-marcada.

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5.2 ANÁLISE

5.2.1 Dêiticos memoriais

Os dêiticos de memória, que indicam que o referente é de fácil acesso na memória

comum dos interlocutores e incentivam o outro do processo discursivo a buscar ali a

informação de que precisa para (re)construir o sentido, constituem, para nós, mecanismo de

marcação. Isso porque vemos, na pressuposição de que conhecimentos armazenados na

memória do leitor sejam cruciais para a (re)ativação do referente pretendido, representada

linguisticamente por um dêitico de memória, a explicitação de um fato de heterogeneidade no

fio textual, o que promove a opacificação de um ponto específico do dizer.

Cabe uma última observação de autoridade quanto à ativação de referentes por meio

de demonstrativos, que julgamos pertinente, na medida em que fortalece nossa argumentação

em favor do que vimos defendendo:

Um SN demonstrativo pode referir-se in absentia, quer dizer, na

ausência de qualquer designação antecedente de seu referente e sem

que este esteja presente na situação enunciativa. [...] concordamos em

descrever este tipo de demonstrativo dizendo que ele consiste em

evocar um referente cuja evidência é tal, para o locutor, que ele

equivale a um referente que acabou de ser evocado no próprio texto.

(APOTHÉLOZ, 1995, p.35).

Os textos que se seguem apresentam ocorrências cujo destaque é dado à função que o

demonstrativo acumula quando faz as vezes de mecanismo marcativo.

(1) Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos. É que as

crianças crescem [...], mas não crescem todos os dias, de igual maneira: crescem de

repente. [...] Onde andou crescendo aquela danadinha que você não percebia? Cadê

aquele cheirinho de leite sobre a pele? Cadê a pazinha de brincar na areia, as

festinhas de aniversário com palhaços, amiguinhos e o primeiro uniforme do

maternal ou escola experimental? [...]. (Antes Que Elas Cresçam. In: SANT‘ANNA, A.R.

de. Coleção melhores Crônicas, p.14).

Partiremos do entendimento de que a atualização da expressão ―aquele cheirinho de

leite‖, que figura de maneira nada casual no contexto em que está inserido, coloca-nos diante

de uma estratégia usada pelo enunciador que denuncia ao co-enunciador a pressuposição de

que este compartilhe determinado conhecimento.

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Em (1), quando o enunciador se refere ―àquele cheirinho de leite sobre a pele‖ das

crianças quando bebês, o demonstrativo é utilizado exatamente para marcar que tal sensação

olfativa deve ser conhecida daqueles que estão lendo aquela crônica, já que um leitor deste

gênero provavelmente já manteve contato com crianças naquele estágio da vida; ainda que o

leitor não tenha tido nenhuma experiência com a situação forjada pelo texto, é de

conhecimento geral, enciclopédico que os bebês se alimentam integralmente de leite nesta

fase da vida, o que faz com que fique impregnado com seu cheiro. A expressão poderia

perfeitamente ter sido assinalada com aspas, indicando que se trata de uma situação comum

aos interlocutores. No entanto, vemos a utilização do demonstrativo de terceira pessoa

desempenhando função de marcador. Esse lançar mão do demonstrativo para ativar a

memória do outro, defendemos, apresenta-se como estratégia de marcação tão eficaz quanto o

aspeamento – mecanismo formal de marcação da inscrição do outro no fio discursivo -, por

exemplo.

Conquanto o referente não tenha sido anteriormente designado, o próprio cotexto se

deixa utilizar para que o caminho até o não-dito seja trilhado com sucesso; o cotexto está

repleto de referências explícitas que podem servir de ponte para o alcance do referente

pretendido, quais sejam: ―pais‖, ―filhos‖, ―crianças‖, ―pazinha de brincar na areia‖, ―festinhas

de aniversário‖, ―palhaços‖, ―primeiro uniforme do maternal‖; está posta, pois, a atmosfera

nostálgica no interior da qual o texto vem se construindo.

Aqui, mesmo que a referência propriamente dita não esteja manifesta, estamos diante

de um procedimento não inteiramente dêitico, mas também anafórico, na medida em que,

apesar de o demonstrativo sinalizar essencialmente para informações relacionadas à memória,

encontra, na materialidade textual, indícios que colaboram para que o referente pretendido

seja (re)ativado, por meio de vias indiretas.

(2) Passou o tempo do balé, das culturas francesa e inglesa [...]. Só nos resta dizer

‗bonne route, bonne route‘ como naquela canção francesa narrando a emoção do

pai quando a filha lhe oferece o primeiro jantar no apartamento dela. (Antes Que Elas

Cresçam. In: SANT‘ANNA, A.R de. Coleção melhores Crônicas, p.15).

Coisa um pouco diferente ocorre em (2), pois, quando se refere ―àquela canção

francesa‖, reforça a canção especificamente que quer que seja buscada na memória, já que nos

dá a pista que nos levará ao referente pretendido: trata-se de uma dada canção que traz em sua

composição a expressão ―bonne route, bonne route‖ – expressão que ratifica tratar-se de uma

―canção francesa‖. Mesmo facilitando a construção do sentido, por parte do interlocutor, na

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busca do referente, em nada se altera a situação do demonstrativo ―aquela‖. Cabe, neste

momento, chamar o leitor-modelo de Eco para complementar nosso posicionamento. Para que

o interlocutor ―ajude o texto a funcionar‖ nesse seu momento específico, não basta que este

disponha de um conhecimento de mundo geral, como o é na construção dos demais textos

selecionados. Trata-se, neste caso, da previsão de um outro que tenha uma bagagem cultural

um tanto ―sofisticada‖, sobretudo no que tange a canções, para que seja acessada a canção de

Serge Regianni, Ma fille. Ressaltamos que o não-acesso ao texto sugerido pelo autor da

crônica não compromete de todo a construção global de sentido, em absoluto; mas deixa-se,

sim, de enriquecê-la. O fato de não ter havido a ponte, de o gatilho não ter sido deflagrado - é

o que defendemos - não neutraliza a sugestão de conexão, concentrada, inicialmente, em

―aquela‖, que é o que marca a suposição deste leitor-modelo.

Assim como em (1), portanto, estamos diante de uma expressão marcada por um

dêitico de memória.

(3) Deveríamos ter ido mais vezes à cama delas ao anoitecer para ouvir sua alma

respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância e os adolescentes

cobertos naquele quarto cheio de colagens, posters (sic) e agendas coloridas de

pilot. (Antes Que Elas Cresçam. In: SANT‘ANNA, A.R. de Coleção melhores Crônicas , p. 15).

Em (3), o universo construído pelo texto pede que atualizemos nosso conhecimento -

independente de nossas experiências particulares, frisamos – acerca da fase da adolescência:

momento em que as atitudes descritas pelo texto são bastante comuns: encher o quarto com

pôsteres do(s) ídolos(s), ter agendas rabiscadas por canetas porosas coloridas. Assim, dentro

do contexto em que a expressão ―naquele quarto‖ é inserida, constatamos que o demonstrativo

(de)marca um lugar específico a ser buscado pelo interlocutor, a partir de seu conhecimento

enciclopédico.

