Hildegard de Bingen - A Consciência Inspirada No Século XII - Régine Pernoud

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égine  P ernoud H il d e g a r d  de  B in g e n A consciência inspirada do século XII Tradução de ELOÁ JACOBINA r ter Rio de Janeiro — 1996

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  • R g in e P e r n o u d

    H ildegard de B ingenA conscincia inspirada do sculo XII

    Traduo de ELO JACOBINA

    rterRio de Janeiro 1996

  • P532h

    96-0016

    Ttulo original HILDEGARDE DE BINGEN

    Conscience inspire du XIT sicle ditions du Rocher, 1994

    Direitos para a lngua portuguesa reservados com exclusividade para o Brasil

    EDITORA ROCCO LTDA.Rua Rodrigo Silva, 26 5? andar 20011-040 Rio de Janeiro, RJ Tel.: 507-2000 - Fax: 507-2244

    Telex: 38462 EDRC BR Printed in Brazil/Impresso no Brasil

    preparao de originais ELISABETH LISSOVSKY

    reviso FTIMA FADEL

    CARLOS NOUGU WALTER VERSSIMO

    CEP-Brasil Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    Pernoud, Rgine, 1909-Hildegard de Bingen: a conscincia inspirada do

    sculo XII / Rgine Pernoud; traduo de Elo Jacobina. Rio de Janeiro; Rocco, 1996

    (Gnero Plural)Traduo de: Hildegarde de Bingen : conscience inspire

    du XIIe sicle

    1.Hildegard, Saint, 1098-1179. 2. Biografia crist. I. Ttulo. II. Srie.

    CDD - 922.2 CDU - 92(Hildegard.)

  • SUMRIO

    Introduo............................................................................... 7O mundo no ano de 1098 ....................................................... 9Hildegard revelada.................................................................. 17O Scivias................................................................................. 31A vida no mosteiro de Bingen............................................... 44O imperador e a monja.......................................................... 55O universo e o homem nas vises de Hildegard.................. 69As sutilezas naturais............................................................... 83Viagens e prdicas.................................................................. 94As ltimas lutas e a msica sacra......................................... 118Bibliografia............................................................................ 135

  • INTRODUO

    Em 1982 era lanado o Livro das obras divinas: vises, de Hildegard de Bingen (Albin Michel, ed.), apresentado e traduzido por Bernard Gorceix o trabalho mais notvel, o mais profundo que j apareceu em francs sobre a abadessa renana. Continha um dos escritos da visionria, precedido de um arguto comentrio sobre o conjunto de sua obra. O autor, infelizmente, morreria na ocasio do lanamento uma perda irreparvel para todos os que se interessam por uma figura de mulher ainda pouco conhecida entre ns.

    Fundamental para o conhecimento do sculo XII, esta monja das margens do Reno que, num eco voz de so Bernardo, faz ouvir uma voz de mulher, musical, literalmente a parte musical o que melhor se conhece hoje das obras de Hildegard , e de alto alcance. Fundamental porque interveio junto s personalidades mais marcantes do seu tempo, papas e imperadores, e sob muitos aspectos, como dizia Bernard Gorceix, ela representa a conscincia espiritual e poltica desse tempo.

    Paradoxalmente, porm, por seus trabalhos sobre medicina que ela comea agora a conquistar o reconhecimento pblico. Trabalhos singulares para a poca, pois so os nicos tratados de medicina ou do que chamamos de cincias naturais escritos no Ocidente no sculo XII: a medicina ento era mais praticada na escola judaica de Crdoba, a de Maimnides, retomada em parte pelos rabes. Outra faceta, surpreendente, desta monja, para a curiosidade universal.

    Mas a parte mais fascinante de sua obra sobretudo a sua teologia csmica, viso do universo ao mesmo tempo ampla e minuciosa, fulgurante olhar atento ao mundo, que as magnfi

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    cas miniaturas do manuscrito de Lucca nos permitem apreender em todo seu esplendor.

    O presente trabalho, longe de constituir uma biografia de Hildegard, procura apenas focalizar os vrios plos, pode-se dizer, de seu pensamento e de sua atividade. Por meio do estudo de sua correspondncia, ocupa-se particularmente dos sermes que ela pronunciou em diversas catedrais, e no das menores: Trves, Colnia, Bambert, Mayence... Foi vrias vezes chamada a pregarem pblico, e os clrigos que a escutavam pediam em seguida que ela lhes transmitisse, por escrito, os sermes que havia pronunciado. O que neste nosso sculo XX talvez seja a nota que mais surpreenda.

    Como que uma figura to extraordinria e to rica levou tanto tempo para despertar parcialmente a ateno, o interesse que merece? E o que nos convence da falta de curiosidade intelectual, cujos indcios esto em nossa cultura geral. Nos Estados Unidos, na Sua e, naturalmente, na Alemanha, Hildegard de Bingen bastante conhecida hoje, seja qual for o ngulo de abordagem. Aqui, procuramos trazer alguns traos essenciais de sua obra e de sua pessoa, desejando que outros sejam atrados por ela, como ns o fomos, e venham a se empenhar nos trabalhos de envergadura que seria necessrio desenvolver para torn-la mais prxima de ns; e que um pblico mais amplo possa usufruir tudo o que ela nos tem a dizer.

  • O MUNDO NO ANO DE 1098

    1098. Um vasto frmito percorre o mundo conhecido, Ocidente e Oriente reunidos: esse mundo se ps em marcha, literalmente falando. No por ordem de Csar, como nos tempos antigos, quando armadas inteiras eram mobilizadas para defender as fronteiras entre romanidade e barbrie. No, espontaneamente, multides se mobilizaram ao apelo do papa na catedral de Clermont, no dia da festa de inverno de so Martinho, 18 de novembro 1095. Urbano II havia exortado os cristos a socorrer seus irmos do Oriente e a reconquistar Jerusalm, a Cidade Santa.

    O decorrer do sculo s trouxera notcias deplorveis dessas regies orientais. Pouco a pouco foram tomando conhecimento de que o lugar santo por excelncia, o tmulo do Cristo, local, portanto, de sua Ressurreio, a Anastasis,* havia sido destrudo por ordem do califa Hakim: destruio efetivada em 1009 precisamente a 18 de outubro, as crnicas rabes anotaram cuidadosamente a data com a determinao de no se deixar nenhum vestgio da rotunda Outrora erguida naquele stio pelo Imperador Constantino. Contudo, as peregrinaes da cristandade aos lugares santos no haviam cessado completamente, apenas fizeram-se mais raras, e os que regressavam contavam toda a sorte de horrores sobre as exaes e perseguies de que eram vtimas cristos e judeus. Ao longo dos anos, a situao s fez piorar. Os turcos seldjcidas, convertidos ao islamismo, lanaram-se em vagas sobre a sia Menor e varre

    * Palavra grega que significa ressurreio e expressa a idia da ressurreio de Cristo, ou de sua descida aos limbos, em diversos movimentos cristos. (N. da T.)

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    ram os bizantinos, que, em Malazkirt, tentavam abat-los. Aps o qu, atiraram-se sobre as populaes armnias, que massacraram selvagemente, e destruram a capital, Ani. Os srios no receberam melhor tratamento e a cidade de Antiquia, a despeito de suas defesas imponentes, caiu nas mos dos turcos, em 1084. Multiplicavam-se os apelos de socorro por sobre esse Mediterrneo, onde os cronistas rabes se compraziam em repetir que os ocidentais j no podiam fazer flutuar uma prancha.

    A resposta ao apelo do papa ultrapassou todas as expectativas e desencadeou, atravs da Europa, um movimento de grande amplitude. Viam-se no somente cavalheiros e senhores, grandes ou pequenos, carregando a cruz, mas tambm uma massa de camponeses e citadinos que, precipitando-se em uma aventura cuja extenso mal calculavam, na esteira de alguns pregadores ambulantes (dos quais o mais famoso, na Frana, fazia-se chamar Pedro, o Eremita), partiam em peregrinao prontos a lutar. mpeto extraordinrio, fatalmente desordenado, que no poderia levar seno derrota, depois de progredir e sobreviver custa de pilhagem. Ao contrrio, fica-se surpreso com o esprito de organizao demonstrado pelos principais senhores, designados por seus pares para assumir a frente do movimento: como na escolha de trs itinerrios diferentes para a travessia da Europa, com reunio geral marcada em Constantinopla. Nenhum chefe de Estado, rei ou imperador parte com eles. O que j seria suficiente para distinguir o que chamamos de cruzadas (o termo, lembremos, s aparece no sculo XVII) dos empreendimentos de conquista que, em seguida, vo se suceder na Europa.

    Uma longa marcha: dura trs anos. Em 1098, os cruzados detiveram-se em frente cidade de Antiquia, cujo contorno, dizem, comportava trezentas e sessenta torres. E preciso um ano de esforos e de inmeros episdios em que se misturam a astcia e a coragem, para que a conquistem. Ora, j nesse mesmo ano de 1098, os cruzados em marcha comeam a construir, em Tarso, uma catedral dedicada a so Paulo, originrio dessa

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    cidade. Tocamos a num outro ponto caracterstico desse mundo em ebulio: a paixo de construir. Clermont, cidade em que se realizou o concilio, conta com cinqenta e quatro igrejas por ocasio da estada do papa Urbano II. Ele, alis, percorreu um verdadeiro circuito de arte romnica em pleno surgimento, pois nessa oportunidade procede dedicao da igreja de La-Chaise- Dieu, consagra o altar-mor da imensa abacial de Cluny, que acaba de ser construda e que, at a reconstruo de So Pedro de Roma, continuar sendo o mais vasto edifcio da cristandade; em seguida, vai consagrar a igreja de Saint-Flour, a abacial de Saint- Graud dAurillac, a cadetral de Saint-Etienne de Limoges e a abacial de Saint-Sauveur, na mesma cidade; depois, os novos altares da abadia de Saint-Sauveur de Charroux e de Saint- Hilaire de Poitiers, e ainda consagra solenemente a colegial de Saint-Semin de Toulouse, a catedral de Manguelonne, a de Nmes e um altar na baslica novssima de Saint-Gilles de Gard para citar apenas as principais etapas dessa viagem, que os amantes da arte romnica, em nossos dias, podem seguir risca. Essa febre de construir par da expanso urbana na mesma poca; ampliam-se as cidades antigas, as novas se multiplicam, e isso vai durar mais de duzentos anos. A Idade Mdia dos castelos tambm a das cidades, sem falar nos mosteiros que surgem por toda parte. A reforma de Cluny, em 910, deu incio a um extraordinrio desenvolvimento da vida monstica. Parecia que as invases dos duzentos anos precedentes tinham aniquilado a bela cristandade dos sculos VI e VII, mas ela renascia ainda mais bela das runas. Depois da reforma de Cluny, a de Robert de Molesme, com a fundao da abadia de Cster, precisamente nesse ano de 1098, vai renovar, em profundidade, a observncia das regras de so Bento e permitir um prodigioso avano na vida monstica com o impulso que ser dado, pouco depois, por so Bernardo. Os cartuxos, fundados por so Bruno em 1104, e mais tarde os premonstratenses, fundados em 1120 por iniciativa de so Norberto, manifestaro intensamente o ardor espiritual que anima essa surpreendente poca.

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    li nesse mundo em pleno salto que se situa, em data difcil de precisar melhor, o nascimento de uma menina, em uma famlia pertencente nobreza local do Palatinado. Seus pais, Hildebert e Mathilde (Mechtilde, em alemo), so provavelmente originrios de Bermersheim, no condado de Spanheim. Ela o dcimo filho do casal e recebe no batismo o nome de Hildegard. Nascimento, sem alarde, numa famlia cuja nobreza no se traduz em grandes feitos; nascimento, contudo, que se vai revelar singularmente de acordo com a poca rica, efervescente, dessa virada de sculo. No ano seguinte, em 15 de julho de 1099, os cruzados vo tomar Jerusalm.

