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Encíclica do Papa João Paulo II sobre Cristo, redentor dos homens

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    CARTA ENCCLICAREDEMPTOR HOMINIS DO SUMO PONTFICE

    JOO PAULO II AOS VENERVEIS IRMOS NO EPISCOPADO

    AOS SACERDOTES E S FAMLIAS RELIGIOSAS

    AOS FILHOS E FILHAS DA IGREJAE A TODOS OS HOMENS DE BOA VONTADE

    NO INCIO DO SEU MINISTRIO PONTIFICAL

    Venerveis Irmos e carssimos FilhosSade e Bno Apostlica!

    I. HERANA

    No final do segundo Milnio

    O Redentor do homem, Jesus Cristo, o centro do cosmos e da histria. Para Ele se dirigem o meupensamento e o meu corao nesta hora solene da histria, que a Igreja e a inteira famlia dahumanidade contempornea esto a viver. Efectivamente, este tempo, no qual, depois do predilectoPredecessor Joo Paulo I, por um seu misterioso desgnio Deus me confiou o servio universal ligadocom a Ctedra de So Pedro em Roma, est muito prximo j do ano Dois Mil. difcil dizer, nestemomento, o que aquele ano vir a marcar no quadrante da histria humana, e como que ele vir aser para cada um dos povos, naes, pases e continentes, muito embora se tente, j desde agora,prever alguns eventos. Para a Igreja, para o Povo de Deus que se estendeu se bem que demaneira desigual at aos mais longnquos confins da terra, esse ano vir a ser o ano de um grandeJubileu. Estamos j, portanto, a aproximar-nos de tal data que respeitando embora todas ascorreces devidas exactido cronolgica nos recordar e renovar em ns de uma maneiraparticular a conscincia da verdade-chave da f, expressa por So Joo nos incios do seuEvangelho: O Verbo fez-se carne e veio habitar entre ns ; 1 e numa outra passagem Deus, defacto, amou de tal modo o mundo, que lhe deu o Seu filho unignito, para que todo o que nele crerno perea, mas tenha a vida eterna . 2

    Estamos tambm ns, de alguma maneira, no tempo de um novo Advento, que tempo deexpectativa. Deus, depois de ter falado outrora aos nossos pais, muitas vezes e de muitos modos,pelos Profetas, falou-nos nestes ltimos tempos pelo Filho ... , 3 por meio do Filho-Verbo, que sefez homem e nasceu da Virgem Maria. Com este acto redentor a histria do homem atingiu, nodesgnio de amor de Deus, o seu vrtice. Deus entrou na histria da humanidade e, enquanto homem,tornou-se sujeito mesma, um dos milhares de milhes e, ao mesmo tempo, nico! Deus, atravs daEncarnao, deu vida humana aquela dimenso, que intentava dar ao homem j desde o seuprimeiro incio e deu-lha de maneira definitiva daquele modo a Ele somente peculiar, segundo oseu eterno amor e a sua misericrdia, com toda a divina liberdade e, simultaneamente, com aquelamunificncia, que, perante o pecado original e toda a histria dos pecados da humanidade e peranteos erros da inteligncia, da vontade e do corao humano, nos d azo a repetir com assombro aspalavras da Sagrada Liturgia: ditosa culpa, que tal e to grande Redentor mereceu ter . 4

  • 2. Primeiras palavras do novo Pontificado

    A Cristo Redentor elevei os meus sentimentos e pensamentos a 16 de Outubro do ano passado,quando, aps a eleio cannica, me foi feita a pergunta: Aceitais? E eu respondi ento: Comobedincia de f em Cristo, meu Senhor, e confiando na Me de Cristo e da Igreja, no obstante asmuitas dificuldades, eu aceito . Quero hoje dar a conhecer publicamente aquela minha resposta atodos, sem excepo alguma, tornando assim manifesto que est ligado com a verdade primeira efundamental da Encarnao o ministrio que, com a aceitao da eleio para Bispo de Roma e paraSucessor do Apstolo Pedro, se tornou meu especfico dever na sua mesma Ctedra.

    Escolhi os mesmos nomes que havia escolhido o meu amadssimo Predecessor Joo Paulo I.Efectivamente, quando a 26 de Agosto de 1978 ele declarou ao Sacro Colgio (dos Cardeais) quequeria ser chamado Joo Paulo um binmio deste gnero no tinha antecedentes na histria doPapado j ento reconheci nisso um eloquente bom auspcio da graa sobre o novo Pontificado.E dado que esse Pontificado durou apenas trinta e trs dias, cabe-me a mim no somente continu-lo, mas, de certo modo, retom-lo desse mesmo ponto de partida. Isto precisamente confirmadopela escolha, feita por mim, desses dois nomes. E ao escolh-los assim, em seguida ao exemplo domeu venervel Predecessor, desejei como ele tambm eu exprimir o meu amor pela singular heranadeixada Igreja pelos Sumos Pontfices Joo XXIII e Paulo VI; e, ao mesmo tempo, manifestar aminha disponibilidade pessoal para a desenvolver com a ajuda de Deus.

    Atravs destes dois nomes e dos dois pontificados, quero vincular-me a toda a tradio desta SApostlica, com todos os Predecessores no espao de tempo deste sculo vinte e dos sculosprecedentes, ligando-me gradualmente, segundo as diversas pocas at s mais remotas, quela linhada misso e do ministrio que confere S de Pedro um lugar absolutamente particular na Igreja.Joo XXIII e Paulo VI constituem uma etapa, qual desejo referir-me directamente, como a umlimiar do qual minha inteno, de algum modo juntamente com Joo Paulo I, prosseguir no sentidodo futuro, deixando-me guiar por confiana ilimitada e pela obedincia ao Esprito, que Cristoprometeu e enviou sua Igreja. Ele, efectivamente dizia aos seus Apstolos, na vspera da suaPaixo: melhor para vs que eu v; porque, se Eu no for, o Consolador no vir a vs; mas, seeu for, enviar-vo-lo-ei . 5 Quando vier o Consolador, que Eu vos hei-de enviar da parte do Pai, oEsprito da verdade que do Pai procede, ele dar testemunho de Mim. E vs tambm dareistestemunho de Mim, porque estais comigo desde o princpio . 6 Quando, porm, Ele vier, oEsprito da verdade, Ele guiar-vos- para a verdade total, porque no falar por Si mesmo, mas dirtudo o que tiver ouvido e anunciar-vos- as coisas vindouras . 7

    3. Confiana no Esprito da Verdade e do Amor

    , pois, confiando plenamente no Esprito da verdade, que eu entro na posse da rica herana dospontificados recentes. Esta herana acha-se fortemente radicada na conscincia da Igreja de maneiraabsolutamente nova, nunca dantes conhecida, graas ao II Conclio do Vaticano, convocado einaugurado por Joo XXIII e, em seguida, concludo felizmente e actuado com perseverana porPaulo VI, cuja actividade eu prprio pude observar de perto. Fiquei sempre maravilhado com a suaprofunda sapincia e com a sua coragem, e igualmente com a sua constncia e pacincia no difcilperodo ps-conciliar do seu Pontificado. Como timoneiro da Igreja, barca de Pedro, ele sabiaconservar uma tranquilidade e um equilbrio providenciais mesmo nos momentos mais crticos,quando parecia que ela estava a ser abalada por dentro, mantendo sempre uma inquebrantvelesperana na sua compacidade. Aquilo, de facto, que o Esprito disse Igreja mediante o Concliodo nosso tempo, e aquilo que esta Igreja diz a todas as Igrejas 8 no pode apesar das inquietudesmomentneas servir para outra coisa seno para uma compacidade mais maturada ainda de todoo Povo de Deus, bem consciente da sua misso salvfica.

    Desta conscincia contempornea da Igreja precisamente, Paulo VI fez o primeiro tema da suafundamental Encclica, que se inicia com as palavras Ecclesiam Suam; e seja-me permitido fazerreferncia e pr-me em conexo, antes de mais nada, com esta Encclica, neste primeiro e, por assim

  • dizer, inaugural documento do presente Pontificado. Com as luzes e com o apoio do Esprito Santo aIgreja tem uma conscincia cada vez mais aprofundada quer pelo que se refere ao seu mistriodivino, quer pelo que se refere sua misso humana, quer mesmo, finalmente, quanto a todas as suasfraquezas humanas: esta conscincia, precisamente, e deve permanecer a primeira fonte do amorpor esta Igreja, assim como o amor, da sua parte, contribui para consolidar e para aprofundar talconscincia. Paulo VI deixou-nos o testemunho de uma conscincia da Igreja assim, extremamenteperspicaz. Atravs das multplices e no raro sofridas componentes do seu Pontificado, ele ensinou-nos o amor destemido pela Igreja, a qual como afirma o Conclio sacramento, ou sinal, einstrumento da ntima unio com Deus e da unidade de todo o gnero humano . 9

    4. Referncia primeira Encclica de Paulo VI

    Por tal razo, exactamente, a conscincia da Igreja h-de andar unida com uma abertura universal, afim de que todos possam nela encontrar as imperscrutveis riquezas de Cristo , 10 das quais falao Apstolo das gentes. Uma tal abertura, organicamente conjunta com a conscincia da prprianatureza, com a certeza da prpria verdade, da qual o mesmo Cristo disse no minha, mas doPai que me enviou , 11 determina o dinamismo apostlico, que o mesmo dizer missionrio, daIgreja, professando e proclamando integralmente toda a verdade transmitida por Cristo. Esimultaneamente ela, a Igreja, deve conduzir aquele dilogo que Paulo VI na sua Encclica EcclesiamSuam chamou dilogo da salvao , diferenciando com preciso cada um dos crculos no mbitodos quais ele deveria ser conduzido. 12

    Quando assim me refiro hoje a este documento programtico do Pontificado de Paulo VI, no cessode dar graas a Deus, pelo facto de este meu grande Predecessor e ao mesmo tempo verdadeiro paiter sabido no obstante as diversas fraquezas internas, por que foi afectada a Igreja no perodoposconciliar patentear ad extra , para o exterior , o seu autntico rosto. De tal maneira,tambm grande parte da famlia humana, nas diversas esferas da sua multiforme existncia, se tornou na minha opinio mais consciente do facto de lhe ser necessria verdadeiramente a Igreja deCristo, a sua misso e o seu servio. E esta conscincia algumas vezes demonstrou-se mais forte doque as diversas atitudes crticas, que atacavam ab intra , vindas de dentro , a mesma Igreja, assuas instituies e estruturas, e os homens da Igreja e as suas actividades.

    Um tal crtica crescente teve sem dvida diversas causas e, por outro lado, estamos certos de que elano foi sempre destituda de um sincero amor Igreja. Manifestou-se nela, indubitavelmente, entreoutras coisas, a tendncia para superar o chamado triunfalismo, de que se discutia com frequnciadurante o Conclio. No entanto, se uma coisa acertada que a Igreja, seguindo o exemplo do seuMestre que era humilde de corao , 13 esteja bem assente tambm ela na humildade, que possuao sentido crtico a respeito de tudo aquilo que constitui o seu carcter e a sua actividade humana eque seja sempre muito exigente para consigo prpria, bvio igualmente que tambm a crtica deveter os seus justos limites. Caso contrrio, ela deixa de ser construtiva, no revela a verdade, o amor ea gratido pela graa, da qual principal e plenamente nos tornamos participantes exactamente naIgreja e mediante a Igreja. Alm disto, o esprito crtico no exprime a atitude de servio, mas antes avontade de orientar a opinio de outrem segundo a prpria opinio, algumas vezes divulgada demaneira assaz imprudente.

