História da Cultura Material– notas sobre um campo histórico em suas relações...

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1 HISTÓRIA DA CULTURA MATERIAL NOTAS SOBRE UM CAMPO HISTÓRICO EM SUAS RELAÇÕES INTRADISCIPLINARES E INTERDISCIPLINARES1 José D’Assunção Barros 2 Resumo Busca-se esclarecer e discutir alguns aspectos relacionados à História da Cultura Material, definida enquanto modalidade historiográfica que coloca em primeiro plano a vida material de uma sociedade e que se desenvolve em interrelação com outros campos historiográficos e outras disciplinas externas à História. O artigo remete a obra recentemente publicada pelo autor deste texto, cujo principal objetivo é o de elaborar uma visão panorâmica das diversas modalidades da História nos dias de hoje. Palavras-chave: História da Cultural Material, Arqueologia, objetos materiais. Abstract This article attempts to clarify and discuss some aspects related to the History of Material Culture, defined as an historical modality that brings in first plain the material life of the society, and as an historical field that is developed in interaction with other historical fields and disciplines external to History. The article refers to a recently publicized work of the author of this text, witch principal subject was to elaborate a panoramic view of the various fields in which ones the historical knowledge is divided nowadays. Key Words: History of Material Culture; Archeology, material objects. Quando estendemos sobre a historiografia ocidental do século XX um olhar panorâmico e crítico, talvez um dos fenômenos mais significativos a serem percebidos seja a crescente especialização do historiador moderno, que passou a se auto-representar a partir de inúmeros campos, abordagens e domínios historiográficos. Assim, se até o século XIX o historiador pôde construir uma imagem de si mesmo até certo ponto una, é um dado bastante sintomático deste “século de especializações” o de que a partir daqui começam a se definir como domínios bem próprios e específicos as mais diversas modalidades internas ao Campo Histórico. Setores do saber historiográfico como a História Econômica, a História Social, a História das Mentalidades, a História Regional, a Micro-História e inúmeros outros irão como que requisitar de aqui em diante os seus próprios especialistas. Esta hiper-especialização do conhecimento histórico tem sido na verdade simultaneamente objeto de culto e objeto de crítica – e refletir permanentemente sobre o que significa cada um destes inúmeros campos 1 O presente artigo remete, como referência principal, a um livro publicado pelo autor, e que se refere a um estudo das várias modalidades da História. Referências: José D’Assunção Barros, O Campo da História – Especialidades e Abordagens, Petrópolis: Vozes, 2004, 222pp. 2 Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF); Professor da Universidade Severino Sombras (USS) de Vassouras, nos Cursos de Mestrado e Graduação em História, nos quais leciona disciplinas ligadas ao campo da Teoria e Metodologia da História. Publicou, nos últimos anos, os livros: O Campo da História (2004). O Projeto de Pesquisa em História (2005); Cidade e História (2007) e A Construção Social da Cor (2008).

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Artigo publicado na revista Patrimoniuss, da Universidade Severiono Sombra - campus de Maricá, em 2009.O artigo sintetiza e desenvolve algumas das idéias apresentadas pelo autor no capítulo "História da Cultura Material" do livro O Campo da História (Petrópolis: Vizes, 2009. 6a. edição).Referências:. “História da Cultura Material – notas sobre um campo histórico em suas relações intradisciplinares e interdisciplinares” in Revista Patrimoniuss. Revista da Universidade Severino Sombra – campus de Maricá. n°1, jul. 2009.www.uss.br/web/hotsites/revista_marica/index.asp

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HISTÓRIA DA CULTURA MATERIAL – NOTAS SOBRE UM CAMPO HISTÓRICO EM SUAS

RELAÇÕES INTRADISCIPLINARES E INTERDISCIPLINARES1

José D’Assunção Barros2

Resumo Busca-se esclarecer e discutir alguns aspectos relacionados à História da Cultura Material, definida enquanto modalidade historiográfica que coloca em primeiro plano a vida material de uma sociedade e que se desenvolve em interrelação com outros campos historiográficos e outras disciplinas externas à História. O artigo remete a obra recentemente publicada pelo autor deste texto, cujo principal objetivo é o de elaborar uma visão panorâmica das diversas modalidades da História nos dias de hoje. Palavras-chave: História da Cultural Material, Arqueologia, objetos materiais. Abstract This article attempts to clarify and discuss some aspects related to the History of Material Culture, defined as an historical modality that brings in first plain the material life of the society, and as an historical field that is developed in interaction with other historical fields and disciplines external to History. The article refers to a recently publicized work of the author of this text, witch principal subject was to elaborate a panoramic view of the various fields in which ones the historical knowledge is divided nowadays. Key Words: History of Material Culture; Archeology, material objects. Quando estendemos sobre a historiografia ocidental do século XX um olhar

panorâmico e crítico, talvez um dos fenômenos mais significativos a serem percebidos seja a

crescente especialização do historiador moderno, que passou a se auto-representar a partir de

inúmeros campos, abordagens e domínios historiográficos. Assim, se até o século XIX o

historiador pôde construir uma imagem de si mesmo até certo ponto una, é um dado bastante

sintomático deste “século de especializações” o de que a partir daqui começam a se definir

como domínios bem próprios e específicos as mais diversas modalidades internas ao Campo

Histórico. Setores do saber historiográfico como a História Econômica, a História Social, a

História das Mentalidades, a História Regional, a Micro-História e inúmeros outros irão como

que requisitar de aqui em diante os seus próprios especialistas. Esta hiper-especialização do

conhecimento histórico tem sido na verdade simultaneamente objeto de culto e objeto de

crítica – e refletir permanentemente sobre o que significa cada um destes inúmeros campos

1 O presente artigo remete, como referência principal, a um livro publicado pelo autor, e que se refere a um estudo das várias modalidades da História. Referências: José D’Assunção Barros, O Campo da História –

Especialidades e Abordagens, Petrópolis: Vozes, 2004, 222pp. 2 Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF); Professor da Universidade Severino Sombras (USS) de Vassouras, nos Cursos de Mestrado e Graduação em História, nos quais leciona disciplinas ligadas ao campo da Teoria e Metodologia da História. Publicou, nos últimos anos, os livros: O Campo da

História (2004). O Projeto de Pesquisa em História (2005); Cidade e História (2007) e A Construção Social da

Cor (2008).