    Uma menina como as outras. No de todo, porm, pois desde sua primeira infncia causa, por vezes, espanto sua volta. Numa anedota contada tardiamente (nos autos do seu processo de canonizao) ela aparece exclamando diante de sua ama: V s que bezerrinho bonito, dentro desta vaca. Ele branco, com manchas no peito, nas patas e nas costas. Quando o bezerro nasce, algum tempo depois, constata-se que exatamente conforme a descrio. Hildegard tinha, ento, cinco anos. E antes mesmo diz ela: No terceiro ano de minha existncia vi uma luz tal que minhalma estremeceu, mas por causa de minha pouca idade eu nada pude dizer. E prossegue: No oitavo ano de minha existncia, fui ofertada a Deus em oferenda espiritual e, at o meu dcimo quinto ano, vi muitas coisas e s vezes eu as dizia com toda a simplicidade, de modo que os que me escutavam se perguntavam de onde vinha e o que seria aquilo. E eu mesma me espantava porque do que via em minhalma nem ao menos tinha a viso exterior, e vendo que isso no acontecia a nenhuma outra pessoa, escondi quanto pude a viso que tinha em minhalma. Ignorei muitas coisas do mundo exterior, porque estive doente com freqncia, ainda no tempo m que minha me me amamen- tava e mais tarde, o que prejudicou meu desenvolvimento e me impediu de ganhar foras.

    Hildegard perguntou se a ama via o mesmo que ela, Hildegard; e tendo recebido resposta negativa, tomou-se de pavor e no mais ousou revelar suas vises a quem quer que fosse. No entanto, s vezes, no curso da conversa, ela falava de

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    fatos que iam acontecer e evocava, quando possuda por uma viso, realidades que pareciam estranhas aos que a escutavam. Quando esmaecia a fora da viso que a fizera revelar noes muito alm de sua idade, ela sentia vergonha, chorava freqentemente, e calava-se tanto quanto possvel. Temendo que lhe perguntassem de onde lhe vinha tal conhecimento, no ousava dizer mais nada.

    E de pensar que esta criana, de sade delicada, teria o dom da dupla viso, que ora surpreendia, ora inquietava o seu meio. Alguns psiclogos, atualmente, reconhecem nas crianas uma possibilidade de intuio superior dos adultos. No caso de Hildegard, parece que desde a primeira infncia suas capacidades excepcionais teriam impressionado seus familiares. Tambm em nossa poca, a me de Thrse Martin, a irmzinha Teresa do Menino Jesus, muito cedo percebeu na filha certa predestinao.

    Quando Hildegard fez oito anos, seus pais a confiaram a uma jovem de famlia nobre, Jutta, filha do conde de Spanheim, para ser educada. Jutta levava uma vida de reclusa no mosteiro de Disibodenberg, perto de Alzey, onde moravam, e tomou a seu cargo a meninazinha que demonstrava to espantosas aptides. Era uso bastante comum, na poca, confiar uma criana, menino ou menina, a um mosteiro, para receber instruo. Esse em que Jutta de Spanheim abraara a vida religiosa, era um mosteiro dplice,* fundado trs ou quatro sculos antes por um desses monges irlandeses que, seguindo so Colombano, deixaram sua ilha para semear literalmente a Europa, onde multiplicaram suas fundaes. Algumas, como a de Saint-Gall, perto do lago de Constana, sobreviveram sob diferentes formas, at nossos dias. Mais tarde, alis, Hildegard vai escrever a vida do santo fundador, Disibod.

    Jutta encarregou-se, pois, da educao desta aluna, pouco corriqueira, que lhe confiavam. Os bigrafos de Hildegard contam que Jutta lhe ensinou os salmos e a tocar o decacordo,

    * Mosteiro que abriga monges em uma parte e monjas na outra. (N. da T.)

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    instrumento com que se lhes acompanhava o canto. Na poca, toda educao comeava pelo canto, e pelo canto dos salmos. Aprender a ler dizia-se aprender o saltrio. E provvel que se aplicassem a reconhecer nos manuscritos bblicos o texto dos salmos q ue haviam memorizado: uma espcie de mtodo global, pois as palavras j eram conhecidas, e ler e escrever consistia em reconhecer e depois reproduzir, nas tabuinhas, os vocbulos registrados na memria. Hildegard declarou mais tarde que, se aprendera o texto do saltrio, do Evangelho e dos principais livros do Antigo e do Novo Testamento, no lhe ensinaram a interpretao das palavras, nem a diviso das slabas, nem o estudo de casos e tempos. Jutta teria negligenciado um pouco a gramtica, dando ateno, principalmente, aos textos.

    A sade da aluna continuava frgil. Mais tarde seu bigrafo a descrever no estilo hagiogrfico que se usava ento: Porque os vasos de argila so experimentados na fornalha, e a coragem se aperfeioa na enfermidade, as dores de sade no lhe faltaram e manifestaram-se desde a pequena infncia, numerosas e quase continuadas, de modo que raramente se mantinha sobre seus ps. Hildegard abriu-se com Jutta, que se aconselhou com um monge do mosteiro de So Disibod, chamado Volmar. Esse monge no tarda a se tornar o conselheiro, depois o assistente e o amigo de Hildegard, durante quase trinta anos. E ainda vai fazer as vezes de secretrio quando, como veremos, a necessidade o exigir.

    Uma infncia doentia e recolhida, contudo iluminada pelas vises guardadas em segredo, assim foi para Hildegard o incio de sua vida nos limites do mosteiro dplice do Disibodenberg, no vale do Nahe. Quando alcanou a idade requerida, desejou tomar o hbito, tornar-se religiosa entre as que viviam no mosteiro parecem ter sido bem pouco numerosas sob a gide de Jutta. Devia ter ento quatorze ou quinze anos. A maioridade, para as meninas, era atingida aos doze anos (um pouco mais tarde para os rapazes, quatorze anos). Como sua infncia, a adolescncia de Hildegard recolhida: a de tda monja que segue a regra beneditina.

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    Sabe-se mais ou menos como transcorre a vida dos monges beneditinos no interior dos conventos: o dia marcado pelas horas cannicas o dia e a noite, pois que, salvo razes particulares ou problemas de sade, a noite interrompida pelo ofcio das matinas, cantadas pouco depois da meia-noite. A aurora, ou seja, o nascer do sol, para monges e monjas o momento do canto das laudes, seguido do ofcio da prima (primeira hora); vem geralmente a seguir a celebrao da Eucaristia, a missa, depois da qual, na maiorpartedos conventos, tem lugar o desjejum; segue-se o ofcio da tera, que designa, como diz o nome, a terceira hora a partir do nascer do sol (entre 8 e 9 horas, conforme a estao) e um tempo de trabalho at a hora da sexta (de 11 horas a meio-dia), que precede a refeio. O tempo livre at a nona (geralmente 14 ou 15 horas), quando se retoma o trabalho, manual ou intelectual, coletivo ou individual; a hora das vsperas designa o ofcio do fim do dia (18 s 19 horas), seguido da refeio da tarde e de um tempo livre, o recreio, quase sempre usufrudo em comum. Costuma haver em seguida uma reunio em captulo, assemblia de todas as religiosas na presena da abadessa; aps o qu, ao sol poente, a hora do ltimo canto de ofcio, o das completas; ento o silncio deve reinar no mosteiro para permitir a todos o repouso.

    Ao longo dessas diversas horas, o conjunto do saltrio os cento e cinqenta salmos tero sido cantados no espao de uma semana. Prece, meditao, trabalho encadeiam-se no decorrer do dia com os preparativos pertinentes ao desenrolar do ano litrgico: tempo de penitncia, como a Quaresma e o Advento, festas cujas principais, como se sabe, so o Natal e a Pscoa, sem falar nas dos santos, numerosas, sendo a mais importante a festa da Virgem, a 2 de fevereiro, dia da Candelria, quando se acendem os crios para celebrar a claridade nova do Cristo, luz das naes, que Sua Me apresenta no Templo.

    Jutta morre em 1136, e parece que o nmero de religiosas congregadas em torno dela no mosteiro dplice teria aumentado nesse nterim. Imediatamente elas elegem Hildegard como

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    abadessa. Prestes a atingir seu quadragsimo ano, ainda no sabe que se aproxima do acontecimento decisivo que vai lan- la num rumo totalmente novo.

  • HILDEGARD REVELADA

    Eis que no quadragsimo terceiro ano de meu curso temporal, tda trmula de emoo, vi um magno esplendor e ouvi uma voz do cu que me dizia: O homem frgil, cinza da cinza, podrido da podrido, diz e escreve o que vs e ouves. Mas, porque s tmido para falar e pouco hbil para expor e pouco instrudo para escrever estas coisas, diz e escreve, no segundo a boca do homem, nem segundo a inteligncia de uma inveno humana, nem segundo a vontade de compor humanamente, mas segundo o que vs e ouves de celestes maravilhas vindas de Deus. Repete-as tais como te so ditas, maneira de quem ouve as palavras daquele que o instrui, e expe-nas segundo a inteno da palavra tal como ela intencionada, tal como te mostrada e tal como te prescrita. Assim, pois, tu, homem, diz o que vs e ouves. Isto, no tua maneira, nem maneira de outro homem, mas segundo a vontade dAquele que sabe, v e dispe todas as coisas no segredo de Seus Mistrios. Trata-se de uma ordem decisiva, na qual se especifica o papel de Hildegard, identificado ao dos profetas do Antigo Testamento, que so a boca de Deus, no fazendo mais do que transmitir o que recebem, sem a preocupao de dar a suas palavras a forma de um discurso nem de ordenar segundo as regras da lgica ou da dialtica aquilo que devem transmitir.

    Hildegard insiste: E de novo ouvi uma voz do cu dizendo: Diz, portanto, estas maravilhas e escreve-as tais como te so ensinadas e ditas. Isto se deu em 1141, no milsimo, centsimo, quadragsimo primeiro ano da Encarnao de Jesus Cristo, Filho de Deus, quando eu tinha quarenta e dois anos e sete meses. Uma luz de fogo, de um brilho extremo, vinda do cu

  • IK RGINE PERNOUD

    abateu-se sobre meu crebro todo e todo o meu corpo e todo o meu peito, como uma chama, que todavia no queimava, mas inflamava com o seu calor, do modo como o sol esquenta onde dardeja seus raios. E continua: Eu havia sentido a fora de mistrios e vises desde minha jovem idade, isto , desde o tempo em que eu tinha cerca de cinco anos, de modo admirvel, em mim mesma, at agora; entretanto eu no a tinha revelado a nenhum homem, salvo a alguns poucos homens religiosos, que viviam no mesmo estado em que vivia eu mesma. De outra forma eu teria guardado um tranqilo silncio todo esse tempo, at o momento em que Deus quis manifestar-me isto por Sua graa. Em seguida ela d detalhes aos quais deveremos voltar: No tive as vises em estado de sonolncia, nem dormindo, nem em xtase, nem por meus olhos corporais ou por meus ouvidos humanos exteriores; eu no as percebi em lugares escondidos, mas estando acordada que eu as vejo com meus olhos e com minhas orelhas humanas, interiormente; simplesmente, em esprito, eu as recebo em lugares abertos, segundo a vontade de Deus.