Sustentamos que a seleção da expressão ―naquele quarto‖ nada tem de inocente no

contexto; para nós, ela denuncia a pressuposição do enunciador no que respeita ao

conhecimento partilhado que deve existir ente ele e o co-enunciador relativo a cenas e práticas

bem próprias à fase da adolescência. Para resgatar da memória do interlocutor a informação

básica que indicará a precisão semântica do referente, o enunciador se apóia, com efeito, no

demonstrativo de terceira pessoa ―aquele‖, o que materializa – portanto torna observável – um

fato de heterogeneidade.

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(4) Aguardar assim o furacão é como aquela personagem do conto de

Hemingway, que cansado de fugir dos perseguidores deita-se e aguarda o fim. (Esperando o furacão. In: SANT‘ANNA, A. R. de. Coleção melhores Crônicas, p.105).

Em (4), convocamos, como em (2), uma instância pressuposta erigida pelo texto cujo

perfil intelectual seja, digamos, um pouco mais refinado. O interlocutor é, por um lado,

bastante ―poupado‖, já que lhe é fornecido um detalhamento da trajetória da personagem de

Ernest Hemingway: Francis Macomber, em A vida curta e feliz de Francis Macomber. Em

contrapartida, trata-se de uma via de acesso menos geral que a de (4), por exemplo, que exige

de nosso conhecimento de mundo algo da ordem do prosaico; aquela via, só alguns

conseguem trilhar.

Reconhecemos que, a exemplo do que pode acontecer com o texto de (4), determinado

co-enunciador não alcançar o referente que está condensado no dêitico memorial, mesmo que

o texto ofereça pistas supostamente suficientes para sua (re)ativação dentro do conhecimento

enciclopédico do leitor, não anula a marcação promovida, precisamente pelo demonstrativo

―aquela‖, no fio discursivo; o percurso inconcluso da busca pelo referente não-dito não

descaracteriza, em absoluto, o fenômeno propriamente dito, de vez que o fato de estar

textualmente - por meio do dêitico memorial - materializado garante sua autonomia,

independentemente de condições contingenciais.

Sustentamos que o uso que se faz do dêitico memorial em (4) configura um modo de

marcar de modo observável um fato de heterogeneidade. O demonstrativo, no interior do

contexto em que é colocado, condensa o referente não-dito em sua estrutura, referente este

que, necessariamente, está condicionado à memória cultural do outro. De modo pontual,

portanto, localizamos a opacificação de determinada porção textual, o que significa postular

que estamos diante de uma sequência em que o outro se mostra na materialidade linguística

por meio do demonstrativo, o qual passa a assumir, também, a função de elemento

responsável pela mostração marcativa do atravessamento pontual do outro no fio do texto.

Teríamos, considerando a classificação de Piègay-Gros, um caso de intertextualidade

por co-presença: a referência, que, sabemos, é tratada pela autora como uma modalidade

explícita no quadro das intertextualidades. Admitindo-se tal explicitude, admite-se, outrossim,

que temos como apontar, num ponto específico da materialidade textual, a irrupção do

estrangeiro, responsável pelo comprometimento da transparência do dizer, o que, como

queremos, consubstancia um procedimento marcativo que se mostra linguisticamente, no caso

específico de (4), precisamente por meio do dêitico memorial ―aquele‖.

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O procedimento marcativo que se efetiva por meio de dêitico memorial se repete,

respeitadas as nuances de ―seus leitores-modelo‖, com os demais textos. Vemos o enunciador

se apoiando em demonstrativos de terceira pessoa para resgatar, da memória do interlocutor, a

informação de base responsável por engatilhar as inferências. Para nós, está aí a presença do

atravessamento tangível, portanto marcado, do outro em textos que sejam construídos se

utilizando de procedimentos dessa ordem.

(5) Uma coisa especial ocorre com a mulher depois que ama. Reparem, estou

dizendo depois que amam. Não estou me referindo a ela enquanto está no ato do

amor. [...] Quando a mulher foi amada e bem amada, ela ingressa nessa atmosfera

sagrada, cuja descrição se aproxima daquilo que as santas estáticas descreveram.

Uma aura de mistério as envolve [...]. (Misteriosos gozos. In: SANT‘ANNA, A.R de.

Coleção melhores Crônicas, p. 49).

O exemplo acima, em que o substantivo ―atmosfera‖ vem antecedido pelo

demonstrativo ―essa‖, é outro caso em que se evidencia a cumplicidade suposta entre

enunciador e co-enunciador no que respeita ao referente não mencionado no texto, mas cuja

localização semântica específica é linguisticamente orientada.

Não há nada de eventual na atualização do demonstrativo em determinado momento

do texto. Muito pelo contrário, o fato de figurar em dada sequência textual evidencia que há,

conscientemente, a aposta no conhecimento de mundo do co-enunciador. Supõe-se, então, que

―a atmosfera‖ mencionada é de conhecimento daquele com quem o enunciador negocia o

sentido do texto, por isso a opção por tal construção.

O discurso está pautado, com efeito, nas experiências comuns aos interlocutores,

raciocínio respaldado pela concisão da expressão ―essa atmosfera‖, cuja precisão semântica,

notadamente, não aparece, de forma que se possa delimitar, no texto; o que aparece, isso sim,

é uma ruptura promovida pelo dêitico ―esse‖, que indica a opacificação daquele ponto

específico do texto, o que torna evidente, para nós, que há aí um fato concreto de

heterogeneidade mostrada-marcada.

O elemento mostrativo-marcativo, representado linguisticamente pelo demonstrativo

―esse‖ ancora, na materialidade linguística, uma relação necessária entre o que está sendo dito

e o referente que deve ser buscado na memória do outro, daquele com quem se está

negociando o sentido. Temos, em ocorrências dessa natureza, o outro cuja representação se

faz enxergar pelo apelo ao conhecimento partilhado, enciclopédico, previsto num ponto

específico, observável, do texto.

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(6) A mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um

tronco, inteira. Não é uma canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs.

A adolescente, com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que vem de

dentro e dos olhos nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em

suas formas. (A mulher Madura. In: SANT‘ANNA, A.R de. Coleção melhores Crônicas, p. 18).

Em (6), mais uma ocorrência de mostração-marcação por meio de dêitico memorial é

demonstrada, com base no que vimos reivindicando. Temos uma expressão que convoca

diretamente o co-enunciador a buscar o referente não-dito, mas que, a partir da atmosfera

construída pelo texto, tem plenas condições de ser reconstruído. Note-se que a expressão

―essa irradiação‖ é apresentada de forma que seu referente, embora não constando da

materialidade do texto, parece já ser da ordem do cognoscível; a estrutura sintática foi

elaborada baseada na certeza pressuposta de que o co-enunciador, no ato da atualização de

sentido, alcançará precisamente a rede semântica deflagrada pelo demonstrativo ―essa‖.

No momento da (re)ativação do referente pretendido, que, linguisticamente, concentra-

se no modo como o SN ―essa irradiação‖ está posto no texto, a irrupção observável do alheio

no fio textual parece-nos bastante evidente, na medida em que coloca, num ponto específico

do dizer, um elemento cujo referente deve ser encontrado no conhecimento partilhado do

outro. A emergência do heterogêneo, então, manifesta-se concretamente, fato que caracteriza

a mostração de uma heterogeneidade que se nos apresenta marcadamente por meio de dêitico

memorial.

(7) [...] Esse cheiro... diz ele. Realmente

quem pode com esse cheiro nauseante?

A neve foi malfeita, não se faz

Neve como em filmes e gravuras.

E me dói a cabeça, diz alguém.