    Deve-se gratido a Paulo VI ainda, porque, respeitando toda e qualquer parcela de verdade contidanas vrias opinies humanas, ele conservou ao mesmo tempo o equilibrio providencial do timoneiroda Barca. 14 A Igreja que atravs de Joo Paulo I quase imediatamente depois dele me foiconfiada, no se acha certamente isenta de dificuldades e de tenses internas. Entretanto, elaencontra-se interiormente mais premunida contra os excessos do autocriticismo; poder-se-ia dizer,talvez, que ela mais crtica diante das diversas crticas imprudentes, e est mais resistente no querespeita s vrias novidades , mais maturada no esprito de discernimento e mais idnea para tirardo seu perene tesouro coisas novas e coisas velhas , 15 mais centrada no prprio mistrio e,graas a tudo isto, mais disponvel para a misso da salvao de todos: Deus quer que todos os

  • homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade . 16

    5. Colegialidade e apostolado

    Esta Igreja contra todas as aparncias est mais unida na comunho de servio e naconscincia do apostolado. Tal unio nasce daquele princpio de colegialidade, recordado pelo IIConclio do Vaticano, que o prprio Cristo enxertou no Colgio Apostlico dos Doze, com Pedrona chefia, e que renova continuamente no Colgio dos Bispos, o qual cresce cada vez mais sobretoda a terra, permanecendo unido com o Sucessor de So Pedro e sob a sua orientao. O Concliono se limitou a recordar este princpio de colegialidade dos Bispos, mas vivificou-o imensamente,alm do mais, auspiciando a instituio de um rgo permanente, que Paulo VI estabeleceuconstituindo o Snodo dos Bispos, cuja actividade no somente deu uma nova dimenso ao seuPontificado, mas, em seguida, se reflectiu claramente logo desde os primeiros dias no Pontificado deJoo Paulo I e no do seu indigno Sucessor.

    O princpio de colegialidade demonstrou-se particularmente actual no difcil perodo ps-conciliar,quando a comum e unnime posio do Colgio dos Bispos o qual manifestou a sua unio aoSucessor de Pedro sobretudo atravs do Snodo contribua para dissipar as dvidas e indicava aomesmo tempo as justas vias da renovao da Igreja, na sua dimenso universal. Do Snodo,efectivamente, se originou, entre outras coisas, aquele impulso essencial para a evangelizao queteve a sua expresso na Exortao Apostlica Evangelii nuntiandi, 17 acolhida com tanta alegriacomo programa da renovao de carcter apostlico e conjuntamente pastoral. A mesma linha foiseguida tambm nos trabalhos da ltima sesso ordinria do Snodo dos Bispos, aquela que serealizou cerca de um ano antes da morte do Sumo Pontfice Paulo VI, a qual foi dedicada, como sabido, Catequese. Os resultados daqueles trabalhos requerem ainda uma sistematizao e umaenunciao por parte da S Apostlica.

    E uma vez que estamos a tratar do manifesto desenvolvimento das formas em que se exprime aColegialidade episcopal, devemos pelo menos recordar o processo de consolidao dasConferncias Episcopais Nacionais em toda a Igreja e de outras estruturas colegiais de carcterinternacional ou continental. Referindo-nos, depois, tradio secular da Igreja, convm salientar aactividade dos diversos Snodos locais. Foi de facto ideia do Conclio, coerentemente actuada porPaulo VI, que as estruturas deste gnero, de h sculos comprovadas pela Igreja, bem como asoutras formas de colaborao colegial dos Bispos por exemplo a que se centra nas metrpoles,para no falar j de cada uma das dioceses singularmente tomadas pulsassem em plenaconscincia da prpria identidade e conjuntamente da prpria originalidade, na unidade universal daIgreja.

    Um idntico esprito de colaborao e de corresponsabilidade se est a difundir tambm entre ossacerdotes, o que confirmado pelos numerosos Conselhos Presbiterais que surgiram aps oConclio. O mesmo esprito se difundiu tambm entre os leigos, no apenas confirmando asorganizaes de apostolado laical j existentes, mas criando outras novas, que no raro seapresentam com um perfil diverso e uma dinmica excepcional. Alm disto, os leigos, conscientes dasua responsabilidade pela Igreja, aplicaram-se de boa vontade na colaborao com os Pastores ecom os representantes dos Institutos de vida consagrada, no mbito dos Snodos diocesanos, e dosConselhos pastorais nas parquias e nas dioceses.

    Para mim importa ter em mente tudo isto nos incios do meu Pontificado, para agradecer a Deus,para exprimir um vivo encorajamento a todos os Irmos e Irms e, alm disto, para recordar comsentida gratido a obra do II Conclio do Vaticano e os meus grandes Predecessores, que deramincio a esta nova vaga a animar a vida da Igreja, movimento muito mais forte do que os sintomasde dvida, de abalo e de crise.

    6. Caminho para a unio dos cristos

  • E que dizer de todas aquelas iniciativas que se originaram da nova orientao ecumnica? Oinesquecvel Papa Joo XXIII, com clareza evanglica, ps e enquadrou o problema da unio doscristos como simples consequncia da vontade do prprio Jesus Cristo, nosso Mestre, afirmada pormais de uma vez e expressa, de modo particular, durante a orao no Cenculo, na vspera da suamorte: Rogo ... Pai ... que todos sejam uma s coisa . 18 E o II Conclio do Vaticano respondeua esta exigncia de forma concisa com o Decreto sobre o Ecumenismo. O Papa Paulo VI, por suavez, valendo-se da colaborao do Secretariado para a Unio dos Cristos, comeou a dar osprimeiros difceis passos na caminhada para o conseguimento de uma tal unio.

    J teramos andado muito nesta caminhada? Sem querer dar uma resposta pormenorizada, podemosdizer que fizemos verdadeiros e importantes progressos. E uma coisa certa: temos trabalhado comperseverana e coerncia; e conjuntamente connosco tm vindo a aplicar-se tambm osrepresentantes de outras Igrejas e de outras Comunidades crists, pelo que lhes estamossinceramente obrigados. Depois, certo tambm que na presente situao histrica da cristandade edo mundo, no se apresenta outra possibilidade para se cumprir a misso universal da Igreja peloque respeita aos problemas ecumnicos, seno esta: procurar lealmente, com perseverana, comhumildade e tambm com coragem as vias de aproximao e de unio daquele modo que nos deixouo exemplo pessoal o Papa Paulo VI. Devemos buscar a unio, portanto, sem nos deixarmos vencerpelo desnimo perante as dificuldades que se possam apresentar ou acumular ao longo de talcaminho; caso contrrio, no seramos fiis palavra de Cristo, no executaramos o Seu testamento.E ser lcito correr um tal risco?

    H pessoas que, encontrando-se diante das dificuldades, ou julgando negativos os resultados dostrabalhos iniciais no campo ecumnico, teriam tido vontade de voltar atrs. H mesmo alguns queexprimem a opinio de que estes esforos so nocivos para a causa de Evangelho e levam a umaulterior ruptura na Igreja, provocam a confuso de idias nas questes da f e da moral e vodesembocar a um especfico indiferentismo. Talvez seja um bem que os porta-voz de tais opiniesexprimam os seus receios; no entanto, tambm pelo que se refere a este ponto, necessrio manter-se dentro dos devidos limites. claro que esta nova fase da vida da Igreja exige de ns uma fparticularmente consciente, aprofundada e responsvel. A verdadeira actividade ecumnicacomporta abertura, aproximao, disponibilidade para o dilogo e busca em comum da verdade nopleno sentido evanglico e cristo; mas tal actividade de maneira nenhuma significa nem podesignificar renunciar ou causar dano de qualquer modo aos tesouros da verdade divina,constantemente confessada e ensinada pela Igreja.

    A todos aqueles que, por qualquer motivo, quereriam dissuadir a Igreja de buscar a unidadeuniversal dos cristos, necessrio repetir ainda uma vez: Ser-nos- lcito deixar de o fazer?Poderemos ns no obstante toda a fraqueza humana, todas as deficincias acumuladas nossculos passados no ter confiana na graa de Nosso Senhor, tal como ela se manifestou nosltimos tempos, mediante a palavra do Esprito Santo, que ouvimos durante o Conclio? Seprocedessemos assim, negaramos a verdade que diz respeito a ns mesmos e que o Apstoloexpressou de maneira to eloquente: Pela graa de Deus sou aquilo que sou, e a graa que Ele meconferiu no foi estril em mim . 19

    Se bem que de um modo diverso e com as devidas diferenas, importa aplicar isto que acabmos dedizer agora actividade que intenta a aproximao com os representantes das religies no-crists eque se exprime tambm ela atravs do dilogo, dos contactos, da orao em comum e da busca dostesouros da espiritualidade humana, os quais, como bem sabemos, no faltam tambm aos membrosdestas religies. No acontece, porventura, algumas vezes, que a crena firme dos sequazes dasreligies no-crists crena que efeito tambm ela do Esprito da verdade operante para almdas fronteiras visveis do Corpo Mstico deixa confundidos os cristos, no raro to dispostos,por sua vez, a duvidar quanto s verdades reveladas por Deus e anunciadas pela Igreja, e topropensos ao relaxamento dos princpios da moral e a abrir o caminho ao permissivismo tico? nobre o estar-se predisposto para compreender cada um dos homens, para analisar todos ossistemas e para dar razo quilo que justo; isso, porm, no significa absolutamente perder a

  • certeza da prpria f 20 ou ento enfraquecer os princpios da moral, cuja falta bem depressa se farressentir na vida de inteiras sociedades, causando a, alm do mais, deplorveis consequncias.

    II. O MISTRIO DA REDENO

    7. No Mistrio de Cristo

    Entretanto, se as vias a seguir, para as quais o Conclio do nosso sculo orientou a Igreja, vias quenos indicou na sua primeira Encclica o saudoso Papa Paulo VI, permanecero de modoperduradoiro exactamente as vias que ns todos devemos seguir, ao mesmo tempo nesta nova fasepodemos justamente interrogar-nos: Como? De que maneira ser conveniente prosseguir? O queser necessrio fazer, para que este novo advento da Igreja, conjugado com o j iminente fim dosegundo Milnio, nos aproxime d'Aquele que a Sagrada Escritura chama Pai perptuo , Paterfuturi saeculi? 21 Esta a pergunta fundamental que o novo Sumo Pontfice tem de pr-se, desde omomento em que aceitou, em esprito de obedincia de f, o chamamento em conformidade com aordem mais de uma vez dirigida a Pedro: Apascenta os meus cordeiros ; 22 o que quer dizer: Spastor do meu rebanho ; e depois: ... e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmos . 23

    precisamente aqui neste ponto, carssimos Irmos, Filhos e Filhas, que se impe uma respostafundamental e essencial, a saber: a nica orientao do esprito, a nica direco da inteligncia, davontade e do corao para ns esta: na direco de Cristo, Redentor do homem; na direco deCristo, Redentor do mundo. Para Ele queremos olhar, porque s n'Ele, Filho de Deus, est asalvao, renovando a afirmao de Pedro: Para quem iremos ns, Senhor? Tu tens as palavras devida eterna . 24

    Atravs da conscincia da Igreja, to desenvolvida pelo Conclio, atravs de todos os graus destaconscincia, atravs de todos os campos de actividade onde a Igreja se afirma presente, se encontrae se consolida, devemos tender constantemente para Aquele que a Cabea , 25 para Aquelede quem tudo provm e ns somos criados para Ele , 26 para Aquele que , ao mesmo tempo, ocaminho e a verdade 27 e a ressurreio e a vida , 28 para Aquele ao ver o Qual vemos o Pai,29 para Aquele, enfim, que devia ir, deixando-nos 30 entende-se aqui a aluso sua morte naCruz e depois sua Ascenso ao Cu para que o Consolador viesse a ns e continue a virconstantemente como o Esprito da verdade. 31 N'Ele esto todos os tesouros da sabedoria e dacincia 32 e a Igreja o seu Corpo. 33 A Igreja em Cristo como que um sacramento, ou sinal,e instrumento da ntima unio com Deus e da unidade de todo o gnero humano ; 34 e disto Ele afonte! Ele mesmo! Ele o Redentor!

