História da Feijoada

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  • 8/14/2019 Histria da Feijoada

    1/7Sabores do Brasil 33

    Rodrigo Elias

    Feijoada:breve histria deuma instituiocomestvel

    Opaladar no to universal como a fome, disse Lus daCmara Cascudo em 1968. O ilustre etngrafo e maisimportante folclorista do Pas referia-se a um prato bra-sileiro, talvez o mais tipicamente brasileiro: a feoada. Para ele, era

    preciso uma predisposio especial para que se pudesse apreciaros sabores do prato, assim como para usufruir de todas as nuanas

    de certos vinhos. Em outras palavras, a culinria e mesmo a sim-ples apreciao desta pressupe a educao de um importantesentido, o paladar. Por isso, bom conhecer um pouco da trajetria

    dessa instituio nacional que, alm de ser uma das mais perenes,tem a vantagem de ser comestvel.

    Convencionou-se que a feoada foi inventada nas senzalas.

    Os escravos, nos escassos intervalos do trabalho na lavoura, cozi-nhavam o feo, que seria um alimento destinado unicamente a

    eles, e juntavam os restos de carne da casa-grande, partes do porcoque no serviam ao paladar dos senhores. Aps o nal da escra-vido, o prato inventado pelos negros teria conquistado todas as

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    classes sociais, para chegar s mesas de carssimos restaurantes no

    sculo XX.Mas no foi bem assim.A histria da feoada se quisermos tambm apreciar seu

    sentido histrico nos leva primeiro histria do feo. O feo-pre-to, aquele da feoada tradicional, de origem sul-americana. Os

    cronistas dos primeiros anos de colonizao j mencionam a igua-

    ria na dieta indgena, chamado por grupos guaranis ora comanda,ora coman, ora cuman, j identicando algumas variaes e subes-pcies. O viajante francs Jean de Lry e o cronista portugus Perode Magalhes Gndavo, ainda no sculo XVI, descreveram o feo,

    assim como o seu uso pelos nativos do Brasil. A segunda edio dafamosa Historia Naturalis Brasiliae, do holands Willen Piso, revista

    e aumentada em 1658, tem um captulo inteiro dedicado nobresemente do feoeiro.

    O nome pelo qual o chamamos, porm, portugus. Na po-

    ca da chegada dos europeus Amrica, no incio da Idade Moder-na, outras variedades desse vegetal j eram conhecidas no VelhoMundo, aparecendo a palavra feio escrita pela primeira vez, em

    Portugal, no sculo XIII (ou seja, cerca de trezentos anos antes doDescobrimento do Brasil).

    Apenas a partir de meados do sculo XVI, comeou-se a in-troduzir outras variedades de feo na colnia, algumas africanas,

    mas tambm o feo consumido em Portugal, conhecido comofei-

    jo-fradinho (de cor creme, ainda hoje muito popular no Brasil, uti-

    lizado em saladas e como massa para outros pratos, a exemplo dotambm famoso acaraj). Os cronistas do perodo compararam asvariedades nativas com as trazidas da Europa e frica, e foram ca-

    tegricos, acompanhando a opinio do portugus Gabriel Soaresde Souza, expressa em 1587: o feo do Brasil, o preto, era o mais

    saboroso. Caiu no gosto dos portugueses.

    As populaes indgenas obviamente o apreciavam, mas ti-

    nham preferncia por outro vegetal, a mandioca, raiz que comiamde vrias formas e at transformavam em bebida fermentada, o

    cauim e que caiu tambm nas graas dos europeus e dos africa-nos. A mandioca era o alimento principal dos luso-americanos dacapitania de So Paulo, os paulistas, que misturavam sua farinha

    carne cozida, fazendo uma paoca que os sustentava nas suasinterminveis viagens de caa a ndios para a escravizao. Mastambm comiam feo. Feo-preto.