E a minha também, e o mal-estar

Me invade o corpo. Desculpem se vomito

À vista de pessoas tão distintas [...]. (Num planeta enfermo. In: ANDRADE, C. D. de. Discurso de primavera e algumas sombras, p.8-

10).

Em (7), destacamos o SN ―esse cheiro‖ para continuar defendendo que expressões

desse tipo, formadas por demonstrativo + substantivo e sem referente textual expresso, são

explicitamente marcadas; trata-se de casos de heterogeneidade mostrada-marcada na medida

em que aquele que se utiliza de expedientes dessa natureza conta que o conhecimento do

outro - aquele para quem fala – alcance o referente pretendido; procedendo dessa maneira,

está marcando, por meio de um dêitico memorial, dado segmento do texto. A explicitude

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mostrativo-marcativa em favor da qual advogamos se justifica exatamente pela utilização

desse dêitico memorial. Se o enunciador prefere atualizar ―esse cheiro‖ em lugar de predicar o

―cheiro‖ a que está se referindo, é porque entende que seu leitor-modelo, entre todos os

possíveis ―cheiros‖ que conhece, selecionará, a partir do contexto enunciativo em que se dá a

interlocução, o que reúne os semas que quer o enunciador.

(8) Falta alguma coisa no Brasil

depois da noite de sexta-feira.

Falta aquele homem no escritório

A tirar da máquina elétrica

O destino dos seres,

A explicação antiga da terra.

Falta uma tristeza de menino bom

Caminhando entre adultos

Na esperança da justiça

Que tarda – como tarda!

A clarear o mundo.

Falta um boné, aquele jeito manso,

Aquela ternura contida, óleo

A derramar-se lentamente.

Falta o casal passeando no trigal.

Falta um solo de clarineta. (A falta de Érico Veríssimo. In: ANDRADE, C. D. de. Discurso de primavera e algumas sombras,

p. 39).

O ―homem‖, o ―jeito‖ e a ―ternura‖ de que fala o exemplo (8), como se pode observar,

não traz, no texto, quaisquer referentes pontuais nos quais possa se apoiar o co-enunciador. O

que temos, nesse caso, é uma série de expressões marcadas pelo demonstrativo aquele(a), de

tal feita que corrobora o que vimos reivindicando: demonstrativos que funcionam como

dêiticos de memória têm potencial mostrativo-marcativo. Esse potencial é, também, provido

de explicitude, quando lhe é conferido o estatuto de elemento que, efetivamente, ativa o

referente pretendido na memória do co-enunciador.

Se, nos termos de Authier-Revuz (1991), no heterogêneo do fio ―há o heterogêneo

manifesto, sobre o fio, produzindo nele rupturas observáveis‖ (p. 179), podemos confirmar o

fato de heterogeneidade presente em construções do tipo das presentes em (8): a irrupção de

um elemento que deflagra, em sendo atualizado em dado contexto enunciativo, um referente

específico. Ocorre que a tal ruptura não carrega uma marcação formal ―exterior‖ ao termo

marcado, fator que a diferencia, mas não desautoriza seu estatuto marcativo, do que a autora

coloca entre as formas marcadas de mostração da irrupção do outro no fio do discurso.

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Assim, o demonstrativo presente no SN ―aquele homem‖ engatilha, na memória do co-

enunciador, um referente específico, supostamente conhecido; caso contrário, em lugar da

utilização do demonstrativo ―aquele‖, o recurso usado para que determinado referente fosse

identificado teria sido diferente. A mesma lógica de raciocínio dá-se quando da utilização de

―aquele jeito‖ e ―aquela ternura‖. A opção feita pela construção com o demonstrativo é, a

nosso ver, bastante sintomática, no sentido de enxergarmos uma marcação intencional,

portanto consciente, por parte do enunciador. ―Jeito‖ e ―ternura‖ poderiam ter sido descritos

no corpo do texto para que sua precisão semântica fosse assegurada; ou, talvez, marcados por

aspas, o que indicaria que um sentido específico para aqueles SN‘s teria de ser buscado

algures. Fato é que recurso algum, consoante os recursos marcativos propostos pela literatura

da área do texto, foi utilizado. Para nós, o fato mesmo de os demonstrativos ―aquele‖ /

―aquela‖ acompanharem os substantivos ―jeito‖ e ―ternura‖ em dado contexto enunciativo,

inaugura outra possibilidade mostrativo-marcativa: aquela que, a partir de um dêitico de

memória, sinaliza ao co-enunciador que dado referente deve ser buscado em seu

conhecimento de mundo, para que o sentido pretendido pelo enunciador seja atualizado.

Aliada ao uso dos demonstrativos, vemos que a atmosfera nostálgica a partir da qual

se constrói o texto fortalece as expressões que queremos marcadas. Uma série de remissões

indiretas que remonta a um conjunto de práticas típicas de um certo momento é

constantemente convocada (―Falta uma tristeza de menino bom‖, ―Falta um boné‖, ―Falta um

solo de clarineta‖, Falta o casal passeando no trigal‖), de modo a reforçar o lugar onde, na

memória – que não necessariamente deve ser episódica - do co-enunciador, os referentes de

―jeito‖ e de ―ternura‖ têm de ser buscados.

(9) E chega o momento de olhar para o amigo

devagar, bem nos olhos

e sorrir para ele, sem dizer

nenhum desses vanilóquios de todo dia.

Dizemos alguma coisa para a fonte?

Alguma coisa para o ar?

Chega o momento de sentir

o amigo em estado de natureza,

e toda a limpidez

e toda a transparência

da alma se projeta

no que parece um vulto e é uma essência.

[...]. (II / Alceu na safira dos oitent‘anos. In: ANDRADE, C. D. de. Discurso de primavera e algumas

sombras, pp.41-43).

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No último exemplo desse item, o destaque ao SN ―esses vanilóquios‖ soma

argumentos em favor de nosso desiderato maior neste trabalho: reconhecer, entre outros, os

dêiticos de memória como expediente mostrativo-marcativo eficaz.

A pressuposição de que o co-enunciador selecionará o(s) referente(s) necessário(s)

para a atualização de sentido prevista pelo enunciador, que opta pela construção do SN (esses

[demonstrativo] + vanilóquios [substantivo]), apresenta-se como procedente, na medida em

que entendemos o dêitico de memória esse como elemento deflagrador da marcação operada

nesse segmento do texto; compreendido desse modo pelo co-enunciador, tal segmento será

processado já com a função de ativar o(s) referente(s) correspondente(s) ao contexto em que

se dá a interlocução.

Assim, se for verdade que ―as formas de heterogeneidade mostrada se inscrevem,

como um subconjunto formalmente caracterizável, no conjunto muito mais amplo daquilo que

se pode formalmente descrever como fato de ruptura sobre o fio enunciativo‖ (AUTHIER-

REVUZ, 1991, p.174), nossa argumentação está sendo construída com vistas a garantir a

inclusão, entre tal ―conjunto formalmente caracterizável‖, dos dêiticos memoriais como modo

lícito de marcar a conversão local de um desvio de não-um, que atravessa pontualmente a

enunciação.

5.2.2 Dêiticos espaciais e temporais

Os dêiticos espaciais remetem ao lugar específico em que se encontra o enunciador, ou

pressupõem esse local. Os temporais, por seu turno, pressupõem o tempo em que se dá o ato

comunicativo. Esses tipos de dêiticos podem funcionar, também, como marcadores quando da

alternância de enunciações. Vejamos a atuação dos dêiticos ―aqui‖ e ―agora‖ nos exemplos

(10) e (11).