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que hoje se abrem ao profissional de História tem surgido como uma tarefa

particularmente importante para o próprio historiador que reflete sobre o seu ofício.

Neste artigo abordaremos um campo histórico que se refere mais particularmente à

interação do Homem com a própria materialidade que envolve mais diretamente a sua

existência: a História da Cultura Material. Antes de mais nada, será bastante útil situar este

campo histórico na rede mais ampla de modalidades historiográficas que se desenvolveram a

partir do século XX, cumprindo notar que aqui teremos não apenas contrastes, mas também

um diálogo muito vivo da História da Cultura Material com algumas destas várias

modalidades.

A História da Cultura Material deve ser classificada como uma modalidade

historiográfica relacionada às diversas dimensões da História que são trazidas a primeiro

plano pelo historiador em sua análise. Para entender este aspecto, valerá lembrar aqui uma

proposta ensaística recente, cujo objetivo foi o de avançar na compreensão mais sistemática

dos critérios que presidiriam a divisão do saber historiográfico nas suas diversas

modalidades3. Falaremos aqui de três tipos fundamentais de critérios geradores de

modalidades historiográficas: as dimensões, as abordagens, e os domínios.

O primeiro critério gerador de divisões da história em modalidades mais específicas

refere-se ao que chamaremos de dimensões, correspondendo àquilo que o historiador traz para

primeiro plano no seu exame de uma determinada sociedade: a Política, a Cultura, a

Economia, a Demografia, e assim por diante. Desta maneira, teríamos na História Econômica,

na História Política, ou na História das Mentalidades campos do saber histórico relativos às

dimensões ou aos enfoques priorizados pelo historiador. Apenas para dar um exemplo, um

historiador cultural estuda em primeiro plano os fatos da cultura, na mesma medida em que

um historiador político estuda o poder nas suas múltiplas formas e um historiador

demográfico orienta o seu trabalho em torno da noção que lhe é central de “população”. Desta

maneira, a História Cultural, a História Política ou a História Demográfica – com toda a

amplitude de possibilidades que pode envolver cada uma destas sub-especialidades da

História – devem ser mais adequadamente localizadas no campo das dimensões

historiográficas.

Um segundo grupo de critérios para estabelecer divisões no saber histórico é aquele

que chamamos de abordagens, referindo-se aos métodos e modos de fazer a História, aos

3 José D’Assunção BARROS, O Campo da História, Petrópolis: Vozes, 2004.

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tipos de fontes e também às formas de tratamento de fontes com os quais lida o

historiador. São divisões da História relativas a abordagens a História Oral, a História Serial,

a Micro-História e tantas outras. A História Oral, por exemplo, lida com fontes orais e

depende de técnicas como a das entrevistas; a História Serial trabalha com fontes seriadas –

documentação que apresente um determinado tipo de homogeneidade e que possa ser

analisada sistematicamente pelo historiador. A Micro-História refere-se a abordagens que

reduzem a escala de observação do historiador, procurando captar em uma sociedade aquilo

que habitualmente escapa aos historiadores que trabalham com um ponto de vista mais

panorâmico, mais generalista ou mais distanciado. Também a História Regional poderia ser

classificada como modalidade historiográfica ligada a uma abordagem, no sentido de que

elege um campo de observação específico para a construção da sua reflexão ao construir ou

encontrar historiograficamente uma “região”. Examinando um espaço de atuação onde os

homens desenvolvem suas relações sociais, políticas e culturais, a História Regional viabiliza

através de sua abordagem um tipo de saber historiográfico que permite estudar uma ou mais

dimensões nesta região que pode ser analisada tanto no que concerne a desenvolvimentos

internos, como no que se refere à inserção em universos mais amplos.

Para além das modalidades relacionadas a dimensões e abordagens, podemos pensar

finalmente nas divisões da História que chamaremos de domínios, e que se referem a campos

temáticos privilegiados pelos historiadores. Vários domínios da História têm surgido e mesmo

desaparecido no horizonte de saber desta complexa disciplina que é a História. Estaremos

falando de domínios quando nos referimos a uma História da Mulher, a uma História do

Direito, a uma História de Sexualidade, a uma História Rural.

Os domínios da História são na verdade de número indefinido. Alguns domínios

podem se referir aos ‘agentes históricos’ que eventualmente são examinados (a mulher, o

marginal, o jovem, o trabalhador, as massas anônimas), outros aos ‘ambientes sociais’ (rural,

urbano, vida privada), outros aos ‘âmbitos de estudo’ (arte, direito, religiosidade,

sexualidade), e a outras tantas possibilidades. Os exemplos sugeridos são apenas indicativos

de uma quantidade de campos que não teria fim, e qualquer um poderá começar a pensar por

conta própria as inúmeras possibilidades.

