Hierarquia e Disciplina Militar

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Estuda-se a liberdade de expressão em face da hierarquia e disciplina, em especial com fundamento na Constituição Federal, no Código Penal Militar, na Lei Federal n. 7.524/86 e em julgados. Introdução Este texto busca demonstrar que militares da reserva e agregados têm assegurada a liberdade de expressão e de manifestação de pensamento, embora com limitações constitucionais. Em situações específicas estão sujeitos aos rigores legais – transgressões disciplinares e/ou o crime militar da publicação ou crítica indevida. Trata-se da garantia reconhecida pela lei federal n. 7.524, de 17 de julho de 1986. E há reflexos, inclusive, nos depoimentos perante a Comissão Nacional da Verdade. 1. Liberdade de Expressão e de Manifestação de Pensamento A atual Constituição da República assegura a todos a liberdade de expressão em seus artigos 5º e 220, a saber: Art. 5º (...) IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; (...) IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; (...) Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. (...) § 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

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Estuda-se a liberdade de expresso em face da hierarquia e disciplina, em especial com fundamento na Constituio Federal, no Cdigo Penal Militar, na Lei Federal n. 7.524/86 e em julgados.IntroduoEste texto busca demonstrar que militares da reserva e agregados tm assegurada a liberdade de expresso e de manifestao de pensamento, embora com limitaes constitucionais. Em situaes especficas esto sujeitos aos rigores legais transgresses disciplinares e/ou o crime militar da publicao ou crtica indevida. Trata-se da garantia reconhecida pela lei federal n. 7.524, de 17 de julho de 1986. E h reflexos, inclusive, nos depoimentos perante a Comisso Nacional da Verdade.

1.Liberdade de Expresso e de Manifestao de PensamentoA atual Constituio da Repblica assegura a todos a liberdade de expresso em seus artigos 5 e 220, a saber:Art. 5(...)IV - livre a manifestao do pensamento, sendo vedado o anonimato;(...)IX - livre a expresso da atividade intelectual, artstica, cientfica e de comunicao, independentemente de censura ou licena;(...)Art. 220. A manifestao do pensamento, a criao, a expresso e a informao, sob qualquer forma, processo ou veculo no sofrero qualquer restrio, observado o disposto nesta Constituio.(...) 2 - vedada toda e qualquer censura de natureza poltica, ideolgica e artstica.

2. O Crime de Publicao ou Crtica IndevidaInicialmente, convm trazer o conceito de crime, nos ensinamentos do Dr. Jorge Csar de Assis[i]:Para Celso Delmanto, embora o CP [Cdigo Penal] no defina o que seja crime, devem ser apresentados os seus conceitos material e formal. Assim, no sentido material, crime a violao de um bem jurdico protegido penalmente; e no sentido formal, somente o comportamento humano positivo (ao) ou negativo (omisso) pode ser crime (1986: 19)No aspecto analtico, define-se crime como a ao tpica, antijurdica e culpvel.Neste sentido, o mestre Jorge Csar de Assis conceitua, de maneira bastante didtica[ii]:Ao a manifestao da vontade de um homem no mundo exterior (...)Antijuridicidade a contrariedade do fato com a ordem jurdica.Toda conduta tpica revela um indcio de antijuridicidade se no estiver amparada pela norma permissiva do art. 42 do Cdigo Penal Militar.Tipicidade a qualidade da ao. Toda ao que se ajustar a um tipo penal ser ao tpica.Tipo a descrio em abstrato do crime. Fato tpico o comportamento humano (positivo ou negativo) que provoca, em regra, um resultado, e previsto como infrao penal.Culpabilidade conceituada pelos finalistas como a reprovao da ordem jurdica em face de estar ligando o homem a um fato tpico e antijurdico. Em ltima anlise, a contradio entre a vontade do agente e a vontade da norma.Punibilidade apenas a consequncia jurdica do delito e no, uma sua caracterstica. (destaquei)Ainda, o Dr. Jorge Csar de Assis[iii] conceitua crime militar