    No sem hesitaes que se recebe semelhante mensagem. Hildegard fala de sua ansiedade e insiste no carter muito ntido, imperioso, pode-se dizer, da ordem que lhe dirigida: Como se deu isto? E difcil ao homem carnal sab-lo, mas o fato que, passada a idade da juventude, tendo chegado a esta maturidade em que se adquire uma fora perfeita, ouvi uma voz do cu dizendo: Eu sou a luz viva que ilumina o que obscuro. O homem que Eu quis assim e que introduzi admiravelmente, segundo me aprouve, em grandes maravilhas, Eu o estabeleci alm desses homens antigos que puderam ver em Mim numerosos segredos. Mas Eu o derrubei para que ele no se erga em qualquer exaltao do seu esprito. O mundo no encontrou nele nem alegrias, nem deleites, nem incentivos nessas coisas que Ihe so prprias, pois Eu subtra dele toda audcia e determinao, ficando medroso e apavorado nos seus sofrimentos. Porque ele sofreu na medula e nas veias de sua carne, tendo o esprito e o sentido contrados, e sofrendo grandes paixes corporais, de tal modo que nenhuma segurana pde permanecer nele, mas ele

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    pde se considerar culpado de tudo o que lhe concernia. Porque Eu enclausurei as runas de seu corao por medo de que seu esprito se elevasse de orgulho e de glria v, e para que ele sentisse em todas as coisas medos e dores, mais do que alegria e exultao. Assim, em Meu amor, ele descobriu, em seu esprito, o que lhe abriria o caminho da salvao. E encontrou algum e o amou, reconhecendo nele um homem fiel e semelhante a si, nessa parte da obra que me diz respeito; isso a fim de que Minhas maravilhas sejam reveladas. E esse homem no se recusou dobrando-se sobre ele, mas indo a ele na elevao da humildade, e, na inteno da boa vontade que encontrou, inclinou-se com muitos suspiros. Tu, pois, homem, que recebes, no na inquietude de uma decepo mas na pureza do esprito simples, o que te dirigido pela manifestao das coisas escondidas, escreve o que vs e ouves.

    Hildegard prossegue: Mas eu, ainda que tenha visto e ouvido essas coisas, porm porque duvido e porque tenho m opinio, e por causa da diversidade das palavras humanas, todo esse tempo, no por obstinao, mas por causa da humildade, recusei-me a escrever, at que fui forada no leito de dores em que tombei atingida por um flagelo de Deus, de tal modo que fui afligida de mltiplas enfermidades; eu havia procurado e encontrado, graas aos testemunhos de uma jovem nobre e de bons costumes e desse homem que eu havia consultado e procurado em segredo, como eu disse, entreguei-me ao trabalho da escrita. Enquanto o fazia sentindo a grande profundidade da exposio de livros, como eu disse, levantei-me da doena e recuperei as foras. Apenas pude levar a cabo este trabalho consagrando-lhe dez anos. Nos dias de Henrique, arcebispo de Mayence, e de Conrado, rei dos romanos, e de Cunon, abade de So Disibod, no tempo do papa Eugnio, aconteceram estas vises e estas palavras. E eu as disse e escrevi, no segundo uma descoberta do meu corao ou de qualquer outro homem, mas tal como ouvi e percebi os secretos mistrios de Deus. E de novo eu ouvi uma voz do cu dizer-me: Clama, pois, e assim escreve.

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    A maneira como se exprime a referida viso bastante surpreendente para ns. Logo de incio, pelo emprego do termo homo, homem, no sentido de criatura humana. O que pressupe que Hildegard foi chamada a ser realmente profeta, boca de Deus repetindo palavras que lhe so ditadas. E isso ela sustentar por toda a vida, afirmando que nada diz por si mesma, nada que venha dela, e que apenas transmite o que lhe diz a Luz viva.

    Esse prefcio do primeiro livro de Hildegard anuncia claramente o novo rumo de sua vida. Uma virada que descrita e datada com preciso; ela vai levar dez anos para escrever essa primeira obra, que intitula Scivias, Conhece os caminhos (do Senhor). O trabalho se estende, portanto, de 1141 a 1151, aproximadamente. Mas no ser sua nica ocupao, longe disso; nesse espao de tempo ela vai realizar vrios outros trabalhos, dando incio exuberante atividade que a caracteriza.

    Alguns manuscritos de Hildegard so ilustrados, entre eles o magnfico volume de sua terceira obra, conservado na Biblioteca Governativa de Lucca. Contm dez belas ilustraes de pgina inteira que reproduzem as vises da monja. Sob a imagem principal, num pequeno quadrado, uma iluminura representa a prpria Hildegard, o rosto erguido para a imagem que derrama sobre sua cabea uma chuva incandescente. Sentada em uma cadeira de espaldar alto, ela tem nas mos as tabuinhas, decerto para anotar rapidamente a viso que Ihe aparece e poder descrev-la depois. Veste uma tnica preta, encoberta por um manto marrom que deixa entrever uma orla branca onde as mangas envolvem os punhos das duas mos, a que segura as tabuinhas e a que escreve. As tabuinhas, de cera negra, so de formato absolutamente comum, e vem-se duas colunas em cada uma. Em frente a Hildegard e voltado para ela, est sentado um monge. Ele escreve sobre um cdex de pergaminho e segurando um tira-linhas, como era costume na poca, enquanto maneja sua pena de ganso. Esse monge idoso sem dvida Volmar. Em algumas ilustraes, em especial a primeira do manuscrito de Lucca, h uma jovem em p, postada atrs de Hildegard. Est vestida com uma longa tnica preta, a cabea coberta por uma coifa da qual se desprende um vu, tambm

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    preto, que lhe cai de lado. Trata-se provavelmente de Richardis, a religiosa do convento de Bingen, a quem Hildegard dizia amar "como Paulo amou Timteo.

    Tal a imagem que daqui em diante teremos de Hildegard. O essencial de sua vida, agora, receber e transmitir o que lhe diz a Luz viva. O monge Volmar, seu confessor e, na certa por intermdio de Jutta, seu primeiro confidente, ser seu secretrio at falecer em 1165. Deve ter sido por ele que os monges do mosteiro dplice de Disidodenberg foram informados da nova atividade da abadessa e das vises que ela recebia. O que no podia deixar de inquietar as autoridades eclesisticas, no caso, o prprio abade do mosteiro, Cunon; ele comunica o fato ao arcebispo de Mayence, Henri, responsvel pela diocese a que pertence o mosteiro. Apesar dos ecos sem dvida favorveis quanto ao contedo das vises, tanto um como outro experimentam alguma perplexidade. Ora, justamente nesse final do ano de 1147, ouve-se dizer que o papa Eugnio III vai reunir um concilio em Reims e, em preparao ao concilio, far realizar um snodo em Treves. Por essa poca, os escritos de Hildegard constituem o incio de sua primeira obra, o Scivias. o momento de submeter aos prelados reunidos e ao prprio papa o trabalho da religiosa visionria.

    Grandioso cenrio para um snodo, a cidade de Treves, que, hoje em dia gostam de lembrar, a mais antiga da Alemanha. A Porta Nigra, mundialmente famosa, ainda existe para comprovar. Ela faz parte das fortificaes erguidas por Constantino, que residiu nessa cidade at 316 com sua me, Helena, santa Helena no calendrio cristo. Naquela poca, Treves era importante metrpole do Imprio Romano. Ativo centro de comunicaes, ponto de confluncia das legies que ali acantonavam para conter os assaltos dos brbaros nas fronteiras e porto fluvial, na margem direita do Mosela, Treves permaneceu residncia imperial at o fim do sculo IV. No magnfico edifcio que hoje a catedral, ainda se distingue o plano de massa do Dom erguido por Constantino, que constitui o ncleo do edifcio. Duas vezes destrudo (pelos francos, no sculo VII, e pelos normandos, no final do sculo IX), fora reconstrudo em

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    1037. A vinda do papa seria a oportunidade de engrandec-lo com um novo coro, a leste. Nessa mesma ocasio, o arcebispo Hillin reavia o que ainda hoje chamamos de Aula palatina, antigo palcio de Constantino, ento em runas, do qual pelo menos uma parte foi restaurada para hospedar os prelados presentes ao snodo.

    Para se avaliar a importncia desse snodo, preciso ter em mente as infindveis discrdias ocorridas em terra germnica entre papas e imperadores, porque estes no se resignavam a abdicar de suas prerrogativas e dos hbitos adquiridos na poca carolngia, de intervir na nomeao dos bispos e dos abades dos mosteiros. A reforma promovida pelo enrgico Gregrio VII s fora aceita uns vinte anos antes, em 1123, quando do acordo que se denominou Concordata de Worms. Ora, o papa que convocou esse snodo um cisterciense, formado em Clairvaux pelo prprio so Bernardo; isso significa que se trata de um pontfice cujo primeiro cuidado no exerccio de suas funes ainda a santidade. O concilio que vai reunir em Reims ter por objetivo confirmar mais uma vez o esforo de reforma da Igreja, manifestado a partir de Gregrio VII.

    E, pois, uma assemblia importante essa que se rene em Treves no final do ano de 1147. A imponente assistncia, bispos, cardeais, abades de mosteiros entre eles o prprio Bernard de Clairvaux, personalidade incontestvel no seio da cristandade, forte o bastante para apaziguar os distrbios provocados alguns anos antes pelo cisma de Anacleto , presidida pelo papa de Roma, em pessoa, forma um contraste impressionante com a magra figura da pequena abadessa de um obscuro convento das margens do Reno, que se diz agraciada por vises divinas. A pedido do arcebispo Henri, de Mayence, e do abade Cunon, do So Disibod, o papa ordena a dois prelados que visitem pessoalmente Hildegard e procedam a um inqurito local sobre sua conduta, seus hbitos de vida e seus escritos: o bispo de Verdun, Alberon ou Auberon, e seu preboste, Aldebert.

    E seguem os dois para So Disibod. O resultado do inqurito satisfatrio e eles levam a Treves a parte j redigida do Scivias. Acontecer ento uma cena extraordinria que, uns

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    trezentos anos mais tarde, vai encher de admirao o abade de Spanheim, Jean Trithme um erudito famoso que reuniu mais de dois mil manuscritos em sua biblioteca e relatou a vida de Hildegard, aps ter consultado todas as fontes a ela referentes. O papa, diz ele, leu em pblico, diante de muitos assistentes, os escritos da virgem; ele prprio, fazendo as vezes de leitor, exps uma parte muito importante da obra. Todos os que ouviram os termos dessa leitura renderam, cheios de admirao, graas a Deus todo-poderoso. O papa lendo diante dessa enorme assemblia a obra da pequena abadessa, at ento s conhecida pelos que com ela conviviam, com efeito um espetculo surpreendente, e se atribui a so Bernardo a concluso que foi a da assistncia inteira: E preciso impedir que se apague uma to admirvel luz animada de inspirao divina.