(10) Da minha janela os vejo. São três. Encostados no tapume da favela [...]. Da

minha janela os vejo: dois policiais a cinqüenta metros, lá embaixo [...]. Da minha

janela me dou conta de que somos um triângulo. Eu aqui do alto contemplando de

um ângulo os homens seminus e sua arma [...]. Talvez me encontre [um dos

rapazes seminus] num sinal de trânsito ou numa rua escura e me abra a cabeça com

a bala de sua fúria. [...] Mas quando isso se der, eu, você ou aquele que tiver sido

assassinado não estará mais aqui nem terá mais olhos pra ver. (Da minha janela vejo.

In: SANT‘ANNA, A.R. de. Coleção melhores Crônicas, p.36).

Observe-se que o texto se constrói dentro da atmosfera da enunciação enunciada. Os

lugares vão sendo definidos em torno do ponto a partir do qual fala o enunciador: da janela de

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seu apartamento. Percebemos isso claramente quando as expressões ―lá em baixo‖ e ―aqui do

alto‖ são confrontadas. Ocorre que, ao finalizar o texto, o lugar a que passa a se referir o

dêitico ―aqui‖ aponta para a enunciação que é atualizada a cada leitura que é feita do texto, a

enunciação real à qual pertencem efetivamente os interlocutores. O modo de utilização desse

dêitico no interior de contextos, como o acima ilustrado, alça-o à condição de marcador. O

dêitico temporal promoveu a mudança do expediente da enunciação, marcando-as, portanto.

O dêitico utilizado com esse fim chama para o texto o alheio, na medida em que conta com

elementos pertencentes ao momento enunciativo do outro para a constituição de seu sentido.

Procedimento semelhante ao de (10) dá-se com o exemplo abaixo:

(11) Conheci Drummond aos 17 anos, ali no seu gabinete no Ministério da

Educação. Havia lhe enviado uma cartinha interiorana e alguns poemas, e agora

subia o elevador para vê-lo de perto. [...]. De repente dava aquele respeito e não

mexia um dedo. Ele construía uma tal atmosfera de individualidade, que às vezes

era impenetrável. Era um homem imprevisto. Respeitava e se fazia respeitar.

Agora se foi. Ele vivia com aquele ar de quem estava mal alojado e sempre se

despedindo. (Perto e longe do poeta. In: SANT‘ANNA, A.R. de. Coleção melhores Crônicas,

p.61).

Aqui, temos o dêitico temporal ―agora‖ também marcando a mudança de enunciação.

Quando da utilização desse termo em torno da cena construída dentro da enunciação

enunciada, marca o tempo em que os acontecimentos se desenrolavam naquele expediente

enunciativo. Ao utilizar a expressão ―agora se foi‖, o dêitico temporal ancora-se na

enunciação atualizada pelo interlocutor no momento da leitura, fazendo com que esta outra

enunciação seja instaurada, marcando-a. Ao lançar mão desse procedimento, o conhecimento

enciclopédico do interlocutor é requerido, pois é preciso que ele saiba que o poeta de que fala

o texto já ―se foi‖.

Os dêiticos de tempo e de espaço podem, também, indicar a existência de discurso

indireto livre e, dessa forma, marcar alternância de vozes entre narrador e personagem. Em

(12), podemos constatar esse feito:

(12) A FUGA

(12) [...] Estava cansada. Pensava sempre: ―Mas que é que vai acontecer agora?‖

Se ficasse andando. [...] Esperou um momento em que ninguém passava para dizer

com toda a força: ―Você não voltará‖. Apaziguou-se. Agora que decidira ir embora

tudo renascia. Se não estivesse tão confusa, gostaria infinitamente do que pensara

ao cabo de duas horas: ―Bem, as coisas ainda existem‖.

[...] Agora a chuva parou. Só está frio e muito bom. Não voltarei para casa.

Ah, sim, isso é infinitamente consolador. Ele ficará surpreso? Sim, doze anos

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pesam como quilos de chumbo. Os dias se derretem, fundem-se e formam um só

bloco, uma grande âncora. E a pessoa está perdida. Seu olhar adquire um jeito de

poço profundo. Água escura e silenciosa. Seus gestos tornam-se brancos e ela só

tem um medo na vida: que alguma coisa venha transformá-la [...]

Ela ri. Agora pode rir... Eu comia caindo, dormia caindo, vivia caindo. Vou

procurar um lugar onde pôr os pés [...]

Abre a boca e sente o ar fresco inundá-la. Por que esperou tanto tempo por

essa renovação? Só hoje, depois de doze séculos. Saíra do chuveiro frio, vestira

uma roupa leve, apanhara um livro. Mas hoje era diferente de todas as tardes

dos dias de todos os anos. Fazia calor e ela sufocava. Abriu todas as janelas e as

portas. Mas não: o ar ali estava imóvel, sério, pesado. Nenhuma viração e o céu

baixo, as nuvens escuras, densas [...]

Agora está com fome. Há doze anos não sente fome. Entrará num restaurante.

O pão é fresco, a sopa é quente. Pedirá café, um café cheiroso e forte [...].

Rio, 1940. (LISPECTOR, C. In: O primeiro beijo e outros contos, pp. 23-27).

Note-se que a passagem da voz da personagem para a do narrador não está sinalizada

com aqueles mecanismos prototípicos responsáveis por assinalar o que é da ordem ―do um‖ e

o que ―é do outro‖. A função (de)marcativa está aí sob a incumbência de dêiticos. Em (12),

estamos lidando com um texto em que a sequência narrativa é dominante; o discurso é em

terceira pessoa; em discursos desse tipo, teoricamente, narrador e personagem constituem

pontos de subjetividade distintos. Mas o que ocorre aqui é a união das instâncias enunciativas

de narrador e de personagem, num ponto específico da cadeia textual, fazendo com que o

narrador se mostre como estando no interior da narrativa e não ―de fora‖ dela, como o é

aparentemente. No trecho ―[...] Esperou um momento em que ninguém passava para dizer

com toda a força: 'Você não voltará'. Apaziguou-se. Agora que decidira ir embora tudo

renascia‖. Assim como nos demais trechos negritados, vemos claramente este fenômeno em

ação. Observe-se que a narrativa vem transcorrendo na perspectiva de um momento

pertencente, digamos, a um ―não-agora‖. Quando se dá a atualização de ―agora‖, esse dêitico

como que convoca as enunciações de modo que constituam uma, neutralizando, portanto, os

tempos de uma e de outra. Este elemento atua como uma espécie de centralizador pontual das

instâncias enunciativas em questão. Entendemos, desta maneira, que dêiticos desse tipo,

funcionando de modo a provocar o ―aparecimento‖ da voz do outro – neste caso, a do

narrador – na superfície textual, são marcadores que mostram, sim, a ruptura no fio

discursivo.