Tal como dissemos, os critérios de classificação que estabelecem domínios da História

referem-se primordialmente às temáticas (ou campos temáticos) escolhidas pelos

historiadores. São já áreas de estudo mais específicas, dentro das quais se inscreverá a

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problemática constituída pelo ato historiográfico. A maioria dos domínios históricos

sintoniza-se com os trabalhos que se referem às diferentes dimensões históricas, e certamente

abre-se às várias abordagens. Mas existem domínios que têm mais afinidade com

determinada dimensão, dada a natureza dos temas por eles abarcados. Assim, a História da

Arte ou a História da Literatura podem ser eventualmente consideradas sub-especialidades da

História Cultural (embora se deva chamar atenção para uma História Social da Arte, ou uma

História Social da Literatura, que não deixam de ser possibilidades dentro da História Social).

Alguns domínios surgem e desaparecem ao sabor das modas historiográficas –

motivados por eventos sociais e políticos, ou mesmo por ditames editoriais e tendências de

mercado. Outros surgem quando para eles se mostra preparada a sociedade na qual se insere a

comunidade de historiadores (por exemplo, uma ‘História da Sexualidade’ não poderia surgir

na Inglaterra Puritanista, e uma ‘História da Mulher’ não poderia surgir senão quando, no

século XX, a mulher começa a conquistar o mercado de trabalho e surgem os movimentos

feministas e de valorização social da mulher). Outros domínios, por fim, são quase tão antigos

quanto a própria História – como é o caso da História Religiosa e da História Militar – e

tendem a ser perenes na sua durabilidade.

Dentro deste quadro mais amplo, poderemos agora nos deter mais especificamente

neste campo histórico habitualmente denominado História da Cultura Material. Este é um

campo que, de acordo com a tripartição de critérios acima descrita, definiremos como uma

‘dimensão’ historiográfica. Quando avalia uma sociedade do ponto de vista da Cultura

Material, o que o historiador está trazendo a primeiro plano é uma dimensão tão importante

como a Política, a Cultura, as Mentalidades, o Imaginário, ou as várias outras dimensões que

dão origem a campos históricos desta natureza. A História da Cultura Material é deste modo

uma modalidade historiográfica definida por critérios similares àqueles que presidem a

geração de modalidades como a História Política ou a História da Cultura. Se nestas

modalidades o historiador traz a primeiro plano, respectivamente, as relações de poder

(história política) e a cultura em sentido amplo (a história cultural), a História da Cultura

Material traz para primeiro plano a própria vida material dos homens que vivem em

sociedade, incluindo os objetos e materiais que constituem a base desta cultura material gerida

e organizada socialmente.

A História da Cultura Material, desta maneira, pode ser definida como o campo

histórico que estuda fundamentalmente os objetos materiais em sua interação com os aspectos

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mais concretos da vida humana, desdobrando-se por domínios históricos que vão do

estudo dos utensílios ao estudo da alimentação, do vestuário, da moradia e das condições

materiais do trabalho humano. A noção fundamental que atravessa este campo é a da

“matéria” (ou do ‘objeto material’, que pode ser tanto o de tipo durável, como no caso dos

monumentos e dos utensílios, como do tipo perecível, como no caso dos alimentos)4.

Contudo, este campo deve examinar não o objeto material tomado em si mesmo, mas sim os

seus usos, as suas apropriações sociais, as técnicas envolvidas na sua manipulação, a sua

importância econômica e a sua necessidade social e cultural. Afinal, a noção de “cultura”

também não deixa de atravessar este campo.

Desta forma, o historiador da cultura material não estará atento apenas aos tecidos e

objetos da indumentária, mas também aos modos de vestir, às oscilações da moda, às suas

variações conforme os grupos sociais, às demarcações políticas que por vezes se colam a uma

determinada roupa que os indivíduos de certas minorias podem ser obrigados a utilizar em

sociedades que aproximam os critérios da “diferença” e da “desigualdade”. Com relação aos

alimentos, o historiador buscará não um exaustivo inventário dos vários gêneros alimentícios,

mas uma compreensão dos seus modos de consumo, dos regimes alimentares que

predominam nos diversificados grupos sociais e profissionais, das expectativas simbólicas de

cada alimento; das formas de armazenamento e intercâmbio dos gêneros alimentícios. Da

variedade de habitações, procurará extrair uma compreensão da vida familiar, das relações

entre público e privado, da segregação social que pode ser estabelecida a partir de

determinadas configurações de espaço, dos regimes imaginários que podem estar associados a

certos padrões habitacionais, da correlação entre os vários tipos de bens imóveis e os grupos

sociais a que pertencem os seus possuidores.

Ao perceber a materialidade de uma cidade – os seus monumentos, os seus espaços

de circulação, os seus espaços de trancafiamento, os seus compartimentos lícitos e ilícitos – o

historiador estará buscando perceber os modos de vida da sociedade que a habita, as

expectativas dos seus habitantes. Ao examinar uma cidade murada, como aquelas que eram

tão típicas da Idade Média e do princípio da modernidade, tentará compreender o que

significa este tipo de “viver murado”, que medos aparecem a reboque desta espécie de

enclausuramento urbano ou, na contrapartida, que sensações de segurança contribuirão para o

4 Tal como se disse, todas as modalidades historiográficas definidas a partir de “dimensões” trazem por trás de si uma noção muito forte: na História Política é o Poder, na História Cultural é a Cultura, na História Demográfica

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alívio do habitante murado frente aos riscos de invasão externa. A cidade aberta, com

outros tipos de problemas, inspirará reflexões distintas, e darão dar a conhecer outros tipos de

sociedades. O historiador da cultura material que trabalha com a História Urbana tem muito a

perceber dos seus objetos citadinos.