    Foi em seguida a essa sesso que o prprio Eugnio III escreveu a Hildegard. Essa carta encabea a classificao da correspondncia que da em diante vai constituir um captulo de considervel importncia nas atividades da monja. E a primeira de uma longa lista: a edio da Patrologia Latina, que no completa, comporta 135 cartas, cada uma com sua respectiva resposta, e no ocupa menos de 240 colunas impressas em tipos muito midos. Ns admiramos, filha, escreve o papa, e admiramos alm do que se pode crer, que Deus mostre em nosso tempo novos milagres, e isso quando ele derrama sobre ti o Seu Esprito, a ponto de se dizer que vs, compreendes e expes numerosos segredos. Isso soubemos por pessoas verdicas que dizem te haver visto e ouvido. Mas o que deveremos dizer a esse propsito ns, que possumos a chave da cincia para podermos abrir e fechar e que por inpcia neglicenciamos prudentemente faz-lo? Felicitamos-te, pois, e nos dirigimos a tua dileo, para que saibas que Deus resiste aos soberbos e d sua graa aos humildes [Tiago, IV]. Conserva, pois, e guarda essa graa que est em ti, de modo que possas sentir o que te trazido em esprito, e relat-lo com toda a prudncia, cada vez que o ouvires. [...] Abre tua boca e eu a encherei [salmo 70]. Para terminar, ele diz: O que nos fizeste saber sobre o local que previste para ti, em esprito, que o seja, com nossa permisso e

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    nossa bno e a de teu bispo, de modo que vivas ali regularmente, com tuas irms, segundo a regra de so Bento, na clausura desse lugar.

    Assim se exprime o papa Eugnio III dirigindo-se a Hildegard. O ltimo pargrafo exige um esclarecimento: em algumas palavras o papa d sua aprovao transferncia das dezoito religiosas congregadas em torno da abadessa do mosteiro de So Disibod para essa localidade, em Bingen, que ela tornar famosa. De fato, desde algum tempo tornava-se evidente que sua comunidade j no cabia no convento. Era preciso pensar em outra instalao. Hildegard falou com o abade e com os frades sobre esse lugar que, dizia, o Esprito Santo lhe indicara. Tratava-se do Rupertsberg, situado alis a pouca distncia de So Disibod vinte e cinco a trinta quilmetros , na confluncia do Reno com o Nahe, em Bingerbrck, perto do pequeno porto de Bingen, no Reno (tomado e fortificado por Drusus, quando da ocupao romana no final do sculo I antes de Cristo).

    A transferncia no ocorreu sem dificuldades. Os monges de So Disibod aceitavam mal a sada das religiosas, que de fato desmerecia o dplice mosteiro. Hildegard nunca tinha visto o Rupertsberg, para onde desejava se mudar um outeiro que h muito levava o nome de so Rupert, o Confessor, que ali estabelecera domiclio por direito patrimonial, ali vivera com sua me, Berta, e ali fora exumado. Seguiu-se um demorado conflito, marcado por incidentes em que o maravilhoso no tardou a se misturar histria. Entre os monges, principalmente um certo Arnold movia implacvel oposio partida das religiosas e incitava os outros a criar obstculo. Ento, certo dia, ele afetado por um tumor na lngua, a ponto de no poder fechar a boca nem articular palavra. Exprimindo-se bem ou mal por sinais, faz-se conduzir igreja de So Rupert, onde promete ao santo no mais se opor criao do novo mosteiro e, pelo contrrio, contribuir para isso, com seus meios. Imediatamente ele recobra a sade e o primeiro a preparar a construo dos prdios, a arrancar as vinhas onde seriam erguidas as casas para receber as religiosas.

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    Hildegard, entretanto, estava por sua vez de cama, doente, insensvel e pesada como uma pedra. Foram contar ao abade, que, incrdulo, se esforou para lhe levantar a cabea ou vir-la de um lado para o outro, sem nada conseguir. Estupefato com o que o redator da Vida de Hildegard chamou de um milagre inslito, o abade Cunon compreendeu que a vontade de Deus se expressava dessa maneira e acabou consentindo na partida, que ainda precisava da aprovao dos cnegos da igreja de Mayence que no a negaram. Assim, a Virgem do Senhor conseguiu morar com suas irms nesse oratrio de So Rupert e nas casas ao redor, onde fundou o novo mosteiro. Fundao que dependia do conde Bernard de Hildesheim, e ele concordou. Alm disso, como vimos, o projeto tinha sido aprovado pelo prprio papa.

    A mudana das monjas deu-se em meio afluncia popular: os de Bingen, cidade vizinha, acorreram em grande contentamento, transbordando-se em louvores sua chegada, enquanto Hildegard e as dezoito religiosas manifestavam sua alegria dando graas ao Senhor. Foi preciso iar a abadessa num cavalo e sustent-la dos dois lados, durante todo o trajeto at o Rupertsberg. Assim chegada, ela recobrou as foras e fechou um acordo satisfatrio com os frades do So Disibod.

    O convento do Rupertsberg, vtima das invases suecas do sculo XVII, est hoje completamente em runas. Das fundaes da abadessa resta apenas a segunda, o convento de Eibingen, na margem direita do Reno. nico sobrevivente s destruies suecas, e francesas tambm, que vitimaram a regio. Vrias vezes reconstrudo, ainda se pode ver o tmulo de Hildegard, bem como os mosaicos modernos inspirados nas vises da monja.

    Vamos nos demorar um instante nesses lugares predestinados. Trata-se de uma regio excepcionalmente bela, que inspirou sempre os poetas, em particular os do movimento alemo do sculo XIX. Pelas duas margens do rio, de Boppard a Wiesbaden, ecoam nomes sugestivos entrelaados a toda a sorte de lendas e lembranas histricas. Lendas geralmente tardias, como a da Maseturm, a torre dos ratos, que se ergue sobre uma ilha

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    rochosa em frente a Rupertsberg. Contam que um certo Hatto, bispo de Mayence, em tempos de penria, tinha acumulado reservas de cereais na torre e, exasperado com os lamentos dos pobres que o atormentavam, mandou tranc-los num celeiro ao qual mandou tocar fogo. Esto ouvindo os silvos dos meus ratos?, perguntava, escutando os gritos dos pobres. Nessa mesma noite, bandos de ratos invadiram seu palcio; ele se atirou no Reno tentando escapar, mas os ratos o perseguiram e o devoraram vivo. E uma variante da lenda famosa do tocador de flautas que atraa os ratos graas ao som das rias mgicas que tocava; aps ter livrado, assim, uma cidade de seus roedores, recusaram-se a pagar o preo combinado pelo servio; ele volta e, com o canto de sua flauta, atrai as crianas da cidade, que se afogam no rio.

    Um pouco adiante, em Sankt-Goarshausen, na margem direita, ergue-se o rochedo de Lorelei, que o poema de Heine celebrizou. Lorelei inseparvel da poesia alem do comeo do sculo XIX. Perto dele encontra-se um outro rochedo, em que a lenda sempre v sete donzelas que o deus do rio enfeitiou.

    Ao lado dessas histrias amenas ou trgicas, os vinhedos do Reno, presentes em toda parte, fizeram a fama no s da velha cidade de Lorsch como a de Rdesheim, onde existe ainda hoje uma profuso de tabernas e cafs ao ar livre; e um museu do vinho num castelo fortificado do sculo X (Niederbuch). A abadia beneditina de Eberbach, um pouco mais longe, a alguma distncia de Wiesbaden, fundada no sculo XII, logo se tornou o principal centro vincola da Alemanha, graas s tcnicas dos cistercienses, que foram, na Idade Mdia, notveis experts em todos os domnios da agricultura. Os vinhos do lugar ainda so famosos, enquanto a igreja, o claustro, o dormitrio s atraem turistas.

    Ainda perto de Rdesheim, assinalemos de passagem os vinhos tintos de Assmannshausen, uma singularidade da regio.

    Regio que, a despeito das destruies, continua eriada de torres e castelos. As vezes, uma nica torre de relgio, como em Burg Rheinfels, que traz lembrana uma das mais poderosas fortalezas que dominaram o vale do Reno; outras vezes, uma

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    torre fortificada, como a de Bacharach, que inspirou Guillaume Appolinaire. Muitas vezes, reconstrues modernas de torres antigas, como em Burg Sooneck, ou em Burg Lahneck, ainda na margem direita; e tambm milagre! , a alguns metros desta ltima, a torre de Marksburg, que data do sculo XIII e a nica que ficou intacta. E ainda os castelos, as igrejas, como Braubach, do sculo XIII, ou Oestrich, do sculo XII ( verdade que com uma grande restaurao na Renascena). Assim, de uma margem a outra, por uma centena de quilmetros, as lembranas do passado tecem, numa atmosfera ao mesmo tempo medieval e romntica, um painel excepcional de arte e encantamento para a histria de santa Hildegard e suas companheiras. No se pode separar esse ambiente das obras da visionria; est de acordo com a grandeza das revelaes que recebia da Luz viva que a habitava.

    A instalao de Hildegard e das religiosas em Rupertsberg ocorreu por volta de 1148-50. Ela vai escrever as biografias dos santos padroeiros dos dois conventos em que sua comunidade foi sucessivamente implantada. So Disibod, o irlands que, no sculo VI, foi se estabelecer nas margens do Reno com, digamos, trs companheiros, e deles se tornou abade sem por isso deixar de ser eremita, continuou a viver at sua morte, em torno do ano 700, no isolamento, s se reunindo com seus monges para ler o ofcio. Ele fazia parte dessa espcie de imensa cruzada, ou migrao, de irlandeses que, no curso da Idade Mdia, deixaram sua ilha bem-amada e, por esprito de abnegao, foram morar de preferncia em lugares desertos, onde levavam vida contemplativa. Mais ou menos na mesma poca, so Gall fundava, perto dali, o convento que resistiu at nossos dias, junto ao lago de Constana. Quanto a so Rupert (ou Robert), era um franco, alis aparentado da grande famlia dos reis merovngios. Em 696, foi bispo de Worms; expulso pelos pagos, ainda numerosos na regio, encontra refgio em Regensburg (Ratisbonne), onde funda uma comunidade em torno da qual logo nascer uma cidade, que nada menos que Salzbourg. E volta, finalmente, a sua diocese de Worms para

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    morrer, em 718, tendo sido exumado, como dissemos, em Rupertsberg.

    Essas duas biografias no constituem mais do que uma atividade acessria na vida de Hildegard, to plena, por sinal; elas recordam, entretanto, a implantao dos dois mosteiros em que sucessivamente transcorreram sua vida, suas preces, suas vises, antes que ela fundasse um terceiro, o de Eibingen, perto de Rdesheim, dessa vez na margem direita do Reno. Fundao que data, muito provavelmente, de 1165.

    E preciso considerar o dia-a-dia em Rupertsberg, entre os vinhedos da margem do Reno, num mosteiro ainda em obras ou pelo menos em fase de arrumao, uma vez que Hildegard e suas companheiras se instalaram em acomodaes provisrias que s sero concludas no decorrer dos anos seguintes. E a isso, com certeza, que alude uma passagem de sua Vida (captulo III) onde ela conta que, aps um perodo de doena, tomou conscincia de que precisava, com meu esprito confortado, cuidar de minhas filhas, no s de suas necessidades corporais como das de suas almas, segundo o que foi determinado por meus mestres o que se refere sem dvida a seu confessor ou simplesmente regra beneditina. Algumas monjas demonstravam, de fato, lassido e desencorajamento. Eu via com minha viso verdadeira, com muita inquietao, como os espritos de bronze [maus espritos] combatiam contra ns. Via que esses mesmos espritos atacavam algumas de minhas nobres filhas por meio de vaidades diversas e as retinham aprisionadas como em uma rede. Ento, instruda por Deus, eu as instru e as reuni e provi de palavras da Santa Escritura e da disciplina da regra com boas palestras. Mas algumas entre elas olhavam-me com maus olhos, atacavam-me s escondidas com palavras, dizendo que no podiam suportar o duro regulamento da disciplina da regra qual eu queria constrang-las. Mas Deus me trouxe consolao em outras boas e corretas irms, que me assistiram em todo meu sofrimento, tal como se fez por Suzana [personagem bblica], que Deus livrou dos falsos testemunhos.