como toda violao acentuada ao dever militar e aos valores das instituies militares. J para o jurista Marcelo Uzeda de Faria[iv], crime militar aquele elencado no Cdigo Penal Militar. O fundamento est em que o Cdigo Penal Militar (CPM), institudo pelo decreto-lei federal n. 1.001, de 21 de outubro de 1969, e alteraes posteriores, no o define, prevalecendo o critrio objetivo ou ratione legis, combinado com o ratione loci (fato praticado em lugar sujeito administrao militar), ratione personae (o agente militar), ratione temporis (determinada poca) e ratione materiae (ato e sujeito militares) estabelecidos nos:- artigo 9 e artigos 136 a 354 do CPM crimes militares em tempo de paz; e- artigo 10 do CPM crimes militares em tempo de guerra, especialmente os artigos 355 a 410, incluindo os dos artigos 136 a 354 do CPM, e os crimes definidos em lei penal comum ou especial quando praticados em zona de efetivas operaes militares ou em territrio estrangeiro militarmente ocupado. luz da doutrina e do artigo 5, inciso LXI, da atual Carta Poltica, h classificaes dos crimes militares, como bem ensinam os Defensores Pblicos da Unio Marcelo Uzeda de Faria[v] e Ricardo Henrique Alves Giuliani[vi]. A de Clvis Bevilacqua divide-os em trs grupos: essencialmente militares (prprios); militares por compreenso normal da funo militar (imprprios); e os acidentalmente militares (praticados por civis). Outra divide em: crimes propriamente militares (previstos no CPM e sujeito ativo apenas o militar) e impropriamente militares (previstos tambm no CPM e sujeito ativo o civil ou o militar).O CPM cuida da excluso do crime no seguinte artigo:Art. 42. No h crime quando o agente pratica o fato:I Em estado de necessidade;II Em legtima defesa;III Em estrito cumprimento do dever legal;IV Em exerccio regular de direito.Pargrafo nico. No h igualmente crime quando o comandante de navio, aeronave ou praa de guerra, na iminncia de perigo ou grave calamidade, compele os subalternos, por meios violentos, a executar servios ou manobras urgentes, para salvar a unidade ou vidas, ou evitar o desnimo, o terror, a desordem, a rendio, a revolta ou o saque.Com a devida vnia, a antijuridicidade no se refere apenas ao artigo 42 supra, uma vez que, em comento ao caput do mencionado dispositivo legal, Dr. Jorge Csar de Assis[vii] ressalve que: A prpria lei penal, entretanto, prev determinadas causas de excluso da ilicitude; ou de excluso do crime, tambm chamadas de causas de justificao. Neste sentido, seguem os juristas lvaro Mayrink da Costa[viii] e Marcelo Uzeda de Faria[ix], embora Ricardo Henrique Alves Giuliani[x] limite as justificantes s estabelecidas no mencionado artigo 42.O Cdigo Penal Militar tipifica a seguinte infrao:Publicao ou crtica indevidaArt. 166. Publicar o militar ou assemelhado, sem licena, ato ou documento oficial, ou criticar pblicamente ato de seu superior ou assunto atinente disciplina militar, ou a qualquer resoluo do Govrno:Pena - deteno, de dois meses a um ano, se o fato no constitui crime mais grave.Em comento e citando acrdo de 1 de outubro de 1892, vm as linhas precisas de Jos da Silva Loureiro Neto[xi]:Publicar significa tornar pblico, notrio, divulgar. No caso, o agente, s o militar, torna pblico sem autorizao de seus superiores ato ou documento oficial, o que significa exclusivo e de interesse das Foras Armadas.A segunda parte do dispositivo refere-se a crtica praticada pelo militar.Criticar significa censurar; dizer mal de. No caso, o militar censura publicamente, ou seja, de modo a ser recebido por indeterminado nmero de pessoas, ato de seu superior ou assunto atinente disciplina militar, ou a qualquer resoluo do Governo.Citando acrdos do Tribunal de Justia Militar do Estado de Minas Gerais e do Superior Tribunal Militar, o Promotor de Justia Militar da Unio, Dr. Jorge Csar de Assis ensina[xii]:Para a primeira conduta publicar, sem licena h que considerar- se os reflexos danosos que podero advir de uma publicao no autorizada de ato ou documento oficial, relativo s Foras Armadas. que, estando