Móveis, objetos decorativos, ferramentas, máquinas, matérias primas que darão luz a

objetos manufaturados, veículos que os transportarão ao longo de grandes avenidas e estradas,

com destino a determinados grupos de consumidores que por estes bens terão de pagar em

moeda sonante ... tudo pode ser objeto de uma História da Cultura Material. Pode-se perceber

que, além da noção de “materialidade”, uma outra noção marcante que muito freqüentemente

atravessa este campo histórico é a de “cotidiano”. O historiador da cultura material estará

freqüentemente estudando os domínios da vida cotidiana, da vida privada, embora estes

domínios também possam ser partilhados por historiadores voltados predominantemente para

outras dimensões ou enfoques, como é também o caso da História das Mentalidades.

O estudo atento dos objetos da cultura material faz com que esta especificidade da

história esteja intimamente associada à Arqueologia, mas do ponto de vista da categorização

das modalidades historiográficas esta última designação refere-se preferencialmente a uma

‘abordagem’ relacionada ao levantamento e à decifração de fontes da cultura material, e não

tanto à ‘dimensão’ de vida social que é trazida por estas fontes. Por outro lado, vale lembrar

que, se tradicionalmente a Arqueologia vinha sendo tratada como ciência distinta da História,

gerando uma dimensão corporativa própria (a dos arqueólogos), é precisamente a entrada em

cena de uma História da Cultura Material (assim definida conceitualmente) o que atua mais

fortemente no sentido de incorporar a comunidade arqueológica na comunidade historiadora.

Rigorosamente, todo bom arqueólogo é também um historiador da Cultura Material, não se

limitando a coletar resíduos de civilizações. De qualquer modo, para considerar a tábua de

critérios que estamos utilizando para visualizar as partições internas ao campo historiográfico,

pode-se dizer que, ao se mostrar relacionada a um ‘modo’ de desvendar vestígios materiais e

de conectá-los para reconstruir a História, a Arqueologia vincula-se mais coerentemente a

uma segunda ordem de critérios que se definem pelas ‘abordagens’ utilizadas pelo historiador.

Neste sentido, para um historiador, a Arqueologia remete sobretudo aos ‘métodos

arqueológicos’ que eventualmente serão empregados para levantar fontes e dados empíricos

no decorrer da pesquisa – fontes e dados sobre os quais o historiador fará incidir depois um

é a População, na História do Imaginário é a Imagem, e assim por diante. No caso da História da Cultura

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determinado enfoque que pode ou não ser o da História da Cultura Material. Mas, de

qualquer maneira, a História da Cultura Material e a Arqueologia freqüentemente andam

juntas5.

Também a História da Cultura Material pode atuar na conexão com campos

historiográficos definidos por outras dimensões ou enfoques. Assim, a “matéria” e a

“imagem” podem ser examinadas nas suas interrelações, e conseqüentemente um historiador

pode associar os campos da História da Cultura Material e da História do Imaginário.

Segundo Gaston Bachelard (1943), “a imaginação de um movimento reclama a imaginação de

uma matéria”6 A partir de um enfoque que não deixa de ser similar, os objetos e artefatos são

encarados como complexos de tendências ou “redes de gestos” por Leroi-Gourhan – que de

algum modo não deixa de ser simultaneamente um antropólogo da cultura material e do

imaginário que se dedicou mais particularmente às culturas paleolíticas. O vaso, por exemplo,

seria uma materialização da tendência geral de conter fluidos7. Relacionando gestos, imagens

e objetos materiais, Leroi-Gourhan analisa determinados objetos, como a “casca”, visando

estabelecer curiosas interconexões. “As tendências para “conter”, “flutuar”, “cobrir”

particularizadas pelas técnicas do tratamento da casca dão o vaso, a canoa ou o telhado. Se

este vaso de casca é cozido, implica imediatamente uma outra clivagem possível das

tendências: coser para conter dá o vaso de casca, coser para vestir dá a veste de peles, coser

para abrigar dá a casa de pranchas cozidas”8.

Estas divagações podem parecer demasiado abstratas à primeira vista, mas devemos

aprender com elas. As relações entre os objetos da cultura material e o imaginário podem ser

exploradas criativamente pelos historiadores de um ou outro destes campos. Independente de

ser um símbolo bélico, a ‘espada’ também se abre imagisticamente para o gesto do

‘ordenamento social’. Ela estende-se para o gesto que corta, que descrimina, que separa, que

compartimenta — que ordena o social, enfim. Neste sentido, o símbolo incorpora com a

sugestão do ‘ordenamento social’ mais esta outra função representativa, para além do

Material, enfim, teríamos a noção de “matéria”. 5 Jean-Marie PESEZ, “História da Cultura Material” In Jacques LE GOFF (org.) A História Nova, São Paulo: Martins Fontes, 1990, p.202 [orig.: 1978]. 6 Gaston BACHELARD, L’Air et les songes. Paris: Corti, 1943. 7 A. LEROI-GOURHAN, Evolution et Technique: L’Homme et la matière. Paris: A. Michel, 1943. p.18. 8 A. LEROI-GOURHAN, op.cit, p.340 sqs, apud. Gilbert DURAND, As estruturas antropológicas do

imaginário, Lisboa: Presença, 1989, p.38.

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enfrentamento do inimigo. A espada torna-se um símbolo polissêmico, representação

da força mas também, da justiça9.

As interrelações mais imediatas da História da Cultura Material afirmar-se-ão

provavelmente com a História Econômica, que, conforme veremos mais adiante, terá como

um dos seus três setores básicos de preocupações o estudo da esfera da Produção. Neste caso,

os objetos materiais privilegiados para estudo serão as ferramentas, as máquinas, a matéria

prima – ou, para utilizar a terminologia marxista, os ‘meios’ e ‘instrumentos de produção’.