    E Hildegard acrescenta: Apesar de toda a fadiga com atribulaes desse gnero, que me debilitaram, pude, todavia,

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    levar a bom termo, pela graa de Deus, O livro dos mritos da vida, que me fora divinamente revelado. As voltas com tais dificuldades, tanto de ordem material como devido prpria conduta das religiosas sob sua responsabilidade, nem por isso Hildegard persevera menos, em Rupertsberg, na tarefa que lhe cabia: a redao de sua segunda obra, O livro dos mritos da vida.

    Esta, alis, no era sua nica atividade, pois provvel que suas produes musicais a tenham ocupado durante todo o curso de sua existncia. Quanto s duas obras que tratam da medicina e das cincias naturais, no h nada nos relatos biogrficos que indique a poca em que foram realizadas. E j no possvel imaginar a vida das monjas e da prpria Hildegard sem considerar os visitantes que desde ento se aglomeravam em torno de Bingen. A populao local acolheu-a com grande exultao e divinos louvores, mas no somente dos arredores que afluem os visitantes. Como observou Bernard Gorceix, citando a biografia de Hildegard: Dir-se-ia que aps o snodo de Treves o mundo catlico se ps em movimento [...] mesmo das regies mais distantes chegavam peregrinos a cavalo e a p.

    Um desses visitantes despertou particularmente a ateno dos bigrafos da santa ainda que no citem seu nome (livro II, captulo III): O Senhor no somente a assistiu [a abadessa] nas dores das doenas e nos ataques dos demnios, mas tambm quando ela teve de sofrer o ataque dos homens; e Deus modificou para melhor o corao de seus adversrios, como ela mesma contou a propsito da converso de um filsofo que a princpio era hostil, no s a ela mas tambm a Deus, e no qual em seguida se operou uma transformao dirigida pela mo do Altssimo. Esse filsofo, cujo nome no mencionado, talvez fosse um sbio, em todo caso, um no-crente e ctico em relao a essa monja de quem se gabavam as luzes. Esse filsofo, cumulado de riquezas, depois de ter duvidado por muito tempo do que eu tinha visto, veio finalmente a ns e adornou nossa morada de prdios, de benfeitorias e de outras coisas muitssimo necessrias; com o que nossas almas se regozijaram, porque Deus no as havia deixado no esquecimento. Aps um exame minucioso,

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    mas esclarecido, perguntou quais eram e onde estavam os escritos desta viso e terminou por acreditar plenamente na inspirao divina. Ele, que antes havia exprimido seu desprezo com palavras cheias de malignidade, tendo feito Deus muito pela justia em seu corao, voltou-se em nossa direo com grandes bnos: da mesma forma que Deus afogou o fara no mar Vermelho, pois este queria pegar os filhos de Israel. Na admirao desta mudana, muitos acreditaram mais e Deus, por este homem sbio, fez descer sobre ns Sua bno [...] por isso o chamamos nosso pai. Ele, que antes se havia considerado prncipe, por seu nome, pediu para ser sepultado em nossa casa; e assim foi feito.

    Ao contrrio desse incrdulo, afinal convencido, muita gente vinha procurar junto abadessa a paz do corao ou a cura do corpo. Os bigrafos de Hildegard enumeram os diversos casos que pareciam, ento, miraculosos aos olhos de todos e que so, com certeza, menos convincentes ao leitor de hoje do que a enorme correspondncia por meio da qual ela dispensa seus conselhos, e at admoestaes, a todos os tipos de autoridade, fossem espirituais ou temporais. Mas sem dvida, para compreender a razo e o alcance da influncia de uma simples religiosa das margens do Reno sobre o mundo tempestuoso que a rodeia, melhor fazer como o filsofo que ela menciona e ir diretamente a seu primeiro trabalho. Trabalho que recebeu a aprovao pontifcia, assim como a de so Bernardo o Scivias.

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    impossvel, evidentemente, precisar que passagem do Scivias foi lida pelo papa diante do snodo de Treves. Pelo menos sabemos que se trata dos primeiros captulos da obra, os que j estavam redigidos em 1147, porquanto a obra inteira s foi concluda em 1151.0 Scivias compreende trs livros: o primeiro descreve seis vises de Hildegard, seguidas de comentrios feitos por ela; o segundo, sete vises, e o terceiro, treze. A ltima viso do terceiro livro termina em uma espcie de pea de teatro, ou melhor, de pera, onde as virtudes so personificadas e sofrem ataques dos demnios; o que mais tarde Hildegard vai retomar numa obra musical, denominada Ordo virtutum.

    Sem uma certeza, que sempre nos faltar, quanto passagem lida pelo papa, podemos escolher a terceira viso do primeiro livro do Scivias, muito caracterstica do tom que a autora manter da por diante, ou seja, em todo o conjunto de sua obra.

    Vi uma esfera imensa, redonda e cheia de sombra, tendo uma forma oval menos larga no topo, mais ampla no centro, retrada na base; tendo na parte exterior um crculo de luz cintilante e embaixo um invlucro tenebroso. E nesse crculo de chamas havia um globo abrasado, to grande que iluminava toda a esfera. Acima dele, trs estrelas ordenadas em fila amparavam esse globo em sua atividade gnea por medo de que ele tombasse pouco a pouco. E s vezes esse globo subia mais alto e dava mais luz, de tal modo que podia lanar mais longe seus raios de chama. E depois, s vezes descia to baixo, que o frio ficava mais intenso porque ele havia retirado sua chama.

    Mas dessa fonte de chamas que circundava a esfera o vento saa com seus turbilhes, e do invlucro tenebroso que envolvia

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    a fonte de chamas, um outro vento, com seus turbilhes, rugia e se espalhava por toda a esfera. Nesse mesmo invlucro, havia um fogo tenebroso que inspirava to grande horror, que eu no podia olh-lo, e que, cheio de tumultos, de tempestades e repleto de pedras agudas, pequenas e grandes, agitava esse invlucro com toda a fora. E, enquanto ele fazia ouvir sua crepitao, o crculo luminoso e os ventos e o ar ficavam agitados de tal maneira, que os fulgores precediam o prprio estrondo, porque o fogo sentia primeiro a comoo que o tumulto produzia; mas sobre esse mesmo invlucro o cu era purssimo e nele no havia nuvem alguma.

    E nesse mesmo cu eu distinguia um globo de fogo ardente de certa magnitude, e acima dele, duas estrelas, ostensivamente colocadas, que o detinham para que ele no excedesse o limite de seu curso. E nesse mesmo cu muitas outras esferas luminosas estavam colocadas por toda a parte, entre as quais o prprio globo, que, ao transbordar um pouco, enviava sua luz por instantes; e, recorrendo ao primeiro fogo do globo abrasado, restaurava sua chama e a enviava de novo a essas mesmas esferas.

    Mas desse mesmo cu saa um sopro impetuoso de vento com seus turbilhes, que se espalhavam por toda a esfera celeste. Sob esse mesmo cu, eu avistava o ar mido sob uma nuvem que se expandia por todos os lados, estendendo essa umidade a toda a esfera. E estando acumulada essa umidade, uma chuva sbita caiu com muitssimo rudo. E, quando ela extravasou, suavemente uma chuva fina caiu com levssimo rumor. Ento um sopro com seus turbilhes saiu para se espalhar por toda a esfera. E no meio de todos esses elementos havia um globo arenoso de imensa extenso, circundado pelos mesmos elementos, de tal modo que ele no podia se dissipar nem num sentido nem no outro. E enquanto esses mesmos elementos com os diversos sopros lutavam juntos, eles constrangiam com sua fora o globo arenoso a se mover um pouco. E vi entre o Aquilo e o Oriente (o norte e o leste) como que uma grande montanha que mantinha sombras tenebrosas em direo a Aquilo e muita luz em direo ao Oriente. [...]

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    E ouvi de novo uma voz do cu, que dizia: Deus, que fez todas as coisas por Sua vontade, criou-as para conhecimento e honra de Seu nome. No somente para mostrar nelas as coisas visveis e temporais, mas para manifestar nelas as coisas invisveis e eternas. O que demonstrado pela viso que contemplas.

    A seguir Hildegard explica essa viso. Ela, o objeto descrito no incio a esfera redonda e sombria , sinal de Deus. E comenta: Primitivamente os homens eram rudes e simples em seus costumes; depois, na Antiga e na Nova Lei, tornaram-se mais instrudos e se afligiram e se molestaram mutuamente. Mas no final dos sculos tero de sofrer muitos reveses por seu endurecimento. [...]

    E assinala que o invlucro de sombra que envolve a chama designa os que esto fora da f. Nessa chama, o globo de um fogo cintilante, de uma tal magnitude que ilumina toda a esfera mostra pelo esplendor de sua claridade o que est em Deus Pai, seu Filho nico inefvel, o sol de justia abrasado de ardente caridade, possuidor de uma to magna glria que toda criatura iluminada pela claridade de sua luz. E o globo de fogo s vezes se inclina mais para baixo [...] para significar que o prprio Filho nico de Deus, nascido de uma Virgem, desceu misericordiosamente misria dos homens, suportou todas as deficincias corporais e deixou o mundo para voltar a Seu Pai. [...] O que quer dizer: os filhos da Igreja, tendo recebido o Filho de Deus na cincia interior de seus coraes, a santidade de Seu corpo elevou-se pela fora de Sua divindade e, num milagre mstico, a noite do secreto mistrio O arrebatou para escond-Lo aos olhos mortais, porque os elementos estavam a Seu servio.

    Em seguida ela esclarece que um dos sopros de vento sinal de Deus, que enche o universo de Sua onipotncia, e que o outro sopro, impetuoso, que faz fria com seus turbilhes, vem da clera de Satans, de onde sai a maldade renomada [...] que se espalha em todos os sentidos da esfera porque, nos sculos, os rumores teis e inteis se misturam de diversas maneiras entre os povos. Significa que o homicdio se mistura avareza, embriaguez, s mais cruis perversidades.

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    Mas, acrescenta ela, sobre esse invlucro o cu purssimo e sem vu porque sob os embustes do antigo enganador a f luminosa resplandece [...] Ela no vem dela mesma, mas est fundada em Cristo. E no cu vs um globo de fogo ardente, de grande extenso, que designa verdadeiramente a Igreja unida na f, como demonstra essa brancura de inocente claridade, que forma uma aurola de glria; e acima dela, duas estrelas distintamente colocadas [...] mostram que dois Testamentos, o da antiga e o da nova autoridade, conduzem a Igreja. [...]

    Sob esse mesmo cu, vs o ar mido e, embaixo, uma nuvem branca que se estende em todos os sentidos difundindo a umidade por toda a esfera. a imagem do batismo desvelando ao universo inteiro a fonte de salvao para os crentes. [...] E dele tambm sai um sopro, com seus turbilhes, que se espalha por toda a esfera, porque, desde a difuso do batismo, que trouxe a salvao aos crentes, a verdadeira renomada, propagando-se pelas palavras doutos discursos , penetrou o mundo inteiro [...] entre os povos que renunciaram infidelidade para abraar a f catlica.

    Enfim, o globo arenoso designa o homem e o mundo criado para o seu uso. Aqui o comentrio de Hildegard se faz prece: O Deus, que fizestes admiravelmente todas as coisas, Vs coroastes o homem com a coroa de ouro da inteligncia; e o revestistes com a soberba vestimenta da beleza vsivel; e assim o colocastes, como um prncipe, acima de Vossas obras perfeitas, que dispusestes com justia e bondade entre Vossas criaturas. Porque outorgastes ao homem dignidades maiores e mais admirveis do que s outras criaturas. Momento de contemplao, em que Hildegard exprime um sentimento que, alis, se repete em sua obra: o maravilhamento ante a beleza da criao, sentimento familiar poca em que ela vive, o mesmo que admiravelmente experimentado e expresso na obra de um Hugo de Saint-Victor: Deus, diz ele, no quis somente que o mundo fosse, mas que fosse belo e magnfico.