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5.2.3 O discurso indireto livre

Só pelo fato de se tratar desse tipo de discurso, sabemos que as vozes não se nos

apresentarão por meio de expedientes formais. Para nós, no entanto, o fato mesmo de esse

discurso se apresentar como sendo pertencente a outrem, é suficiente para considerá-lo como

sendo da ordem do marcado. Vejamos a colocação desse procedimento em discurso:

(13) Na ocasião, o Vice-Governador do Estado, Professor Francisco Pinheiro,

comentou que a Constituinte Cultural representa 'o esforço do Governo em

responder às propostas de campanha, por meio dos princípios da transparência nas

ações, na participação popular e num governo eficiente'. Queremos fazer da

cultura não só um acessório, mas o modo de ser da vida cearense. (Relatório final

da Constituinte Cultural – SECULT/CE - 2007).

Em (13), quando vemos ―Queremos fazer da cultura não só um acessório, mas o modo

de ser da vida cearense‖, é nítida (ou audível!) a presença da voz do outro dentro do discurso

do Um. O discurso vem sendo travado na terceira pessoa; há o momento do discurso indireto,

―devidamente‖ sinalizado por aspas; a isso, segue-se um discurso em primeira pessoa, sem,

contudo, haver a indicação de que ainda se trata da mesma voz da do discurso indireto:

discurso indireto livre, portanto. Trata-se, sim, daquela voz – chega a fazer barulho! - cuja

primeira fala foi identificada formalmente. O outro está se manifestando da mesma maneira; a

própria marca desinencial o denuncia; o fenômeno está ali, no afã de ser legitimamente

reconhecido como tal.

Seguindo essa linha de raciocínio, posicionamo-nos: o discurso indireto livre traz

consigo força marcativa; a liberdade que lhe é inerente não faz calar, em absoluto, a voz do

outro que ele atualiza, pelo fato de não vir sinalizado por aqueles marcadores prototípicos. A

nós, causa-nos estranheza tratar este fato de linguagem como dependente de interpretação,

como quer Authier-Revuz, vez que vemos claramente uma alteração que opacifica um ponto

específico da cadeia do dizer. No texto acima ilustrado, a brusca mudança desinencial do

verbo constitui, a nosso ver, uma marca, não-referencial, mas de um outro tipo. Mas há

também uma marca referencial: a do dêitico de pessoa, nós, expresso desinencialmente.

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5.2.4 Recategorização

A recategorização expressa por introduções referenciais pode também constituir um

mecanismo de marcação de alteridade no fio discursivo. Os exemplos abaixo ilustram o

fenômeno que estamos entendendo como tendo potencial marcativo.

(14) Se ninguém duvida da piedade da rainha Isabel, muitos estimam que os

meios utilizados para impor sua fé não têm sido muito católicos. É ela, com

efeito, que assina a lei que bane 150.000 judeus da Espanha e que fez perseguir,

espionar, espoliar, torturar estes infiéis. (Exemplo de artigo extraído de Apothéloz e

Reichler-Béguelin, 1995).

(15) Um jovem suspeito de ter desviado uma linha telefônica foi interrogado há

alguns dias pela polícia de Paris. Ele havia ‗utilizado‘ a linha de seus vizinhos para

fazer ligações para os Estados Unidos em um montante de aproximadamente

50.000 francos. O tagarela foi apresentado à justiça... (Exemplo de artigo extraído de

Apothéloz e Reichler-Béguelin, 1995).

(16) A bunda, que engraçada

A bunda, que engraçada,

Está sempre sorrindo, nunca é trágica.

Não lhe importa o que vai

pela frente do corpo. A bunda basta-se.

Existe algo mais? Talvez os seios.

Ora - murmura a bunda - esses garotos

ainda lhes falta muito o que estudar.

A bunda são duas luas gêmeas

em rotundo meneio. Anda por si

na cadência mimosa, no milagre

de ser duas em uma, plenamente.

A bunda se diverte

por conta própria. E ama.

Na cama agita-se. Montanhas

avolumam-se, descem. Ondas batendo

numa praia infinita.

Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz

na carícia de ser e balançar.

Esferas harmoniosas sobre o caos.

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A bunda é a bunda,

redunda.

(Carlos Drummond de Andrade)

Iniciemos por (15). Neste exemplo, temos o SN ―o jovem‖ sendo recategorizado por ―o

tagarela‖. A recategorização operada por este último SN, a nosso ver, revela a voz do locutor,

até então camuflada na voz de enunciador. Pensamos que a ativação dessa nova entidade (―o

tagarela‖), ao reativar a âncora à qual se vincula no cotexto (―o jovem...‖), promove certo

posicionamento, por parte do locutor, frente à situação em que o ―tal jovem‖ (o referente) foi

envolvido. Dessa forma, entendemos que processos dessa natureza funcionam, também, como

(de)marcadores da voz do outro na materialidade linguística.

Da mesma maneira, temos em (14) a recategorização do referente ―judeus‖ pelo SN

―estes infiéis‖. A atitude de transformar um referente noutro, refletimos, não deve ser

encarada ingenuamente como certa estratégia de não-repetição de termos. Aqui, o anafórico

recategorizador inclui-se dentro dos casos postulados por Apothéloz e Reichler-Béguelin

(1995) como denominação reportada, cuja manifestação se dá a partir do uso deste anafórico

quando ―assinala ou sugere um ponto de vista de uma pessoa ou de qualquer outro sujeito de

consciência sobre o objeto de discurso" (JAGUARIBE, 2005). O ato de recategorizar,

inevitavelmente, sustenta-se do modo como é elaborado; é exatamente esse modo que

subjetiviza, particulariza esse ato, gerando efeitos de sentido diversos, conforme a manobra do

sujeito. Mas, nos termos de Authier-Revuz (1982), ―por meio da denominação reportada,

introduz-se no texto a fala do outro, mantendo, com relação a ela, um distanciamento crítico,

assinalado por aspas de conotação autonímica‖, posicionamento com o qual não

comungamos.

Ora, se partirmos do pressuposto de que a expressão ―estes infiéis‖ expressa uma

maneira de dizer particular, própria de determinado sujeito, como queremos, é legítimo

afirmar que estamos diante de um eficaz procedimento mostrativo-marcativo, visão que

estamos assumindo.

Em (16), por exemplo, estamos diante de recategorizações pitorescas do referente

―bunda‖ (―esses garotos‖, ―duas luas gêmeas‖, ―montanhas‖, ―ondas‖, ―esferas harmoniosas

sobre o caos‖). O modo de certa forma icônico como é ressignificado esse referente carrega

consigo um genial vezo jocoso que dificilmente teria sido assim reformulado por ―sujeitos

outros‖ na linguagem ordinária. Eis o componente subjetivo peculiar a esse procedimento: o

mesmo referente, se perspectivizado por sujeitos diferentes, assumirá contornos igualmente

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diferentes, gerando, assim, diferentes efeitos de sentido. Enxergamos, aqui, um indubitável

lugar linguisticamente descritível ocupado pelo outro no fio textual.

5.2.5 Intertextualidade por alusão e Anáfora Indireta

Alguns procedimentos intertextuais podem funcionar como mecanismo de marcação

do outro no fio discursivo. Elegemos o fenômeno intertextual que se manifesta por meio da

alusão para discutir nossa proposta.

Diferentemente do que pensam Authier-Revuz e Piègay-Gros, saímos em defesa da

intertextualidade, pelo menos a stricto sensu, notadamente como via de marcação da irrupção

do outro na materialidade linguística, sobretudo naquela que se dá a partir de procedimentos

alusivos. Vejamos o que ocorre com os textos abaixo relacionados:

(17) O jogador é um poeta. E como um poeta um fingidor. E joga tão perfeitamente

que nos faz pensar que é poesia o que é jogo simplesmente. (O jogador e sua bola. In:

SANT‘ANNA, A.R de. Coleção melhores Crônicas, p.78).