Sem contar as ‘técnicas’, que também se tornam objeto de interesse da História da Cultura

Material (usos que se incorporam a determinados objetos, ou que até mesmo os definem). Na

esfera econômica da Circulação, teremos como objetos da cultura material importantes as

“moedas”, pontos focais para estudos de cultura material, de história econômica e novamente

do imaginário (se o historiador ocupar-se também do estudo da simbologia de suas efígies).

Quanto aos objetos ligados ao Consumo, são infinitos.

Um exemplo de incorporação à análise historiográfica de enfoques relacionados à

História da Cultura Material foi concretizado por Braudel, em um dos volumes de Civilização

Material, Economia e Capitalismo (1967)10. Por outro lado, Marc Bloch pode ser considerado

um precursor, levando-se em conta que teria empreendido uma modalidade de História da

Cultura Material ao analisar a ‘paisagem rural’ na medievalidade francesa11.

Enfim, o tratamento historiográfico da Cultura Material pode ser identificado através

de um longo desenvolvimento, no decurso deste último século, que vai desde estas obras

9 A articulação entre Cultura Material e imaginário, simbologia, motricidade, técnicas corporais e gestualidade também tem sido examinada por diversos outros pesquisadores no âmbito das Ciências Humanas, entre os quais Jean-Pierre Warnier, Dominique Poulot e Françoise Choay, que têm buscado avançar para além das abordagens semióticas já clássicas da cultura material tal como as que são encaminhadas por autores como A. Moles e Jean Baudrillard. Para além da França e da Europa continental, também nos EUA e no mundo anglo-saxão surgem contribuições extremamente importantes para o desenvolvimento dos estudos de Cultura Material, como as de Thomas Schlereth, Arjun Appadurai, Steven Lubar, W. David Kingery, Baron Isherwood e outros. De igual maneira, a consciência de que “cultura material” é sobretudo “cultura”, e portanto relacionada a sistemas simbólicos, vem sendo enfatizada já há bastante tempo pela tradição antropológica, encontrando formulação explícita em alguns de seus principais representantes, como Claude Lévi-Strauss, Clifford Geertz e Marshall Sahlins, entre outros. 10 Fernando BRAUDEL, Civilização Material, Economia e Capitalismo, 3 vol. São Paulo: Martins Fontes, 1997 [edição francesa original: 1967]. 11 Marc BLOCH, Les caractères originaux de l’histoire rurale française. Paris: A. Colin, 1952 (original de 1931). Existem também artigos de Marc Bloch que examinam os instrumentos e as técnicas utilizados pelos camponeses medievais (“Avènement et conquête du moulin à l’eau” e “Les inventions médievales”, Annales

d’histoire économique et sociale, t.VII, 1935).

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pioneiras até as obras mais recentes, como a História das Coisas Banais de Daniel

Roche12 – obra que examina para a sociedade européia do século XVII ao XIX diversificados

aspectos como a alimentação, o vestuário e aparência, o fornecimento de água, luz e

aquecimento, os móveis e utensílios e, de uma maneira geral, a produção de objetos e o seu

consumo. Eis aí, portanto, uma história do ocidente moderno através dos objetos e dos seus

usos, inscrevendo-os em uma teia de relações humanas que deve ser captada para que a

História da Cultura Material não se transforme em um mero inventário descritivo de bens

diversos e de suas formas de consumo.

No Brasil, registraremos o pioneirismo dos estudos de História da Cultura Material

com a obra Caminhos e Fronteiras (1956) de Sérgio Buarque de Holanda. Se em Visões do

Paraíso13

o sociólogo-historiador aborda o Imaginário, em Caminhos e Fronteiras 14 o seu

enfoque é precisamente a ‘vida material’ da região de São Paulo no período colonial. Na

verdade, Sérgio Buarque focaliza a vida material como meio para perceber a interação entre

colonizadores de origem européia e ameríndios (o confronto cultural é a sua preocupação

básica desde 1936, com Raízes do Brasil). Trata-se, portanto, de uma História da Cultura

Material motivada por uma preocupação típica da História Social da Cultura, compreendida

aqui no seu sentido mais específico. As técnicas rurais, a produção de alimentos, a paisagem

rural assinalada pelos trigais, a indústria caseira e o artesanato urbano, os utensílios (como a

rede de dormir) ou os instrumentos (como o arado utilizado no trabalho rural) ... eis aqui os

materiais para uma autêntica História da Cultura Material que procura reconstruir, a partir de

uma problematização sociocultural mais ampla, uma rede complexa que envolve objetos,

técnicas e consumo.

Para além da contribuição exemplar de Sérgio Buarque de Holanda, igualmente

fundamentais para a História da Cultura Material no Brasil foram as contribuições de Ulpiano

Bezerra de Menezes, um autor que certamente contribuiu enormemente para o

desenvolvimento deste campo no Brasil15. Mais recentemente, especialmente no que se refere

12 Daniel ROCHE, História das Coisas Banais – nascimento do consumo (sec. XVII-XIX), Rio de Janeiro: Rocco, 2000. 13 Sérgio Buarque de HOLANDA, Visões do Paraíso, São Paulo: Brasiliense, 1994 [original: 1959] 14 Sérgio Buarque de HOLANDA, Caminhos e Fronteiras, São Paulo: Companhia das Letras, 2001 [original: 1957] 15 Entre outros textos, ver (1) MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da História: a exposição museológica e o conhecimento histórico, I. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 9-42, jan.-dez.1994a (Nova Série); (2) MENESES, Ulpiano Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, história visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, p. 11-36, 2003; (3) MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Entrevista: Para que serve um museu. Revista de História da

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às relações entre Cultura Material e Arqueologia, emerge com especial destaque o

nome de Pedro Paulo Funari16, para além de outros importantes estudiosos das relações entre

História, Cultura Material, Memória e Patrimônio, tal como Mário Chagas, Myrian Sepúlveda

dos Santos e Regina Abreu.