    Um outro aspecto intervm a seguir, quando a visionria esclarece o que significa a grande montanha que se ergue entre o Aquilo, lugar de trevas, e o Oriente, lugar de luz. Aqui

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    evocada a queda do homem pela horrvel mentira do esprito maligno que causa aos condenados as mltiplas misrias da danao. E lembra essa espcie de homens que Me tentam de modo opinitico com sua arte perversa, perscrutando a criatura feita para seu servio e pedindo que lhes mostre, segundo suas vontades, o que eles querem saber. Ser que podem, com as especulaes de sua arte, prolongar ou abreviar o tempo de vida fixado pelo Criador? Decerto no o podem fazer nem por um dia nem por uma hora. Ou ento desviar a predestinao de Deus? De modo algum. Mas, s vezes Eu permito que essas criaturas vos demonstrem vossas paixes e seus sinais distintivos, porque elas Me temem como seu Deus. [...] O insensatos, quando Me votais ao esquecimento, sem vontade de retornar a Mim nem Me adorar, e olhais a criatura para saber o que ela vos vaticina, ento renunciais a Mim obstinadamente e honrais a criatura enferma, de preferncia a vosso Criador. O que condenar todas as experincias de adivinhao. E prossegue: Mas s vezes as estrelas, com a Minha permisso, manifestam-se aos homens por sinais, como mostrado por Meu Filho no Evangelho, quando Ele diz: Haver sinais no sol, na lua e nas estrelas. O que quer dizer: pela claridade dessas estrelas os homens sero iluminados; e os tempos dos tempos sero demonstrados por sua evoluo. Assim, nos tempos ltimos, perodos lamentveis e perigosos manifestar-se-o nelas, com Minha permisso, de tal sorte que os raios do sol, o esplendor da lua e a claridade das estrelas desaparecero, s vezes, a fim de comover o corao dos homens.

    Em seguida a visionria toma como exemplo a estrela que guiou os Magos para mostrar que, se falso que o homem tenha uma estrela particular para dispor de sua vida, como o povo imbecil, que se engana, se esfora por acreditar, todavia essa estrela resplandeceu porque Meu Filho nico nasceu da gravidez de uma Virgem sem pecado. Mas essa estrela no trouxe nenhuma ajuda a Meu Filho seno a de anunciar fielmente ao povo Sua encarnao, porque todas as estrelas e criaturas que O temem cumprem somente a Minha vontade. Elas no tm absolutamente outra significao, de espcie alguma, para qual

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    quer criatura que seja. Assim ela combate a astrologia e toda a sorte de adivinhao, tudo o que desvia a piedade do homem e seu sentido do mistrio divino: No quero que perscrutes as estrelas, o fogo ou as aves, ou qualquer outra criatura que seja, sobre as causas futuras. E, prosseguindo nos erros e malefcios satnicos, a visionria deixa novamente Deus se dirigir ao homem: homem, Eu te resgatei pelo sangue do Meu Filho, no com malcia e iniqidade, mas com a mxima justia. E contudo Me abandonas, a Mim, o verdadeiro Deus, e segues aquele que mentira. Eu sou a justia e a verdade, por isso que te advirto na f, exorto-te no amor e acolho-te na penitncia, a fim de que, mesmo ensangentado pelas feridas do pecado, te ergas da profundeza da queda.

    Continuando o comentrio sobre a viso, ela acrescenta esta exortao, que lhe ditada pelo esplendor entrevisto: homens insensatos, por que interrogais a criatura sobre o tempo de vossas vidas? Nenhum de vs pode conhecer de fato o tempo de vossa vida, evitar ou ultrapassar aquilo que foi determinado por Mim. Porque, homem, quando se cumprir tua salvao, seja nas coisas temporais, seja nas espirituais, tu deixars o presente sculo para passar quele que no tem fim. Porque, quando o homem possui uma to grande fora que Me ame com ardor maior que as outras criaturas [...], Eu no separo seu esprito de seu corpo antes que ele tenha podido levar maturidade seus frutos saborosos, que tm um odor suave. Mas aquele que Eu considere to dbil que no possa suportar meu jugo em meio s tentaes do sedutor maligno e na pesada escravido de seu corpo, Eu o retiro deste sculo antes que ele comece a murchar com o aviltamento de sua alma; porque Eu sei tudo. Quero dar ao gnero humano toda a justia para sua salvaguarda, de modo que ningum possa encontrar desculpa quando Eu advertir e exortar os homens a cumprir as obras de justia, quando Eu lhes inculcar o medo do julgamento da morte, como se estivessem para morrer, mesmo que ainda tenham muito tempo para viver...

    Na viso seguinte, a quarta do Scivias, a interrogao sobre o destino do homem continua sempre de modo imagtico e de

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    acordo com as etapas do desenvolvimento da vida humana. Vi um esplendor imenso e sereno, que irradiava qual muitssimos olhos, tendo os quatro ngulos voltados para as quatro partes do mundo, que me foi manifestado num grande mistrio, designando o segredo do Criador supremo; e nesse esplendor sereno um outro esplendor semelhante aurora, tendo nele a claridade de um luar purpreo, apareceu [...] Vi como que uma forma de mulher tendo em seu seio uma forma perfeita de homem, e eis que, por uma secreta disposio do Criador supremo, esta mesma forma manifestou o movimento de vida e uma esfera abrasada, no tendo nenhum trao de corpo humano, possuiu o corao da forma, tocou seu crebro e se transfundiu por todos os seus membros; e em seguida esta forma de homem, vivificada dessa maneira, ao sair do seio da mulher teve os movimentos igualados aos dos homens sobre essa esfera e mudou sua cor segundo as cores deles.

    Em seguida vir o tempo de atribulaes para esta forma humana, que a queda exps a todos os perigos: Eu, estrangeira, onde estou? Na sombra da morte? Que caminho que eu sigo a via do erro e que consolao posso experimentar, a dos peregrinos; de fato eu deveria ter um tabernculo de pedra mais resplandecente do que o sol e as estrelas, j que o sol posto e as estrelas moribundas no deveriam luzir nele, mas ele estaria repleto da glria anglica, porque o topzio lhe serviria de fundamento e todas as gemas formariam sua estrutura; seus degraus seriam de puro cristal, e seus trios, revestidos de ouro, porque eu sou o sopro vivo que Deus inoculou na matria rida; por isto que eu devia conhecer Deus e am-Lo. Mas, quando meu tabernculo [o corpo do homem, tabernculo do Esprito Santo] compreendeu que podia olhar em todos os sentidos [sinal da liberdade concedida ao homem, da possibilidade de escolha, de seu desejo de escolher por si mesmo o seu bem ou o seu mal], ele se voltou para o Aquilo [Aquilo, lugar do frio e do desespero].

    Seguem-se ento todas as desgraas da criatura: Alguns puseram-se a me cobrir de oprbrios, fizeram-me partilhar a lavagem dos porcos, e me enviaram a um lugar deserto, e

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    tambm me deram para comer ervas amargas embebidas em mel. Estenderam-me em seguida em uma prancha, infligiram-me muitssimos tormentos, despojaram-me de minhas vestes para me ferir muitssimas vezes, e me deixaram entregue s feras; as serpentes e os escorpies venenosos, as vboras e seus semelhantes me capturaram e crivaram-me de veneno. Presa de todos os suplcios, ela chama: Tu, onde ests, Sio, minha Me. Desgraado de mim, eu que me afastei de ti! Mas, quando eu ia derramar sobre ti, minha Me, minhas lgrimas e meus gemidos, a infortunada Babilnia fez ressoar a tal ponto o rumor de suas guas, que tu no pudeste estar atenta minha voz. E por isso que procurarei os caminhos estreitos por onde poderei fugir a meus horrveis companheiros e a meu detestvel cativeiro. E depois de ter falado assim, fugi por uma vereda estreita onde me escondi, chorando amargamente, numa caverna ao lado do setentrio, porque tinha perdido minha Me. E eis que um odor suave, como que proveniente do doce hlito de minha Me, inebriou-me com seu perfume. [...] E fui presa de uma tal alegria, que o antro da montanha onde me havia refugiado retumbou com meus gritos de jbilo. [...] Eu desejava subir a uma altura onde meus inimigos no me pudessem descobrir, mas eles me opuseram a um mar to agitado, que me era impossvel atravessar. Havia ali um ponto to mnimo e to estreito, que eu no podia transpor. Mas nos confins desse mar erguiam-se montanhas de cumes to altos, que eu senti a impossibilidade de alcan-los.

    Retomada de pavor, a criatura invoca novamente o poder do Alto. Ento ouvi a voz de minha Me, que dizia: O filha, corre, porque, para que voes, asas te foram dadas pelo poderoso doador, ao qual ningum pode resistir; voa, pois, acima de todas essas contrariedades, com toda a rapidez de tuas asas. De novo cheguei diante de um tabernculo edificado sobre bases indestrutveis e, penetrando nele, cumpri as obras de luz depois de ter praticado as obras das trevas. E nesse tabernculo, no norte coloquei uma coluna de ferro no-polido sobre a qual pendurei, aqui e ali, diversas asas que se agitavam como ventarolas; e, tendo encontrado o man, eu o comi. Mas no oriente constru um forte de pedras quadradas e nele acendi o

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    fogo e bebi o vinho doce misturado mirra. Ao meio-dia, constru tambm uma torre na qual suspendi escudos de cor vermelha, e nas janelas coloquei trombetas de marfim. No meio da torre verti mel, do qual fiz um perfume precioso com outros aromas, de tal sorte que seu odor poderoso espalhou-se por todo o recinto do tabernculo. No ocidente, no edifiquei nenhuma obra porque esta parte voltava-se para o sculo. Novamente exposta a todas as agresses do dio e da mentira, a criatura implora a ajuda de Deus: E ouvi de novo uma voz que dizia: A bem-aventurada e inefvel Trindade manifestou-se ao mundo quando o Pai enviou ao mundo seu Filho nico, concebido do Santo-Esprito e nascido da Virgem, a fim de que os homens, nascidos em condies muito diferentes e presos pelos elos do pecado, fossem conduzidos pelo Cristo no caminho da Verdade. E pouco a pouco so dadas as informaes necessrias para que o homem se salve.

    A continuao contm o esclarecimento da viso enunciada antes: A figura feminina que vs trazendo em seu seio uma forma humana perfeita significa que, desde que a mulher recebe a semente humana, a criana se forma com a integridade de seus membros na clula escondida no seio de sua me. E eis que, por uma secreta disposio do divino Criador, esta forma confirma o movimento da vida porque, desde que em virtude de uma vontade misteriosa de Deus a criana recebeu o esprito no seio materno, no momento estabelecido e querido por Deus, ela demonstra pelos movimentos de seu corpo, que vive, como a terra se entreabre e deixa desabrochar as flores de seu fruto quando o orvalho desce sobre ela. De tal modo que como se uma esfera de chamas, sem nenhum trao do corpo humano, possusse o corao da referida forma, porque a alma [ardendo no lar da soberana cincia] distingue diversas coisas no mbito de sua compreenso. E essa esfera no tem nenhum trao do corpo humano porque ela no nem corprea nem efmera como o corpo do homem, e porque ela lhe d a fora e a vida. E, sendo como que o fundamento do corpo, ela o rege por inteiro. [...] Essa forma humana, assim vivificada no seio da me, possui, ao sair, os movimentos que lhe imprime a esfera de

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    chamas que est nela. E, de acordo com seus movimentos, ela muda tambm de cor, porque depois que o homem recebeu no seio de sua me o sopro de vida, depois que ele nasceu e manifestou os movimentos de seus atos segundo as obras que a alma cumpre com o corpo, o mrito lhe advm dessas mesmas obras, porque se reveste com o esplendor das boas obras e se cobre com as trevas das ms.