    A Igreja no cessa de ouvir as suas palavras, continuamente as rel e reconstri com a mximadevoo todos os pormenores da sua vida. Estas palavras so escutadas tambm pelos no cristos.A vida de Cristo fala ao mesmo tempo tambm a muitos homens que ainda no se acham emcondies de repetir com Pedro: Tu s o Cristo, o Filho de Deus vivo . 35 Ele, Filho de Deusvivo, fala aos homens tambm como Homem: a sua prpria vida que fala, a sua humanidade, a suafidelidade verdade e o seu amor que a todos abraa. Fala, ainda, a sua morte na Cruz, isto , aimperscrutvel profundidade do seu sofrimento e do seu abandono. A Igreja no cessa nunca dereviver a sua morte na Cruz e a sua Ressurreio, que constituem o contedo da vida quotidiana damesma Igreja. De facto, por mandato do prprio Cristo, seu Mestre, que a Igreja celebraincessantemente a Eucaristia, encontrando nela a fonte da vida e da santidade , 36 o sinal eficazda graa e da reconciliao com Deus e o penhor da vida eterna. A Igreja vive o seu mistrio e nelevai haurir sem jamais se cansar, e busca continuamente as vias para tornar este mistrio do seuMestre e Senhor prximo do gnero humano: dos povos, das naes, das geraes que se sucedeme de cada um dos homens em particular, como se repetisse sempre, seguindo o exemplo doApstolo: Tomei a resoluo de no saber, entre vs, outra coisa, a no ser Jesus Cristo, e JesusCristo crucificado . 37 A Igreja permanece na esfera do mistrio da Redeno, que se tornouprecisamente o princpio fundamental da sua vida e da sua misso.

  • 8. Redeno: renovada criao

    Redentor do mundo! N'Ele se revelou de um modo novo, de maneira admirvel, aquela verdadefundamental respeitante criao que o Livro do Gnesis atesta quando repete mais de uma vez:Deus viu que as coisas eram boas. 38 O bem tem a sua nascente na Sapincia e no Amor. Em JesusCristo, o mundo visvel, criado por Deus para o homem 39 aquele mundo que, entrando nele opecado, foi submetido caducidade 40 _ readquire novamente o vnculo originrio com a mesmafonte divina da Sapincia e do Amor. Com efeito, Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seuFilho unignito . 41 Assim como no homem-Ado este vnculo foi quebrado, assim no Homem-Cristo foi de novo reatado. 42 No nos convencem, porventura, a ns homens do sculo vinte, aspalavras do Apstolo das gentes, pronunciadas com uma arrebatadora eloquncia, acerca da criao inteira que geme e sofre, em conjunto, as dores do parto, at ao presente , 43 e atendeansiosamente a revelao dos filhos de Deus , 44 acerca da criao que foi submetida caducidade ? O imenso progresso nunca dantes conhecido, que se verificou particularmente nodecorrer do nosso sculo, no campo do domnio sobre o mundo por parte do homem, no revelaacaso ele prprio e ainda por cima em grau nunca dantes conhecido, aquela multiforme submisso caducidade ? Basta recordar aqui certos fenmenos, como por exemplo a ameaa doinquinamento do ambiente natural nos locais de rpida industrializao, ou ento os conflitos armadosque rebentam e se repetem continuamente, ou ainda as perspectivas de autodestruio mediante ouso das armas atmicas, das armas com hidrognio e com os neutres e outras semelhantes e a faltade respeito pela vida dos no-nascidos. O mundo da poca nova o mundo dos vos csmicos, omundo das conquistas cientficas e tcnicas, nunca alcanadas antes, no ser ao mesmo tempo omundo que geme e sofre 45 e atende ansiosamente a revelao dos filhos de Deus ? 46

    O II Conclio do Vaticano, na sua penetrante anlise do mundo contemporneo , chegava aqueleponto que o mais importante do mundo visvel, o homem, descendo como Cristo at aoprofundo das conscincias humanas, tocando mesmo o mistrio interior do homem, que na linguagembblica (e tambm no bblica) se exprime com a palavra corao . Cristo, Redentor do mundo, Aquele que penetrou, de uma maneira singular e que no se pode repetir, no mistrio do homem eentrou no seu corao . Justamente, portanto, o mesmo II Conclio do Vaticano ensina: Narealidade, s no mistrio do Verbo Encarnado se esclarece verdadeiramente o mistrio do homem.Ado, de facto, o primeiro homem, era figura do futuro (Rom 5, 14), isto , de Cristo Senhor.Cristo, que o novo Ado, na prpria revelao do mistrio do Pai e do seu Amor, revela tambmplenamente o homem ao mesmo homem e descobre-lhe a sua vocao sublime . E depois, ainda: Imagem de Deus invisvel (Col 1, 15), Ele o homem perfeito, que restitui aos filhos de Ado asemelhana divina, deformada desde o primeiro pecado. J que n'Ele a natureza humana foiassumida, sem ter sido destruda, por isso mesmo tambm em nosso benefcio ela foi elevada a umadignidade sublime. Porque, pela sua Encarnao, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo acada homem. Trabalhou com mos de homem, pensou com uma mente de homem, agiu com umavontade de homem e amou com um corao de homem. Nascendo da Virgem Maria, Ele tornou-severdadeiramente um de ns, semelhante a ns em tudo, excepto no pecado . 47 Ele, o Redentor dohomem.

  • 9. Dimenso divina do mistrio da Redeno

    Ao reflectirmos novamente sobre este texto admirvel do Magistrio conciliar, no esqueamos, nemsequer por um momento, que Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, se tornou a nossa reconciliao juntodo Pai. 48 Ele precisamente e s Ele satisfez ao eterno amor do Pai, quela paternidade que desde oprincpio se expressou na criao do mundo, na doao ao homem de toda a riqueza do que foicriado, ao faz-lo pouco inferior aos anjos , 49 enquanto criado imagem e semelhana deDeus ; 50 e, igualmente satisfez quela paternidade de Deus e quele amor, de um certo modorejeitado pelo homem, com a ruptura da primeira Aliana 51 e das alianas posteriores que Deus repetidas vezes ofereceu aos homens . 52 A redeno do mundo aquele tremendo mistrio doamor em que a criao foi renovada 53 , na sua raiz mais profunda, a plenitude da justia numCorao humano: no Corao do Filho Primognito, a fim de que ela possa tornar-se justia doscoraes de muitos homens, os quais, precisamente no Filho Primognito, foram predestinadosdesde toda a eternidade para se tornarem filhos de Deus 54 e chamados para a graa, chamadospara o amor. A cruz no Calvrio, mediante a qual Jesus Cristo Homem, Filho de Maria Virgem,filho putativo de Jos de Nazar deixa este mundo, ao mesmo tempo uma novamanifestao da eterna paternidade de Deus, o Qual por Ele (Cristo) de novo se aproxima dahumanidade, de cada um dos homens, dando-lhes o trs vezes santo Esprito da verdade . 55

    Com esta revelao do Pai e efuso do Esprito Santo, que imprimem um sigilo indelvel no mistrioda Redeno, se explica o sentido da cruz e da morte de Cristo. O Deus da criao revela-se comoDeus da redeno, como Deus fiel a si prprio , 56 fiel ao seu amor para com o homem e paracom o mundo, que j se revelara no dia da criao. E este seu amor amor que no retrocede diantede nada daquilo que nele mesmo exige a justia. E por isto o Filho que no conhecera o pecado,Deus tratou-o, por ns, como pecado . 57 E se tratou como pecado Aquele que eraabsolutamente isento de qualquer pecado, f-lo para revelar o amor que sempre maior do que tudoo que criado, o amor que Ele prprio, porque Deus amor . 58 E sobretudo o amor maiordo que o pecado, do que a fraqueza e do que a caducidade do que foi criado , 59 mais forte doque a morte; amor sempre pronto a erguer e a perdoar, sempre pronto para ir ao encontro do filhoprdigo, 60 sempre em busca da revelao dos filhos de Deus , 61 que so chamados para aglria futura. 62 Esta revelao do amor definida tambm misericrdia; 63 e tal revelao do amore da misericrdia tem na histria do homem uma forma e um nome: chama-se Jesus Cristo.

    10. Dimenso humana do mistrio da Redeno

    O homem no pode viver sem amor. Ele permanece para si prprio um ser incompreensvel e a suavida destituda de sentido, se no lhe for revelado o amor, se ele no se encontra com o amor, se ono experimenta e se o no torna algo seu prprio, se nele no participa vivamente. E por istoprecisamente Cristo Redentor, como j foi dito acima, revela plenamente o homem ao prpriohomem. Esta se assim lcito exprimir-se a dimenso humana do mistrio da Redeno.Nesta dimenso o homem reencontra a grandeza, a dignidade e o valor prprios da sua humanidade.No mistrio da Redeno o homem novamente reproduzido e, de algum modo, novamentecriado. Ele novamente criado! No h judeu nem gentio, no h escravo nem livre, no hhomem nem mulher: todos vs sois um s em Cristo Jesus . 64 O homem que quiser compreender-se a si mesmo profundamente no apenas segundo imediatos, parciais, no raro superficiais e atmesmo s aparentes critrios e medidas do prprio ser deve, com a sua inquietude, incerteza etambm fraqueza e pecaminosidade, com a sua vida e com a sua morte, aproximar-se de Cristo. Eledeve, por assim dizer, entrar n'Ele com tudo o que em si mesmo, deve apropriar-se e assimilartoda a realidade da Encarnao e da Redeno, para se encontrar a si mesmo. Se no homem seactuar este processo profundo, ento ele produz frutos, no somente de adorao de Deus, mastambm de profunda maravilha perante si prprio. Que grande valor deve ter o homem aos olhos doCriador, se mereceu ter um tal e to grande Redentor , 65 se Deus deu o seu Filho , para queele, o homem, no perea, mas tenha a vida eterna . 66

    Na realidade, aquela profunda estupefaco a respeito do valor e dignidade do homem chama-se

  • Evangelho, isto a Boa Nova. Chama-se tambm Cristianismo. Uma tal estupefaco determina amisso da Igreja no mundo, tambm, e talvez mais ainda, no mundo contemporneo . Talestupefaco e conjuntamente persuaso e certeza, que na sua profunda raiz a certeza da f, masque de um modo recndito e misterioso vivifica todos os aspectos do humanismo autntico, estintimamente ligada a Cristo. Ela estabelece tambm o lugar do mesmo Jesus Cristo se assim sepode dizer o seu particular direito de cidadania na histria do homem e da humanidade. A Igreja,que no cessa de contemplar o conjunto do mistrio de Cristo, sabe com toda a certeza da f, que aRedeno que se verificou por meio da Cruz, restituu definitivamente ao homem a dignidade e osentido da sua existncia no mundo, sentido que ele havia perdido em considervel medida por causado pecado. E por isso a Redeno realizou-se no mistrio pascal, que, atravs da cruz e da morte,conduz ressurreio.