Examinemos, em seguida, os lugares mais habituais onde o historiador da cultura

material poderá encontrar suas fontes e desenvolver a base principal de sua pesquisa.

Obviamente que, tal como registramos com o exemplo pioneiro de Sérgio Buarque de

Holanda, a cultura material pode ser estudada em fontes das mais diversas naturezas. Uma

coleção de catálogos de modas pode colocar o historiador diante do universo indumentário de

determinado período histórico, assim como um conjunto de receitas pode apresentar ao

historiador os hábitos culinários de determinado povo em certa região e temporalidade.

Contudo, se quisermos falar em fontes estritamente materiais – isto é, a matéria sem a

mediação do discurso escrito – teremos de recorrer de alguma maneira às já mencionadas

práticas arqueológicas, pelo menos para os períodos mais recuados da História. É neste

sentido que a Arqueologia se apresenta como a ciência co-irmã da História da Cultura

Material, tendendo a se confundir com ela em alguns casos.

Esta óbvia parceria, contudo, é relativamente recente em nosso país e no resto da

América do Sul. Se pudemos contar com as já mencionadas obras pioneiras que na

historiografia brasileira já se direcionavam para uma História da Cultura Material com

razoável grau de consciência, é inevitável ressaltar também que a História da Cultura Material

em sua associação mais estreita com a Arqueologia apenas começou a se desenvolver mais

recentemente no Brasil. Para visualizar alguns aspectos deste desenvolvimento mais recente,

seria possível mencionar alguns campos de interesse que têm se oferecido mais habitualmente

Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, v. 2, n. 19, abr. 2007, p. 46-51; (4) MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A cultura material no estudo das sociedades antigas. Revista de História, São Paulo, n.115 (Nova Série), julho-dezembro de 1983, p.103-117; (5) MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Memória e Cultura Material: documentos pessoais no espaço público. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: FGV, n.21, 1998-1 e (6) MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A cultura material no estudo das sociedades antigas. Revista de

História, São Paulo, n.115 (Nova Série), julho-dezembro de 1983, p.103-117. 16 Entre outros textos importantes, ver (1) FUNARI, P. P. A. (2001) - Os desafios da destruição e conservação do património cultural no Brasil. Trabalhos de Antropologia e Etnologia. Porto. 41:1-2, p. 23-32; / (2) FUNARI, P. P. A. Teoria e método na Arqueologia contemporânea: o contexto da Arqueologia Histórica. In FUNARI, P. P. A.; DOMINGUEZ, L.; FERREIRA, L. M. - Patrimônio e cultura material. Campinas: Unicamp/IFCH, 2006. p. 15-22 / (3) FUNARI, P. P. A. (2005) - Fontes arqueológicas: os historiadores e a cultura material. In PINSKI, C. B., Ed. - Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, p. 82-110 / (4) FUNARI, P. P. A.; PELEGRINI, S. C. A.. (2006) - Patrimônio Histórico e Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor / (5) Ver ainda, particularmente esclarecedora para as relações entre Cultura Material e Arqueologia, os diversos ensaios de vários autores incluídos em FUNARI, Pedro Paulo de Abreu (org). Cultura material e arqueologia histórica. Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/ UNICAMP, 1998, 317 pp. (Coleção Idéias).

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como cenário privilegiado para os historiadores que têm se dedicado ao estudo da

cultura material. Entre estes, os estudos da cultura material urbana – e mais especificamente a

arqueologia urbana – têm se mostrado como um campo de especial destaque. Em tempo: um

historiador da cultura material pode estudar a cultura material urbana a partir de fontes

diversificadas, inclusive a documentação de arquivo. Mas ele estará mais especificamente

atuando dentro do âmbito da Arqueologia Urbana no momento em que estiver lidando com os

processos e métodos mais típicos da Arqueologia, como por exemplo as escavações.

De resto, freqüentemente o historiador da cultura material que se dedica aos estudos

urbanos pode contar com um entrecruzamento eficaz de fontes materiais levantadas a partir de

escavação ou de outros procedimentos arqueológicos com fontes de natureza diversa, como

por exemplo as fontes documentais com as quais os historiadores lidam mais tradicionalmente

em seu ofício. Assim, se nem sempre é possível levantar com maior precisão o contexto

material de determinada espacialidade urbana em determinada época em vista da necessidade

de se contar apenas com uma escavação parcial (para que não se veja afetada a vida urbana

que se desenvolve na contemporaneidade do arqueólogo) este contexto material pode ser

contraponteado com o estudo de mapas antigos e de outros materiais iconográficos (pinturas

da época examinada que tenham tematizado cenas urbanas, fotografias para os períodos em

que já possuímos a fotografia, e assim por diante). De igual maneira, basta lembrar que existe

em arquivos tradicionais farta documentação descritiva que busca dar conta da espacialidade

nos sucessivos contextos temporais, narrando através das palavras a espacialidade e a

materialidade de determinada cidade ou de uma propriedade urbana mais específica. Aqui

teremos, em certo sentido, a materialidade filtrada através do discurso. Este trabalho

complementar de fontes, enfim, é um dado a se considerar.