    Essa mesma esfera de chamas mostra seu vigor conforme as energias corporais, de tal modo que, na infncia do homem, ela d provas de simplicidade, na juventude, de fora, e na plenitude da idade [...] ela manifesta a potncia de suas virtudes por sua sabedoria. [...] Mas o homem tem em si trs veredas [trs rumos ou maneiras de ser]. O que isso? A alma, o corpo e os sentidos, e por eles que a vida se exerce. Como? A alma vivifica o corpo e mantm o pensamento, o corpo atrai a alma e manifesta o pensamento, mas os sentidos abalam a alma e adulam o corpo. Porque a alma d vida ao corpo como o sol faz penetrar a luz nas trevas, por meio das duas foras principais que possui: a inteligncia e a vontade, que so como seus dois braos. E, porque rejeita as interpretaes simplistas, Hildegard se apressa a acrescentar: No que a alma tenha dois braos para se mover, mas ela se manifesta por essas duas foras, como o sol por seu esplendor.

    Inteligncia e vontade so os dois meios que o homem possui para se manifestar.

    Mais adiante, depois de ter descrito as possibilidades do ser humano, Hildegard exprime uma vez mais, por meio de suas vises, as tendncias do homem: A alma no corpo como a seiva na rvore, e suas faculdades so como os ramos da rvore. Como isso? A inteligncia est na alma como o verdor dos ramos e das folhas, a vontade como as flores, o esprito como o primeiro fruto que dela sai, a razo como o fruto perfeito que vem na sua maturidade, os sentidos como a extenso de sua grandeza. E dessa maneira que o corpo do homem fortificado e sustentado pela alma. por isso, homem, que compreendes o que s por tua alma, tu, que renuncias tua inteligncia e queres ser comparado s bestas.

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    Aps as etapas do destino do homem, vm os momentos da Revelao que a quinta viso desenvolve, com a imagem da Igreja sucedendo da Sinagoga: Vi como que uma imagem de mulher, alva da cabea ao umbigo, negra do umbigo aos ps, e os ps cor de sangue. Em torno dos ps tinha uma nuvem resplandecente e pura. Privada de olhos e tendo as mos sob suas axilas, a imagem mantinha-se perto do altar que est diante dos olhos de Deus; mas no o tocava. E no seu corao trazia Abrao; e no peito Moiss; e no ventre os outros profetas, cada qual apresentando seu signo e admirando a beleza da nova esposa. Esta surgiu grande como a torre imensa de uma cidade, tendo sobre a cabea uma espcie de aurola semelhante aurora. E de novo eu ouvi uma voz do cu, que dizia: Deus imps ao povo antigo a austeridade da Lei ordenando a Abrao a circunciso, em seguida transformou-a numa graa de suavidade, dando seu filho aos que acreditavam na verdade do Evangelho. E mitigou aqueles que foram feridos pelo jugo da Lei. E por isso que vs como que uma imagem de mulher, alva da cabea ao umbigo: a Sinagoga, me da encarnao do Filho de Deus e que, desde o comeo do nascimento de seus filhos at a plenitude de suas foras, prev os mistrios de Deus, mas no os descobre por inteiro. Porque ela no tem a resplandecente aurora que se manifesta abertamente, mas aquela que olha de longe na surpresa e na admirao. [...] ASinagoga admira a nova esposa, a Igreja, que no se v ornada com as mesmas virtudes dela, mas rodeada por escoltas anglicas, a fim de que o demnio no possa arruin-la nem derrub-la; enquanto a Sinagoga, abandonada por Deus, jaz no vcio. [...] Ela tem os ps ensangentados e uma nuvem resplandecente brilha em torno deles, porque, em sua consumao, levou morte o Cristo, o Profeta dos profetas, e ela mesma, decada, desmoronou. Mas nessa consumao, a luz da f resplandecente e pura surge no esprito dos crentes porque, no momento da queda da Sinagoga, a Igreja se ergueu quando a doutrina apostlica, aps a morte do Filho de Deus, se propagou por toda a Terra.

    Em contraste com a Sinagoga, a Igreja surge to majestosa que comparvel alta torre de uma cidade, porque, ao receber

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    a beleza dos preceitos divinos, ela armou e fortificou a nobre cidade dos eleitos. Tem sobre a cabea uma aurola semelhante aurora, porque a Igreja manifestou no seu nascimento o milagre da encarnao do Filho de Deus, bem como as virtudes fulgurantes e os mistrios que delas decorrem. [...] Ora, assim como o homem, pela morte do Filho nico de Deus, numa era nova, foi arrancado perdio da morte, tambm a Sinagoga, antes do ltimo Dia, atrada pela divina clemncia, abandonar a incredulidade e alcanar verdadeiramente o conhecimento de Deus. [...] Assim a Sinagoga precede sombra da figura, e a Igreja segue luz da verdade. Essa grandiosa imagem, a oposio entre a Sinagoga de olhos velados e a Igreja contemplando o mistrio divino, familiar poca de Hildegard. Basta lembrar o magnfico portal sul da catedral de Strasburgo, onde essa dupla viso evocada na pedra; ou ainda, um pouco tardia, essa mesma dupla imagem no portal da catedral de Bamberg: Igreja e Sinagoga resplandecentes de uma beleza semelhante.

    Esses extratos do primeiro livro do Scivias do uma idia do que ser o conjunto da obra de Hildegard. Vises de uma poderosa originalidade, ao mesmo tempo ricas e precisas, que evoluem aos nossos olhos com grande requinte de detalhes e cores muito tpicas de uma poca de grande criatividade. Vises violentas em que todas as descries parecem levadas ao extremo. Se os temas so bem conhecidos, os da Encarnao, da Redeno e da prpria Criao, aqui eles so desenvolvidos com uma fora que os renova para alm das formulaes convencionais, desprovidos de qualquer fraqueza ou de qualquer insipidez; pginas inflamadas, torrentes de imagens pontuadas por interrogaes Como isso? O que isso? que prolongam as interpretaes da vidente para detalhar o sentido e o alcance.

    Amplas vises, s vezes imbudas de comparaes suntuosas, onde gemas e topzios, colunas de ferro e trombetas de marfim compem uma espcie de encantamento, s vezes expressando uma simplicidade muito prxima da natureza: a alma no corpo como a seiva na rvore e suas faculdades como os ramos. Mesmo as imagens tradicionais e familiares poca,

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    como a da Sinagoga e a da Igreja, encontram aqui uma suntuo- sidade nova: alva da cabea ao umbigo, negra do umbigo aos ps, e os ps cor de sangue.

    Era preciso no mnimo uma assistncia impregnada de imagens bblicas, familiarizada com as inflexes dos profetas, para ser sensvel a essa palavra acesa de verdades fundamentais para o cristo. Compreende-se que so Bernardo tenha reconhecido nela uma luz radiante. Hildegard renova para o seu tempo, com uma violncia inesperada, a expresso dos mistrios que a Bblia ensina e a Igreja transmite. E assim toda a sua obra lana um olhar novo, ardente e encantador em sua singeleza, sobre o contedo da f.

  • A VIDA NO MOSTEIRO DE BINGEN

    Quando Hildegard termina o Scivias, em plena instalao do mosteiro de Bingen, que ficar sempre ligado a seu nome, sobrevm um incidente que traz uma nota humana seriamos tentados a dizer sentimental a essa existncia fora do comum.

    J havamos mencionado a presena, em algumas miniaturas que representam a visionria, de uma jovem religiosa que se coloca atrs dela, geralmente identificada como sendo Richardis, sua secretria; como Volmar, o monge, ela inseparvel da redao do Scivias. Richardis filha da marquesa de Stade, que ajudou muito Hildegard na fundao do mosteiro de Bingen, e seu irmo, Hartwig, arcebispo de Bremen. Parece que ela preenchia junto abadessa o papel de secretria e a assistia nos diversos ofcios do convento. a esse ttulo que deve ter participado da redao do Scivias, embora uma participao secundria.

    Ora, em 1151, a prpria Richardis eleita abadessa de um mosteiro de Saxe, em Bassum, na diocese de Bremen. Ao tomar conhecimento, Hildegard se apressa em escrever me de Richardis: No v subtrair minha alma e fazer com que lgrimas amargas rolem de meus olhos, a propsito de minhas carssimas filhas Richardis e Adelaide [irm de Richardis]. muito provvel que Hildegard tenha usado de todo o seu prestgio para impedir o afastamento dessas duas jovens religiosas. Mas o arcebispo de Bremen estava visivelmente empenhado nessa transferncia e contava, neste caso, com o apoio e aprovao de um outro prelado, que at ento apoiara muito Hildegard em sua transferncia para Bingen: Henri, arcebispo de Mayence. De modo que a abadessa v Richardis se afastar, e esse afastamento

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    Ihe muito penoso. Tenta recorrer ao prprio arcebispo Hartwig; diante da recusa, chega a escrever uma carta ao papa Eugnio III. Essa carta se perdeu, assim como a resposta do pontfice, que, alis, s podia remeter o caso s autoridades locais. Em compensao conservou-se uma carta de Hildegard a Richardis: Eu amava a nobreza de vosso comportamento, a sabedoria e a pureza de vossa alma e de todo o vosso ser. Tal afinidade s tornaria dilacerante a separao.

    Ora, j no ano seguinte, em fins de 1152, Hartwig, o arcebispo de Bremen, escreve a Hildegard para lhe comunicar a morte repentina da irm. Diz tambm que Richardis derramara muitas lgrimas por seu primeiro claustro e que havia planejado visit-la, quando foi colhida pela morte: Informo-te que nossa irm, a minha, mais ainda a tua, minha pela carne, tua pela alma, encontrou o destino de toda carne [...] tendo se confessado piedosa e santamente, ungida dos santos leos aps a confisso, comportou-se plenamente como crist; ela, que por teu claustro chorara muitas lgrimas de todo seu corao, entregou-se ao Senhor, com Sua Me e so Joo, e assinalada com o sinal da cruz, tendo professado a Trindade e a unidade na perfeita f de Deus, em esperana e caridade, do que estamos certos, morreu no quarto dia das calendas de novembro [28 de outubro]. Rogo- te, pois, se que sou digno, tanto quanto o posso, que conserves teu amor por ela, tanto quanto ela te amou, e se parecer que ela tenha cometido alguma falta, no a imputes a ela, mas a mim, tendo em considerao as lgrimas que derramou aps ter deixado o teu claustro, o que pode ser confirmado por muitas testemunhas. E, se a morte no a tivesse impedido, assim que lhe fosse dada a permisso, teria ido a ti. E, j que a morte a impediu de faz-lo, sabe que irei eu render-te visita, se Deus o quiser. [...]

    Em sua resposta, Hildegard primeiro rende homenagem ao irmo de Richardis, desejando que Deus conserve Seus olhos fixos sobre ele e o encaminhe no cumprimento de Sua vontade santa. E prossegue: Quanto a mim, pobre figura minscula que sou, vi em ti uma luz de salvao. Cumpre agora os preceitos de Deus, que te d Sua graa e o ensinamento do Esprito Santo. [...] Possa teu olho enxergar a Deus, teu sentido compreender Sua

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    justia; e que teu corao arda do amor de Deus para que tua alma no fraqueje, mas dedique um zelo extremo a edificar a torre da Jerusalm celeste, e que Deus te d uma ajuda, a saber, a doce Me de misericrdia. S uma estrela luminosa luzindo nas trevas das noites de homens depravados e s um cervo que Clere corre fonte de gua viva.