previsto no captulo da insubordinao, as aes tipificadas no art. 166 so aquelas que afrontam a autoridade e a disciplina militares.A segunda conduta,criticar, revela um juzo de valor, uma meditao sobre o objeto da crtica. Sendo ato de superior, tem sentido amplo, abrangendo inclusive os dizem respeito vida privada. Consoante o Estatuto dos Militares, Lei 6.680/80, a hierarquia e a disciplina so a base institucional das Foras Armadas. A autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierrquico (art. 14).E mais; a disciplina e o respeito hierarquia devem ser mantidos em todas as circunstncias da vida entre militares da ativa, da reserva remunerada e reformados ( 3).(...)igualmente possvel, quando praticado por militar, a crtica a qualquer resoluo do governo.(...)Como a chefia dos Poderes Executivo Federal e Estadual, compete ao Presidente da Repblica e aos governadores, qualquer crtica, da parte de militares (federais ou estaduais) contra atos do governo, acaba por ferir a disciplina militar, objeto da tutela penal.O Superior Tribunal Militar (STM), na Apelao (FO) 0000023-40.2007.7.12.0012, em julgamento de 1 de julho de 2010, teve como relator e revisor, respectivamente, os Ministros Marcos Augusto Leal de Azevedo e Jos Colho Ferreira. Foi decidida a aplicao deste tipo penal, em relao greve dos controladores areos em 2005. Destaca-se da ementa desse importante julgado:EMENTA. APELAO. INCITAMENTO E PUBLICAO INDEVIDA. CONTROLADORES DE VOO. CINDACTA IV. CAOS AREO.Apelos concomitantes interpostos pelo Ministrio Pblico Militar e Defensoria Pblica da Unio. Aquele buscando a condenao dos acusados, nos termos da denncia, excetuando-se um, para quem buscava absolvio. Esta, visando a absolvio de todos os envolvidos.Inequvoca quebra dos princpios da hierarquia e disciplina decorrentes da conduta dos acusados que, buscando a desmilitarizao do sistema de controle de trfego areo, alm de articularem movimento de aquartelamento voluntrio e de greve de fome, em conjunto com outros controladores de voo de outros CINDACTAs, o que culminou em reunio na qual o comandante da unidade foi desrespeitado, foram imprensa escrita e permitiram publicar entrevista na qual discorriam a respeito da matria atinente disciplina militar.A conduta dos controladores no est protegida pela garantia da liberdade de expresso, j que tal princpio constitucional no absoluto, como qualquer princpio, e fica mitigado quando esto em jogo, como no caso, a hierarquia e a disciplina das Foras Armadas, vetores da defesa da soberania da Ptria, fundamento do Estado Democrtico de Direito.(...)Apelos da defesa e da acusao parcialmente procedentes.O crime de publicao ou crtica indevida (art. 166, CPM) crime militar prprio ou propriamente militar. Neste sentido, Dr. Jorge Csar de Assis[xiii] e Clio Lobo[xiv] (crime especial). Foi objeto de julgados do STJ e da Justia Militar.O Supremo Tribunal Federal, (STF) pronunciou-se acerca deste delito em duas oportunidades: no Inqurito 2.295-1-MG e no Habeas Corpus 106.808-RN. Sob a relatoria do Ministro Menezes Direito, em sesso de 23 de outubro de 2008, o inqurito foi arquivado, conforme pedido ministerial, em razo da imunidade material do ento deputado federal Jlio Csar Gomes dos Santos (artigo 53, caput, da atual Carta Magna). Em julgamento de 9 de abril de 2013, o Habeas Corpus teve como relator o Ministro Gilmar Ferreira Mendes. Destaca-se da ementa desse importante julgado:Habeas corpus. 2. Crime militar. Paciente denunciado porque teria praticado o delito de incitamento (art. 155 do CPM) e de publicao ou crtica indevida (art. 166 do CPM). 3. Indeferido o pedido de extenso da ordem concedida pelo STF ao corru no HC 95348, em razo de as situaes fticas no se confundirem. 4. Em que pese extensa pea acusatria, com vrios denunciados, no que diz respeito ao paciente, houve individualizao da conduta acoimada criminosa. 4. As condutas narradas na denncia no se subsumem ao tipo penal do art. 155 do COM porque em nenhum momento houve incitao ao descumprimento de ordem de superior hierrquico. 