No primeiro caso desse item, (17), temos um processo intertextual cuja fonte alude,

notadamente, ao poema de Fernando Pessoa que se segue:

(17.1) Autopsicografia

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.

Várias pistas remetem o interlocutor de (17) ao texto fonte, entre as quais destacamos: a

manutenção prosódica de (17) em relação a (17.1); a repetição nada mimética de algumas

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palavras de (17.1): ―fingidor‖, ―completamente‖; a parecença entre as estruturas sintagmáticas

―joga tão perfeitamente‖ e ―Finge tão completamente‖; e a conversão do sujeito de ―o poeta é

um fingidor‖ em predicativo de ―o jogador é um poeta‖. Aliadas a essas pistas, estamos

falando de um texto clássico da literatura mundial, o que favorece, e muito, a tentativa de se

estabelecer conexão com ele. Mesmo se o texto fonte não for acionado no processo de

construção do sentido do texto, isso não descaracteriza o fenômeno intertextual que ali se

manifesta, acena para o leitor, sinaliza textualmente para ele.

(18) O patinho agora é gay

Cresce nos Estados Unidos a publicação de livros infantis com personagens

homossexuais.

Era uma vez um príncipe que não gostava de princesas, uma menina que tinha duas

mães, um patinho que não era feio, mas era diferente dos outros. São, todos,

personagens de livrinhos para criança que, lado a lado, com Branca de Neve e o

Dinossauro Barney, freqüentam as prateleiras infantis das livrarias e bibliotecas

americanas – só que com temática nitidamente pró-homossexual. (Revista Veja,

31/05/2006).

Em (18), temos um caso de intertextualidade por alusão com a presença de um dêitico

temporal. Em primeiro lugar, diferentemente do texto do exemplo anterior, pede-se que o

interlocutor busque em sua memória uma informação de caráter bem mais geral, como é o

caso da história do Patinho Feio, o texto fonte em que do título do texto de (18) se ancora.

Naturalmente, não estamos desconsiderando as nuances culturais que ―determinam‖ o

acessar de fontes desse tipo, que estamos considerando como sendo de natureza mais geral.

Todavia, há de se mencionar que o texto em questão - o conto de fadas O patinho feio, cuja

autoria é de Hans Christian Andersen -, pode ser entendido como tendo alcance mundial, vez

que o poeta e escritor dinamarquês contribuiu tão maciçamente para a literatura infanto-

juvenil que na data de seu nascimento, 2 de abril é, hoje, comemorado o Dia Internacional do

Livro Infanto-Juvenil; além disso, a mais importante premiação internacional do gênero

carrega seu nome.

Desta feita, partindo-se do pressuposto de que se trata, sim, de uma informação viva na

memória dos sujeitos construtores de sentido, entendemos que, quando ―alterada‖ pelo dêitico

―agora‖, atualiza como que automaticamente o momento ―antes-do-agora‖. A atmosfera deste

momento paira sobre o ―agora‖. Ora, se ―o patinho agora é gay‖ é porque não o era antes, e o

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interlocutor sabe disso: constrói o sentido do texto exatamente em cima do conhecimento de

que já dispõe; pensamos, enquanto leitores, que o procedimento deva ser mais ou menos o

seguinte: o patinho (de Andersen) era feio, mas agora (com a ―modernização‖ do mundo

contemporâneo) aquele mesmo patinho é gay. Defendemos, portanto, que procedimentos

desse tipo promovem marcação de um outro ponto de vista, de um outro discurso, na

materialidade linguística, sem que, para isso, tenha de haver necessariamente aspeamento ou

qualquer outro destaque formal que lhe seja ―exterior‖.

(19) A vida é bela, e me sinto como se tivesse ganho um Oscar (sic), mesmo sendo

brasileiro. (Vivendo num cartão-postal. In: SANT‘ANNA, A.R. de. Coleção melhores Crônicas,

p.133).

No exemplo acima, diferentemente do exemplo anterior, temos um caso de

intertextualidade por alusão que divide as ―responsabilidades enunciativas‖ entre os rastros

textualmente materializados na superfície linguística e as relações inferenciais que devem ser

operadas pelo co-enunciador.

Selecionamos, propositadamente, um texto cuja referência está inscrita num

momento sócio-histórico específico de um gênero semiótico também específico,

diferentemente dos textos de (17) e (18), cujas fontes têm lugar numa memória de natureza

(mais) universal, digamos.

Estamos diante de uma ocorrência de alusão ao filme italiano A vida é bela, comédia

dramática lançada em 1997 e que, concorrendo com o brasileiro Central do Brasil, foi

vencedor do óscar de melhor filme estrangeiro, no ano seguinte. Note-se que não há

referência direta ao filme propriamente dito, mas algumas expressões referenciais ancoram

essa alusão, favorecendo a identificação do intertexto por meio de anáforas indiretas, quais

sejam: ―A vida é bela‖, ―Oscar‖ e ―mesmo sendo brasileiro‖. Como citamos em outro

momento deste trabalho, sabemos que o procedimento alusivo ―solicita diferentemente a

memória e a inteligência do leitor e não quebra a continuidade do texto‖ (PIÈGAY-GROS,

p.52). Em (19), o trabalho cognitivo do co-enunciador é relativamente simples se conhecer o

trajeto por que passou o filme até chegar ao agraciamento com o óscar. Isso porque o

fenômeno alusivo é utilizado nesse contexto de modo irônico, intenção que se apreende pela

expressão ―mesmo sendo brasileiro‖. Trata-se de um conhecimento de cunho bastante

específico, se compararmos à sedimentação cultural da história do Patinho Feio ou ao

conhecimento do mais clássico poema de Pessoa. O fato de se tratar de um episódio bem

particular no interior do gênero cinematográfico não torna (19) diferente de uma alusão feita

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ao mais clássicos dos textos, se consideramos o fenômeno propriamente dito, concretamente

textualizado – fator que, para nós, configura um dado suficiente para que seja considerado

como estando explicitamente marcado. A diferença consistirá no acesso mais ou menos

―facilitado‖ ao texto-fonte, o que, como já frisamos, respeita a um aspecto contingencial.

Já sabemos: a alusão não se manifesta por via nem literal nem explícita, mas por meio

de uma espécie de referência por meios indiretos, sem se referir explicitamente ao que se

pretende enfocar, mas fornecendo elementos textuais de apoio, de sugestão àquilo que se está

referindo. São esses meios indiretos (expressões anafóricas indiretas materializadas no fio do

discurso, como ―um Oscar‖) que queremos incluir entre os mecanismos de mostração de que

dispõe o enunciador para marcar, conscientemente, seu texto, já que tal marcação é passível

de reconhecimento num ponto ou, no caso da alusão, em pontos específicos do dizer.

Já mencionamos concordância quanto ao fenômeno de a alusão ultrapassar e muito os

domínios da intertextualidade. Sugerimos, então, que, em se tratando comprovadamente de

um caso uma ocorrência do procedimento alusivo a partir de evidências intertextuais, aceite-

se que estamos diante de um caso de mostração-marcação de um fato de heterogeneidade que,

pelo fato de se deixar entrever nas suturas textuais a irrupção factual do alheio, opacifica

determinado(s) ponto(s) do dizer.