    Aps ter recordado vigorosamente as necessidades da Igreja do seu tempo, Hildegard prossegue em frases comoventes: Agora escuta: assim aconteceu com minha filha Richardis, que chamo de minha filha porque minha alma foi plena de caridade por ela, pois que a Luz viva, em uma viso fortssima, ensinou- me a am-la como a mim mesma. Escuta: Deus guardou-a com to grande zelo, que a atrao do sculo no pde ret-la, mas atormentou-a tanto que ela surgiu na sinfonia dos sculos qual uma flor, com sua beleza e seu esplendor. Mas, no tempo em que ela ainda habitava seu corpo, ouvi dizer dela, em viso verdadeira: O virgindade, guarda-te na cmara real.* De fato ela foi da ordem santssima das virgens e nelas encontrou companhia, com o que se regozijam as filhas de Sio. [...] E por isso que Deus no quis dar Sua amiga ao amador inimigo, isto , ao mundo. Agora, tu, carssimo, sentado no lugar do Cristo, cumpre a mesma vontade de tua irm como exige o dever de obedincia; e, assim como sempre foi preocupada por ti, agora o s por sua alma e faz boas obras segundo o zelo que foi o dela. [...] (carta X e respectiva resposta.)

    Impressiona a serenidade que se desprende dessa carta enquanto a de Hartwig antes plena de emoo; visivelmente, a abadessa j havia dominado sua tristeza e consumado em si mesma a resignao que solicitava.

    Esse episdio doloroso situa-se muito provavelmente por volta de 1151, quando Hildegard terminou o Scivias. O redator de sua Vida, com muito menos detalhes do que poderamos desejar, lana algumas luzes sobre os anos seguintes no convento de

    * Imagem litrgica que designa o casamento espiritual da religiosa com o Cristo. (N. da T.)

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    Bingen. Surpreende-se ao ver a torrente de boas obras que ela jorrava, como se irrigada pelo rio do paraso; e no apenas de toda a vizinhana, mas de toda a Glia tripartida e da Germnia afluam pessoas de ambos os sexos vidas de receberem os conselhos e as exortaes da abadessa. Muitos vinham tambm em busca da cura das afeces corporais. E alguns, graas sua bno, ficavam livres de seus sofrimentos. Com esprito proftico, ela conhecia os pensamentos e as intenes dos homens, e repelia aqueles que dela se aproximavam com esprito perverso ou frvolo, como que para experiment-la. Estes, no podendo resistir ao esprito que falava, eram obrigados, refeitos e purificados, a desistir de seus propsitos tortuosos. E quanto aos judeus que vinham interrog-la, convictos de sua prpria lei, ela os exortava f do Cristo com palavras de piedosa admoestao. A todos ela falava, conforme o conselho do Apstolo, doce e piedosamente, de acordo com o que lhe parecia convir a cada um.

    A Vida de Hildegard destaca alguns dos milagres que lhe so atribudos. Trata-se sobretudo de curas de molstias vagamente descritas. Assim, ela conseguiu debelar a febre de uma parenta que no havia meio de ceder. Ou, ento, num mosteiro que no nomeado, uma serva chamada Berta tinha um tumor no pescoo que a impedia de engolir qualquer alimento, bebida ou mesmo a saliva; um sinal-da-cruz traado sobre o doloroso inchao o suficiente para cur-la. s vezes Hildegard se contenta em enviar gua benta aos que lhe imploram socorro, e as dores se acalmam. E o caso de uma me que lhe vem solicitar a cura da filha; a gua benta enviada pela abadessa cura tambm um moo em estado de extrema fraqueza. Algumas dessas curas demonstram como a fama de Hildegard se difundira. E o caso de uma Sibila que lhe escreve da cidade de Lausanne, alm-Alpes, querendo se ver livre de um fluxo de sangue o que de fato consegue, aps a resposta de Hildegard. Ou, ainda, o de um rapaz de Andernach que, tendo suplicado ao Senhor a intercesso de Hildegard, esta lhe aparece, pe a mo sobre sua cabea e diz: Que essa enfermidade se afaste de ti e sejas curado. To logo a viso desaparece, o doente se levanta do leito.

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    Um outro milagre, enfim, ocorrido em circunstncias comoventes, durante uma viagem que Hildegard realizou pelo Reno, a caminho de uma cidade onde fora chamada a pregar. No barco, uma mulher apresenta-lhe o filhinho, que cego. Hildegard se lembra de dizer a frase d Aquele que disse: V piscina de Silo e lava-te. Apanha gua do rio em sua mo esquerda e abenoa a criana com a mo direita, derramando-lhe a gua sobre os olhos. Imediatamente, com a permisso da graa divina, a criana recobra a viso. De passagem, recebemos uma preciosa indicao sobre as viagens de Hildegard, a maioria, como veremos, realizadas por via fluvial, de resto, o meio de transporte mais freqente na poca.

    em Bingen, sem dvida entre 1158 e 1163, que a abadessa redige sua segunda obra, intitulada O livro dos mritos da vida. Trata-se de seis vises reunidas num nico livro, enquanto o Scivias, com o mesmo nmero de temas, abrangia trs livros. O primeiro trabalho tinha por assunto o Criador e a criatura, como Bernard Gorceix analisa em sua admirvel introduo obra de Hildegard, o segundo, o Messias e a Igreja, e o terceiro, a histria da salvao. No segundo texto, O livro dos mritos da vida, a estrutura monoltica: ao longo de seis vises sucessivas, uma figura humana olha em direo a leste, a oeste, ao norte e ao sul. O universo inteiro num quinto momento. E somente no sexto a figura humana se pe em movimento com as quatro zonas da Terra. Esta figura humana nada menos que Deus. Resumindo, o Livro dos mritos constri a histria da salvao por meio do confronto das virtudes e dos vcios, com a vitria da divindade.

    Finalmente, em 1163, Hildegard escreve seu terceiro e mais conhecido trabalho, O livro das obras divinas, que Bernard Gorceix traduziu e foi publicado em francs em 1982.

    E em 1165 Hildegard funda um novo mosteiro. Na certa o nmero de religiosas comeava a exceder a capacidade de acomodao do convento de Bingen. Sem mudar de regio, do outro lado do Reno, acima de Rdesheim, que ser aberto esse novo estabelecimento, o de Eibingen. Guardar em seu nome o

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    de santa Hildegard, e das fundaes em que a abadessa viveu a nica que sobrevive at hoje, uma vez que as outras duas foram completamente destrudas pela invaso sueca do sculo XVII. E a, como dissemos, que se encontra o tmulo de Hildegard, e os mosaicos, que reproduzem algumas de suas vises, esto na colegial,* reconstruda no sculo XVII e reformada em nossos dias.

    Alguns episdios da vida de Hildegard que conhecemos por sua correspondncia chegam-nos com uma ressonncia mais pessoal do que os relatos biogrficos. E o caso, por exemplo, da cura de Sigewise, uma jovem mulher de Colnia que parecia apresentar um quadro de possesso demonaca. Sobre esse assunto, cartas foram trocadas entre Hildegard e os monges da abadia de Brauweiler, que tinham tentado sem sucesso libertar a mulher. Sua correspondncia demonstra a confiana que depositavam na monja.

    O abade de Brauweiler dirige-se a ela em termos que testemunham a reputao da abadessa: Ainda que vosso rosto, senhora muito amada, no nos seja conhecido, a fama de vossas virtudes vos tornaram clebre e, ainda que ausentes de corpo, em esprito, todavia, estamos assiduamente presentes junto a vs. [...] De nossa parte, ouvimos falar de fato sobre o que o Senhor fez em vs, das grandes coisas que realizou em vs, Ele, que poderoso e cujo nome santo. E, pois, pela fama de Hildegard que ele se dirige a ela, implorando conselho a propsito de um caso que no pde resolver: Com efeito, certa mulher nobre, h muitos anos obsedada por um esprito maligno, foi-nos trazida por mos amigas para ser libertada desse inimigo que a ameaa, com o socorro de so Nicolau, sob cuja proteo nos estabelecemos. Mas a astcia e a maldade desse muito ladino e muito detestvel inimigo j conduziram tanta gente, aos milhares, ao erro e dvida, que tememos muito que da advenha um grande perigo para a Santa Igreja. De fato todos ns, com muitas outras pessoas, temos nos empenhado, h trs meses j, em libertar

    * Igreja que, embora no sendo sede episcopal, possui um cabido, geralmente nas dependncias do mosteiro. (N. da T.)

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    essa mulher de diversas maneiras e, no podemos admiti-lo sem desgosto, por causa de nossos pecados, nada conseguimos. Toda a nossa esperana, ento, est em vs, depois de Deus. Com efeito, esse demnio, conjurado certo dia, acabou manifestando que essa mulher obsedada no poderia ser libertada seno pelo poder de vossa contemplao e pela grandeza da divina revelao. [...] Pedimos, pois, que vossa santidade queira nos indicar por carta o que, sobre este assunto, Deus vos ter inspirado ou revelado pelas vises.

    A resposta de Hildegard, de incio, contm conselhos e uma linha de conduta a ser seguida: Estando afligida de uma longa e grave enfermidade, pela permisso de Deus, mal posso responder um pouco a vossa consulta; no de mim que o digo isto, mas Daquele que : existem diversos gneros de espritos malignos. O demnio de que falais tem artifcios que se assemelham aos vcios nos hbitos dos homens. De modo que ele fica vontade com os homens e at zomba e faz pouco da cruz de Deus, dos santos etc.; tudo isso, que pertence ao servio de Deus, ele no respeita muito. No ama e finge que foge disso, como um homem tolo e negligente despreza as palavras e as advertncias que lhe fazem os homens sbios; assim sendo, nos livramos deles com mais dificuldades do que de um outro demnio. No poder ser expulso sem jejuns, mortificaes, oraes, esmolas e sem a prpria ordem de Deus. Escutai, pois, no uma resposta de homem, mas a Daquele que vive. Escolhei sete boas testemunhas recomendadas pelos mritos de suas vidas, que sejam padres, em nome e por ordem de Abel, No, Abrao, Melquisedeque, Jac e Aaro, que vo oferecer um sacrifcio ao Deus vivo; e um stimo, em nome do Cristo, que ser oferecido sobre a cruz a Deus Pai. E para os jejuns, flagelaes, preces, esmolas e celebraes de missas, em humilde inteno e em hbito sacerdotal, que venham cobertos com suas estolas contra a paciente e que a rodeiem, cada um deles empunhando um cajado que figura o cajado com que Moiss no Egito golpeou o mar Vermelho e a pedra, segundo o preceito de Deus, a fim de que, assim como Deus ali mostrou milagres com o cajado, esse inimigo muito perverso sendo repelido da mesma maneira,

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    Deus seja glorificado. [...] Esse padres sero sete, figurando os sete dons do Esprito Santo, a fim de que o esprito de Deus, que na origem pairava acima das guas e inspirou o sopro da vida na face do homem, afaste do homem fatigado o esprito imundo [] Algum tempo depois, os monges da abadia de Brauweiler voltam carga. O esprito conjurado segundo as indicaes de Hildegard, que a princpio, de fato, deixou em paz a pessoa em questo, eis que retoma sua posse