    A tarefa fundamental da Igreja de todos os tempos e, de modo particular, do nosso, a de dirigir oolhar do homem e de enderear a conscincia e experincia de toda a humanidade para o mistrio deCristo, de ajudar todos os homens a ter familiaridade com a profundidade da Redeno que severifica em Cristo Jesus. Simultaneamente, toca-se tambm a esfera mais profunda do homem, aesfera queremos dizer dos coraes humanos, das conscincias humanas e das vicissitudeshumanas.

    11. O Mistrio de Cristo na base da misso da Igreja e do Cristianismo

    O II Conclio do Vaticano realizou um trabalho imenso, para formar aquela plena e universalconscincia da Igreja, acerca da qual escrevia o Papa Paulo VI na sua primeira Encclica. Uma talconscincia ou antes autoconscincia da Igreja forma-se no dilogo , o qual, antes de setornar colquio, deve volver a prpria ateno para o outro , ou seja para aquele com o qualqueremos falar. O Conclio Ecumnico deu um impulso fundamental para se formar a autoconscinciada Igreja, apresentando-nos, de maneira adequada e competente, a viso do orbe terrestre como deum mapa de vrias religies. Alm disto, ele demonstrou como sobre este mapa das religiesdo mundo se sobrepe em estratos nunca dantes conhecidos e caractersticos da nossa poca o fenmeno do atesmo nas suas vrias formas, a comear do atesmo programado, organizado eestruturado em sistema poltico.

    Quanto religio, trata-se, antes de mais, da religio como fenmeno universal, conjunto com ahistria do homem desde o incio; depois, das vrias religies no crists e, por fim, do prpriocristianismo. O documento do Conclio dedicado s religies no crists , em particular, umdocumento cheio de estima profunda pelos grandes valores espirituais, ou melhor, pelo primadodaquilo que espiritual, e que encontra na vida da humanidade a sua expresso na religio e, emseguida, na moralidade, que se reflecte em toda a cultura. Justamente os Padres da Igreja viam nasdiversas religies como que outros tantos reflexos de uma nica verdade, como que germes doVerbo , 67 os quais testemunham que, embora por caminhos diferentes, est contudo voltada parauma mesma direco a mais profunda aspirao do esprito humano, tal como ela se exprime nabusca de Deus; e conjuntamente na busca, mediante a tenso no sentido de Deus, da plena dimensoda humanidade, ou seja, do sentido pleno da vida humana. O Conclio dedicou uma particularateno religio judaica, recordando o grande patrimnio espiritual que comum aos cristos e aosjudeus, e exprimiu a sua estima para com os crentes do Islo, cuja f se refere tambm a Abrao. 68

    Em virtude da abertura provocada pelo II Conclio do Vaticano, a Igreja e todos os cristospuderam alcanar uma conscincia mais completa do mistrio de Cristo, mistrio oculto por tantossculos 69 em Deus, para ser revelado no tempo, no Homem Jesus Cristo, e para se revelarcontinuamente, em todos os tempos. Em Cristo e por Cristo, Deus revelou-se plenamente humanidade e aproximou-se definitivamente dela; e, ao mesmo tempo, em Cristo e por Cristo, ohomem adquiriu plena conscincia da sua dignidade, da sua elevao, do valor transcendente daprpria humanidade e do sentido da sua existncia.

    Importa, pois, que ns todos quantos somos seguidores de Cristo nos encontremos e nosunamos em torno d'Ele mesmo. Esta unio, nos diversos sectores da vida, da tradio e das

  • estruturas e disciplina de cada uma das Igrejas ou das Comunidades eclesiais, no poder seractuada sem um vlido trabalho que tenda para se chegar a um conhecimento recproco e para aremoo dos obstculos ao longo do caminho para uma perfeita unidade. No entanto, podemos edevemos, j a partir de agora, conseguir e manifestar ao mundo a nossa unidade: no anunciar omistrio de Cristo, no tornar patente a dimenso divina e conjuntamente humana da Redeno, nolutar com infatigvel perseverana por aquela dignidade que todos os homens alcanaram e podemalcanar continuamente em Cristo, que a dignidade da graa da adopo divina e simultaneamentedignidade da verdade interior da humanidade, a qual se na conscincia comum do mundocontemporneo chegou a ter um realce assim to fundamental para ns ainda ressalta mais luzdaquela realidade que Ele: Jesus Cristo.

    Jesus Cristo princpio estvel e centro permanente da misso que o prprio Deus confiou aohomem. E nesta misso devemos participar todos, nela devemos concentrar todas as nossas foras,uma vez que ela mais do que nunca necessria para a humanidade do nosso tempo. E se uma talmisso parece encontrar na nossa poca oposies maiores do que em qualquer outro tempo, entoesta circunstncia est a demonstrar tambm que ela na nossa poca ainda mais necessria e no obstante as oposies mais esperada do que nunca. Aqui tocamos indirectamente naquelemistrio da economia divina que uniu a salvao e a graa com a Cruz. No foi em vo que Cristodisse alguma vez que o reino dos cus objecto de violncia, e os violentos tornam-se seussenhores ; 70 e, ainda, que os filhos deste mundo so mais sagazes do que os filhos da luz . 71Aceitemos esta admoestao de bom grado, para sermos como aqueles violentos de Deus quetantas vezes nos foi dado ver na histria da Igreja e que descortinamos ainda hoje, a fim de nosunirmos conscientemente na grande misso, ou seja: revelar Cristo ao mundo, ajudar cada um doshomens para que se encontre a si mesmo n'Ele, ajudar as geraes contemporneas dos nossosirmos e irms, povos, naes, estados, humanidade, pases ainda no desenvolvidos e pases daopulncia, ajudar todos, em suma, a conhecer as imperscrutveis riquezas de Cristo , 72 poisestas so para todos e cada um dos homens e constituem o bem de cada um deles.

    12. Misso da Igreja e liberdade do homem

    Nesta unio na misso, da qual decide sobretudo o mesmo Cristo, todos os cristos devemdescobrir aquilo que os une, ainda antes de se realizar a sua plena comunho. Esta a unioapostlica e missionria, missionria e apostlica. Graas a esta unio, podemos juntos aproximar-nos do magnfico patrimnio do esprito humano, que se manifestou em todas as religies, como diz aDeclarao do II Conclio do Vaticano Nostra Aetate. 73 E graas mesma unio, abeirar-nos-emos tambm de todas as culturas, de todas as concepes ideolgicas e de todos os homens deboa vontade. E aproximar-nos-emos com aquela estima, respeito e discernimento que, j desde ostempos apostlicos, distinguiam a atitude missionria e do missionrio. Basta-nos recordar SoPaulo e, por exemplo, o seu discurso no Arepago de Atenas. 74 A atitude missionria comeasempre por um sentimento de profunda estima para com aquilo que h no homem , 75 por aquiloque ele, no ntimo do seu esprito, elaborou quanto aos problemas mais profundos e maisimportantes; trata-se de respeito para com aquilo que nele operou o Esprito, que sopra onde quer. 76 A misso no nunca uma destruio, mas uma reassuno de valores e uma nova construo,ainda que na prtica nem sempre tenha havido plena correspondncia com um ideal assim toelevado. A converso, que da misso deve tomar incio, sabemos bem que obra da graa, na qualo homem h-de encontrar-se plenamente a si mesmo.

    Por tudo isto, a Igreja do nosso tempo d grande importncia a tudo aquilo que o II Conclio doVaticano exps na Declarao sobre a Liberdade Religiosa, tanto na primeira como na segundaparte do Documento. 77 Sentimos profundamente o carcter compromissivo da verdade que Deusnos revelou. Damo-nos conta, em particular, do grande sentido de responsabilidade por estaverdade. A Igreja, por instituio de Cristo, dela guarda e mestra, sendo precisamente para issodotada de uma singular assistncia do Esprito Santo, a fim de poder guard-la fielmente e ensin-lana sua mais exacta integridade. 78

  • No desempenho desta misso, olhemos para o prprio Cristo, Aquele que o primeiroevangelizador, 79 e olhemos tambm para os seus Apstolos, Mrtires e Confessores. ADeclarao sobre a Liberdade Religiosa pe a claro, de modo bem convincente, como Cristo e,em seguida, os seus Apstolos, ao anunciarem a verdade que no provm dos homens, mas sim deDeus a minha doutrina no to minha como daquele que me enviou , ou seja, o Pai 80 embora agindo com todo o vigor do esprito, conservam uma profunda estima pelo homem, pela suainteligncia, pela sua vontade, pela sua conscincia e pela sua liberdade. 81 De tal modo, a prpriadignidade da pessoa humana torna-se contedo daquele anncio, mesmo sem palavras, massimplesmente atravs do comportamento em relao mesma pessoa livre. Um comportamentoassim parece corresponder s necessidades particulares do nosso tempo. Uma vez que nem em tudoaquilo que os vrios sistemas e tambm homens singulares vem e propagam como liberdade est defacto a verdadeira liberdade do homem, mais a Igreja, por fora da sua divina misso, se tornaguarda desta liberdade, a qual condio e base da verdadeira dignidade da pessoa humana.

    Jesus Cristo vai ao encontro do homem de todas as pocas, tambm do da nossa poca, com asmesmas palavras que disse alguma vez: conhecereis a verdade, e a verdade torna-vos- livres . 82Estas palavras encerram em si uma exigncia fundamental e, ao mesmo tempo, uma advertncia: aexigncia de uma relao honesta para com a verdade, como condio de uma autntica liberdade; ea advertncia, ademais, para que seja evitada qualquer verdade aparente, toda a liberdade superficiale unilateral, toda a liberdade que no compreenda cabalmente a verdade sobre o homem e sobre omundo. Ainda hoje, depois de dois mil anos, Cristo continua a aparecer-nos como Aquele que trazao homem a liberdade baseada na verdade, como Aquele que liberta o homem daquilo que limita,diminui e como que espedaa essa liberdade nas prprias razes, na alma do homem, no seu coraoe na sua conscincia. Que confirmao estupenda disto mesmo deram e no cessam de dar aquelesque, graas a Cristo e em Cristo, alcanaram a verdadeira liberdade e a manifestaram at emcondies de constrangimento exterior!