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    O feoeiro, em todas as suas variedades,

    tambm facilitou a xao das populaes no

    territrio luso-americano. Era uma cultura es-sencialmente domstica, a cargo da mulher e das

    lhas, enquanto o homem se ocupava com as

    outras plantaes e com o gado. A facilidade domanejo e seus custos relativamente baixos ze-ram com que a cultura do feo se alastrasse no

    sculo XVIII entre os colonos. Segundo Cascudo,tornou-se lugar-comum nas residncias humil-

    des do interior do Pas a existncia do roadi-nho, no qual era atributo quase que exclusivodas mulheres o apanhar ou arrancar fees.

    A disperso populacional dos sculos XVIII e XIX(at ento a colonizao era restrita s reas lito-rneas), seja por conta dos currais do Nordeste,

    do ouro e dos diamantes do Centro-Oeste ou dasquestes de fronteira com os domnios espanhisno Sul, foi extremamente facilitada pelo presti-giado vegetal. Atrs dos colonos, foi o feo. Ao

    lado da mandioca, ele xava o homem no territ-rio e fazia, com a farinha, parte do binmio que

    governava o cardpio do Brasil antigo.

    No incio do sculo XIX, absolutamente to-dos os viajantes que por aqui passaram e descre-

    veram os hbitos dos brasileiros de ento men-cionaram a importncia central do feo como

    alimento nacional. Henry Koster armou em Re-cife, em 1810, que o feo cozido com o sumo da

    polpa do coco era delicioso. O prncipe Maximi-liano de Wied-Neuwied comeu feo com coco

    na Bahia, em 1816, e adorou. O francs Saint-Hi-

    laire sentenciava, nas Minas Gerais de 1817: Ofeo-preto forma prato indispensvel na mesa

    do rico, e esse legume constitui quase que a nicaiguaria do pobre. Carl Seidler, militar alemo,narrando o Rio de Janeiro do Primeiro Reinado,

    descrevia, em 1826, a forma como era servido:acompanhado de um pedao de carne de rs

    (boi) seca ao sol e de toucinho vontade, repro-duzindo em seguida uma mxima que atraves-saria aquele sculo e constitui ainda hoje, para

    o brasileiro comum, uma verdade insupervel:no h refeio sem feo, s o feo mata a

    fome. Mas, destoando dos outros cronistas, opi-

    nava: o gosto spero, desagradvel. Segundoele, s depois de muito tempo o paladar europeu

    poderia acostumar-se ao prato. Spix e Martius,naturalistas que acompanharam a comitiva daprimeira imperatriz do Brasil, a arquiduquesaaustraca Leopoldina, zeram referncia ali-mentao grosseira de feo-preto, fub de milho

    e toucinho em Minas Gerais. Tambm citaram ofeo como alimento bsico dos baianos, inclusi-ve dos escravos. O norte-americano Thomas Ew-bank, em 1845, escreveu que feo com toucinho

    o prato nacional do Brasil.Porm, o retrato mais vivo do preparo co-

    mum do feo no ainda a feoada foi feito

    pelo pintor francs Jean-Baptiste Debret, funda-dor da pintura acadmica no Brasil, sobrinho e

    discpulo de Jacques-Louis David. Descrevendoo jantar da famlia de um humilde comerciante

    No incio do sculo XIX,absolutamente todos os

    viajantes que por aquipassaram e descreveramos hbitos dos brasileirosde ento mencionarama importncia central

    do feijo como

    alimento nacional.

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    carioca durante a estadia da corte portuguesa noRio de Janeiro, armou que se compe apenas

    de um miservel pedao de carne-seca, de trsa quatro polegadas quadradas e somente meiodedo de espessura; cozinham-no a grande guacom um punhado de fees-pretos, cuja farinha

    cinzenta, muito substancial, tem a vantagem deno fermentar no estmago. Cheio o prato comesse caldo, no qual nadam alguns fees, joga-se

    nele uma grande pitada de farinha de mandio-

    ca, a qual, misturada com os fees esmagados,forma uma pasta consistente que se come com aponta da faca arredondada, de lmina larga. Essarefeio simples, repetida invariavelmente todos

    os dias e cuidadosamente escondida dos tran-seuntes, feita nos fundos da loja, numa sala queserve igualmente de quarto de dormir. Alm de

    professor da Academia Real de Belas-Artes, De-

    bret, que esteve no Brasil entre 1816 e 1831, no-tabilizou-se pela realizao de uma verdadeiracrnica pictrica do pas do incio do sculo XIX,em especial do Rio de Janeiro, na qual constam

    pinturas como Armazm de carne-seca e Negrosvendedores de lingia , alm da referida cena darefeio.