5. As condutas e episdios descritos na inicial acusatria tambm no se subsumem ao art. 166 do CPM, que tipifica o delito de publicao ou crtica indevida. 6. O direito plena liberdade de associao (art. 5, XVII, da CF) est intrinsecamente ligado aos preceitos constitucionais de proteo da dignidade da pessoa, de livre iniciativa, da autonomia da vontade e da liberdade de expresso. 7. Uma associao que deva pedir licena para criticar situaes de arbitrariedades ter sua atuao completamente esvaziada. 8. O juzo de tipicidade no se esgota na anlise de adequao ao tipo penal, pois exige a averiguao do alcance proibitivo da norma, no considerada isoladamente. A Constituio Federal pea fundamental anlise da adequao tpica. 8. Ordem concedida. (destaquei)Integrando o acrdo do remdio heroico na Suprema Corte Brasileira, o voto do relator Ministro Gilmar Mendes foi seguido por unanimidade pelos demais membros da Segunda Turma. Deste se pina:Neste ponto, resta analisar se as condutas descritas na inicial acusatria se amoldam ao delito descrito no art. 166 do Cdigo Penal Militar, que criminaliza a conduta de publicar o militar ou assemelhado, sem licena, ato ou documento oficial, ou criticar publicamente ato de seu superior ou assunto atinente disciplina militar, ou a qualquer resoluo do Governo.Com efeito, no h no caso concreto uma crtica a um ato especfico de um militar x ou y, tampouco a uma penalidade aplicada a um soldado w ou z. No contedo dos protestos descritos na denncia do Ministrio Pblico Militar, no se questiona uma ordem especfica. H somente queixas feitas, de forma genrica, por parte da associao APEB/RN e relativas a arbitrariedades supostamente praticadas no mbito do Exrcito.Conforme a acusao feita contra o paciente, a pgina eletrnica da APEB/RN na Internet usa as expresses rompantes e desmandos autoritrios, denominados no jargo militar de r-quero, questionando, inclusive, a violao de direitos constitucionais. Contudo, de tal publicao no se identifica afronta disciplina militar.No se ignora que, nos termos do art. 142 da Constituio Federal, as Foras Armadas so organizadas com base na hierarquia e na disciplina. Entretanto, disciplina e desmandos no se confundem. Quem critica o autoritarismo no est a criticar a disciplina.Frise-se, ainda, que a liberdade de associao presta-se a satisfazer necessidades vrias dos indivduos, aparecendo, ao constitucionalismo atual, como bsica para o estado democrtico de direito.Os indivduos se associam para serem ouvidos, concretizando o iderio da democracia participativa. Por essa razo, o direito de associao est intrinsecamente ligado aos preceitos constitucionais de proteo da dignidade da pessoa, de livre iniciativa, da autonomia da vontade e da garantia da liberdade de expresso.Uma associao que deva pedir licena para criticar situaes de arbitrariedade ter sua atuao completamente esvaziada;e toda dissoluo involuntria de associao depende de deciso judicial transitada em julgado (art. XIX, do art. 5 da CF).Nesse contexto, trago baila os ensinamentos de Eugnio Ral Zaffaroni e Jos Henrique Pierangelli (Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral, Editora Revista dos Tribunais, 1997, pg. 461), no sentido de que o juzo de tipicidade no um mero juzo de tipicidade legal, mas que exige um outro passo, que a comprovao da tipicidade conglobante, consistente na averiguao da proibio atravs da indagao do alcance proibitivo da norma, no considerada isoladamente, em sim conglobada na ordem normativa. Em suma, o tipo no pode proibir o que o direito ordena nem o que ele fomenta.Portanto, as condutas e episdios descritos na denncia no se subsumem ao artigo 166 do Cdigo Penal Militar que tipifica o delito de publicao ou crtica indevida.Tratam-se de decises esclarecedoras que tratam da hierarquia e da disciplina em face da liberdade de expresso a primeira versando sobre a imunidade de parlamentar por suas opinies, palavras e votos; a segunda, sobre a tipicidade conglobante, o direito de associao e a distino entre disciplina e desmando (autoritarismo).