    E o prprio Jesus Cristo, quando compareceu prisioniero diante do tribunal de Pilatos e por ele foiinterrogado acerca das acusaes que Lhe tinham sido feitas pelos representantes do Sindrio,porventura no respondeu Ele: Para isto que eu nasci e para isto que eu vim ao mundo: paradar testemunho da verdade ? 83 Com tais palavras pronunciadas diante do juiz, no momentodecisivo, foi como se quisesse confirmar, uma vez mais ainda, o que j havia dito em precedncia: Conhecereis a verdade, e a verdade tornar-vos- livres . No decorrer de tantos sculos e de tantasgeraes, a comear dos tempos dos Apstolos, no foi acaso o mesmo Jesus Cristo que tantasvezes compareceu ao lado dos homens julgados por causa da verdade, e no foi Ele para a morte,talvez, conjuntamente com homens condenados por causa da verdade? Cessa Ele, porventura, decontinuamente ser o porta-voz e advogado do homem que vive em esprito e em verdade ? 84 Domesmo modo que no cessa de s-lo diante do Pai, assim tambm continua a s-lo em relao histria do homem. E a Igreja, por sua vez, apesar de todas as fraquezas que fazem parte da histriahumana, no cessa de seguir Aquele que proclamou: Aproxima-se a hora, ou melhor, j estamosnela, em que os verdadeiros adoradores adoraro o Pai em esprito e em verdade, porque assimque o Pai quer os seus adoradores. Deus esprito, e os que o adoram em esprito e verdade queo devem adorar . 85

  • III. O HOMEM REMIDO E A SUA SITUAO NO MUNDO CONTEMPORNEO

    13 . Cristo uniu-se com cada um dos homens

    Quando, atravs da experincia da famlia humana, em contnuo aumento a ritmo acelerado,penetramos no mistrio de Jesus Cristo, compreendemos com maior clareza que, na base de todasaquelas vias ao longo das quais de acordo com a sapincia do Sumo Pontfice Paulo VI 86 aIgreja dos nossos tempos deve prosseguir, existe uma nica via: a via experimentada de h sculos,e , ao mesmo tempo, a via do futuro. Cristo Senhor indicou esta via sobretudo, quando comoensina o Conclio pela sua Encarnao, Ele, o Filho de Deus, se uniu de certo modo a cadahomem . 87 A Igreja reconhece, portanto, como sua tarefa fundamental fazer com que uma talunio se possa actuar e renovar continuamente. A Igreja deseja servir esta nica finalidade: que cadahomem possa encontrar Cristo, a fim de que Cristo possa percorrer juntamente com cada homem ocaminho da vida, com a potncia daquela verdade sobre o homem e sobre o mundo, contida nomistrio da Encarnao e da Redeno, e com a potncia do amor que de tal verdade irradia. Sobreo pano de fundo dos sempre crescentes processos na histria, que na nossa poca parecem frutificarde modo particular no mbito de vrios sistemas, de concepes ideolgicas do mundo e deregimes, Cristo torna-se, de certo modo, novamente presente, malgrado todas as suas aparentesausncias, malgrado todas as limitaes da presena e da actividade institucional da Igreja. E JesusCristo torna-se presente com a potncia daquela verdade e daquele amor que n'Ele se exprimiramcomo plenitude nica e que no se pode repetir, se bem que a sua vida na terra tenha sido breve eainda mais breve a sua actividade pblica.

    Jesus Cristo a via principal da Igreja. Ele mesmo a nossa via para a casa do Pai 88 e tambm a via para cada homem. Por esta via que leva de Cristo ao homem, por esta via na qualCristo se une a cada homem, a Igreja no pode ser entravada por ningum. Isso exigncia do bemtemporal e do bem eterno do mesmo homem. Por respeito a Cristo e em razo daquele mistrio quea vida da mesma Igreja constitui, esta no pode permanecer insensvel a tudo aquilo que serve overdadeiro bem do homem, assim como no pode permanecer indiferente quilo que o ameaa. O IIConclio do Vaticano, em diversas passagens dos seus documentos, deixou bem expressa estafundamental solicitude da Igreja, a fim de que a vida no mundo /seja/ mais conforme com adignidade sublime de homem , 89 em todos os seus aspectos, e por tornar essa vida cada vezmais humana . 90 Esta a solicitude do prprio Cristo, o Bom Pastor de todos os homens. Emnome de uma tal solicitude, conforme lemos na Constituio pastoral do Conclio, a Igreja que, emrazo da sua misso e competncia, de modo algum se confude com a comunidade poltica nem estligada a qualquer sistema poltico determinado, ao mesmo tempo o sinal e a salvaguarda docarcter transcendente da pessoa humana . 91

    Aqui, portanto, trata-se do homem em toda a sua verdade, com a sua plena dimenso. No se tratado homem abstracto , mas sim real: do homem concreto , histrico . Trata-se de cada homem, porque todos e cada um foram compreendidos no mistrio da Redeno, e com todos ecada um Cristo se uniu, para sempre, atravs deste mistrio. Todo o homem vem ao mundoconcebido no seio materno e nasce da prpria me, e precisamente por motivo do mistrio daRedeno que ele confiado solicitude da Igreja. Tal solicitude diz respeito ao homem todo,inteiro, e est centrada sobre ele de modo absolutamente particular. O objecto destes cuidados daIgreja o homem na sua nica e singular realidade humana, na qual permanece intacta a imagem esemelhana com o prprio Deus. 92 O Conclio indica isto precisamente, quando, ao falar de talsemelhana recorda que o homem a nica criatura sobre a terra a ser querida por Deus por simesma . 93 O homem tal como foi querido por Deus, como por Ele foi eternamente escolhido, chamado e destinado graa e glria, este homem assim exactamente todo e qualquer homem, o homem o mais concreto , o mais real ; este homem, depois, o homem em toda aplenitude do mistrio de que se tornou participante em Jesus Cristo, mistrio de que se tornouparticipante cada um dos quatro bilies de homens que vivem sobre o nosso planeta, desde omomento em que concebido sob o corao da prpria me.

  • 14. Todas as vias da Igreja levam ao homem

    A Igreja no pode abandonar o homem, cuja sorte , ou seja, a escolha, o chamamento, onascimento e a morte, a salvao ou a perdio, esto de maneira to ntima e indissolvel unidos aCristo. E trata-se aqui precisamente de todos e cada um dos homens sobre este planeta, nesta terraque o Criador deu ao primeiro homem, dizendo ao mesmo tempo ao homem e mulher: submetei-a (a terra) e dominai-a . 94 Cada homem, pois, em toda a sua singular realidade do ser e do agir,da inteligncia e da vontade, da conscincia e do corao. O homem nessa sua singular realidade(porque pessoa ) tem uma prpria histria da sua vida e, sobretudo, uma prpria histria da suaalma. O homem que, segundo a interior abertura do seu esprito, e conjuntamente a tantas e todiversas necessidades do seu corpo e da sua existncia temporal, escreve esta sua histria pessoal,f-lo atravs de numerosos ligames, contactos, situaes e estruturas sociais, que o unem a outroshomens; e faz isso a partir do primeiro momento da sua existncia sobre a terra, desde o momentoda sua concepo e do seu nascimento. O homem, na plena verdade da sua existncia, do seu serpessoal e, ao mesmo tempo, do seu ser comunitrio e social no mbito da prpria famlia, nombito de sociedades e de contextos bem diversos, no mbito da prpria nao, ou povo (e, talvez,ainda somente do cl ou da tribo), enfim no mbito de toda a humanidade este homem oprimeiro caminho que a Igreja deve percorrer no cumprimento da sua misso: ele a primeira efundamental via da Igreja, via traada pelo prprio Cristo e via que imutavelmente conduz atravsdo mistrio da Encarnao e da Redeno.

    Este homem assim precisamente, em toda a verdade da sua vida, com a sua conscincia, com a suacontnua inclinao para o pecado e, ao mesmo tempo, com a sua contnua aspirao pela verdade,pelo bem, pelo belo, pela justia e pelo amor, precisamente um tal homem tinha diante dos olhos o IIConclio do Vaticano, quando, ao delinear a sua situao no mundo contemporneo, se transferiasempre das componentes externas desta situao para a verdade imanente da humanidade: nontimo do homem precisamente que muitos elementos se combatem entre si. Enquanto, por umaparte, ele se experimenta, como criatura que , multiplamente limitado, por outra, sente-se ilimitadonos seus desejos e chamado a uma vida superior. Atrado por muitas solicitaes, v-se obrigado aescolher entre elas e a renunciar a algumas. Mais ainda, fraco e pecador, faz muitas vezes aquilo queno quer e no realiza o que desejaria fazer. Sofre assim em si mesmo a diviso, da qual tantas e tograves discrdias se originam para a sociedade . 95

    este homem assim que a via da Igreja; via que se encontra, de certo modo, na base de todasaquelas vias pelas quais a Igreja deve caminhar: porque o homem todos e cada um dos homens,sem excepo alguma foi remido por Cristo; e porque com o homem cada homem, semexcepo alguma Cristo de algum modo se uniu, mesmo quando tal homem disso no se achaconsciente: Cristo, morto e ressuscitado por todos os homens, a estes a todos e a cada um doshomens oferece sempre... a luz e a fora para poderem corresponder sua altssima vocao .96

    Sendo portanto este homem a via da Igreja, via da sua vida e experincia quotidianas, da sua missoe actividade, a Igreja do nosso tempo tem de estar, de maneira sempre renovada, bem ciente da situao de tal homem. E mais: a Igreja deve estar bem ciente das suas possibilidades, que tomamsempre nova orientao e assim se manifestam; ela tem de estar bem ciente, ao mesmo tempo ainda,das ameaas que se apresentam contra o homem. Ela deve estar cnscia, outrossim, de tudo aquiloque parece ser contrrio ao esforo para que a vida humana se torne cada vez mais humana 97 epara que tudo aquilo que compe esta mesma vida corresponda verdadeira dignidade do homem.Numa palavra, a Igreja deve estar bem cnscia de tudo aquilo que contrrio a um tal processo denobilitao da vida humana.

    15. De que que o homem contemporneo tem medo

    Conservando, pois, viva na memria a imagem que de maneira to perspicaz e autorizada traou o IIConclio do Vaticano, procuraremos, uma vez mais ainda, adaptar este quadro aos sinais dostempos , bem como s exigncias da situao que muda continuamente e evolui em determinadas

  • direces.

    O homem de hoje parece estar sempre ameaado por aquilo mesmo que produz; ou seja, peloresultado do trabalho das suas mos e, ainda mais, pelo resultado do trabalho da sua inteligncia edas tendncias da sua vontade. Os frutos desta multiforme actividade do homem, com muita rapideze de modo muitas vezes imprevisvel, passam a ser, no tanto objecto de alienao , no sentido deque so simplesmente tirados quele que os produz, quanto, ao menos parcialmente e num crculoconsequente e indirecto dos seus efeitos, tais frutos se voltam contra o prprio homem. Eles passamento, de facto, a ser dirigidos, ou podem ser dirigidos contra o homem. E nisto assim parececonsistir o captulo principal do drama da existncia humana contempornea na sua mais ampla euniversal dimenso. O homem, portanto, cada vez mais vive com medo. Ele teme que os seusprodutos, naturalmente no todos e no na maior parte, mas alguns e precisamente aqueles queencerram uma especial poro da sua genialidade e da sua iniciativa, possam ser voltados de maneiraradical contra si mesmo; teme que eles possam tornar-se meios e instrumentos de uma inimaginvelautodestruio, perante a qual todos os cataclismas e as catstrofes da histria, que nsconhecemos, parecem ficar a perder de vista. Deve pr-se, portanto, uma interrogao: por querazo um tal poder, dado desde o princpio ao homem, poder mediante o qual ele devia dominar aterra, 98 se volta assim contra ele, provocando um compreensvel estado de inquietude, deconsciente ou inconsciente medo, e de ameaa que de diversas maneiras se comunica a toda a famliahumana contempornea e se manifesta sob vrios aspectos?

    Este estado de ameaa contra o homem, da parte dos seus mesmos produtos, tem vrias direces evrios graus de intensidade. Parece que estamos cada vez mais cnscios do facto de a explorao daterra, do planeta em que vivemos, exigir um planeamento racional e honesto. Ao mesmo tempo, talexplorao para fins no somente industriais mas tambm militares, o desenvolvimento da tcnica nocontrolado nem enquadrado num plano com perspectivas universais e autenticamente humanstico,trazem muitas vezes consigo a ameaa para o ambiente natural do homem, alienam-no nas suasrelaes com a natureza e apartam-no da mesma natureza. E o homem parece muitas vezes no dar-se conta de outros significados do seu ambiente natural, para alm daqueles somente que servempara os fins de um uso ou consumo imediatos. Quando, ao contrrio, era vontade do Criador que ohomem comunicasse com a natureza como senhor e guarda inteligente e nobre, e no comoum desfrutador e destrutor sem respeito algum.