    Portanto, nem s de feo viviam os ho-mens. Os indgenas tinham uma dieta variada, e

    o feo nem mesmo era o seu alimento preferido.Os escravos tambm comiam mandioca e frutas,apesar da base do feo. Mas h o problema da

    combinao de alimentos, tambm levantado

    por Cmara Cascudo na sua belssima Histria daAlimentao no Brasil. Havia, na poca Moderna,entre os habitantes da colnia (sobretudo os de

    Armazm de carne-seca. J. B. Debret (1825). Fonte: Museus Castro Maya Iphan/Minc MEA 0178

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    origem indgena e africana), tabus alimentaresque no permitiam uma mistura completa do fei-

    jo e das carnes com os outros legumes. Entre osafricanos, alis, muitos de origem muulmana ouinuenciados por esta cultura, havia interdio

    do consumo da carne de porco. Como, anal, po-deriam fazer nossa conhecida feoada?

    Na Europa, sobretudo na Europa de he-rana latina, mediterrnica, havia e h, informaCascudo um prato tradicional que remonta pelo

    menos aos tempos do Imprio Romano. Consis-te basicamente em uma mistura de vrios tiposde carnes, legumes e verduras. H variaes de

    um lugar para o outro, porm um tipo de re-feio bastante popular, tradicional. Em Portugal,o cozido; na Itlia, a casoeula e o bollito misto; na

    Frana, o cassoulet; na Espanha, apaella, esta feita base de arroz. Essa tradio vem para o Brasil,sobretudo com os portugueses, surgindo com o

    tempo na medida em que se acostumavam aopaladar, sobretudo os nascidos por aqui a idiade prepar-lo com o onipresente feo-preto, ina-ceitvel para os padres europeus. Nasce, assim,a feoada.

    Segundo Cmara Cascudo, o feo com

    carne, gua e sal, apenas feo. Feo ralo, de

    pobre. Feo todo-dia. H distncia entre feoada

    e feo. Aquela subentende o cortejo das carnes,

    legumes, hortalias. Essa combinao s ocorre

    no sculo XIX, e bem longe das senzalas. O padre

    Miguel do Sacramento Lopes Gama, conhecidocomo Padre Carapuceiro, publicou no jornal

    O Carapuceiro , de Pernambuco, em 3 de marode 1840, um artigo no qual condenava a feoa-da assassina, escandalizado pelo fato de que era

    especialmente apreciada por homens sedentriose senhoras delicadas da cidade isso em uma so-ciedade profundamente marcada pela ideologiaescravocrata. Vale lembrar que as partes salgadas

    do porco, como orelha, ps, e rabo, nunca foramrestos. Eram apreciados na Europa enquanto oalimento bsico nas senzalas era uma mistura defeo com farinha.

    O que se sabe de concreto que as refe-rncias mais antigas feoada no tm nenhu-

    ma relao com escravos ou senzalas, mas sim arestaurantes freqentados pela elite escravocrata

    urbana. O exemplo mais antigo est no Dirio dePernambuco de 7 de agosto de 1833, no qual o Ho-tel Thtre, de Recife, informa que s quintas-fei-ras seriam servidas feoada brasileira (refe-

    rncia ao carter adaptado do prato?). No Rio de Janeiro, a meno feoada servida em restau-rante espao da boa sociedade aparece pela

    primeira vez noJornal do Commercio de 5 de janei-ro de 1849, em anncio sob o ttuloA bela feioada

    brasileira: Na casa de pasto junto ao botequim

    da Fama do Caf com Leite, tem-se determinado

    que haver em todas as semanas, sendo s terase quintas-feiras, a bela feoada, a pedido de mui-

    tos fregueses. Na mesma casa continua-se a daralmoos, jantares e ceias para fora, com o maiorasseio possvel, e todos os dias h variedade na

    comida. noite h bom peixe para a ceia.