(20) Na verdade, o projeto Zico é tão óbvio como a defesa da luz elétrica e da água

encanada, o que não significa que vá ser aprovado, ao contrário. Por ironia, as

bancadas da oposição têm manifestado maior apoio que o dos partidos que apóiam

o governo. Há até mesmo clubes e atletas que temem o projeto [...]. Apesar da

assinatura do Presidente da República, o líder do partido, por exemplo, que vem a

ser o presidente da Portuguesa de Desportos, articula um poderoso lobby ao lado

das federações e da CBF, mesmo que isso lhe custe a suspeita de ter trocado o

apoio a Zico pela convocação do menino Dener para a seleção brasileira [...]. Zico

não é mais secretário. Em seu lugar está Bernard, que tem a nobre jornada de

convencer as estrelas do Congresso a aproveitar este lançamento digno de Rei Pelé.

(Adaptado de Kfouri. Veja, 29 de maio, 1991, p.110).

Em (20), temos um texto imerso numa atmosfera de cunho desportista, que já começa

a preparar o co-enunciador para as inferências que deverão ser efetuadas. Várias são as pistas

textuais: ―Zico‖, ―atletas‖, ―CBF‖, ―o presidente da Portuguesa de Desportos‖, ―Rei Pelé‖; o

texto, por meio das relações indiretas que sugere, vem acenando para o co-enunciador que

lugar específico de seu conhecimento global está sendo solicitado; já começa a se deixar

marcar. Identificamos, no entanto, a elaboração de um procedimento alusivo, por parte do

enunciador, no último período do texto. A operação concentra-se nos elementos ―Bernard‖,

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―jornada‖ e ―estrelas‖, a partir dos quais reconhecemos remissão implícita ao saque jornada

nas estrelas, inaugurado por Bernard, uma das importantes âncoras das anáforas indiretas

―jornada‖ e ―estrelas‖. Percebemos a consciência com que é feita alusão pelo fato de o texto

não tratar especificamente dos fundamentos do voleibol ou algo que o valha. O gesto do

enunciador demonstra cumplicidade com o co-enunciador na medida em que prevê que haja

certa medida de conhecimentos partilhado e/ou enciclopédico acerca do mundo esportivo que

viabilize a integração semântica pretendida. Exatamente por haver essa previsão, os elementos

―Jornada‖ e ―Estrelas‖ não foram acompanhados de marcas tipográficas, como as aspas ou o

itálico, por exemplo. A construção mesma do texto deixa o rastro da sugestão. O enunciador

espera que a relação entre ―Bernard‖, ―jornada‖ e ―estrelas‖ seja feita, sem que seja necessária

a referência direta a ―saque jornada nas estrelas‖; conta, dessa forma, com seu interlocutor

para que seja acionado referente não-dito. O que temos, aqui, é um texto engenhosamente

construído que supõe uma relação entre o que está sendo dito e um ―pensamento‖ já

conhecido, mas não-dito.

No caso de o co-enunciador não ser o leitor previsto pelo ―texto‖, a construção global

do sentido não fica comprometida; também a frustração do enunciador no que tange ao não-

acionamento do referente implícito não deixa de subtrair elementos que enriqueceriam tal

construção. Uma e outra postura interpretativa não anulam o fato textual do procedimento

alusivo.

Sustentamos que construções desse jaez sejam elencadas entre as formas mostradas-

marcadas que sinalizam a presença do alheio no fio discursivo, vez que, a partir de elementos

textuais, é possível que o procedimento alusivo seja reconhecido. Reputamos a alusão por

meio de anáforas indiretas, ou de introduções referenciais, como recurso mostrativo-

marcativo de alteração na materialidade linguística, de vez que a entendemos como uma

retomada implícita, elaborada a partir de uma sinalização para o co-enunciador de que, pelas

orientações deixadas no texto, deve-se apelar à memória para encontrar o referente não-dito,

mas textualmente sugerido. A heterogeneidade do fio, embora apenas sugerida, é tangível e

não se deixa confundir com o que é constitutivamente atravessado pelo outro - aquele do

dialogismo bakhtiniano.

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CONCLUSÃO

_____________________________________________________________________________

O lugar mais erógeno de um corpo não é

lá onde o vestuário se entreabre? Na

perversão (que é o regime do prazer

textual) não há ‗zonas erógenas‘; é a

intermitência [...] que é erótica: a da pele

que cintila entre duas peças (as calças e a

malha), entre duas bordas (a camisa

entreaberta, a luva e a manga); é essa

cintilação mesma que seduz, ou ainda: a

encenação de um aparecimento-

desaparecimento‖

(Barthes)

O fazer deste trabalho concentrou-se, fundamentalmente, na discussão acerca do

construto teórico da heterogeneidade enunciativa, cujas bases estão assentadas na distinção

entre heterogeneidade constitutiva e heterogeneidade mostrada, que, no interior da teoria,

pode ser marcada ou não-marcada.

Nossa argumentação esteve todo o tempo pautada na problematização da lógica a

partir da qual se taxionomiza a heterogeneidade do tipo mostrada, donde derivamos nossas

considerações acerca de nosso objetivo maior, que é incluir entre os fatos marcados de

heterogeneidade alguns processos de referenciação. Para nós, se há, no fio do discurso, a

irrupção de uma alteração passível de flagrante pontual, localizada num ponto específico do

discurso, há a implicação, o comprometimento de sua transparência, o que, fatalmente,

promove a opacificação dizer. Quanto a isso, a mentora da teoria das heterogeneidades, ela

mesma já nos diz. O que particularmente nos incomoda é o fato de se conceber que certa

sequência textual pode ser descrita, ao mesmo tempo, como mostrada e não-marcada.

Pensamos que, se temos uma manifestação que se mostra na materialidade do

discurso, essa mostração se dá por alguma via; sustentamos que essa via pela qual a

mostração se faz legítima deixa marcas, as quais são as responsáveis factuais da efetivação do

mostrado. Reside precisamente nesse ponto nossa discordância quanto ao que postula

Authier-Revuz, para quem as marcas de alteração no fio discursivo só podem ser explicitadas

se se fizerem materializar por meio de mecanismos prototípicos que desempenham essa

função: verbo dicendi, dois-pontos e aspas, itálico, recuo de margem, redução da fonte etc.

Essa nossa perspectivação acerca da conceitualização de mecanismos de

mostração/marcação do alheio no fio textual denuncia sob que prisma estabelecemos nossa

investigação.

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A trajetória de nossa pesquisa resumiu-se em dar consistência a nosso propósito maior:

o de sugerir que, em se tratando de casos de heterogeneidade mostrada-marcada, outros

mecanismos, além dos consensualmente aceitos na literatura (aspas, negrito, itálico, mudança

de fonte etc), que tornam manifesta a mostração da presença do outro na materialidade

linguística, sejam legitimamente considerados como portadores de potencial marcativo.

A análise a que procedemos no último capítulo ilustrara alguns desses outros mecanismos

defendidos como tendo potencial marcativo, todos eles respeitantes a processos de

referenciação de natureza anafórica e/ou dêitica:

1. Dêitico memorial, por meio do qual o enunciador, linguisticamente, marca seu

dizer baseado na pressuposição de que o referente não-dito será (re)ativado na memória do

co-enunciador, que, a partir de seu conhecimento de mundo/enciclopédico, negocia a

(re)construção semântica desse referente. Independentemente do sucesso da negociação,

insistimos, trata-se de uma marca que, já materializada, não nulifica a marcação. A exemplo

do que vimos nos textos (1) a (9), sustentamos que os usos de dêiticos de memória acumulam,

também, a função de explicitar fatos de heterogeneidade no fio textual, o que promove a

opacificação de um ponto específico do dizer, marcando-o, portanto.