    O progresso da tcnica e o desenvolvimento da civilizao do nosso tempo, que marcado alispelo predomnio da tcnica, exigem um proporcional desenvolvimento tambm da vida moral e datica. E no entanto este ltimo, infelizmente, parece ficar sempre atrasado. Por isso, este progresso,de resto to maravilhoso, em que difcil no vislumbrar tambm os autnticos sinais da grandeza domesmo homem, os quais, em seus germes criativos, j nos so revelados nas pginas do Livro doGnesis, na descrio da sua mesma criao, 99 este progresso no pode deixar de gerar multplicesinquietaes. Uma primeira inquietao diz respeito questo essencial e fundamental: Esteprogresso, de que autor e fautor o homem, torna de facto a vida humana sobre a terra, em todosos seus aspectos, mais humana ? Torna-a mais digna do homem ? No pode haver dvida deque, sob vrios aspectos, a torna de facto tal. Esta pergunta, todavia, retorna obstinadamente e peloque respeita quilo que essencial em sumo grau: se o homem, enquanto homem, no contexto desteprogresso, se torna verdadeiramente melhor, isto , mais amadurecido espiritualmente, maisconsciente da dignidade da sua humanidade, mais responsvel, mais aberto para com o outros, emparticular para com os mais necessitados e os mais fracos, e mais disponvel para proporcionar eprestar ajuda a todos.

    Esta a pergunta que os cristos devem pr-se, precisamente porque Cristo os sensibilizou assim demodo universal quanto ao problema do homem. E a mesma pergunta devem tambm pr-se todosos homens, especialmente aqueles que fazem parte daqueles ambientes sociais que se dedicamactivamente ao desenvolvimento e ao progresso nos nossos tempos. Ao observar estes processos etomando parte neles, no podemos deixar que se aposse de ns a euforia, nem podemos deixar-noslevar por um unilateral entusiasmo pelas nossas conquistas; mas todos devemos pr-nos, com

  • absoluta lealdade, objectividade e sentido de responsabilidade moral, as perguntas essenciais peloque se refere situao do homem, hoje e no futuro. Todas as conquistas alcanadas at agora, bemcomo as que esto projectadas pela tcnica para o futuro, esto de acordo com o progresso moral eespiritual do homem? Neste contexto o homem, enquanto homem, desenvolve-se e progride, ouregride e degrada-se na sua humanidade? Prevalece nos homens, no mundo do homem que em si mesmo um mundo de bem e de mal moral o bem ou o mal? Crescem verdadeiramente noshomens, entre os homens, o amor social, o respeito pelos direitos de outrem de todos e de cadaum dos homens, de cada nao, de cada povo ou, pelo contrrio, crescem os egosmos de vrioalcance, os nacionalismos exagerados em vez do autntico amor da ptria, e, ainda, a tendncia paradominar os outros, para alm dos prprios e legtimos direitos e mritos, e a tendncia para desfrutarde todo o progresso material e tcnico-produtivo exclusivamente para o fim de predominar sobre osoutros, ou em favor deste ou daqueloutro imperialismo?

    Eis as interrogaes essenciais que a Igreja no pode deixar de pr-se, porque, de maneira mais oumenos explcita, as pem a si prprios bilies de homens que vivem hoje no mundo. O tema dodesenvolvimento e do progresso anda nas bocas de todos e aparece nas colunas de todos os jornaise nas publicaes, em quase todas as lnguas do mundo contemporneo. No esqueamos, todavia,que este tema no contm somente afirmaes e certezas mas tambm perguntas e angustiosasinquietudes. Estas ltimas no so menos importantes do que as primeiras. Elas correspondem natureza dialctica fundamental da solicitude do homem pelo homem, pela sua prpria humanidade epelo futuro dos homens sobre a face da terra. A Igreja, que animada pela f escatolgica,considera esta solicitude pelo homem, pela sua humanidade e pelo futuro dos homens sobre a faceda terra e, por consequncia, pela orientao de todo o desenvolvimento e progresso, como umelemento essencial da sua misso, indissoluvelmente ligado com ela. E o princpio de uma talsolicitude encontra-o a mesma Igreja no prprio Jesus Cristo, como testemunham os Evangelhos. E por isso mesmo que ela deseja acresc-la continuamente n'Ele, ao reler a situao do homem nomundo contemporneo, segundo os mais importantes sinais do nosso tempo.

    16. Progresso ou ameaa?

    Se, portanto, o nosso tempo, o tempo da nossa gerao, o tempo que se vai aproximando do fim dosegundo Milnio da nossa era crist, se nos manifesta como um tempo de grande progresso, eleapresenta-se tambm como um tempo de multiforme ameaa contra o homem, da qual a Igreja devefalar a todos os homens de boa vontade e sobre a qual ela deve constantemente dialogar com eles. Asituao do homem no mundo contemporneo, de facto, parece estar longe das exigncias objectivasda ordem moral, assim como das exigncias da justia e, mais ainda, do amor social. No se trataaqui seno daquilo que teve a sua expresso na primeira mensagem do Criador dirigida ao homemno momento em que lhe dava a terra, para que ele a dominasse . 100 Esta primeira mensagem deDeus foi confirmada depois, no mistrio da Redeno, por Cristo Senhor. Isto foi expresso pelo IIConclio do Vaticano naqueles belssimos captulos do seu ensino que dizem respeito realeza dohomem, isto , sua vocao para participar na funo real o munus regale do mesmoCristo. 101 O sentido essencial desta realeza e deste domnio do homem sobre o mundovisvel, que lhe foi confiado como tarefa pelo prprio Criador, consiste na prioridade da tica sobre atcnica, no primado da pessoa sobre as coisas e na superioridade do esprito sobre a matria.

    por isso mesmo que necessrio acompanhar atentamente todas as fases do progresso hodierno: preciso, por assim dizer, fazer a radiografia de cada uma das suas etapas exactamente deste pontode vista. Est em causa o desenvolvimento da pessoa e no apenas a multiplicao das coisas, dasquais as pessoas podem servir-se. Trata-se como disse um filsofo contemporneo e comoafirmou o Conclio no tanto de ter mais , quanto de ser mais . 102 Com efeito, existe j umreal e perceptvel perigo de que, enquanto progride enormemente o domnio do homem sobre omundo das coisas, ele perca os fios essenciais deste seu domnio e, de diversas maneiras, submeta aelas a sua humanidade, e ele prprio se torne objecto de multiforme manipulao, se bem que muitasvezes no directamente perceptvel; manipulao atravs de toda a organizao da vida comunitria,mediante o sistema de produo e por meio de presses dos meios de comunicao social. O

  • homem no pode renunciar a si mesmo, nem ao lugar que lhe compete no mundo visvel; ele nopode tornar-se escravo das coisas, escravo dos sistemas econmicos, escravo da produo eescravo dos seus prprios produtos. Uma civilizao de feio puramente materialista condena ohomem a tal escravido, embora algumas vezes, indubitavelmente, isso acontea contra as intenese as mesmas premissas dos seus pioneiros. Na raiz da actual solicitude pelo homem est sem dvidaalguma este problema. E no questo aqui somente de dar uma resposta abstracta pergunta:quem o homem; mas trata-se de todo o dinamismo da vida e da civilizao. Trata-se do sentidodas vrias iniciativas da vida quotidiana e, ao mesmo tempo, das premissas para numerososprogramas de civilizao, programas polticos, econmicos, sociais, estatais e muitos outros.

    Se ns ousamos definir a situao do homem contemporneo como estando longe das exignciasobjectivas da ordem moral, longe das exigncias da justia e, ainda mais, do amor social, porqueisto confirmado por factos bem conhecidos e por confrontos que se podem fazer e que, por maisde uma vez, j tiveram ressonncia directa nas pginas das enunciaes pontifcias, conciliares esinodais. 103 A situao do homem na nossa poca no certamente uniforme, mas sim diferenciadade mltiplas maneiras. Estas diferenas tm as suas causas histricas, mas tambm tm uma forteressonncia tica. assaz conhecido, de facto, o quadro da civilizao consumstica, que consistenum certo excesso de bens necessrios ao homem e a sociedades inteiras e aqui trata-seexactamente das sociedades ricas e muito desenvolvidas enquanto que as restantes sociedades,ao menos largos estratos destas, sofrem a fome, e muitas pessoas morrem diariamente pordesnutrio ou india. Simultaneamente sucede que se d por parte de uns um certo abuso daliberdade, que est ligado precisamente a um modo de comportar-se consumstico, no controladopela tica, enquanto isso limita contemporneamente a liberdade dos outros, isto , daqueles quesofrem notrias carncias e se vem empurrados para condies de ulterior misria e indigncia.

    Este confronto, universalmente conhecido, e o contraste a que dedicaram a sua ateno, nosdocumentos do seu magistrio, os Sumos Pontfices do nosso sculo, mais recentemente Joo XXIIIassim como Paulo VI, 104 representam como que um gigantesco desenvolvimento da parbolabblica do rico avarento e do pobre Lzaro. 105

    A amplitude do fenmeno pe em questo as estruturas e os mecanismos financeiros, monetrios,produtivos e comerciais, que, apoiando-se em diversas presses polticas, regem a economiamundial: eles demonstram-se como que incapazes quer para reabsorver as situaes sociais injustas,herdadas do passado, quer para fazer face aos desafios urgentes e s exigncias ticas do presente.Submetendo o homem s tenses por ele mesmo criadas, dilapidando, com um ritmo acelerado, osrecursos materiais e energticos e comprometendo o ambiente geofsico, tais estruturas do azo aque se estendam incessantemente as zonas de misria e, junto com esta, a angstia, a frustrao e aamargura. 106

    Encontramo-nos aqui perante o grande drama, que no pode deixar ningum indiferente. O sujeitoque, por um lado, procura auferir o mximo proveito, bem como aquele que, por outro lado, paga asconsequncias dos danos e das injrias, sempre o homem. E tal drama ainda mais exacerbadopela proximidade com os estratos sociais privilegiados e com os pases da opulncia, que acumulamos bens num grau excessivo e cuja riqueza se torna, muitas vezes por causa do abuso, motivo dediversos mal-estares. A isto ajuntem-se a febre da inflao e a praga do desemprego: e eis outrossintomas de tal desordem moral, que se faz sentir na situao mundial e que exige por isso mesmoresolues audaciosas e criativas, conformes com a autntica dignidade do homem. 107

    Uma tal tarefa no impossvel de realizar. O princpio de solidariedade, em sentido lato, deveinspirar a busca eficaz de instituies e de mecanismos apropriados: quer se trate do sector dosintercmbios, em que necessrio deixar-se conduzir pelas leis de uma s competio, quer se tratedo plano de uma mais ampla e imediata redistribuio das riquezas e dos controlos sobre as mesmas,a fim de que os povos que se encontram em vias de desenvolvimento econmico possam, noapenas satisfazer s suas exigncias essenciais, mas tambm progredir gradual e eficazmente.