    O que se sabe de concreto que as referncias mais

    antigas feijoada notm nenhuma relaocom escravos ou senzalas,mas sim a restaurantesfreqentados pela elite

    escravocrata urbana.

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    Nas memrias escritas por Isabel Burton,

    esposa do aventureiro, viajante, escritor e diplo-mata ingls Richard Burton, em 1893, remeten-do-se ao perodo em que esteve no Brasil, entre

    1865 e 1869, aparece um interessante relato so-bre a iguaria. Falando sobre a vida no Brasil (seumarido conquistou a amizade do imperador D.

    Pedro II, e ela compartilhou do requintado crcu-lo social da marquesa de Santos, amante notriado pai deste, D. Pedro I), Isabel Burton diz que

    o alimento principal do povo do Pas segundoela equivalente batata para os irlandeses umsaboroso prato de feo (a autora usa a pala-

    vra em portugus) acompanhado de uma fari-nha muito grossa (tambm usa o termofarinha),normalmente polvilhada sobre o prato. O julga-

    mento da inglesa, aps ter provado por trs anosaquilo a que j se refere como feoada, e lamen-tando estar h mais de duas dcadas sem sentir

    seu aroma, bastante positivo: deliciosa, e eume contentaria, e quase sempre me contentei, de

    jant-la.

    A Casa Imperial e no escravos ou ho-

    mens pobres comprou em um aougue de Pe-trpolis, no dia 30 de abril de 1889, carne verde

    (fresca), carne de porco, lingia, lingia de san-gue, rins, lngua, corao, pulmes, tripas, entreoutras carnes. D. Pedro II talvez no comesse al-

    gumas dessas carnes sabe-se de sua prefernciapor uma boa canja de galinha , mas possvelque outros membros de sua famlia, sim. O livro

    O cozinheiro imperial, de 180, assinado por R. C.

    M., traz receitas para cabea e p de porco, almde outras carnes com a indicao de que sejam

    servidas a altas personalidades.Hoje em dia no h apenas uma receita

    de feoada. Pelo contrrio, parece ser ainda um

    prato em construo, como armou nosso folclo-rista maior no nal dos anos 1960. H variaes

    aqui e acol, adaptaes aos climas e produeslocais. Para Cmara Cascudo, a feoada no um

    simples prato, mas sim um cardpio inteiro. NoRio Grande do Sul, como nos lembra o pesqui-

    sador Carlos Ditadi, ela servida como prato deinverno. No Rio de Janeiro, vai mesa de veroa vero, todas as sextas-feiras, dos botecos maisbaratos aos restaurantes mais sosticados. O que

    vale mesmo a ocasio: uma comemorao, umaconfraternizao, a antecipao do m-de-sema-na no centro nanceiro carioca, ou at mesmo

    uma simples reunio de amigos no domingo.Um cronista brasileiro da segunda me-

    tade do sculo XIX, Frana Jnior, chegou a di-zer mesmo que a feoada no era o prato em si,

    mas o festim, a patuscada, na qual comiam todoaquele feo. Como na Feioada completa de ChicoBuarque: Mulher / Voc vai gostar / T levandouns amigos pra conversar. O sabor e a ocasio,portanto, que garantem o sucesso da feoada.

    Alm, claro, de uma certa dose de predisposi-o histrica (ou mtica) para entend-la e apre-

    ci-la, como vm fazendo os brasileiros ao longo

    dos sculos.

    Bibliografia:

    CASCUDO, Lus da Cmara. Histria da Alimentao noBrasil. 2a edio. Belo Horizonte; So Paulo: Ed. Itatiaia;Ed. da USP, 1983 (2 vols.).

    DITADI, Carlos Augusto da Silva. Feoada completa.

    in: Revista Gula. So Paulo, no 67, outubro de 1998.DRIA, Carlos Alberto. Culinria e alta cultura no Bra-

    sil. in: Novos Rumos. Ano 16, no

    3, 2001.

    Rodrigo EliasMestre em Histria Moderna e Contempornea pelaUniversidade Federal Fluminense e doutorando em

    Histria Social na Universidade Federal doRio de Janeiro