Os procedimentos arqueológicos podem ajudar o historiador da cultura material

urbana, ou de qualquer outro ambiente, em níveis muitos diversos e com vistas à percepção

dos mais variados aspectos da vida social. Assim, para além da própria base material urbana

assinalada pelo traçado das ruas e pelas ruínas e evidências de prédios, uma escavação pode

trazer à tona desde fragmentos de cerâmica até restos de comida que permitam identificar um

determinado padrão de consumo alimentar. Desta maneira, de diversas maneiras o cotidiano

social que se desenvolvia sobre uma determinada espacialidade histórica pode ser trazido à

tona por escavações, e se for possível entrecruzar estes dados e análises interpretativas com

documentação de arquivo, será possível recuperar um quadro bem vivo da vida de uma cidade

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em um período remoto. A possibilidade de lidar simultaneamente com as práticas

arqueológicas e com a documentação historiográfica mais tradicional é por isto mesmo um

dos desafios mais instigantes para os historiadores da cultura material.

Seguindo adiante com outros exemplos possíveis, as diferentes ocupações de uma

determinada localidade nas sucessivas temporalidades que se sucedem, trazidas à tona pelas

escavações arqueológicas, podem revelar processos migratórios ao historiador da cultura

material que trabalha em conexão com a História Demográfica. Os restos e fragmentos de

cerâmica, ou mesmo os restos de comida trazidos à tona em escavações arqueológicas,

também podem contar por exemplo a história de processos de aculturação – para pensar mais

especificamente no caso das culturas indígenas – e aqui teremos um diálogo destacado da

História da Cultura Material com a História Cultural propriamente dita ou com a História

Antropológica. A própria hierarquização social pode ser, por assim dizer, “escavada” – no

sentido de que as diferenças sociais existentes no interior de um mesmo conjunto humano

podem ser observadas a partir dos diversos níveis de cultura material que separam os grupos

sociais presentes em um mesmo espaço material. Os objetos, enfim, desde que examinados a

partir de uma leitura adequada, podem ser vistos como materializações de processos sociais –

e isto coloca a História da Cultura Material em direta conexão com a História Social.

Um objeto de cultura material é na verdade a materialização de uma sucessão de

processos sociais, políticos, culturais, econômicos e tecnológicos. Para não ir muito longe e

citar um exemplo dos mais conhecidos, o que é a passagem do machado de pedra ao machado

de bronze senão a materialização de uma série de transformações processuais que se deram

em diversas das dimensões da vida social de um determinado povo? A feitura de um machado

de bronze pressupõe simultaneamente uma estrutura social e uma estrutura econômica mais

complexa, indelevelmente entrelaçadas na sua matéria. Neste caso, a própria matéria fala por

si. O cobre e o estanho só mais raramente ocorrem juntos em uma localidade específica. A sua

junção para constituir o bronze – sem falar na tecnologia que será requerida para efetivação da

fusão – pressupõe que um destes dois componentes originais tenha sido importado ou que

tenha sido obtido em uma rede trocas mais ampla – o que pressupõe meios de transporte,

processos de comunicação, progressos discursivos relacionados à capacidade de obter

alianças. Da mesma maneira, a tecnologia da fusão do bronze requer uma especialização que

só pode ocorrer no seio de uma divisão mais complexa de trabalho, o que faz contrastar o

machado de bronze em relação ao machado de pedra quando pensamos que a feitura deste

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último – à parte a própria existência de todos os seus materiais no próprio local – pode

ser realizada no intervalo do plantio ou de outras formas básicas de trabalho. Dito de outra

maneira, a passagem do machado de pedra ao martelo de bronze tem muito a dizer ao

historiador da cultura material mesmo que só estejamos considerando os materiais envolvidos.

Este exemplo, bastante simples por sinal, deve ser entendido como metáfora para a

compreensão do que pode significar um objeto de cultura material em termos de

materialização de processos sociais, culturais, econômicos e tecnológicos17.

Prossigamos na reflexão sobre os lugares privilegiados para a busca historiográfica

de objetos da cultura material. Se o local passível de ser vasculhado arqueologicamente

fornece ao historiador da cultura material um campo por excelência para se aproximar da

sociedade que pretende investigar, outro universo significativo onde poderá encontrar as suas

fontes materiais é o Museu. Contudo, alguns cuidados devem ser tomados pelo historiador da

cultura material que adentra o Museu, pois esta instituição tem suas armadilhas no que se

refere às possibilidades de recuperação de um determinado contexto historiográfico.

O Museu tende a ser visto nas sociedades ocidentais como um grande documento, no

sentido de que os objetos de cultura material que nele são reunidos acabam se mostrando

como um grande resumo da sociedade. Mas de que resumo estaremos falando? Uma sala

destinada a recuperar determinado contexto sócio-material em um Museu reproduz

habitualmente a ‘leitura de uma sociedade’ que interessou a determinados poderes

institucionais vigentes – particularmente na época em que se decidiu transformar estes objetos

específicos em memória social – e depois disto sucessivas leituras podem continuar a se

desenvolver modificando de alguma maneira essa leitura pelo simples deslocamento de

objetos e mecanismos de classificação já no interior da instituição museológica. O Museu

mesmo, na sua situação contemporânea, introduz já a sua própria leitura e impõe os seus

próprios deslocamentos a uma leitura da sociedade que lhe foi anterior, sendo esta leitura ou

leituras primordiais uma construção sobre a qual se organiza uma outra.