    No ser fcil avanar, porm, neste difcil caminho, no caminho da indispensvel transformao das

  • estruturas da vida econmica, se no intervier uma verdadeira converso das mentes, das vontades edos coraes. A tarefa exige a aplicao decidida de homens e de povos livres e solidrios. Commuita frequncia se confunde a liberdade com o instinto do interesse individual e colectivo, ou aindacom o instinto de luta e de domnio, quaisquer que sejam as cores ideolgicas de que eles serevistam. E bvio que esses instintos existem e operam; mas no ser possvel ter-se uma economiaverdadeiramente humana, se eles no forem assumidos, orientados e dominados pelas foras maisprofundas que se encontram no homem, e que so aquelas que decidem da verdadeira cultura dospovos. E precisamente destas fontes que deve nascer o esforo, no qual se exprimir a verdadeiraliberdade do homem, e que ser capaz de a assegurar tambm no campo econmico. Odesenvolvimento econmico, conjuntamente com tudo aquilo que faz parte do seu modo prprio eadequado de funcionar, tem de ser constantemente programado e realizado dentro de umaperspectiva de desenvolvimento universal e solidrio dos homens tomados singularmente e dospovos, conforme recordava de maneira convincente o meu Predecessor Paulo VI na EncclicaPopulorum Progressio. Sem isso, a simples categoria do progresso econmico torna-se umacategoria superior, que passa a subordinar o conjunto da existncia humana s suas exignciasparciais, sufoca o homem, desagrega as sociedades e acaba por desenvolver-se nas suas prpriastenses e nos seus mesmos excessos.

    possvel assumir este dever; testemunham-no os factos certos e os resultados, que difcilenumerar aqui de maneira mais pormenorizada. E uma coisa, contudo, certa: na base deste campogigantesco necessrio estabelecer, aceitar e aprofundar o sentido da responsabilidade moral, quetem de assumir o homem. Ainda uma vez e sempre, o homem. Para ns cristos uma talresponsabilidade torna-se particularmente evidente, quando recordamos e devemos record-losempre a cena do juzo final, segundo as palavras de Cristo, referidas no Evangelho de SoMateus. l08

    Essa cena escatolgica tem de ser sempre aplicada histria do homem, deve ser sempretomada como medida dos actos humanos, como um esquema essencial de um exame deconscincia para cada um e para todos: Tive fome e no Me destes de comer...; estava n e noMe vestistes...; estava na priso e no fostes visitar-Me . 109 Estas palavras adquirem um maiorcunho de admoestao ainda, se pensamos que, em vez do po e da ajuda cultural a novos estados enaes que esto a despertar para a vida independente, algumas vezes, se lhes oferecem, no rarocom abundncia, armas modernas e meios de destruio, postos ao servio de conflitos armados ede guerras, que no so tanto uma exigncia da defesa dos seus justos direitos e da sua soberania,quanto sobretudo uma forma de chauvinismo , de imperialismo e de neo-colonialismo de vriosgneros. Todos sabemos bem que as zonas de misria ou de fome, que existem no nosso globo,poderiam ser fertilizadas num breve espao de tempo, se os gigantescos investimentos para osarmamentos, que servem para a guerra e para a destruio, tivessem sido em contrapartidaconvertidos em investimentos para a alimentao, que servem para a vida.

    Esta considerao talvez permanea parcialmente abstracta ; talvez d azo a uma e outra parte para se acusar reciprocamente, esquecendo cada qual as prprias culpas; talvez provoque mesmonovas acusaes contra a Igreja.

    Esta, porm, no dispondo de outras armas, seno das do esprito, das armas da palavra e do amor,no pode renunciar a pregar a Palavra, insistindo oportuna e inoportunamente. 110 Por isso, ela nocessa de solicitar a cada uma das partes e de pedir a todos, em nome de Deus e em nome dohomem: No mateis! No prepareis para os homens destruies e extermnio! Pensai nos vossosirmos que sofrem a fome e a misria! Respeitai a dignidade e a liberdade de cada um!

    17. Direitos do homem letra ou esprito

    O nosso sculo tem sido at agora um sculo de grandes calamidades para o homem, de grandesdevastaes, no s materiais, mas tambm morais, ou melhor, talvez sobretudo morais. No fcil,certamente, comparar pocas e sculos sob este aspecto, uma vez que isso depende tambm dos

  • critrios histricos que mudam. No obstante, prescindido muito embora de tais comparaes,importa verificar que at agora este sculo foi um tempo em que os homens prepararam para simesmos muitas injustias e sofrimentos. Este processo ter sido decididamente entravado? Emqualquer hiptese, no se pode deixar de recordar aqui, com apreo e com profunda esperana parao futuro, o esforo magnfico realizado para dar vida Organizao das Naes Unidas, um esforoque tende para definir e estabelecer os objectivos e inviolveis direitos do homem, obrigando-se osEstados-membros reciprocamente a uma observncia rigorosa dos mesmos. Este compromisso foiaceito e ratificado por quase todos os Estados do nosso tempo; e isto deveria constituir uma garantiapara que os direitos do homem se tornassem em todo o mundo, o princpio fundamental do empenhoem prol do bem do mesmo homem.

    A Igreja no precisa de confirmar quanto este problema est intimamente ligado com a sua misso nomundo contemporneo. Ele est, com efeito, nas mesmas bases da paz social e internacional, comodeclararam a este propsito Joo XXIII, o II Conclio do Vaticano e depois Paulo VI, comdocumentos pormenorizados. Em ltima anlise, a paz reduz-se ao respeito dos direitos inviolveisdo homem efeito da justia ser a paz ao passo que a guerra nasce da violao destesdireitos e acarreta consigo ainda mais graves violaes dos mesmos. Se os direitos do homem soviolados em tempo de paz, isso torna-se particularmente doloroso e, sob o ponto de vista doprogresso, representa um incompreensvel fenmeno de luta contra o homem, que no pode demaneira alguma pr-se de acordo com qualquer programa que se autodefina humanstico . E qualseria o programa social, econmico, poltico e cultural que poderia renunciar a esta definio? Nsnutrimos a convico profunda de que no h no mundo de hoje nenhum programa em que, atmesmo sobre a plataforma de ideologias opostas quanto concepo do mundo, no seja postosempre em primeiro lugar o homem.

    Ora, se apesar de tais premissas, os direitos do homem so violados de diversas maneiras, se naprtica somos testemunhas dos campos de concentrao, da violncia, da tortura, do terrorismo e demultplices discriminaes, isto deve de ser uma consequncia de outras premissas que minam, oumuitas vezes quase anulam a eficcia das premissas humansticas daqueles programas e sistemasmodernos. Ento impe-se necessariamente o dever de submeter os mesmos programas a umacontnua reviso sob o ponto de vista dos objectivos e inviolveis direitos do homem.

    A Declarao destes direitos, juntamente com a instituio da Organizao das Naes Unidas, notinham certamente apenas a finalidade de nos apartar das horrveis experincias da ltima guerramundial, mas tambm a finalidade de criar uma base para uma contnua reviso dos programas, dossistemas e dos regimes, precisamente sob este fundamental ponto de vista, que o bem do homem digamos, da pessoa na comunidade e que, qual factor fundamental do bem comum, deveconstituir o critrio essencial de todos os programas, sistemas e regimes. Caso contrrio, a vidahumana, mesmo em tempo de paz, est condenada a vrios sofrimentos; e, ao mesmo tempo, juntocom tais sofrimentos, desenvolvem-se vrias formas de dominao, de totalitarismo, deneocolonialismo e de imperialismo, as quais ameaam mesmo a convivncia entre as naes. Naverdade, um facto significativo e confirmado por mais de uma vez pelas experincias da histria,que a violao dos direitos do homem anda coligada com a violao dos direitos da nao, com aqual o homem est unido por ligames orgnicos, como que com uma famlia maior.

    J desde a primeira metade deste sculo, no perodo em que se estavam a desenvolver vriostotalitarismos de estado, os quais como se sabe levaram horrvel catstrofe blica, a Igrejahavia claramente delineado a sua posio defronte a estes regimes, que aparentemente agiam por umbem superior, qual o bem do estado, enquanto que a histria haveria de demonstrar que, pelocontrrio, aquilo era apenas o bem de um determinado partido, que se tinha identificado com oestado. 111 Esses regimes, na realidade, haviam coarctado os direitos dos cidados, negando-lhes oreconhecimento daqueles direitos inviolveis do homem que, pelos meados do nosso sculoobtiveram a sua formulao no plano internacional. Ao compartilhar a alegria de uma tal conquistacom todos os homens de boa vontade, com todos os homens que amam verdadeiramente a justia ea paz, a Igreja, cnscia de que a letra somente pode matar, ao passo que s o esprito vivifica

  • , 112 deve, conjuntamente com estes homens de boa vontade, de contnuo perguntar se aDeclarao dos direitos do homem e a aceitao da sua letra significam em toda a parte tambma realizao do seu esprito . Surgem, efectivamente, receios fundados de que muitofrequentemente estamos ainda longe de uma tal realizao, e de que por vezes o esprito da vidasocial e pblica se acha em dolorosa oposio com a declarada letra dos direitos do homem.Este estado de coisas, gravoso para as respectivas sociedades, tornaria aqueles que contribuem parao determinar particularmente responsveis, perante essas sociedades e perante a histria do homem.

    O sentido essencial do Estado, como comunidade poltica, consiste nisto: que a sociedade e, quem acompe, o povo soberano do prprio destino. Um tal sentido no se torna uma realidade, se, emlugar do exerccio do poder com a participao moral da sociedade ou do povo, tivermos de assistir imposio do poder por parte de um determinado grupo a todos os outros membros da mesmasociedade. Estas coisas so essenciais na nossa poca, em que tem crescido enormemente aconscincia social dos homens e, conjuntamente com ela, a necessidade de uma correctaparticipao dos cidados na vida poltica da comunidade, tendo em conta as reais condies decada povo e o necessrio vigor da autoridade pblica. 113 Estes so, pois, os problemas de primriaimportncia sob o ponto de vista do progresso do mesmo homem e do desenvolvimento global dasua humanidade.

    A Igreja sempre tem ensinado o dever de agir pelo bem comum; e, procedendo assim, tambmeducou bons cidados para cada um dos Estados. Alm disso, ela sempre ensinou que o deverfundamental do poder a solicitude pelo bem comum da sociedade; daqui dimanam os seus direitosfundamentais. Em nome precisamente destas premissas, respeitantes ordem tica objectiva, osdireitos do poder no podem ser entendidos de outro modo que no seja sobre a base do respeitopelos direitos objectivos e inviolveis do homem. Aquele bem comum que a autoridade no Estadoserve, ser plenamente realizado somente quando todos os cidados estiverem seguros dos seusdireitos. Sem isto, chega-se ao descalabro da sociedade, oposio dos cidados contra aautoridade, ou ento a uma situao de opresso, de intimidao, de violncia, ou de terrorismo, deque nos forneceram numerosos exemplos os totalitarismos do nosso sculo. assim que o princpiodos direitos do homem afecta profundamente o sector da justia social e se torna padro para a suafundamental verificao na vida dos Organismos polticos.