3. Ressalva da Lei Federal n. 7.524, de 1986Originria do projeto de lei n. 267, de 13 de outubro de 1983 (n. 6.625, de 1985 na Cmara dos Deputados) do ento senador Itamar Franco, a lei federal n. 7.524, de 17 de julho de 1986, assegura:Art 1 Respeitados os limites estabelecidos na lei civil, facultado ao militar inativo, independentemente das disposies constantes dos Regulamentos Disciplinares das Foras Armadas, opinar livremente sobre assunto poltico, e externar pensamento e conceito ideolgico, filosfico ou relativo matria pertinente ao interesse pblico.Pargrafo nico. A faculdade assegurada neste artigo no se aplica aos assuntos de natureza militar de carter sigiloso e independe de filiao poltico-partidria.Art 2 O disposto nesta lei aplica-se ao militar agregado a que se refere a alnea b do 1 do art. 150 da Constituio Federal.Art 3 Esta lei entra em vigor na data de sua publicao.Art 4 Revogam-se as disposies em contrrio.O texto inicial era o seguinte:O Congresso Nacional decreta:Art. 1 Aos militares postos na reserva ou reformados no se aplicam os Regulamentos disciplinares das Foras Armadas.Art. 2 Esta lei entra em vigor na data de sua publicao.Art. 3 Revogam-se as disposies em contrrio.Como justificativa, o ento senador (antes de vir a tornar Vice-Presidente e Presidente da Repblica) aduzia:Com o presente projeto, objetivamos eliminar prtica existente em nossas Foras Armadas, que vem causando distores e, at, incentivando abusos, no respeitante execuo de certas normas disciplinares. De fato, quando o servidor, seja ele civil ou militar, passa para o regime de inatividade, embora alguns laos subjetivos de vinculao com o Estado se mantenham inalterados, as prerrogativas da cidadania, no podem sofrer restries, sob pena de converter-se o aposentado ou reformado em elemento marginalizado na conjuntura da participao social. Neste ponto, o militar, talvez por cedio costume j sem razo nos dias atuais, mantm-se vinculado a sistema disciplinar que invade e violenta as suas prerrogativas de cidadania, sobretudo os que incidem no campo da manifestao poltica. comum vermos, ainda hoje, a aplicao de sanes disciplinares a preeminentes figuras de militares, j afastados do servio ativo, pelo simples fato de, como cidados brasileiros, manifestarem-se sobre problemas polticos, econmicos e sociais, encaradas essas participaes como crticas ao poder dominante.Em verdade, essa ultrapassada praxe disciplinar s serve para enfatizar ainda mais como conotao poltica, nem sempre existente, intervenes ditadas unicamente pela inclinao patritica muito comum nos valorosos integrantes das nossas Foras Armadas. No vemos, pois, nenhuma razo para que se continue a aplicar sanes disciplinares a militares postos na reserva ou reformados, ainda porque, alm de condenvel qualquer cerceamento da livre e responsvel manifestao, pouqussimo efeito exercem esses pronunciamentos especificamente nos meios militares, apenas pelo simples fato de provirem de ex-integrantes das Foras Armadas. Na atualidade, o militar acompanha, como qualquer cidado prestante, o desenvolvimento da conjuntura nacional, seja atravs do acesso que tem s fontes de pesquisas nos prprios setores militares, seno, tambm, por intermdio dos meios de comunicao em geral, formando as suas convices da sntese desses acontecimentos. No seria, portanto, a simples opinio pessoal de um militar reformado - ainda que desfrutasse do maior prestgio no mbito das Foras Armadas - que viria alterar arraigadas convices, atingindo a unidade dos setores militares e ameaando a segurana nacional.Assim sendo, sugerimos, com o presente projeto, a revogao das normas que prescrevem a aplicao disciplinar aos militares postos na reserva ou reformados.Iniciada no Senado Federal, esse projeto de lei encontrou