2. Dêiticos espacial e temporal, tal como exemplificamos nos textos (10), (11) e (12),

respondem, além de situar os interlocutores no âmbito espácio-temporal da enunciação, pela

alternância de espaços enunciativos, movimento que marca, na materialidade linguística, a

mudança de expediente enunciativo, que, necessariamente, conta com elementos pertencentes

ao momento enunciativo do outro para a negociação de sentido.

O dêitico utilizado com esse fim chama para o texto o alheio num ponto específico da

superfície textual, marcando-a.

Indicam, também, a ocorrência de discurso indireto livre, de intertextualidade, outras

estratégias que, vimos, mostram uma alteração local no fio do discurso.

3. O discurso indireto livre, estratégia a partir da qual o enunciador, por meio de

mudança do expediente desinencial, por exemplo, e, portanto, dêitico-pessoal, tal como

demonstramos em (13), marca uma alternância de enunciações, fato que manifesta fato de

heterogeneidade num ponto específico do dizer. A ruptura local no fio discursivo –

demonstramos em (12) – pode, linguisticamente, mostrar-se por meio de elemento dêitico, o

qual funciona de modo a provocar o ―aparecimento‖ da voz do outro no fio, marcando-a, pois.

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4. Recategorização, fenômeno por meio do qual o falante de uma língua, em suas

práticas linguísticas, quer adequar os referentes a seus propósitos comunicativos,

remodelando-os, adicionando ou eliminando características num processo de reavaliação

desse referente, movimento que flagra a instabilidade que lhe é inerente, constitui mecanismo

marcativo.

Como vimos nos exemplos (14) a (16), o ato de recategorizar, pelo modo mesmo

como é elaborado, assinala ou sugere um ponto de vista de um sujeito de consciência sobre o

objeto de discurso, fato que o torna ―canalizador‖ de uma subjetividade que se deixa

apreender exatamente pela maneira como se dá a transformação cognitiva do referente,

conforme a manobra executada pelo enunciador.

Há, na essência desse ato, também, uma dimensão social, já que visa a atender ao

propósito do falante, o qual negocia com o interlocutor, considerando-se o conhecimento

partilhado entre ambos, que elementos devem vir explicitados/implicitados na superfície

textual, o que deve ser enfatizado, qual a postura a ser assumida etc.

Assim, compreendendo esse fenômeno, sustentamos que o elemento recategorizador

constante da materialidade linguística instaura claramente um fato de heterogeneidade no fio -

fato que é localmente observável quando do ato mesmo da atualização do elemento

recategorizador, procedimento marcativo que mostra alteração no fio, portanto.

5. Intertextualidade por alusão através de anáforas indiretas e de introduções

referenciais, procedimento que se concebe, conceitualmente, pela implicitude do referente

não-dito, traz, nas referências indiretas sob as quais o texto se constrói, as coordenadas de

busca que levarão o co-enunciador ao referente pretendido, a exemplo do que vimos nos

exemplos (17) a (20). São exatamente essas referências indiretas, com efeito, que

materializam o fato de heterogeneidade e que marcam a alteração do dizer. A opacificação é

promovida, linguisticamente, pelos elementos que constituem tais referências, as quais

mostram concretamente a presença do alheio no fio do dizer. Mesmo porque, se não houvesse,

ali, algum tipo de marca, o co-enunciador não alcançaria o intertexto - e o enunciador tem

ciência disso.

Assim, vemos que as hipóteses em torno das quais estabelecemos nosso objetivo maior

foram confirmadas, de modo a afirmar a pertinência de nosso estudo para a linguística que se

ocupa do texto e, conseqüentemente, das instâncias que o compõem.

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Face ao exposto, encerramos esta dissertação com uma última consideração quanto ao

estatuto do que deve ser entendido como marcado. Julgamos, como Cavalcante28

, ser mais

apropriado falar em diferentes espécies de marca, em detrimento de se postular uma não-

marcação. De modo análogo, seria mais adequado considerar variados graus de explicitude,

evitando, assim, atribuir a marcação de explicitude apenas àquelas classicamente

reconhecidas, como as que contêm verbo dicendi, dois-pontos e aspas, itálico, recuo de

margem, redução da fonte etc. O emprego de expressões referenciais nos parece essencial

para a elaboração de citações, referências e alusões, embora a literatura sobre o assunto mal

faça menção a isso como possível assinalação de heterogeneidade mostrada-marcada. Em

tempo: insistimos que o raciocínio a partir do qual sedimentamos nossa proposta nada tem a

ver com um, digamos, behaviorismo analítico, haja vista a pressuposição de um leitor-modelo

ser elemento essencial para a visualização das marcas aqui propostas: o fato mesmo de a

marcação vir mostrada linguisticamente na superfície textual – modo pelo qual o fenômeno

em si é apreendido - já resguarda estatuto marcativo dos processos referencias aqui

apresentados de eventuais frustrações.

Elaboramos o organograma que se segue, de modo a ilustrar, finalisticamente, a

proposta de nossa empresa:

28

Consideração feita em CAVALCANTE, M. M. Referenciação – sobre coisas ditas e não-ditas. São Paulo:

Contexto (livro inédito).

Heterogeneidade

Constitutiva

Atravessamento

intangível

do o/Outro

Heterogeneidade Enunciativa

Heterogeneidade

Mostrada-Marcada

(rupturas linguisticamente observáveis)

Aspas, negrito, itálico, verbos dicendi,

discurso indireto livre, intertextualidade,

processos referenciais

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106

CONSIDERAÇÕES FINAIS

__________________________________________________

Então sou só eu que é vil e errôneo nessa terra?

(Álvaro de Campos)

A partir da problematização do quadro das heterogeneidades do tipo mostrada,

redescrevemos, acrescentando o que nos pareceu pertinente, um conjunto de marcas que

transcendeu aquelas consagradas (negrito, mudança de fonte, aspas, discurso direto), como

sendo formas de marcação da presença consciente do outro no fio discursivo.

Propusemos que, em vez de se falar em heterogeneidade mostrada marcada ou não-

marcada, aceitemos que a heterogeneidade que mostra a descontinuidade do dizer pode ser

linguisticamente explicitada por diferentes espécies de marcas, o que nos faz considerar

variados graus de explicitude mostrativo-marcativa, evitando, com essa assunção, atribuir a

marcação de explicitude apenas àquelas classicamente reconhecidas.

Limitamos-nos a ampliar o quadro dos fenômenos linguísticos que podem,

legitimadamente, acumular a função marcativa. Isso abre caminho para elaboração de critérios

para a construção de uma escala mostrativo-marcativa que, em detrimento da dicotomia

mostrativa vigente de heterogeneidade mostrada/marcada vs. mostrada/não-marcada,

contemple desde o discurso mais formalmente marcado e, portanto, (mais) explicitamente

marcado - já que carregam consigo marcas ―exteriores‖ ao signo linguístico propriamente dito

-, até aquele que é também explicitamente marcado, mas que, como vimos, materializa de

maneira diferente a irrupção do Não-Um na superfície textual.

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