    Entre estes direitos insere-se, e justamente, o direito liberdade religiosa ao lado do direito daliberdade de conscincia. O II Conclio do Vaticano considerou particularmente necessrio elaboraruma mais ampla Declarao sobre este tema. o Documento que se intitula Dignitatis humanae,114 no qual foi expressa, no somente a concepo teolgica do problema, mas tambm aconcepo sob o ponto de vista do direito natural, ou seja da posio puramente humana , embase quelas premissas ditadas pela prpria experincia do homem, pela razo e pelo sentido da suadignidade. Certamente, a limitao da liberdade religiosa das pessoas e das comunidades no apenas uma sua dolorosa experincia, mas atinge antes de mais nada a prpria dignidade do homem,independentemente da religio professada ou da concepo que elas tenham do mundo. A limitaoda liberdade religiosa e a sua violao esto em contraste com a dignidade do homem e com os seusdireitos objectivos. O Documento conciliar acima referido diz com bastante clareza o que seja umatal limitao e violao da liberdade religiosa. Encontramo-nos em tal caso, sem dvida alguma,perante uma injustia radical em relao quilo que particularmente profundo no homem e emrelao quilo que autenticamente humano. Com efeito, at mesmo os fenmenos da incredulidade,da a-religiosidade e do atesmo, como fenmenos humanos, compreendem-se somente em relaocom o fenmeno de religio e da f. difcil, portanto, mesmo de um ponto de vista puramentehumano , aceitar uma posio segundo a qual s o atesmo tem direito de cidadania na vida pblicae social, enquanto que os homens crentes, quase por prncipio, so apenas tolerados, ou entotratados como cidados de segunda categoria, e at mesmo o que j tem sucedido sototalmente privados dos direitos de cidadania.

    necessrio, embora com brevidade, tratar tambm deste tema, porque ele realmente faz parte docomplexo das situaes do homem no mundo actual, e porque ele tambm est a testemunhar quanto

  • esta situao est profundamente marcada por preconceitos e por injustias de vrios gneros. Seme abstenho de entrar em pormenores neste campo precisamente, no qual me assistiria um especialdireito e dever para o fazer, isso sobretudo porque, juntamente com todos aqueles que sofrem ostormentos da discriminao e da perseguio por causa do nome de Deus, sou guiado pela f nafora redentora da cruz de Cristo. Desejo, no entanto, em virtude de meu mnus, em nome de todosos homens crentes do mundo inteiro, dirigir-me queles de quem, de alguma maneira, depende aorganizao da vida social e pblica, pedindo-lhes ardentemente para respeitarem os direitos dareligio e da actividade da Igreja. No se pede nenhum privilgio, mas o respeito de um elementardireito. A actuao deste direito um dos fundamentais meios para se aquilatar do autnticoprogresso do homem em todos os regimes, em todas as sociedades e em todos os sistemas ouambientes.

    IV. A MISSO DA IGREJA E O DESTINO DO HOMEM

    18. A Igreja solicita pela vocao do homem em Cristo

    Esta vista de olhos, necessariamente sumria, da situao do homem no mundo contemporneo, faz-nos voltar ainda mais os nossos pensamentos e coraes para Jesus Cristo, para o mistrio daRedeno, no qual o problema do homem se acha inscrito com uma especial fora de verdade e deamor. Se Cristo se uniu de certo modo a cada homem , 115 a Igreja, penetrando no ntimo destemistrio, na sua linguagem rica e universal, est a viver tambm mais profundamente a prprianatureza e misso. No em vo que o Apstolo fala do Corpo de Cristo, que a Igreja. 116 Seeste Corpo Mstico de Cristo, depois, Povo de Deus como dir por seu turno o II Conclio doVaticano, baseando-se em toda a tradio bblica e patrstica isto quer dizer que todos os homensnele so penetrados por aquele sopro de vida que provm de Cristo. Deste modo, o voltar-se para ohomem, voltar-se para os seus reais problemas, para as suas esperanas e sofrimentos, para as suasconquistas e quedas, tambm faz com que a mesma Igreja como corpo, como organismo e comounidade social, perceba os mesmos impulsos divinos, as luzes e as foras do Esprito que provm deCristo crucificado e ressuscitado; e por isto precisamente que ela vive a sua vida. A Igreja no temoutra vida fora daquela que lhe d o seu Esposo e Senhor. De facto, precisamente porque Cristo noseu mistrio de Redeno se uniu a ela, a Igreja deve estar fortemente unida com cada um doshomens.

    Uma tal unio de Cristo com o homem em si mesma um mistrio, do qual nasce o homem novo ,chamado a participar na vida de Deus, 117 criado novamente em Cristo para a plenitude da graa eda verdade. 118 A unio de Cristo com o homem a fora e a nascente da fora, segundo a incisivaexpresso de So Joo no prlogo do seu Evangelho: O Verbo deu-lhes o poder de se tornaremfilhos de Deus . 119 esta fora que transforma interiormente o homem, qual princpio de uma vidanova que no fenece nem passa, mas dura para a vida eterna. 120 Esta vida, prometida eproporcionada a cada homem pelo Pai em Jesus Cristo, eterno e unignito Filho, encarnado enascido da Virgem Maria ao chegar a plenitude dos tempos , 121 o complemento final davocao do homem; , de alguma maneira, o cumprir-se daquele destino que, desde toda aeternidade, Deus lhe preparou. Este destino divino torna-se via, por sobre todos os enigmas, asincgnitas, as tortuosidades e as curvas, do destino humano no mundo temporal. Se, de facto,tudo isto, no obstante toda a riqueza da vida temporal, leva por inevitvel necessidade fronteira damorte e meta da destruio do corpo humano, apresenta-se-nos Cristo para alm desta meta: Eusou a ressurreio e a vida. Aquele que cr em Mim ... no morrer jamais . 122 Em Jesus Cristocrucificado, deposto no sepulcro e depois ressuscitado, brilha para ns a esperana da felizressurreio... a promessa da imortalidade futura , 123 em direco qual o homem caminha,atravs da morte do corpo, partilhando com tudo o que creado e visvel esta necessidade a queest sujeita a matria. Ns intentamos e procuramos aprofundar cada vez mais a linguagem destaverdade que o Redentor do homem encerrou na frase: O esprito que vivifica, a carne para nadaserve . 124 Estas palavras, malgrado as aparncias, exprimem a mais alta afirmao do homem: aafirmao do corpo, que o esprito vivifica!

  • A Igreja vive esta realidade, vive desta verdade sobre o homem, o que lhe permite transpor asfronteiras da temporaneidade e, ao mesmo tempo, pensar com particular amor e solicitude em tudoaquilo que, nas dimenses desta temporaneidade, incide na vida do homem, na vida do espritohumano, onde se afirma aquela inquietude perene, expressa nas palavras de Santo Agostinho: Fizestes-nos, Senhor, para Vs, e o nosso corao est inquieto, at que no repouse em Vs .125 Nesta inquietude criativa bate e pulsa aquilo que mais profundamente humano: a busca daverdade, a insacivel necessidade do bem, a fome da liberdade, a nostalgia do belo e a voz daconscincia. A Igreja, ao procurar ver o homem como que com os olhos do prprio Cristo ,torna-se cada vez mais cnscia de ser a guarda de um grande tesouro, que no lhe lcito dissipar,mas que deve continuamente aumentar. Com efeito, o Senhor Jesus disse: Quem no ajuntacomigo, dispersa . 126 Aquele tesouro da humanidade, enriquecido do inefvel mistrio da filiaodivina, 127 da graa de adopo como filhos 128 no Unignito Filho de Deus, mediante a qualdizemos a Deus Abb, Pai , 129 ao mesmo tempo uma fora potente que unifica a Igrejasobretudo por dentro e que d sentido a toda a sua actividade. Por tal fora a Igreja une-se com oEsprito de Cristo, com aquele Esprito Santo que o Redentor havia prometido e que comunicacontinuamente, e cuja descida, revelada no dia do Pentecostes, perdura sempre. Assim, no homemrevelam-se as foras do Esprito, 130 os dons do Esprito, 131 os frutos do Esprito Santo. 132 E aIgreja do nosso tempo parece repetir cada vez com maior fervor e com santa insistncia: Vinde,Esprito Santo! . Vinde! Vinde! Lavai o que se apresenta srdido! Regai o que est rido! Sarai oque est ferido! Abrandai o que rgido! Aquecei o que est frgido! Guiai o que se acha transviado!. 133

    Esta orao ao Esprito Santo, elevada precisamente com a inteno de obter o Esprito, aresposta a todos os materialismos da nossa poca. So estes que fazem nascer tantas formas deinsaciabilidade do corao humano. Esta splica faz-se ouvir de diversas partes e parece que frutificatambm de modos diversos. Poder-se- dizer que, nesta splica, a Igreja no est sozinha? Sim,pode-se dizer, porque a necessidade daquilo que espiritual exprimida tambm por pessoasque se encontram fora dos confins visveis da Igreja. 134 Ou no ser isto mesmo confirmado,talvez, por aquela verdade sobre a Igreja, posta em evidncia com tanta perspiccia pelo recenteConclio na Constituio dogmtica Lumen Gentium, naquela passagem em que ensina ser a Igreja sacramento, ou sinal, e instrumento da ntima unio com Deus e da unidade de todo o gnerohumano? . 135

    Esta invocao ao Esprito e pelo Esprito no outra coisa seno um constante introduzir-se naplena dimenso do mistrio da Redeno, no qual Cristo, unido ao Pai e com cada homem, noscomunica sem cessar esse mesmo Esprito que pe em ns os sentimentos do Filho e nos orientapara o Pai. 136 por isso que a Igreja da nossa poca poca particularmente faminta deEsprto, porque faminta de justia, de paz, de amor, de bondade, de fortaleza, de responsabilidade ede dignidade humana deve con centrar-se e reunir-se em torno de tal mistrio da Redeno,encontrando nele a luz e a fora indispensveis para a prpria misso. Com efeito, se o homem como dizamos em precedncia a via da vida quotidiana da Igreja, preciso que a mesma Igrejaesteja sempre consciente da dignidade da adopo divina que o homem alcana, em Cristo, pelagraa do Esprito Santo, 137 e da sua destinao graa e glria. 138

    Ao reflectir sempre de modo renovado sobre tudo isto, e aceitando-o com uma f cada vez maisconsciente e com um amor cada vez mais firme, a Igreja torna-se simultaneamente mais idnea paraaquele servio do homem, para o qual a chama Cristo Senhor, quando diz: O Filho do homem ...veio no para ser servido, mas para servir . 139 A Igreja exerce este seu ministrio, participando na trplice funo que prpria do seu mesmo Mestre e Redentor. Esta doutrina, com o seufundamento bblico, foi posta em plena luz pelo II Conclio do Vaticano, com grande vantagem paraa vida da Igreja. Quando, de facto, nos tornamos conscientes dessa participao na trplice missode Cristo, no seu trplice mnus sacerdotal, proftico e real 140 simultnea e paralelamentetornamo-nos mais conscientes tambm daquilo que deve servir a Igreja toda, como sociedade ecomunidade do Povo de Deus sobre a terra, compreendendo, alm disso, qual deva ser aparticipao de cada um de ns nesta misso e neste servio.

  • 19. A Igreja responsvel pela verdade

    Assim, luz da sagrada doutrina do II Conclio do Vaticano, a Igreja aparece frente a ns comosujeito social da responsabilidade pela verdade divina. Ouamos com profunda emoo o mesmoCristo, quando diz: " A palavra que vs ouvis no minha, do Pai, que me enviou ". 141 Nestaafirmao do nosso Mestre, no se adverte, porventura, aquela responsabilidade pela verdaderevelada, que propriedade do mesmo Deus, se at Ele, o Filho unignito que vive no seiodo Pai , 142 quando a transmite, como profeta e como mestre, sente necessidade de frisar bem queage em plena fidelidade sua divina fonte? A mesma fidelidade deve ser uma qualidade constitutivada f da Igreja, quer quando ela a professa, quer quando ela a ensina. A f como especfica virtudesobrenatural infundida no esprito humano, faz-nos participantes no conhecimento de Deus, emresposta sua Palavra revelada. Por isso se exige que a Igreja, quando professa e ensina a F estejaestritamente aderente verdade divina, 143 e que a mesma F se traduza em comportamentosvividos de obsquio consentneo razo. 144 O prprio Cristo, preocupado com esta fidelidade verdade divina, prometeu Igreja a particular assistncia do Esprito da verdade, concedeu o domda infalibilidade 145 queles a quem confiou o mandato de transmitir tal verdade e de a ensinar 146 doutrina esta que j havia sido claramente definida pelo I Conclio do Vaticano 147 e que,depois, foi repetida tambm pelo II Conclio do Vaticano 148 e dotou ainda todo o Povo deDeus de um part