Todo Museu foi construído ou instituído um dia, de certa maneira – pelo menos

como uma de suas funções mais primordiais – para induzir lembrança, concretizar memória

social, e orientar a construção de uma certa Identidade. A determinação do que deve ou não

deve ser lembrado atende por diversas vezes a poderes muito específicos, à preservação de

determinados interesses sociais, à glorificação ou depreciação de outros. Freqüentemente os

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museus, nascidos de coleções de objetos materiais recolhidos na natureza ou de

coleções de fragmentos vários do passado humano, de obras de arte ou de objetos de uso,

nascem envoltos por determinadas relações de poder e redirecionam-se logo em seguida como

um instrumento do poder importante. Essas relações de poder que presidem a constituição dos

Museus e das grandes coleções de objetos de cultura material precisam ser decifradas

adequadamente pelo historiador da cultura material que se empenha em recuperar algo da vida

de uma determinada sociedade através de seus objetos. Um historiador, enfim, não deve entrar

ingenuamente em um Museu. Ao penetrar no seu recinto, ele deverá partir da compreensão de

que a coleção que irá examinar foi construída por certas relações de poder, por certos

interesses de preservação da memória em uma, e não em outra direção. Um Museu, e uma

determinada coleção de objetos, carrega determinados silêncios dentro de si que devem ser

pacientemente perscrutados pelo historiador. Estes silêncios falam, gritam, materializam-se. O

Museu, enfim, é produtor de Discursos e, portanto, participa da construção do conhecimento

histórico não apenas como fornecedor de materiais e fontes para o historiador, mas como

agente que também produz as suas próprias leituras do conhecimento histórico. Neste diálogo

com o Museu (e não apenas com suas fontes) deve se inserir o historiador18.

Para além do sítio arqueológico onde se traz o objeto de cultura material através da

escavação, ou do Museu que traz de temporalidades anteriores uma coleção de determinados

objetos da cultura material que podem ser consultados em uma determinada ordem e relação

mútua, o historiador poderá encontrar os seus objetos nos lugares mais diversos, como por

exemplo nos ritos religiosos. Freqüentemente, um determinado objeto material é sagrado no

âmbito de um determinado rito religioso, e isto faz com que ele se transmita no tempo com

menores variações ou mesmo sem modificações substanciais. Em outros casos, são

precisamente as alterações – menos ou mais significativas – que serão examinadas pelos

historiadores como sinais evidentes de transformações sociais, políticas ou culturais no

sentido mais amplo. Os objetos de culto religioso, destas e de outras maneiras, podem trazer

17 Para uma introdução à Arqueologia, ver (1) ORSER, C. E. Introdução à Arqueologia Histórica, Rio de Janeiro, Oficina de Livros, 1992; e (2) FUNARI, P. P. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2003. 18 Sobre estes aspectos, ver a contribuição sempre importante de Myrian Sepúlveda dos Santos (A escrita do

passado em museus históricos, Rio de Janeiro: Garamond; MinC IPHAN, 2006), bem como os diversos ensaios de autores vários publicados em BITTENCOURT, José Neves; TOSTES, Vera; BENCHETRIT, Sara (Org.) História representada: o dilema dos museus. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2003. Para um estudo de caso específico relacionado a um Museu Brasileiro, ver (1) ELIAS, Maria José. Museu Paulista: história e memória. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996; e (2) OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles. Museu Paulista: espaço de evocação do passado e reflexão sobre a História. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 10-11, p. 105-126, jan.-dez. 2003.

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ao seu modo um passado histórico que remete o historiador aos momentos onde o culto

foi instituído, ou aos momentos em que este sofreu algumas de suas modificações mais

significativas. Desta maneira, entrar em um recinto sagrado, seja um terreiro de umbanda ou

uma Igreja católica, pode se apresentar ao historiador como uma verdadeira viagem através do

tempo, para utilizar aqui a força de uma metáfora.

Aqui, por outro lado, o historiador da cultura material também deve enfrentar

conscientemente os desafios de buscar ler uma sociedade através dos seus objetos, porque

neste caso teremos várias temporalidades que se superpõem. Em que pese a pressão da

tradição e dos rigores do culto para que os seus objetos se conservem tal como nos primórdios

da tradição considerada, a verdade é que a transformação material de objetos de culto podem

ser influenciadas por diversos fatores. Entre tantos possíveis, deve se considerar a

possibilidade de escassez de matérias-primas tradicionalmente usadas para confeccionar os

objetos. De igual maneira, a intervenção de novas técnicas e materiais novos pode trazer suas

contribuições a esta superposição de temporalidades. Para além disto, em sua interação com a

sociedade envolvente, um culto pode ir se modificando e conseqüentemente imprimindo

novas modificações nos objetos de cultura material que utiliza, na maneira de utilizá-los, na

sua interconexão com outros objetos, na carga simbólica que carregam. As transformações

sociais, enfim, materializam-se nos objetos de cultura material – de modo que estes podem ser

examinados como sintomas das sociedades que os produziram. A tudo isto, enfim, deve estar

atento o historiador da cultura material que se aproxima de um culto religioso com o fito de

procurar entender a sociedade que instituiu as suas bases principais.

Para encurtar uma discussão que poderia seguir adiante indefinidamente, já que ao

historiador da cultura material apresentam-se inúmeros lugares, objetos e materiais prontos a

favorecê-lo em sua viagem de conhecimento histórico, lembraremos que para uma boa análise

historiográfica o objeto é sempre o ponto de partida na pesquisa, e não o resultado ou a

ilustração dela. Através do objeto, o historiador deve mostrar-se capaz de ler relações de

poder, identificar padrões de pensamento e processos de simbolização, perceber

hierarquizações sociais e funcionais, compreender as tensões que surgem entre a vida humana

e a sua apropriação dos objetos e materiais que os homens encontram na natureza para

transforme-los em seguida. Captar em um objeto simples toda a complexidade social, enfim, é

o grande desafio do historiador da cultura material.

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