muita resistncia nesta Casa, mas, depois, na Casa Revisora e na Presidncia da Repblica, prosperou.A proposio recebeu pareceres desfavorveis das Comisses de Constituio e Justia, por inconvenincia, e de Segurana Nacional com fundamento no Regimento Disciplinar do Exrcito, e foi arquivada. Em questo de ordem formulada ao Presidente do Senado Jos Fragelli em plenrio, Itamar Franco citou a situao especfica do Senador Csar Cals de Oliveira Filho (coronel reformado do Exrcito), com recurso e apoio dos senadores Gasto Mller, Humberto Lucena e Murilo Badar como lderes do PMDB e PDS. Houve recurso do relator da Comisso de Segurana Nacional (senador Milton Cabral). Houve duas votaes dessa questo de ordem e desses recursos: a primeira por 16 a 13 e 4 abstenes; a segunda, 19 a 15 e 3 abstenes. O projeto foi desarquivado pela Mesa Diretora. Posteriormente, no Plenrio do Senado foi aprovado sob forte oposio de Milton Cabral. Em turno suplementar, Itamar Franco apresentou substitutivo (ou emenda 1), acrescendo s justificativas a igualdade verdadeira consiste em tratar desigualmente os desiguais, com pareceres favorveis das Comisses de Constituio e Justia (Helvdio Nunes) e de Segurana Nacional (Virglio Tvora), restando prejudicada a proposio inicial.Enviado Cmara dos Deputados, o projeto recebeu pareceres favorveis das Comisses de Constituio e Justia e de Segurana Nacional dos relatores deputados Nilson Gibson e Joo Batista Fagundes, sendo remetido ao Poder Executivo.Por meio da mensagem n. 14, de 1986, o projeto de lei foi restitudo ao Congresso Nacional com a sano. A lei n. 7.524, de 1986, foi subscrita pelo ento Presidente Jos Sarney e pelos ministros da Marinha, Exrcito e Aeronutica, nesta ordem, Henrique Saboia, Lenidas Pires Gonalves e Octvio Jlio Moreira Lima.Na evoluo da redemocratizao do Pas (1979-1988), esta norma assegura a liberdade de expresso e de manifestao de pensamento. No buscava apenas resolver um caso concreto, mas executar a isonomia de militares inativos ou agregados com civis.A lei n. 7.524, de 17 de julho de 1986, aplica-se aos militares inativos e aos agregados, garantindo-lhes:- a liberdade de opinio para assunto poltico; e- externar pensamento e conceito ideolgico, filosfico ou relativo matria de interesse pblico;Por isso, so perfeitamente lcitos (no configurando transgresso disciplinar ou crime militar) os textos e artigos assinados por praas ou oficiais inativos ou agregados, em publicaes de grande circulao, cuidando de temas como a valorizao das Foras Armadas e a importncia da Justia Militar da Unio e das Justias Militares dos Estados.A exceo da exceo est nos assuntos militares de carter sigiloso. Por exemplo, detalhes militares e estratgicos (nmero de efetivos, deslocamentos, desenvolvimento do submarino nuclear, avio KC-390, Sisfron, entre outros) e a atuao do Brasil na Guerra das Malvinas (1982) no podem ser de conhecimento pblico, por envolverem risco soberania do Pas.Importante destacar que o exerccio da liberdade de opinio e de externar pensamento e conceito deve ser realizado com responsabilidade e bom senso. No pode configurar ilcitos, como calnia, difamao, injria, incitao ao crime, entre outros. Aqui no devem ter lugar a baderna, o vandalismo, o terrorismo e o golpe de Estado.A lei federal n. 7.524, de 1986, no possui questionamento no Supremo Tribunal Federal. No Superior Tribunal de Justia, no recurso em habeas corpus n. 1.834-0/DF, em julgamento pela 6 Turma em sesso de 5 de maio de 1992, sob a relatoria do Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, foi negado e provimento ao apelo, baseado nessa lei de 1986, mas foi admitido habeas corpus para controle de legalidade de transgresso disciplinar e seus pressupostos. No se ventilou diretamente no Superior Tribunal Militar.